Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

As Aventuras Do Dr. John Thorndyke
As Aventuras Do Dr. John Thorndyke
As Aventuras Do Dr. John Thorndyke
Ebook430 pages6 hours

As Aventuras Do Dr. John Thorndyke

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

Na virada do século XX, Richard Austin Freeman (1862-1943) emergiu como um autor relevante no gênero da ficção policial, introduzindo o altamente memorável médico forense e detetive científico Dr. John Thorndyke. Armado com sua pequeno maleta verde cheia de apetrechos científicos, Thorndyke desvendou assassinatos e outros crimes misteriosos usando evidências lógicas e materiais. Este volume reúne sete das histórias mais intrigantes de Thorndyke, incluindo Os Sapatos Cravejados de Pregos , A Chave do Estranho, e Uma Mensagem do Fundo do Mar .
LanguagePortuguês
Release dateJun 26, 2022
As Aventuras Do Dr. John Thorndyke

Related to As Aventuras Do Dr. John Thorndyke

Related ebooks

General Fiction For You

View More

Related articles

Related categories

Reviews for As Aventuras Do Dr. John Thorndyke

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    As Aventuras Do Dr. John Thorndyke - Richard Austin Freeman

    covera1463x2239.jpg

    Sumário

    PREFÁCIO

    OS SAPATOS CRAVEJADOS DE PREGOS

    A CHAVE DO ESTRANHO

    O ANTROPÓLOGO LEIGO

    A LANTEJOULA AZUL

    O CRIPTOGRAMA MOABITA

    A PÉROLA DO MANDARIM

    A ADAGA DE ALUMÍNIO

    UMA MENSAGEM DO FUNDO DO MAR

    Sobre o Autor

    Sobre o Tradutor e Editor

    Este trabalho é dedicado ao meu amigo Frank Standfield pelas inúmeras noites dedicadas à obtenção de imagens científicas em seu microscópio e que viabilizaram os experimentos descritos neste volume.

    *****

    capa_ogrunge.jpg

    Título original: John Thorndyke's Cases

    Autor: R. Austin Freeman (Richard Austin Freeman)

    Ano de publicação da versão original em inglês: 1909

    Copyright desta edição brasileira © 2022 Silvio Sergio Pacheco Sampaio 

    Capa: Silvio Sergio Pacheco Sampaio

    Imagem de Capa: vintages photos by ArthurHidden on freepik.com.

    1ª edição em língua portuguesa 2022.

    Freeman, Richard Austin

    As aventuras do Dr. John Thorndyke – A chave do estranho / Richard Austin Freeman / Tradução: Silvio Sergio Pacheco Sampaio - - 1ª Edição – Rio de Janeiro:__, 2022 Págs.: ebook.

    ISBN: 978-65-00-47202-8

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou utilizada, por qualquer meio, sem permissão por escrito do editor e tradutor, exceto trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas e periódicos. 

    Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens e eventos retratados neste trabalho são resultados da inventividade do autor e utilizados em contexto fictício. 

    PREFÁCIO

    As histórias desta coleção, na medida em que constituem um ponto de partida para algo novo na classe da literatura de mistérios, requerem algumas palavras iniciais de esclarecimento. A principal função de toda ficção é fornecer entretenimento ao leitor, e esse fato não foi perdido de vista neste trabalho. Mas o interesse da assim chamada ficção de detetive, creio eu, é grandemente realçado por uma adesão cuidadosa ao que é provável e uma estrita prevenção das impossibilidades físicas; e, de acordo com essa crença, tenho sido escrupuloso ao me limitar a descrever fatos autênticos e métodos praticáveis no mundo real. As histórias, em sua maior parte, têm um motivo médico-legal e os métodos de solução nelas descritos são semelhantes aos empregados na prática real pelos médicos legistas. As histórias aqui presentes, de fato, ilustram a aplicação dos métodos comuns de pesquisa científica na detecção de crimes. Devo acrescentar que os experimentos descritos em todos os casos foram testados no mundo real por mim.

    Aproveito esta oportunidade para agradecer aos meus amigos que me ajudaram de várias maneiras, e especialmente ao amigo a quem dediquei este livro, por quem fui dispensado do considerável trabalho de registrar as imagens das amostras ao microscópio e muito auxiliado na obtenção e preparação de espécimes.

    Richard Austin Freeman

    Gravesend, Inglaterra

    21 de setembro de 1909.

    *****

    OS SAPATOS CRAVEJADOS DE PREGOS

    Acredito que haja poucos lugares, mesmo na costa leste da Inglaterra, mais solitários e remotos do que a vila de Little Sundersley (Pequena Sundersley) e a região que a circunda. Longe de qualquer ferrovia, e a vários quilômetros de qualquer cidade minimamente desenvolvida, permanece apenas como um posto avançado da civilização, em que as maneiras e os costumes primitivos e as tradições do velho mundo perduram, contrastando com os inúmeros outros lugares que já os esqueceu. No verão, é verdade, um pequeno contingente de visitantes de espírito aventureiro, embora em sua maioria de hábitos calmos e solitários, aparece para engrossar sua escassa população e dar aos largos trechos de areia lisa que emolduram seu litoral um fugaz ar de vida e alegria sóbria; mas no final de setembro - a estação do ano em que eu conheci essa vila - suas pastagens ficam desoladas, os caminhos acidentados ao longo dos penhascos raramente são pisados por pés humanos e as areias são um deserto no qual, por vários e infindáveis dias, nenhuma pegada aparece, exceto aquela deixada por alguma ave marinha errante.

    Meu agente de saúde, o Sr. Turcival, garantiu que eu encontraria nesse lugar as condições necessárias ao reequilíbrio de minha saúde física e mental, afirmando que era uma pousada extremamente confortável e adequada a um homem estudioso e muito ocupado; e certamente ele não me enganou, pois os pacientes a serem atendidos na região eram na verdade tão poucos que fiquei bastante preocupado com o que pensaria meu diretor, e bastante enfastiado por falta de trabalho. Portanto, quando meu amigo John Thorndyke, o conhecido detetive e especialista médico-legal, propôs vir para cá e ficar comigo por um fim de semana, e talvez até mais alguns dias, acatei a proposta com alegria e o recebi de braços abertos.

    Você certamente não parece estar sobrecarregado, Jervis, observou ele, ao sairmos pelo portão de meu domicílio na vila, depois do chá, no mesmo dia de sua chegada, para um passeio na praia. Essa folga toda é uma prática nova, ou é coisa antiga já em estado de decadência senil?

    Olha, o fato é que virtualmente não há prática. Cooper, meu diretor, está aqui há cerca de seis anos e, como tem seus próprios conceitos pessoais já estabelecidos, nunca fez qualquer esforço sério para construir uma prática; além disso, o outro médico, o Dr. Burrows, é incomumente insensível, e as pessoas deste lugar muito conservadoras. Desse modo, Cooper nunca realmente ‘meteu o pé’ em tudo e tentou mudar as coisas aqui. Na verdade, nada disso parece incomodá-lo.

    Bem, se ele está satisfeito, suponho que você está, disse Thorndyke, com um sorriso. Você está tirando férias à beira-mar e sendo pago por isso. Por falar nisso, eu não imaginava que você estava tão perto do mar...

    Enquanto ele falava, entramos em um corredor artificial que cortava o penhasco, formando uma trilha íngreme até a costa baixa. Essa passagem era localmente conhecida como Sundersley Gap (Desfiladeiro de Sundersley) e era usada principalmente, quando usada, por carroças de fazendeiros que desciam para coletar algas marinhas depois de algum vendaval.

    Que magnífico trecho de areia!, continuou Thorndyke, quando chegamos à praia e ficamos olhando para o mar através da orla deserta. Há algo muito majestoso e solene em uma grande extensão de costa arenosa quando a maré baixa, e eu não conheço nada que seja capaz de transmitir a mesma impressão de solidão de forma tão completa. A superfície lisa e quase ininterrupta não apenas se mostra desocupada neste momento, como também oferece um testemunho convincente de que permaneceu assim, imperturbável, durante um considerável lapso de tempo. Aqui, por exemplo, temos evidências claras de que por vários dias apenas dois pares de pés, além dos nossos, pisaram nesta trilha.

    Por que você imagina que já são 'vários dias' sem visitantes por aqui? O que te faz pensar isso?, eu perguntei.

    Bem, você sabe que sempre observo tudo muito atentamente, e cheguei a essa conclusão da maneira mais simples possível, respondeu Thorndyke. A lua está agora no quarto minguante, consequentemente, temos agora as chamadas ‘marés mortas’, ou seja, o menor nível de maré possível neste litoral. Você pode ver claramente as duas linhas paralelas de refugos de algas sobre estas areias que indicam as marcas das marés vivas, o nível mais alto das águas, e, como eu já disse, das marés mortas, o nível mais baixo das águas do mar, respectivamente. A faixa de areia relativamente seca entre elas, sobre a qual a água não chega há vários dias, está marcada por apenas dois conjuntos de pegadas, como você pode ver, e essas pegadas não serão completamente obliteradas pelo mar até a próxima maré viva – ou seja, daqui a quase uma semana a partir de hoje.

    Oh, sim. Mesmo acompanhando você há um bom tempo, nem sempre fico alerta para esses detalhes – além disso, estou aqui a fim de repousar minha mente, como você sabe. Contudo, a coisa toda parece bastante óbvia quando se ouve uma explicação. Por outro lado, não sei se você pensa o mesmo, mas acho realmente muito estranho que ninguém tenha passado por essa vereda dias e dias seguidos, e então quatro pessoas decidem vir até aqui dentro de um curto intervalo de tempo...

    O que te faz pensar que eles fizeram isso?, Thorndyke perguntou.

    Bem, esses dois conjuntos de pegadas parecem bem recentes e parece terem sido feitos quase ao mesmo tempo.

    Discordo de você, Jervis. Não foram feitas ao mesmo tempo, respondeu Thorndyke. Certamente há um intervalo de várias horas entre elas, embora precisamente quantas horas não possamos julgar, já que tem havido tão pouco vento ultimamente para perturbá-las - mas um pescador inquestionavelmente passou aqui não mais de três horas atrás... Devo dizer que foi provavelmente dentro de uma hora atrás... Ao passo que o outro homem - que parece ter vindo de um barco para buscar algo de peso considerável - voltou pela fenda certamente não menos, e provavelmente mais, do que quatro horas atrás.

    Olhei para meu amigo com um espanto absoluto, pois esses eventos aconteceram dias antes de eu ter me juntado a ele como seu assistente, e seus conhecimentos especiais e poderes de inferência acima dos meros mortais não tinham sido até então totalmente avaliados por mim.

    Está claro, Thorndyke, que as pegadas têm um significado muito diferente para você do que têm para mim. Não vejo absolutamente como você chegou a qualquer uma dessas conclusões...

    Suponho que não, foi a resposta. Mas entenda que conhecimento especial desse tipo é o ‘estoque’ acumulado pelo médico legista já experiente, e deve ser adquirido por meio de muito estudo, observação, e vivência - embora o presente exemplo seja de muita simplicidade. Mas vamos analisá-lo ponto por ponto. Primeiro vamos esmiuçar este conjunto de pegadas que deduzi serem de um pescador. Observe seu tamanho avantajado. Devem ser pegadas de um sujeito muito grande - um gigante. Mas, contraditoriamente, o comprimento da passada mostra que foram feitas por um homem deveras baixo. Em seguida, observe a solidez das solas do calçado que marcou esta areia e o fato de que não há tachas nelas. Observe também o passo peculiar e desajeitado - as marcas profundas dos dedos dos pés e do calcanhar, como se o andador tivesse pernas de madeira ou tornozelos e joelhos fixos. Desse caráter, podemos inferir com segurança que são solas de botas de cano alto, de couro grosso e rígido. E mais: podemos concluir que são botas de cano alto, maciças e rígidas, com sola sem tachas e muitos números acima do necessário para seu usuário. Sabemos que o único tipo de bota que corresponde a essa descrição é a de pescador – aquele modelo que cobre as pernas até a coxa, impermeável, geralmente feita de tamanho extralargo para permitir que seja usado no inverno com dois ou três pares de meias grossas até a coxa, uma sobre a outra. Agora olhe para as outras pegadas - têm um trilho duplo, não é? Um trecho vindo do mar e outro indo em direção a ele. Esse possível homem, que estava de pernas arqueadas e virando os dedos dos pés para baixo com força, pisou nas próprias pegadas, é óbvio, e veio do mar e voltou para ele. Mas observe a diferença nos dois conjuntos de marcas de pegadas: as que ‘retornam’ para o mar são muito mais profundas do que as outras, e os passos são muito mais curtos. Evidentemente, ele estava carregando algo quando voltou, e esse algo era muito pesado. Além disso, podemos ver, pela maior profundidade das impressões dos dedos dos pés na areia, que ele estava se inclinando para a frente enquanto caminhava e, portanto, provavelmente carregava o peso nas costas. Isso ficou bem claro para você também?

    Perfeitamente, respondi. Mas como você chegou ao intervalo de tempo entre as ‘visitas’ desses dois homens a esta praia?

    Isso também é bastante simples. A maré está agora na metade do curso. Portanto, passaram-se cerca de três horas desde a maré cheia. Agora, o pescador caminhou pela praia quase na maré morta, ou seja, na marca deixada pela maré alta, às vezes acima dela e às vezes abaixo. Mas nenhuma de suas pegadas foi apagada. Desse modo, ele passou aqui após a maré alta - isto é, há menos de três horas. Como suas pegadas estão todas igualmente nítidas, ele não poderia ter passado aqui quando a areia estava excessivamente molhada. Portanto, ele provavelmente passou aqui menos de uma hora atrás. As pegadas do outro homem, por outro lado, alcançam apenas a maré morta, que é a marca mais baixa da maré alta, e somem abruptamente. O mar lavou o restante dos rastros e os obliterou. Portanto, ele passou aqui não menos de três horas e não mais de quatro dias atrás - provavelmente sua passagem por aqui ocorreu nas últimas vinte e quatro horas.

    Depois que Thorndyke concluiu sua explanação, o som de vozes chegou até nós vindos de cima, do alto do penhasco, misturado com o barulho de pisoteio de pés, e imediatamente após isso um grupo de pessoas, muito singulares, apareceu no topo do acesso ao declive que dava acesso à praia onde estávamos. Primeiro veio um pescador baixinho e corpulento, vestido com um casaco de pele e um chapéu, ambos impermeabilizados, próprios para uso no mar, caminhando desajeitadamente em suas grandes botas de pescador, depois o sargento da polícia local em companhia de meu colega de trabalho, Dr. Burrows, enquanto a retaguarda da procissão era provida por dois policiais carregando uma maca. Ao chegar à praia, o pescador, que evidentemente servia de guia, virou-se em direção ao longo da costa, refazendo seus próprios rastros deixados ali mais cedo, e a procissão o seguiu.

    Um médico legista, uma maca, dois policiais e um sargento da polícia..., numerou Thorndyke. O que isso sugere a sua mente, Jervis?

    Uma queda do penhasco, ou um corpo na praia, respondi.

    Provavelmente, ele respondeu. Podemos muito bem caminhar naquela direção também...

    Viramo-nos e seguimos a procissão. Enquanto caminhávamos ao longo da superfície de areia lisa deixada pela maré baixa, Thorndyke retomou sua fala:

    O assunto ‘pegadas’ sempre me interessou profundamente por duas razões: primeiro, as evidências fornecidas pelas pegadas estão constantemente sendo apresentadas em inúmeros casos misteriosos, e muitas vezes são de importância fundamental para resolução deles. E, em segundo lugar, é uma matéria muito fácil de ser submetida a um tratamento investigativo muito sistemático e científico. Em geral, os dados obtidos a partir delas são referentes à anatomia de seus autores, mas idade, sexo, ocupação, saúde e doenças podem ser inferidos a partir das pegadas, visto que, por exemplo, as pegadas de um homem velho serão diferentes das de um jovem da mesma altura - e não preciso apontar para você que as pegadas de uma pessoa que sofre de ataxia locomotora* ou de mal de Parkinson seriam totalmente inconfundíveis.

    * ATAXIA É UMA ALTERAÇÃO NO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO. QUANDO O DISTÚRBIO AFETA MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS DO CORPO É CLASSIFICADO COMO ATAXIA LOCOMOTORA. AQUELES QUE SOFREM DE ATAXIA TÊM PROBLEMAS EM COORDENAR OS MOVIMENTOS DE DIFERENTES PARTES DO CORPO. ALÉM DOS DESLOCAMENTOS DAS PERNAS, BRAÇOS, MÃOS E OUTROS SETORES, A ATAXIA TAMBÉM PODE AFETAR A DEGLUTIÇÃO E A AÇÃO DE MOVER OS OLHOS POR EXEMPLO. 

    Sim, é claro. Isso é bastante óbvio, disse eu.

    Aqui, agora, temos a mesma situação, disse Thorndyke.

    Ele parou e apontou com sua bengala para uma fileira de pegadas que apareceram repentinamente acima da marca d'água alta. Elas persistiam por uma curta distância, cruzavam a linha d´água novamente, e desapareciam no exato ponto em as ondas quebravam e apagavam tudo na superfície da areia da praia. Essas pegadas eram facilmente distinguidas de qualquer uma das outras que analisamos pelas marcas bem claras produzidas por saltos circulares de borracha na área do calcanhar.

    Você percebe algo singular nelas?, Thorndyke me perguntou.

    Percebo que são consideravelmente mais profundas do que as nossas pegadas, respondi.

    Sim. São calçados quase do mesmo tamanho que os nossos, enquanto a passada é consideravelmente mais curta - uma passada muito curta na verdade. Percebo que há uma proporção constante entre o comprimento do pé e o comprimento da perna, o comprimento da perna e a altura da pessoa e entre a estatura e o comprimento da passada. Geralmente um pé longo significa uma perna longa, um homem alto e uma passada longa. Mas aqui temos um pé longo e uma passada curta. O que você acha disso?

    Thorndyke deitou sua bengala - feita de palmeira ráfia, da China, que tinha uma marcação em pequenos traços indicando medidas em polegadas e pés - ao lado das pegadas na areia para demonstrar a discrepância indicada por ele.

    A profundidade destas pegadas mostra que foram feitas pelos pés de um homem muito mais pesado do que qualquer um de nós dois, sugeri. Talvez seja alguém extraordinariamente gordo.

    Sim, essa parece ser a explicação. Carregar um peso morto encurta o passo, e gordura é praticamente um peso morto. A conclusão é que o dono dessas passadas tem cerca de um metro e sessenta centímetros de altura e é excessivamente gordo, disse Thorndyke.

    Ele pegou a bengala e retomamos a caminhada de olho na procissão de homens a nossa frente - eles estavam muito adiante de nós, tanto que desapareceram em uma curva do litoral, e tivemos que melhorar nossos passos para não os perder de vista. Logo chegamos a um pequeno promontório, seguimos pela encosta encurvada do penhasco que emoldura o litoral, e nos deparamos com o grupo que havia nos precedido. Os homens pararam em uma baía estreita e agora olhavam para uma figura caída no areal, ao lado da qual o legista estava ajoelhado.

    Sabe, estávamos errados, observou Thorndyke. Ninguém aqui caiu do penhasco, ou foi arrastado pelo mar. O sujeito caído ali está deitado acima da marca da maré alta, e as pegadas que estivemos examinando parecem ser dele...

    Ao nos aproximarmos, o sargento virou-se, ergueu a mão, e disse:

    Vou pedir que não andem em volta do corpo por enquanto, senhores. Parece que houve um delito aqui, e quero deixar intactas as marcas na areia.

    Reconhecendo a necessidade dessa cautela, avançamos até onde os policiais estavam parados e olhamos com alguma curiosidade para o homem morto. Era um homem alto, de aparência frágil, magro a ponto de parecer esquelético, e aparentava ter cerca de trinta e cinco anos de idade. Estava deitado em uma postura suave, como que dormindo, com os olhos semicerrados, e com uma expressão plácida, que contrastava estranhamente com aquela cena de um corpo abandonado em uma praia semideserta.

    É um caso bastante perceptível de assassinato, disse o Dr. Burrows, espanando a areia dos joelhos ao levantar-se. Há um ferimento profundo no peito, acima do coração, que deve ter causado a morte quase instantaneamente.

    Consegue mensurar há quanto tempo ele está morto, doutor?, perguntou o sargento.

    Há doze horas pelo menos, foi a resposta. Ele está muito frio e rígido.

    Doze horas, hein?, repetiu o oficial. Então o crime teria ocorrido por volta das seis horas da manhã de hoje...

    É apenas uma estimativa, não vou me comprometer com um tempo definido, disse o Dr. Burrows apressadamente. Só posso afirmar que não foi há menos de doze horas. Mas pode ter sido consideravelmente há mais tempo.

    Ah! Ok, disse o sargento. Bem, aparentemente ele lutou muito por sua vida, ao que tudo indica...

    Ele acenou com a cabeça para a areia, que em alguns metros ao redor do corpo apresentava marcas desordenadas e profundas causadas por pés e calçados, como se uma luta furiosa tivesse ocorrido ali.

    É um caso incomum para esta região, prosseguiu o sargento, dirigindo-se ao Dr. Burrows. De mais a mais, parece que ele foi agredido por apenas um homem, pois há apenas um conjunto de pegadas na areia além das do próprio falecido – e, obviamente, temos que descobrir quem é esse agressor. Eu acho que não haverá muitos problemas nisso, vendo o tipo de marca que ele deixou para trás...

    Talvez não seja difícil mesmo... Não deve haver muita dificuldade em identificar as botas que deixaram essas marcas aqui. Parecem ser calçados de um trabalhador braçal, a julgar pelas marcas das tachas do solado...

    Não, senhor, não é um trabalhador, discordou o sargento. O pé é muito pequeno, para começar, e as tachas do solado são irregulares. Elas são também bem menores que aquelas encontradas nas botas de um peão, que teriam esses pequenos pregos em toda a borda e teriam proteção de ferro nos calcanhares e provavelmente biqueiras metálicas para proteger as pontas dos dedos. Veja que não temos aqui marcas de biqueiras e nem de protetores de calcanhares, dado que o desenho das solas e dos saltos na areia são bem uniformes. Acredito que o sujeito estaria usando botas de tiro ou algum tipo de calçado esportivo.

    Enquanto falava, o sargento caminhava de um lado para outro com um pequeno bloco de papel na mão, escrevendo notas rápidas e abaixando-se para examinar as impressões na areia. O legista também se ocupou em anotar os fatos a respeito dos quais deveria oferecer seu testemunho mais tarde. Enquanto isso, Thorndyke olhava em silêncio e com ar de intensa preocupação as pegadas ao redor do corpo, únicas testemunhas conhecidas das circunstâncias daquele crime.

    É bastante claro, até certo ponto, como aconteceu esse crime, e é bastante claro, também, que o assassinato foi premeditado. Veja, doutor, o cavalheiro que perdeu a vida aqui, o Sr. Hearn, estava aparentemente voltando da vila de Port Marston (Porto Marston) para casa, como pudemos observar por suas pegadas ao longo da costa – os vestígios deixados pelos saltos de borracha das botas dele facilitam essa identificação, desse modo, ele não desceu até aqui pela fenda de Sundersley, e nem pretendia subir através dela até o planalto. Ele provavelmente pretendia escalar o penhasco por aquela pequena trilha que você vê logo ali, que as pessoas daqui chamam de Caminho do Pastor. O assassino devia saber que ele vinha andando pela praia e o esperou em alguma parte ali em cima, no penhasco, para enxergar antecipadamente a chegada do Sr. Hearn neste trecho do litoral. Quando viu o Sr. Hearn entrar nesta baía, ele desceu rapidamente pelo caminho e o atacou. Após uma luta difícil, conseguiu esfaqueá-lo mortalmente no peito. Em seguida, o criminoso virou-se e voltou a subir o penhasco pelo Caminho do Pastor. Você pode ver os sinais duplos na areia, de ida e de volta, entre o Caminho do Pastor e este local, onde ocorreu a luta - as pegadas de ida estão claramente sobrepostas àquelas de vinda.

    Se você seguir esses rastros, poderia ser capaz de descobrir para onde o assassino foi..., sugeriu o Dr. Burrows.

    Receio que não, não é tão simples assim, respondeu o sargento. Não deve haver rastros no caminho em si - a rocha lá é muito dura, não há terra solta sobre ela, e o solo acima, no planalto, também não é macio o suficiente para ficar marcado. De qualquer modo, vou examiná-los com atenção.

    Concluídas as investigações no local do crime, o corpo foi colocado na maca e o cortejo, constituído agora pelos dois policiais, que serviram de carregadores, pelo Dr. Burrows e pelo pescador, dirigiu-se para a fenda Sundersley, enquanto o sargento, após civilizadamente nos desejar Boa noite, escalava a escarpa da praia pelo Caminho do Pastor e desaparecia logo acima, nos planaltos.

    Um oficial deveras inteligente, disse Thorndyke. Gostaria de saber o que ele escreveu em seu caderninho de notas...

    Também achei o relato dele acerca das circunstâncias do assassinato muito razoável, disse eu, Jervis.

    Muito. Ele observou os fatos mais simples e essenciais e retirou deles as conclusões naturais. Mas há algumas características muito singulares neste caso... tão singulares que estou disposto a fazer algumas pesquisas e anotações para enriquecer um pouco mais meu repertório de conhecimentos. 

    Nisso, Thorndyke abaixou-se sobre o lugar onde o corpo havia sido abandonado e, depois de ter examinado minuciosamente a areia ali e no lugar onde os pés do morto haviam descansado, tirou seu bloco de notas e fez um pequeno memorando do que viu. Em seguida, ele fez um rápido esboço do mapa da baía, marcando a posição do corpo e das várias impressões na areia. Depois, seguindo a trilha de pegadas duplas que conduzia, ida e volta, de e para o Caminho do Pastor, examinou elas, as pegadas, com a mais profunda atenção, fazendo copiosas notas e esboços em seu caderno de anotações.

    É uma boa ideia subirmos pelo Caminho do Pastor, disse Thorndyke. Acho que estamos bem o suficiente para fazermos essa escalada. Pode haver no trajeto rastros visíveis do assassino, afinal. Ao contrário da fala do sargento, a rocha por lá é de arenito, e também não parece muito dura.

    Aproximamo-nos do sopé da pequena trilha acidentada que subia em ziguezague pela face do penhasco. Agachamo-nos por entre as ervas secas e examinamos o chão. Aqui, na parte baixa do caminho, onde a rocha foi amolecida pelo tempo e se esfarelava com relativa facilidade, havia várias marcas das passadas, bem distintas na superfície, das botas com tachas do assassino, embora estivessem um tanto misturadas com as pegadas deixadas pelo sargento, cujas botas os solados eram mais fortemente reforçados com os pequenos pregos. Mas, à medida que subíamos o penhasco, as marcas deixadas pelo criminoso tornaram-se menos nítidas, e a uma distância bem curta do início da trilha as perdemos por completo - embora não tivéssemos dificuldade em seguir os rastros mais recentes da passagem do sargento por aquela estradinha.

    Quando chegamos ao topo do penhasco, paramos para examinar o caminho que corria ao longo de sua borda. Curiosamente, embora as botas pesadas do sargento tivessem deixado marcas bem visíveis no chão, aqui também não havia sinais de quaisquer outros pés. A uma pequena distância de nós, o próprio oficial sagaz continuava suas investigações, andando para a frente e para trás com o corpo levemente inclinado e com os olhos fixados na direção do chão.

    Nenhum vestígio do autor do crime, em nenhum lugar, nada, disse ele, endireitando-se enquanto nos aproximávamos. Eu temia que não houvesse nada mesmo, com esse tempo seco as marcas no chão desaparecem rápido. Terei que tentar uma abordagem diferente. Este é um lugar pequeno, e se as botas que marcaram a areia da praia pertencerem a alguém que more aqui, com certeza serão reconhecidas.

    O cavalheiro assassinado - Sr. Hearn, acho que você o chamou assim – é nativo daqui?, indagou Thorndyke enquanto virávamos em direção à aldeia.

    Não, não, senhor, respondeu o oficial. Ele é... Bem, ele é quase um estranho para nós. Ele só estava aqui há cerca de três semanas. Mas, você sabe, em um lugar pequeno como este um homem logo se torna conhecido - e suas intenções também, acrescentou ele, com um sorriso.

    Então, qual eram as intenções dele?, perguntou Thorndyke.

    Prazer, gratificação, eu acho. Ele estava aqui de férias, embora esteja um pouco fora da temporada... Mas ele tem um amigo morando aqui, e isso faz a diferença. O Sr. Draper, em Poplars, é um velho amigo dele. Vou visitá-lo agora.

    Continuamos andando pela trilha que conduzia à aldeia. Havíamos avançado apenas uns duzentos ou trezentos metros quando um grito de saudação, bastante estridente, chamou nossa atenção para um homem que vinha correndo pelos campos em nossa direção.

    Ora, ora! Ali está o próprio Sr. Draper!, exclamou o sargento, parando bruscamente e acenando com a mão. Acredito que ele já tenha ouvido a notícia do crime.

    Thorndyke e eu também paramos, obviamente, e, com alguma curiosidade, ponderamos silenciosamente como esse novo partidário se encaixaria no curso da recente tragédia. À medida que o estranho se aproximava, vimos que ele era um homem alto, de aparência atlética, de cerca de quarenta anos, vestido com uma jaqueta em estilo Norfolk, calças curtas completadas com meias altas - ele tinha a aparência de um cavalheiro rural comum, exceto que carregava consigo, ao invés de uma bengala, um bastão para capturar borboletas, cujo aro e rede dobráveis parcialmente se projetavam de um de seus bolsos traseiros.

    É verdade o que ouvi falar por aí, sargento?, ele interrogou enquanto se aproximava de nós, ofegante por causa do esforço na correria. Desculpe-me... Quero dizer... Sobre o Sr. Hearn, corre o boato de que ele foi encontrado morto na praia...

    É verdade, senhor, lamento dizer... E, o que é pior, ele foi assassinado.

    Meu Deus! O senhor não disse isso!, exclamou o homem.

    Ele virou-se para nós com um rosto que julgamos que seria bastante jovial em outros momentos, mas agora estava com expressões assustadas e desbotadas. Após uma breve pausa, ele disse:

    Assassinado? Meu Deus! Pobre Hearn! Como isso aconteceu, sargento? E quando? Há alguma pista do assassino?

    Não temos como afirmar com certeza quando aconteceu... Quanto à questão das pistas, eu estava indo visitá-lo...

    Visitar-me? Por quê?, indagou Draper, com um olhar assustado para o oficial.

    Bem, gostaríamos de saber algumas coisas sobre o Sr. Hearn - quem ele era, se ele tinha algum inimigo, e assim por diante... Qualquer coisa, um fato, que pudesse fornecer uma indicação de onde procurar o assassino. E, aqui, o senhor é a única pessoa que o conhecia intimamente, explicou o sargento.

    O rosto já pálido do Sr. Draper ficou ainda um pouco mais pálido e ele olhou em volta com um ar de óbvio embaraçamento.

    Receio... Receio não ser capaz de ajudá-lo muito... Não sabia muito sobre as atividades dele. Entenda que ele era para mim... Bem, eu tenho apenas um conhecimento casual sobre ele...

    Olha, o senhor pode nos dizer quem era ele, o que ele era, onde morava, e assim por diante. Nós descobriremos o resto se o senhor nos der os dados base, interrompeu o sargento.

    Entendo, disse Draper. Sim, espero que eu possa ajudar...

    Seus olhos olhavam inquietos de um lado para o outro, e ele logo acrescentou:

    Vá amanhã em minha casa, e conversaremos sobre ele. Verei o que consigo lembrar...

    Prefiro ir até sua casa esta noite, disse o sargento com firmeza.

    Não, não nesta noite, implorou Draper. Estou me sentindo um pouco... Esse caso, o senhor sabe... Estou me sentindo abalado com tudo isso. Eu não pude dar a devida atenção...

    Na sequência, sua fala transformou-se em um murmúrio hesitante, e o oficial olhou para ele com evidente surpresa pelo seu jeito estranhamente nervoso e constrangido. Mesmo assim, a atitude do sargento era perfeitamente vigorosa, embora educada.

    Não gosto de pressioná-lo, senhor, mas o tempo é precioso, disse ele. A partir daqui teremos que seguir em fila única... Essa lagoa é um belo incômodo público! Deveriam aterrá-la neste trecho... Bem... Vamos? Depois do senhor, é claro.

    A lagoa a que o sargento aludiu em sua fala evidentemente se estendia pelos terrenos adjacentes a partir de um determinado trecho dos campos onde estávamos. Mas agora, graças ao tempo seco, um estreito istmo lamacento permitia atravessar o pântano sem grandes dificuldades, e ao longo dele o Sr. Draper começou a escolher um caminho no qual seguir. O sargento estava prestes a acompanhá-lo quando de repente parou com os olhos fixos na superfície da estradinha lamacenta e precária. Um único olhar mostrou-me a causa de sua surpresa: na superfície relativamente rígida e semelhante a uma massa, destacando-se com a nitidez de um molde de cera, estavam as pegadas visivelmente recentes de um homem que passara por ali

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1