O Sexto Vigia
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O Sexto Vigia - SILVANIO M NUNES
Pietro, o primeiro vigia
Cruz Gótica.pngAqui começa a estranha história
da primeira vítima da maldição
do Campo dos Anjos.
Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1981. Cemitério Campo dos Anjos no Morro dos Coveiros. Um choro copioso e soluços se misturavam com o som de passos de um grupo de cerca de vinte e cinco pessoas, todas tomadas por uma profunda tristeza que se deslocava avançando num cortejo fúnebre. Na frente cercado por alguns parentes mais próximos um carrinho de ferro com rodas maciças de borracha ia estremecendo pelo caminho pavimentado de pedras irregulares assentadas há décadas. Ele carregava um pequeno caixão branco. Um homem devastado no lado direito tinha uma das mãos no puxador e na outra um brinquedo que talvez fosse um dos preferidos da criança morta. Todos iam em direção de uma cova preparada há poucas horas antes onde dois funcionários da necrópole estavam aguardando com suas caras apáticas e murchas. Para os coveiros aquilo era apenas e nada mais do que seu trabalho. Já estava quase na hora do almoço, eles só pensavam em encher suas barrigas limpando suas marmitas e tirar um cochilo em qualquer canto para descansar seus esqueletos durante as duas horas de intervalo garantidas pelo contrato de trabalho. Entretanto, enterrar uma pobre criança chegava a deixá-los profundamente tristes. Praticamente quase estragava o dia, mesmo os dois tendo passado tantos anos lidando com a morte, com a dor e com o choro. Pelos murmúrios dava para quase descobrir o que tinha ocorrido com o defuntinho. Depois de nascer prematuro de seis meses devido a uma severa eclâmpsia da mãe e lutar pela vida dentro de uma UTI neonatal por mais de três meses, finalmente foi para sua casa. Entretanto, um mês após completar dois anos enquanto brincava no quintal com seus pais foi alvejado desgraçadamente por uma bala que o encontrou. A pior e mais difícil hora chegara: Não levem minha vida, por favor, suplicava uma mãe destruída pela tragédia. Antes de baixar a urna tétrica numa tenebrosa cova previamente escavada de um metro de fundura no gramado numa terra preta e úmida, um dos que estavam ali, um pastor luterano com seu terno cinza, repetiu um verso das sagradas escrituras para fortalecer e consolar os espíritos dos que ficaram: Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.
E um dos que acompanhavam a cerimônia completou: Do pó viestes e para o pó retornarás. No caso daquela pequena criatura a metamorfose da matéria foi rápida demais. De forma muito delicada e respeitosa, os dois homens de uniformes laranjas com suas luvas de borracha amarelas e botas pretas despejavam de volta ao buraco a terra fria cobrindo o caixão do anjinho. Na medida em que o buraco diminuía com as pás de terra lançadas sobre a caixa alva, o choro de uma mãe destruída aumentava inversamente. Um homem, provavelmente o pai, atirou um bonequinho daqueles super-heróis coloridos e famosos do cinema. Duas coroas de flores coloridas como o brinquedo cobriram o montinho da terra remexida. Estava tudo terminado. Os dois homens apanhavam suas ferramentas quando um deles toca no braço do outro apontando para adiante com os olhos. Então os dois mais uma vez viram o gato preto que vivia entre os túmulos já por muitos anos. Permanecia parado distante há poucos metros como se estivesse acompanhando o ritual fúnebre. O discreto animal atento à movimentação sempre estava presente nas cerimônias, mas todas eram sempre de crianças pequenas. Parecia que isso o atraia. A luminescência diurna vencida agora pelas trevas já da madrugada espargiam uma quietude sobre a mais nova sepultura. Emanando da escuridão com seu caminhar sereno e silencioso surgia o esguio animal que se mesclava com as trevas. Aproximou-se das coroas depositadas sobre a terra revolvida, farejou a terra que exalava morte e ali permaneceu sentado sobre a cova. Com a aurora de um novo dia o vigia noturno tomado de horror se deparou com a cova da criancinha completamente remexida. As coroas de flores estavam afastadas, bagunçadas e cobertas parcialmente com a terra preta. Estarrecido com olhos arregalados com o buraco ficou paralisado. O caixão com seu corpo havia desaparecido. Aquela não foi a primeira e nem seria a última ocorrência de violação de sepulturas no Campo dos Anjos. O vigia chamado Pietro que já estava para ser substituído por sua rendição do turno do dia foi em busca de ajuda. Sabia que estava sozinho e não podia contar com ninguém, mas o dia avançava próximo já das sete horas. Percorreu apressado pelas ruas do lugar atrás de algum sinal que o levasse aos rastros dos criminosos. Logo seu colega de trabalho estaria lhe aguardando no portão principal. Aproximando-se da entrada ele recebeu seu Luciano, um homem já bem vivido. Um policial reformado na plenitude dos seus sessenta anos. Depois de revelada a violação de mais uma sepultura seu Luciano ligou para seu encarregado e não passou mais de meia hora para encostar duas viaturas da polícia em frente ao pórtico do Campo dos Anjos e mais um Fiat 147 branco. Ao redor do buraco deixado pelos ladrões de corpos, estavam alguns policiais, o vigia Pietro, seu Luciano, o administrador Celestino Bonifácio que também era zelador do cemitério e mais Walter Hulshof o jornalista atrás de informações como uma ave de rapina atrás de carniça, era dessa forma que os funcionários o enxergavam ali com sua câmera fotográfica.
— Eles agiram mais uma vez, malditos vândalos — rosnou Celestino com a voz baixa ao homem ao seu lado. — Você tem certeza que não viu nada de diferente, nenhuma movimentação, Pietro?
— Não, senhor Celestino. Foi um turno tranquilo sem nenhuma ocorrência, posso garantir — disse o vigia removendo a coroa de flores que ficou jogada no meio da travessa.
— Não se respeita mais nada, meu Jesus — suspirou Luciano, o vigilante mais experiente do quadro.
Um policial removia com o emprego de luvas de látex uma das coroas murchas de flores atrás de alguma pista. Tudo que encontrou foi um bonequinho de plástico sujo de terra que já não estava tão colorido agora. O jovem repórter policial com óculos de lentes grossas e esverdeadas fotografava a cova aberta. Duas fotos são mais que suficientes, ele calculou em seus pensamentos. Ele estava ali graças ao seu informante dentro do departamento da polícia civil fluminense.
— Se o senhor souber de alguma novidade, por favor, ligue para mim. Eis aqui meu cartão.
O administrador apanhou o cartão prontamente e passou os olhos nos dois números de telefones da redação e no seu nome impresso em itálico: Walter Hulshof.
— Pode deixar. Decerto eu lhe avisarei se tiver novidades — assegurou com um sorriso no canto da boca coberta por um ralo bigode grisalho.
Hulshof mal deixara a cena do crime quando o homem negro e careca atirou seu cartão para o fundo da cova revirada.
— Esses jornalistas — disse meneando a cabeça olhando para seus vigilantes. — Vamos ter problemas.
E Celestino estava correto. Naquela mesma semana a família que tinha sepultado a criança vítima de bala perdida exigia que providências fossem tomadas imediatamente. Os pais acionaram a Justiça para a resolução do caso. E para piorar a situação do administrador e das autoridades municipais o ocorrido chamou a atenção da mídia provocando outras denúncias contra a necrópole onde outros crimes dessa natureza já haviam ocorrido.
* * *
Seis meses depois
Na madrugada de 30 de junho de 1982. Uma voz empostada e sensualizada do locutor de uma rádio FM anunciava uma lista com as principais músicas e seus intérpretes que seriam tocadas naquela sessão romântica da madrugada. Pietro ouvia a primeira banda depois de escutar passivo outra lista, agora de patrocinadores regionais. A música da década passada trazia-lhe uma nostálgica recordação. A lembrança da mãe, e de sua adolescência deixada alguns anos para trás. Podia enxergar em suas memórias recentes ela usando seu avental de cozinheira estampado com flores ouvindo The Manhattans cantando Kiss and Say Goodbye tocada na sua vitrola Sonata enquanto dedicadamente preparava as refeições para seus fregueses em sua famosa pensão na Ponta d’Areia em Niterói. A maioria dos seus hóspedes eram operários do estaleiro do Barão de Mauá. Depois tocou YMCA do Village People. Em seguida You Needed Me de Anne Murray, lá pela metade da canção decidiu desligar seu minúsculo rádio de bolso. A música de tão romântica e serena era um convite para qualquer criatura cair em sono profundo. Tudo que seu corpo mais desejava era poder dormir. Impedindo que sua natureza conspirasse contra si decidiu fugir daquela armadilha perigosa para um trabalhador, ainda mais para um vigia noturno. "O sono é o espelho da morte para um soldado." Como sempre alertava o seu encarregado Jurandir um fuzileiro naval reformado. Acatando prudentemente as palavras relembradas do seu chefe, pois deu um fim naquela batalha contra o sono e levantou-se da cadeira. Apanhou e pendurou seu cassetete na cintura. Conferiu se a luz da lanterna estava ok e pôs-se a iniciar a sua segunda e última ronda da noite. Duas ou três rondas eram suficientes para sua jornada de trabalho, quantidades estas exigidas pelo ex-militar. A primeira ronda Pietro costumava fazer às 20h30, depois ia jantar e descansar por uma hora. A segunda e muitas vezes a última ronda da noite era por volta das 03h00 da madrugada. E finalmente retornava para o casarão e aguardava pelo fim do seu turno às 07h00 da manhã, a hora que sua rendição chegava.
O rapaz de apenas vinte anos, magro e de estatura média, botou o boné na cabeça ajeitando sua aba, fechou a porta, checou as horas no seu Casio G Shock digital às 02h55 e iniciou sua caminhada. Pietro seguia sempre metodicamente o mesmo trajeto. Caminhava pelas alamedas paralelas ao muro que delimita o espaço. Seguia uns 80 metros para a esquerda e mais um tanto para a direita. Em seguida pegava a alameda principal que cortava o local e terminava na Zona Morta. Bem nos fundos do Campo dos Anjos na mata fechada nas encostas do Morro dos Coveiros.
Já fazia mais de seis meses que a sepultura de uma criança tinha sido violada e tudo indicava que seu corpo tinha sido roubado. Dez dias antes das Festas de Fim de Ano durante seu turno, já no final o sinistro evento quase lhe custou o emprego. A possibilidade dos ladrões agirem novamente enchia sua mente de preocupações e temores constantemente. Como reagiria se desse de frente com esses criminosos? Conseguiria correr a tempo para avisar a polícia pelo telefone? Estariam eles armados? Se estivessem o matariam?
Morrer no meio da madrugada dentro de um cemitério era uma possibilidade terrivelmente provável para Pietro. Era um pensamento terrível que gelava seu corpo. Atormentado imaginava a notícia nos jornais sobre um jovem vigia morrendo como um herói protegendo a dignidade dos que já tinham partido e ironicamente se juntando a eles. Mas era tão jovem para morrer. Não tinha alcançado seus sonhos. Não se casaria com sua noiva. Não teria filhos. Não teria construído sua própria família. Provavelmente sua noiva lamentaria sua partida por um tempo e depois naturalmente o esqueceria arranjando outro amor, casaria, teria filhos, netos, envelheceria e viveria enfim... Pietro seria só um momento triste da sua vida. O que seria de sua mãe? Quem iria cuidar dela na velhice?
Envolvido e cercado por seus temores como se fossem demônios raivosos, continuava caminhando cumprindo seu dever apontando sua lanterna jogando seu facho de luz para dentro das vias perpendiculares. Ele podia muito bem se enfiar no casarão e aguardar pelo final do seu turno. Contudo recebia seu salário para vigiar. Deveria, portanto, chutar seu medo e cumprir sua função. Precisava se concentrar na vigília e pôr de lado seus temores antes que seu medo se fortalecesse. Se outro evento semelhante ocorresse estaria em maus lençóis. Faltavam uns cem metros para chegar ao final da alameda, nomeada com o nome de uma flor do cerrado, Alameda Flamboyant. Logo estaria de volta ao casarão, ouviria um pouco mais de música no seu rádio e estaria com paz de espírito e em conformidade com seu dever. Mais um período sem ocorrências chegaria ao seu fim. Iria para casa, voltaria para ajudar sua mãe na cozinha da pensão. Depois do almoço buscaria sua futura mulher, mãe dos seus filhos, aquela com quem se casaria e viveria até encontrar-se já um homem idoso e realizado. Aquele trabalho de vigia noturno só duraria por um pouco mais de tempo. Tinha estudado o suficiente para encontrar algo mais tranquilo e de melhor remuneração. Um trabalho que lhe permitisse voltar ao seu curso na faculdade de Direito. Faltava muito pouco para concluir o planejado quando o jovem vigia se deparou com uma visão grotesca. Uma visão que lhe assaltou a paz.
Uma cova estava revirada e há três metros de distância do buraco um homem de costas acomodava um pequeno ataúde no ombro. Pietro congelou. Estava diante do ladrão de corpos. Que sujeito terrível seria aquele para fazer algo tão abominável. O homem, ele pôde enxergar melhor, não era algo que nem de perto imaginava. Não eram ladrões como a princípio imaginava. Não era um ladrão no vigor da sua juventude. Era apenas um velho bem magro e alto. Suas roupas eram surradas e estavam completamente encardidas de pó, manchadas de terra preta. O vigia aterrorizado manteve-se escondido aos olhos do criminoso que ia escapando entre as sepulturas. Mantinha a luz da sua lanterna apontada para o chão para não denunciar sua presença. O que fazer? Como o deter? Permanecer em silêncio e voltar para o casarão para telefonar para a polícia? Mas isto iria permitir que aquele monstro desprovido de qualquer juízo escapasse.
— Ei você! O que está fazendo? — gritou com voz altiva para o insano ladrão com a luz da sua lanterna batendo nas suas costas sujas.
O velho medonho parou no mesmo instante em que Pietro lutava para que seu coração não pulasse de sua boca para o chão com seu alto lá bandido!