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Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade
Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade
Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade
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Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade

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A vida dos africanos não se limitou à escravização e à destruição de suas formas anteriores de organização social. Ultrapassada a experiência marcante da travessia do Atlântico, milhões de vidas foram reinventadas mesmo sob condições terrivelmente adversas. Novas devoções, formações familiares, línguas, novos alimentos: tudo estava por ser feito nas diferentes formas de resistência mobilizadas para a sobrevivência. E sobreviver era a maior resistência, sem mencionar que o aprendizado da narrativa da própria história em moldes compreensíveis aos interlocutores que se pretendia alcançar era uma prova inegável de vitalidade. […] O autor não se deixou intimidar pela fonte inusitada no ambiente dos historiadores profissionais no Brasil e encarou assuntos sobre os quais autores abalizados pareciam já haver dito tudo, como é o caso dos significados da liberdade para quem os construiu. Enfrentar esses desafios são a prova de maturidade intelectual que Rafael nos dá. Se essa prova serve para habilitá-lo no ofício, o livro também traz ao leitor uma escrita fina, bem construída e prazerosa. Os maus escritores que me perdoem, mas escrever bem é tarefa da qual o historiador não deve descuidar. Leitor, adentre sem medo, que o livro é bonito demais!

— Jaime Rodrigues, no Prefácio
LanguagePortuguês
Release dateAug 12, 2022
ISBN9786587235370
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    Vozes afro-atlânticas - Rafael Domingos Oliveira

    Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdadeVozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade

    CONSELHO EDITORIAL

    Bianca Oliveira

    João Peres

    Tadeu Breda

    EDIÇÃO

    Tadeu Breda

    ASSISTÊNCIA EDITORIAL

    Fabiana Medina

    PREPARAÇÃO

    Daniela Alarcon

    REVISÃO

    Carla Fortino

    Andressa Veronesi

    ILUSTRAÇÃO DA CAPA

    Aline Bispo

    DIAGRAMAÇÃO

    Denise Matsumoto

    DIREÇÃO DE ARTE

    Bianca Oliveira

    CONVERSÃO PARA EPUB

    Cumbuca Studio

    Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade

    Aos milhões de mulheres e homens que forçadamente atravessaram o Atlântico e construíram o mundo em que vivemos, inspirando-nos a transformá-lo no lugar livre e justo que não conheceram.

    À minha mãe, Griselde, que me ensinou a importância disso.

    APRESENTAÇÃO

    PREFÁCIO

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    Doze milhões de histórias e a História

    CAPÍTULO 2

    A produção social das autobiografias de escravizados e libertos

    CAPÍTULO 3

    Áfricas e a Passagem do Meio

    CAPÍTULO 4

    Significados da liberdade: cativeiro, abolicionismo, fé e nação

    PALAVRAS FINAIS

    CADERNO 1

    Repertório biográfico

    CADERNO 2

    Repertório iconográfico: frontispícios, retratos e ilustrações

    REFERÊNCIAS

    AGRADECIMENTOS

    SOBRE O AUTOR

    Apresentação

    O antônimo de jovem é maduro. Uma das entradas semânticas para maduro refere-se a espírito ponderado, refletido, prudente. Maduro também é sinônimo de experimentado. Logo, jovem, por suposto contrário imediato, diz respeito àquele que não tem o espírito amadurecido. Também pode dizer sobre aquele que ainda possui o vigor da juventude. Assim, no seu contrário e nos seus significados, maduro e jovem são qualificações que podem evocar atributos positivos ou negativos, a depender do ângulo pelo qual se olha.

    A sociedade moderna hipervaloriza a juventude, muito por conta da capacidade de produção e consumo desse grupo. Sociedades pré-capitalistas, em geral, tiveram no ancião a referência, figura dotada de experiência e saber. Quando se pensa na figura de um intelectual, sendo essa uma atividade anterior ao capital, indiretamente, os atributos desse sujeito remetem ao do indivíduo maduro. Profissão para cabelos brancos, dizem. Só que existem jovens intelectuais maduros. Tenra idade, vigor e ousadia, mas com a maestria, sabedoria e elegância dos mais velhos. São poucos e raros. Rafael Domingos Oliveira pertence a essa estirpe.

    Vozes afro-atlânticas é a versão editada de sua dissertação de mestrado. Faz aqui investida analítica ousada e insurgente, semelhante a que fez Celia Maria Marinho de Azevedo quando se propôs a estudar o movimento abolicionista estadunidense. Com esses estudos, fica a lição de que não somos apenas o outro ou a cobaia sociológica dos intelectuais do Norte.

    O intento de Rafael — que, diga-se de passagem, se efetiva com classe —, ao estudar as autobiografias de escravizados nos Estados Unidos, cumpre dupla função: estudar a gênese da contradição fundante da modernidade capitalista no interior daquela que se tornará a principal potência econômica mundial em meados do século XX e, como derivação, nos permitir acesso a um debate de forma e conteúdo relacionado a um dos mais importantes instrumentos de reorganização e insurgência da diáspora negra: a escrita em primeira pessoa.

    As autobiografias de escravizados, que foram escassas na América Latina, somaram-se em algumas dezenas no hemisfério norte. Talvez isso explique, no longo prazo, a emergência de uma literatura negra que se lastreou até a conquista do prêmio Nobel de Literatura pela escritora Toni Morrison. Aliás, a forma autobiografia veio a dar conteúdo para o primeiro livro de literatura negra estadunidense com James Weldon Johnson, bem como foi plataforma de sínteses biográficas para figuras ilustres, como Malcolm X e Angela Davis.

    Salta à vista o cotejo cirúrgico e eficiente que o autor faz da bibliografia de base e das fontes, sua matéria-prima. Recorrer ao último Foucault para pensar A escrita de si, quando o autor francês reabilita o sujeito moderno que morreu em As palavras e as coisas, não se dá sem crítica. A importância desse debate da escrita em primeira pessoa do velho Foucault para os estudos da escravidão, em especial as pesquisas sobre as autobiografias, desdobrou-se em uma espécie de glorificação do signo em detrimento do sujeito que o produziu, segundo Rafael. Ainda assim, esse debate nos permite refletir como negros são sujeitos e em quais condições na modernidade.

    Em suma, a ousadia do intento se une à maturidade da execução. Em seu primeiro livro, Rafael Domingos Oliveira se consagra como um dos grandes nomes da historiografia desde o Sul para o mundo. Com o passado de lutas empreendidas por homens e mulheres escravizados tão bem complexificado por Rafael, temos mais elementos para interpelar o presente, com um horizonte de possibilidades mais digno e emancipado.

    MARCIO FARIAS

    Psicólogo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutor em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor convidado do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É membro do colegiado do Instituto Amma Psique e Negritude e autor de Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico (Dandara, 2019)

    Prefácio

    Um prefácio não é espaço para fazer longas digressões sobre pessoas — no caso, a pessoa que escreveu este livro. Mas não posso deixar de dizer uma ou duas palavras sobre Rafael Domingos Oliveira, historiador de quem o leitor assíduo de textos de história decerto ainda vai ouvir falar muitas vezes. Parece-me óbvio que competência, discernimento e capacidade de interagir se encontram em boas doses no autor desta obra. Mas o que é óbvio para mim, que o conheço, não é sabido pelos leitores. Então, vou tentar me explicar melhor.

    Afirmei que diria uma ou duas palavras sobre Rafael e já usei uma porção a mais, justo eu que tenho fama de ser econômico nos elogios. Então, é o momento de dizer algo sobre minha relação com ele. Orientei a dissertação de mestrado que deu origem a este livro e, alguns anos antes, pude conviver e aprender com Rafael, enquanto ele se destacava no ambiente formativo que é o curso de graduação em história da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rafael e outros historiadores de sua geração têm diante de si um desafio grande a cumprir, que é o de explicar o Brasil aos brasileiros em um quadro de incertezas pós-estabilidade. Nunca antes na história deste país havíamos experimentado mais de uma década de busca pela diminuição das desigualdades sociais, tempo que, para a geração que chega agora à idade adulta, pode ter criado a impressão de que as coisas, dali por diante, seguiriam progressivamente. A surpresa foi grande para os que acreditaram nisso e mesmo para os mais incrédulos. Assim, voltar a se interessar pelo passado é uma operação fundamental para explicar o que houve e como podemos desatar esse nó que nos sufoca.

    O livro que o leitor tem em mãos habilita Rafael como intérprete. Não do Brasil, que esses já não se forjam mais. As interpretações, nos moldes da prática historiográfica, vinculam-se hoje muito mais às redes, aos grupos e ao diálogo no momento mesmo da sua produção, e não apenas ao talento individual. Para além da pesquisa acadêmica, trabalhar em ambientes diversificados, lidar com o ensino e com um público interessado em história abre a mente e azeita o raciocínio. A nós, historiadores, não basta o domínio do método: temos que nos fazer compreender de forma cada vez mais clara diante de públicos cada vez mais amplos, sob pena de perdermos a guerra de narrativas. Perda que, se vier a acontecer, não será pessoal ou de uma categoria profissional, mas da sociedade como um todo.

    Ler este livro em plena guerra de narrativas é um ganho. A escravidão é um tema fundante da história ocidental, algo que ninguém nega ao menos desde que David Brion Davis o afirmou com todas as letras em O problema da escravidão na cultura ocidental, de 1966. Peço desculpas: há, sim, quem negue a importância do tema e, pior, quem negue até mesmo a própria existência da escravização de africanos no Novo Mundo. Para os que acreditam que o assunto ainda não está nem nunca estará esgotado, o livro de Rafael traz novidades; para quem crê que as fake news são as novas pílulas do conhecimento, o livro é ainda mais útil e necessário. Desesperadamente necessário.

    Destemido, Rafael selecionou memórias e escritos autobiográficos de africanos escravizados na América publicados em fins do século XVIII e ao longo do século XIX. Essas slaves’ narratives [narrativas de escravizados] raras vezes foram visitadas pelos historiadores, sendo objetos muito mais frequentes da crítica literária anglófona. Temos, aqui, o primeiro desafio: como lidar com uma fonte sobre a qual paira a desconfiança da ficção, da ausência de compromisso com a verdade absoluta? À medida que os historiadores se limitarem à crítica ao positivismo, mas mantiverem a ilusão do acesso à verdade absoluta, estarão em sua zona de conforto. Rafael preferiu encarar o desconforto e tirar sua matéria-prima dessas escritas sobre si. A apropriação do inglês, língua na qual todos esses textos foram escritos originalmente, foi mais um desafio. E outros se seguiram: superar os problemas de acesso, enfrentar os que consideram que o estudo da agência dos homens comuns é pouco para compreender o mundo, conectar o objeto a um projeto de formação de novos sujeitos sociais capazes de atuar em seu mundo amparados pela certeza de que a experiência é uma tradição que se constrói, se herda e se reelabora.

    Maduro, Rafael se debruçou sobre as autobiografias de escravizados e trouxe combustível para um assunto tão esmiuçado como a escravidão. A perspectiva radical dos próprios sujeitos que experimentaram o domínio senhorial é enfrentada aqui de modos variados. Terem sido escravizados não define toda a existência desses sujeitos, e essa é a primeira surpresa para quem se inicia no estudo da escravidão: homens, mulheres e crianças africanos tinham uma vida organizada antes da captura. Essa vida continha tudo aquilo que reconhecemos na humanidade, mas que a teologia discriminatória e o racismo biológico negaram: relações sociais complexas, sofisticadas cosmologias, poderes políticos estabelecidos e em disputa, famílias e parentescos, línguas, práticas alimentares. Compreender os sentidos do desmoronamento de tudo isso na vida de milhões de pessoas é essencial para entender o significado da escravidão para além de um sistema de exploração da mão de obra com fins de produção econômica.

    Claro que a escravidão explorava compulsoriamente a força de trabalho, mas criar novas nomenclaturas com base na ampliação da produtividade e na vitória inexorável do capitalismo soa cruel para com os que vivenciaram esse processo, se eles forem definidos apenas como números e como seres subjugados. Falharemos como intérpretes do passado se não formos capazes de ouvir as vozes dos que foram silenciados e mesmo assim sobreviveram e deixaram rastros de sua existência em suportes variados, como esses textos estruturados nos cânones da literatura ocidental.

    A vida dos africanos não se limitou à escravização e à destruição de suas formas anteriores de organização social. Ultrapassada a experiência marcante da travessia do Atlântico, milhões de vidas foram reinventadas mesmo sob condições terrivelmente adversas. Novas devoções, formações familiares, línguas, novos alimentos: tudo estava por ser feito nas diferentes formas de resistência mobilizadas para a sobrevivência. E sobreviver era a maior resistência, sem mencionar que o aprendizado da narrativa da própria história em moldes compreensíveis aos interlocutores que se pretendia alcançar era uma prova inegável de vitalidade. Seria tolo avaliar que as slaves’ narratives cumpriam apenas o papel de propaganda política útil aos interesses dos movimentos abolicionistas nos Estados Unidos e na Inglaterra oitocentistas. Ademais, os escravizados e libertos engajados nesses movimentos tinham interesses convergentes, o que significa que a definição de quem usava quem precisa ser feita com vagar e sensibilidade.

    Ao narrar suas memórias, gente como Harriet Jacobs, Mahommah Baquaqua, Ottobah Cugoano e Olaudah Equiano deixou pistas para afirmarmos que não há formas ingênuas de reconstruir o passado. Narrativa e militância fazem parte dos jogos da memória, e ao historiador bem disposto não resta opção exceto enfrentar esses jogos com as ferramentas do método.

    Rafael se saiu bem por várias razões. Ele domina o método e está consciente das sutilezas, das diferenças e dos eventuais antagonismos entre memória e história. Conhece a historiografia sobre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, bem como as perspectivas renovadas trazidas pela concepção do Atlântico como espaço histórico. Enfrentou uma temporalidade alongada e repleta de especificidades e soube escolher os temas que nortearam os capítulos de seu livro. Ele não se deixou intimidar pela fonte inusitada no ambiente dos historiadores profissionais no Brasil e encarou assuntos sobre os quais autores abalizados pareciam já haver dito tudo, como é o caso dos significados da liberdade para quem os construiu. Enfrentar esses desafios são a prova de maturidade intelectual que Rafael nos dá. Se essa prova serve para habilitá-lo no ofício, o livro também traz ao leitor uma escrita fina, bem construída e prazerosa. Os maus escritores que me perdoem, mas escrever bem é tarefa da qual o historiador não deve descuidar.

    Leitor, adentre sem medo, que o livro é bonito demais!

    JAIME RODRIGUES

    Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É autor de O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850) (Editora da Unicamp, 2000) e De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860) (Companhia das Letras, 2005)

    O que as pessoas contam tem uma história que suas palavras e ações traem, mas que suas narrativas não revelam imediatamente; uma história que explica por que usam as palavras que usam, dizem o que dizem e agem como agem; uma história que explica os significados específicos por trás da universalidade ilusória sugerida pelas palavras […]. Suas afirmações não são simplesmente declarações sobre a realidade, mas comentários sobre experiências do momento, lembranças de um passado legado por precursores e antecipações de um futuro que desejam criar.

    — Emília Viotti da Costa (1998, p. 15)

    Introdução

    Este é um livro de história. E a história é um campo do conhecimento cujo moto-contínuo é a elaboração de perguntas, mobilizadas por contextos sociais e políticos do presente. Um historiador ou uma historiadora é, antes de tudo, uma pessoa que formula questões. Podemos mesmo dizer que o que motiva e constitui a escrita da história são os problemas — essas aparentes perturbações da ordem que nos impõem dúvidas. Desde que Marc Bloch e Lucien Febvre se levantaram, na França de 1929, contra a chamada história factual — isto é, aquela narrativa que apresenta uma sequência linear, e muitas vezes oficialesca, de eventos —, aprendemos a fazer a chamada história-problema. Um bom imbróglio, em história, constrói-se com boas perguntas, e boas perguntas são, geralmente, perguntas simples.

    Partindo do título deste livro, comecemos, portanto, com algumas dessas perguntas. O que define uma autobiografia? O que a diferencia de uma carta ou de um diário? Você certamente já entrou em contato com esse tipo de produção textual. Pense por alguns instantes naquilo que vem à mente quando lê ou ouve esta palavra, autobiografia. Você já leu ou conhece alguma autobiografia? Quem a escreveu? Autobiografias sempre existiram? Se não, em quais contextos uma autobiografia pode surgir? Agora pense na palavra escravidão. O que você conhece a respeito desse tema? Quais os tipos de experiências possíveis em uma sociedade escravista? Quais relações sociais são produzidas em um mundo fundado na escravização de seres humanos?

    Mais perguntas: o que é memória? Como você a definiria? Qual a relação entre a memória de uma pessoa e aquela compartilhada por uma comunidade, um povo, uma sociedade? Você confia em sua memória? Ou melhor: a memória é confiável? E o que significa ser confiável?

    Bem, aqui já temos muitas questões das quais partir. E pode ser um começo interessante. Mesmo sendo as palavras formas de nomear e atribuir significados ao mundo, informando coisas estimulantes a respeito de determinadas realidades, elas não produzem o mundo sozinhas — isso é importante saber. Essas questões iniciais, essas ideias brevemente anunciadas e, o mais importante aqui, o encontro entre elas constituem o cerne deste livro.

    Quando lançamos uma breve mirada ao repertório de autobiografias conhecidas, disponíveis em livrarias e bibliotecas, ou mesmo àquelas que se tornam best-sellers, notamos que geralmente foram escritas por pessoas ilustres, bem conhecidas, sujeitos que se destacam em suas áreas de atuação. Desde que o gênero autobiográfico passou a ganhar espaço cada vez maior entre as sociedades letradas do mundo ocidental — o que aconteceu, sobretudo, a partir do século XVIII —, ele foi utilizado largamente por políticos, figuras públicas e os chamados heróis, isto é, indivíduos a quem se atribui uma importância imprescindível no desenvolvimento de certos eventos históricos. Essas publicações constituem, assim, uma determinada memória sobre esses eventos; são representações localizadas numa classe. Não é por outra razão que, ao longo do século XIX, reis, imperadores, juristas, homens públicos, todos esses notáveis, produziram centenas e centenas de escritos sobre si próprios.

    Por isso mesmo, durante muito tempo parecia improvável que autobiografia e escravidão fossem palavras que compartilhassem espaço em uma mesma frase. Isso porque aprendemos nas instituições escolares, ou mesmo por meio do imaginário social, que as populações negras escravizadas, em função da própria condição desumana e exploratória a que estiveram submetidas, não puderam jamais escrever e inscrever suas perspectivas sobre a experiência da escravização. Você certamente já se deparou com ideias que associam o sujeito escravizado à força manual em detrimento de capacidades intelectuais. Os exemplos disso estão difundidos em nossa cultura visual, cinematográfica, literária, escolar e nos mais variados âmbitos da vida social. Podemos mesmo afirmar que noções como essa ainda são operantes na atualização cotidiana do racismo. Ora, se homens e mulheres negros escravizados constituíam uma simples massa de desumanizados —

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