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É pedido, não tributo: As negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c.1660-c.1725)
É pedido, não tributo: As negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c.1660-c.1725)
É pedido, não tributo: As negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c.1660-c.1725)
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É pedido, não tributo: As negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c.1660-c.1725)

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A obra É pedido, não tributo: as negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c. 1660-c. 1725) trata do donativo cobrado às capitanias do Brasil para financiar o dote do matrimônio da infanta Catarina de Bragança com o rei inglês Carlos II, e o acordo de paz com a Holanda.
Constituído por quatro capítulos, o livro objetiva responder à questão relacionada à forma como as contribuições ao dote e à paz foram debatidas, institucionalizadas e arrecadadas em diversos espaços municipais do contexto português.
LanguagePortuguês
Release dateAug 4, 2022
ISBN9786558409847
É pedido, não tributo: As negociações políticas para o pagamento do donativo do dote da princesa e a paz com a Holanda (Portugal e Brasil c.1660-c.1725)

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    É pedido, não tributo - Leticia Ferreira

    PREFÁCIO

    A política de casamentos entre as famílias monárquicas europeias foi consagrada pela razão de estado e legitimada por Roma. A época Moderna, aliás, inaugura uma espécie de mercado de princesas – na expressão cunhada por Bartolomé Bennassar – com a finalidade de estabelecer e reforçar alianças entre as Coroas (também em oposição a outras, é verdade) ou ampliar territórios sob o controle da casa reinante. Isabel de Castela e Fernando de Aragão uniram seus reinos, ainda que preservando os privilégios e antiguidades próprias, e procuraram redesenhar a geopolítica europeia a partir do matrimônio de seus filhos. É claro que a morte do pretendente ou do cônjuge poderia sempre atrasar, adiantar ou azedar os esquemas traçados pela política monárquica. Princesas e infantas foram, em geral, simples peões no tabuleiro geopolítico: peões de valor desigual, porque apreciados segundo valores de primogenitura¹. Os contratos nupciais entre as casas reais (ou entre nobres) selavam alianças militares, pactos políticos, exigências religiosas e/ou acordos comerciais, e, por isso, tratados pela ótica da razão de estado.

    O casamento de Carlos II com a infanta Catarina de Bragança é o princípio da história aqui contada. Inglaterra e Portugal eram, naquele tempo, coroas frágeis e recém restauradas: em 1661, a casa de Stuart voltava a reinar na Inglaterra depois da breve experiência republicana com Cromwel; Portugal, por sua vez, estava em guerra com a Espanha desde 1640, quando se tornou independente pela aclamação da nova dinastia dos Bragança, e com a Holanda desde 1595, como herança dos tempos de União Ibérica. É preciso dizer que nenhum dos noivos foi a primeira escolha dos conselheiros de estado, mas a opção possível e útil ao fortalecimento mútuo. Para escolha, pesou também a interdição dos Habsburgo e o tratado que os espanhóis assinaram com a França. A embaixada portuguesa, sob o comando de Francisco de Mello Torres, negociou os termos e o valor do dote e da paz: dois milhões de cruzados, além da entrega das importantes praças de Tanger e Bombaim e a concessão de alguns privilégios comerciais.

    Se engana quem pensa que este livro toma feição às gestas de reis e rainhas. Fala-se aqui, pelo contrário, de quem pagou a conta, como na poesia de Bertold Bretch: Em cada página uma vitória… quem cozinhava nos festins? Em cada década um grande homem… Quem pagava as despesas?. É exatamente sobre isso que trata É pedido e não tributo, da historiadora Letícia dos Santos Ferreira. Sua trama narrativa é construída na encruzilhada entre o estabelecimento de alianças internacionais para a garantia da independência face à Castela e da negociação com os vassalos para o pagamento dessas alianças.

    O livro procura responder a complexa questão de como as contribuições ao dote e à paz foram debatidas, institucionalizadas e arrecadadas em variados espaços municipais do mundo português, tomando a atuação dos camarários e a forma com que negociavam com a Coroa o espaço privilegiado para analisar a relação entre política fiscal e representação política. A percepção deste último aspecto foi somente possível porque a fiscalidade fora compreendida para além de uma mera questão financeira, mas como problema político ou das representações políticas. Letícia, desse modo, percebeu que os pagamentos efetuados pelas câmaras de Lisboa e Évora, no reino, e Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, no Estado do Brasil, eram negociados com autonomia e desigualdade. Os vínculos políticos desiguais dessas municipalidades com a Monarquia foram determinantes para estabelecer o valor da arrecadação paga por cada uma, bem como para qual fim deveriam contribuir (dote e/ou paz) – o que pesou, doravante, na argumentação dos vassalos para os pedidos/trocas por mercês e vantagens econômicas.

    O debate sobre a prática da fiscalidade no Antigo Regime foi germinado pelas teorias antropológicas acerca da reciprocidade do dom/dádiva e historiográficas sobre a economia do dom, resultando em uma leitura deveras original. Como outra prova, vale atentar para a forma com que a autora lida com as sensibilidades próprias do discurso político, como alegria, ânimo; castigo, má sorte, entre outras. Ou mesmo a maneira com que mobiliza, coteja e analisa a documentação (muitas das vezes fragmentária) com o intuito de comparar espaços distintos, separados não apenas pela distância, mas também por seus estatutos e hierarquia. No império português, as câmaras constituíam-se como uma comunidade política (república) que representava o poder local frente às negociações com a Coroa e o Conselho Ultramarino, por isso a autora seguiu tão de perto suas atas e correspondências. O resultado – verá o leitor ou a leitora – é uma abordagem interessantíssima.

    Este livro é mister em juntar opostos: amor e sacrifício; guerra e paz; fiscalidade e antropologia; e, quem sabe, historiografias. O domínio de seus cânones permitiu à autora frequentar diversas vezes uma ou outra interpretação, conforme a perspectiva era movimentada pelas ações de arrecadação, liquidação, uso ou queixa dos vassalos à cobrança do donativo pelo dote e paz. Do casamento realizado em 1661 ao último pagamento efetuado pela Câmara de Salvador, em 1725, a investigação seguiu de perto cada movimento a fim de entregar ao leitor a melhor forma de compreender a vida daqueles que encontram o donativo em sua trajetória. Há, entretanto, no próprio percurso do livro, outro caminho escondido: o ponto de chegada da formação de uma historiadora – seja desde 2005, quando trabalhou pela primeira vez com a Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, ensinada por Maria de Fátima Gouvêa; seja a partir de 2007, tempo que elaborou com Rodrigo Bentes Monteiro algumas das questões ainda fortes neste trabalho. A Bahia fora a primeira preocupação e continuou sendo desde então, mesmo depois que outras municipalidades fossem incorporadas ao estudo. Rodrigo orientou o mestrado e o doutorado, defendidos em 2010 e 2014, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. O maciço investimento em Educação, próprio desses tempos, trouxe contribuições indeléveis à pesquisa que vão além do próprio financiamento. Não há como omitir alguns desses detalhes, porque essa também é a história desta História.

    Assim, É pedido e não tributo, de Letícia Ferreira, oferece contribuição ímpar, fruto de uma leitura original sobre a temática da fiscalidade e suas relações com as dimensões políticas e sociais. Trabalho pioneiro que, sem dúvida, avança para uma sofisticada compreensão das formas de arrecadação no mundo português. Leitura incontornável para quem deseja conhecer o Brasil Colonial.

    Yllan de Mattos, UFRRJ.

    Vila Isabel, verão de 2020, 356 dias de quarentena.

    Nota


    1. Bennassar, Bartolomé. A cama, o poder e a morte: rainhas e princesas do Renascimento ao Iluminismo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 50.

    INTRODUÇÃO

    Fogos de artifícios e velas iluminaram as principais ruas e vielas das cidades do Reino e do Ultramar. Celebrava-se o primeiro casamento da nova dinastia portuguesa concretizado com a união da princesa Catarina e o rei inglês Carlos II. A casa de Bragança era enfim, após 21 anos, reconhecida como uma casa real. Porém, os casamentos reais não contavam apenas com as felicitações e os festejos de seus súditos. Implicavam também em contribuições voluntárias para o pagamento das cerimônias, viagens da noiva e o tradicional dote.

    No complicado cenário europeu do século XVII, D. Afonso VI – rei de Portugal – precisou mais do que um casamento para garantir a independência de sua casa diante de Castela. Assim, D. Afonso costurou com o apoio do seu novo irmão um acordo de paz com os holandeses. Entre os compromissos acertados, uma indenização foi prometida à Holanda. E mais uma vez, o monarca esperava de seus súditos uma doação fruto do seu amor e interesse na paz. Nestes casos, as doações fugiram à lógica típica da Idade Moderna e, aproximavam-se da nossa complexa realidade tributária. Com a alcunha de donativos, esses tributos eram proporcionais às rendas e pagos por todos os súditos del-Rei.

    Esta obra, fruto das reflexões do nosso doutoramento, aborda o complexo jogo político instaurado pelo donativo cobrado pelo casamento da infanta Catarina de Bragança com Carlos II da Inglaterra e pela paz de Holanda, entre 1661 e 1725, no Reino e no Estado do Brasil. O donativo em questão resultou de um importante triunfo diplomático da monarquia portuguesa pós-Restauração. A aliança anglo-portuguesa, decorrente das negociações realizadas pelo embaixador português Francisco de Mello Torres, foi um marco na forma como a comunidade internacional via os eventos de 1640.

    As negociações para o casamento entre Carlos II e Catarina de Bragança ocorreram em uma conjuntura marcada por disputas internacionais e pela guerra no território português. Assim, a concessão de um dote de dois milhões de cruzados em dinheiro e gêneros frente à situação econômica do reino representou um entrave para a efetivação e a manutenção do tratado anglo-português. Neste sentido, o donativo, os empréstimos e as sisas foram solicitados pela Coroa portuguesa com o objetivo de cumprir o acordo. Igualmente, recorreu-se às conquistas para concretizar o pagamento de uma das partes da indenização aos Estados Gerais, definida por outro tratado de paz. No ultramar, ambos os esforços foram associados em uma mesma contribuição. Poucas vezes os contemporâneos referiram-se a eles de forma distinta. A historiografia, por sua vez, parece não ter dado atenção a este pequeno detalhe.

    A pesquisa teve como objetivo geral investigar a relação entre política fiscal e representação política, privilegiando a dinâmica imposta pela contribuição do donativo para o dote e paz de Holanda nas câmaras de Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Lisboa e Porto, atentando para as suas diferenças e semelhanças, bem como verificando o processo de institucionalização e arrecadação do referido donativo em cada uma delas. Igualmente, busca-se compreender os papéis e estratégias desempenhados pelos oficiais camarários e oficiais régios na condução das negociações e nos conflitos em torno da cobrança do donativo.

    Apesar da diversidade de territórios que contribuíram para o dote da princesa Catarina, compondo um quadro de distintas realidades em jogo, o recorte comparativo justifica-se, ao fornecer uma série de dados que permitem dimensionar a temática em um silêncio historiográfico. A pesquisa de campo realizada em arquivos das cidades em foco, e no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, ampliou as referências e capacitou-nos a perceber processos similares, bem como especificidades. Sendo assim, acreditamos ser possível entender de forma mais coesa a relação entre o centro – a monarquia – e as periferias.

    Dessa forma, a escala espacial de análise utilizada foi múltipla, seja pelo enfoque em diferentes espaços, que considerou as dinâmicas locais e suas relações com as demais regiões do domínio português, inseridas nas conjunturas internacionais, ou pela abordagem que buscou dar conta de aspectos políticos, sem perder de vista os socioeconômicos. Para tentar captar a abrangência de um processo é preciso analisá-lo em diferentes escalas e ordens de grandeza. Pois um fenômeno que se apresenta insignificante quando examinado em escala reduzida, em perspectiva mais amplapode ser facilmente identificado e vice-versa.² Procuramos evidenciar que cada região possuía características específicas, sem impedir que alguns processos gerais fossem percebidos, por sua vez divididos em dois eixos centrais: Reino e Estado do Brasil. A maneira de ver esses espaços foi aqui influenciada pela própria atitude da Coroa, ao atribuir responsabilidades distintas aos seus vassalos, quanto aos tratados assinados com a Inglaterra e a Holanda. Para os reinóis, em guerra contra a Espanha, coube contribuir apenas para o dote. Enquanto os ultramarinos, além de contribuírem para o dote, também o fizeram para a paz.

    O recorte cronológico toma por ponto de partida a implementação do donativo do dote e paz, recuando sempre que possível para compreender a política diplomática e as questões fiscais. O marco final é a conclusão da contribuição na capitania da Bahia, em 1725. No Rio de Janeiro, a documentação sobre o donativo do dote de Inglaterra e paz de Holanda tornou-se cada vez mais espaçada no decorrer dos anos 1710, sugerindo que, ali, a contribuição encerrou-se um pouco mais cedo.

    Alguns importantes trabalhos referiram-se ao donativo do dote de Inglaterra e paz de Holanda e ao subsequente, para o duplo casamento³ entre Portugal e Espanha, indistintamente, prolongando a existência do primeiro, e/ou reforçando o seu caráter opressor. Charles Boxer afirmou que a cobrança do donativo para o dote de Catarina de Bragança e para indenização paga à Holanda manteve-se por séculos. Evaldo Cabral de Mello sugeriu que o donativo em Pernambuco teria durado até os primeiros anos após a independência do Brasil. Sendo, a partir de 1695, cobrado sob a forma de um subsídio fixo no valor de dez mil cruzados. Como veremos neste trabalho, o valor refere-se a uma consignação do donativo do dote e paz para o sustento da Nova Colônia de Sacramento. Por sua vez, Rodrigo Bentes Monteiro, apesar de identificar a nova cobrança, não se preocupou em diferenciá-la.⁴

    Luciano Figueiredo, ao analisar a linguagem política na América portuguesa, refere-se aos donativos como dote para os casamentos reais. A partir da correspondência da Câmara de Itu em São Paulo no ano de 1681, o autor demonstra como os oficiais suplicavam pelo fim da cobrança interminável do dote para os casamentos reais.⁵ Neste caso não há dúvida de que o donativo em questão é o dote para o casamento de Catarina de Bragança e paz de Holanda. Por outro lado, o autor mostra que as críticas à duração do tributo também partiam de membros do Conselho Ultramarino. No famoso parecer de 1732, António Rodrigues da Costa condenava o longo tempo da cobrança porque não permitia que as dívidas fossem sanadas. Neste caso, paira a dúvida se o conselheiro estava realmente referindo-se ao dote de Catarina de Bragança e paz de Holanda, pois o Conselho Ultramarino em 1725 confirmava estar finalizada a contribuição para o donativo de Inglaterra e paz de Holanda. Nas capitanias em estudo, o donativo serviu como base para o estabelecimento da tributação para o duplo casamento em 1727, e também para o donativo para a reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. Talvez por isso trabalhos mais gerais não tenham atentado para essa particularidade.⁶

    Além de lidar com diferentes espaços e temporalidades, outro desafio enfrentado nesse trabalho foi aprofundar e especificar melhor as diferenças entre tributo, imposto e donativo. O debate acerca da política fiscal pautada no pedido de donativos consta no Capítulo I. Mas antes, cabe apresentar outro grupo de estudos igualmente norteadores acerca da dádiva.

    A viragem antropológica foi promovida pela Escola dos Annales, entre as décadas de 1970 e 1980. Aos poucos, outros historiadores foram aderindo a este movimento, interessando-se principalmente pela antropologia simbólica, enfocando a linguagem, os ritos, os cerimoniais e o poder, dentre outros temas.⁷ Assim, procuraram dar conta do jogo que se estruturava por meio da luta pela sobrevivência informada por valores sociais, pelas formas de ver e compreender o mundo em cada época. Também atentaram para o contexto das relações, ou seja, quem seriam os indivíduos envolvidos nos pactos, nas trocas, e qual seria o seu caráter. Os trabalhos da antropologia acerca das trocas, dos contratos e do dom tornaram-se importantes balizas, e como tais vêm sendo revisitados.

    Entre as principais referências está Bronislaw Malinowski. Ligado ao funcionalismo e fortemente influenciado por Émile Durkheim, Malinowski estudou os nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, identificando o Kula como uma instituição central na organização daquelas comunidades. O Kula seria uma forma de troca ritualizada bastante complexa, pois além do momento da troca dos objetos simbólicos – braceletes e colares – ocorria uma série de atividades que interligavam pessoas dentro de uma enorme extensão geográfica, viabilizando trocas de riquezas, objetos úteis, costumes, canções, entre outras formas de inter-relação. Todavia, o autor não descarta o aspecto econômico do Kula, pois, por intermédio dele, ocorria intensa troca de mercadorias.

    Em 1922, Malinowski chamava a atenção para a formação de hierarquias baseadas no prestígio e na honra obtidas pela participação no Kula.⁹ Malinowski constatou que, diferente de nós, para aquelas comunidades, possuir é dar e quanto mais alta a categoria social, maior seria a obrigação em dar, constituindo-se este princípio uma verdadeira lei das sociedades estudadas.

    Apesar da importância de Malinowski, os historiadores têm dialogado mais intensamente com os estudos desenvolvidos por Marcel Mauss, que também examinou o sistema de trocas em sociedades ditas primitivas.¹⁰ A temática central do Ensaio sobre a dádiva¹¹ refere-se a trocas e contratos estabelecidos sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e redistribuídos. Através do método comparativo, Mauss analisa os sistemas das prestações totais, nos quais as trocas não seriam exclusivamente realizadas mediante bens e riquezas, nem excluindo o mercado. Este seria apenas um momento de todo o sistema, e não o seu elemento central.

    Por outro lado, o sistema em questão seria estabelecido através das seguintes ações: dar, receber e retribuir.¹² De acordo com a análise de Mauss, ninguém era livre para recusar um presente oferecido e, uma vez recebido, a obrigação de retribuir impunha-se. Assim, inaugurava-se uma cadeia de trocas perpétuas, de deveres recíprocos, alimentada por concorrências, rivalidades, antagonismo e honra. Estes elementos, por sua vez, acabavam por estabelecer uma hierarquia entre as partes.

    Assim, duas noções evidenciam-se, o crédito e a honra, pois a dádiva implicaria necessariamente a noção de crédito e o prestígio de um chefe ou clã ligava-se ao dispêndio e à exatidão em retribuir as dádivas, transformando em obrigados aqueles que o obrigaram, constituindo uma economia moral das dádivas. O aspecto moral estaria relacionado à finalidade das trocas: produzir um sentimento de amizade entre as partes envolvidas, ainda que elas possuíssem status distintos.

    Para os historiadores que se valeram das análises apresentadas acima, impõem-se duas questões. A primeira diz respeito à validade desses sistemas em sociedades distintas daquelas estudadas por Mauss. A outra se refere ao mercado e à obtenção de lucro nas relações de troca. Tais questionamentos são constantes, apesar do próprio Ensaio sobre a dádiva ter apontado para a existência de relações de reciprocidade em outras sociedades, mesmo naquelas com certo grau de monetarização, também demonstrando que aspectos econômicos – como o mercado – faziam-se presentes.¹³

    Outro clássico da antropologia ajuda a pensar essas questões. Em As estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss discutiu as possibilidades de ganho material através do dom, valendo-se criticamente do trabalho de Marcel Mauss e de outros antropólogos.¹⁴ Para o autor, as trocas nas sociedades arcaicas não estavam desprovidas de aspectos econômicos. Porém, o lucro obtido não se encontrava diretamente relacionado às coisas trocadas, quando conseguido pelo dinheiro ou pelo valor de consumo. Nessas sociedades, os bens eram de outra ordem, ligavam-se à potência, a poder, simpatia, posição e emoção. Lévi-Strauss afirma: o caráter econômico subsiste, entretanto, embora seja sempre limitado e qualificado pelos outros aspectos da instituição.¹⁵

    Claude Lévi-Strauss considera que os donativos recíprocos também fazem parte das relações nas sociedades modernas. Dentre as diversas cerimônias e eventos cotidianos, a troca de presentes no Natal seria um bom exemplo. Além de envolver milhões de indivíduos, parte considerável deles chega mesmo a comprometer seu orçamento para fazer parte desse jogo de trocas. Contudo, a sobrevivência deste tipo de troca não desempenha o mesmo papel com o passar do tempo, com exceção do incesto.¹⁶

    Mais recentemente, o antropólogo filiado à matriz marxista Maurice Godelier revisitou o tema do dom. Seu objetivo era compreender porque alguns bens adquirem um valor máximo em determinada sociedade, por isso tornando-se inalienáveis. Rebatendo algumas críticas feitas a Marcel Mauss, Godelier aponta para a viabilidade analítica do dom. Em seu trabalho, demonstra a sobrevivência do dom nas sociedades atuais por meio de vários exemplos, em especial as campanhas filantrópicas ou os novos impostos com fins solidários.¹⁷

    Contudo, as condições práticas do dom seriam outras, pois nele os atos passam a ligar sujeitos abstratos – através da mídia e campanhas humanitárias – ou ocorrem entre parentes e amigos muito próximos. Ele seria fruto da atividade subjetiva, pessoal e individual, expressão e instrumento de relações além do mercado e do Estado. Portanto, sem qualquer obrigação de produzir e reproduzir as relações sociais fundamentais numa sociedade. O autor chama a atenção para o ponto característico deste tipo de reciprocidade, o aparente desinteresse da ação. Contudo, para ele a principal característica do dom não é a ausência de obrigações, é a ausência de cálculo. Desse modo, demonstra que o sistema da dádiva assumiria formas distintas, e não pode ser aplicado como um modelo explicativo pronto.¹⁸

    Entre os historiadores,¹⁹ Edward Palmer Thompson ajuda-nos a refletir acerca da aplicabilidade das teses antropológicas na análise das sociedades mais complexas e plurais. Intelectual ligado à tradição marxista, um dos responsáveis pelas críticas ao economicismo desta mesma corrente, Thompson analisa a consciência plebeia e as formas de protesto durante o século XVIII, desenvolvendo significativo diálogo com a antropologia.²⁰ Neste sentido, avalia as reações dos trabalhadores às tentativas dos produtores e moleiros de obterem lucro sobre os artigos fundamentais à sobrevivência, evidenciando a existência de uma economia moral. Esta buscava regular o mercado garantindo o respeito às relações de reciprocidade estabelecidas pelo costume, ou seja, manter a dependência mútua entre os homens.²¹

    Thompson mostra que essas trocas ocorriam entre forças sociais desiguais, mas a economia moral procurava estabelecer frente às forças do mercado alguns direitos para os mais fracos. Apesar das críticas recebidas, o autor mostra como a construção de uma economia de mercado vai enfraquecendo, mas não elimina por completo a presença de outros fatores reguladores do mercado, além da sua mão invisível. Essas análises foram feitas a partir da realidade inglesa, com algumas reflexões sobre a Irlanda e a Índia, e denotam não existir um conteúdo pré-estabelecido que se encaixe na economia moral, mas que as relações de reciprocidade seriam alteradas conforme as mudanças no equilíbrio das relações sociais e no contexto histórico.²²

    Para o conjunto formado pelo reino português e suas possessões ultramarinas, nos últimos anos é crescente o número de trabalhos sobre a concessão de mercês e as estratégias em torno da expectativa de reciprocidade no servir ao rei. Partindo de concepções diferentes – mas em geral dialogando com as teses apresentadas – tais estudos mostram que na cultura política do Antigo Regime a liberalidade era virtude própria do rei, assim como a justiça, a prudência, a fortaleza e a temperança. O debate concentra-se no aspecto remuneratório ou não dessas mercês, bem como nos limites dessa prática social. Igualmente, alguns trabalhos buscam analisar os mercados e as propriedades, ressaltando a imobilização do capital, uma baixa mercantilização das terras e um predomínio do político sobre o econômico. Isso significa dizer que, apesar do lucro obtido pelas trocas no mercado, os negociantes e mercadores acabavam por investir seu capital num bem menos rentável, a terra. Esta, por sua vez, mantinha-se fora do mercado por longos períodos, sendo transferida para outro proprietário, na maioria das vezes por outros tipos de troca que não passavam por compra e venda. Não incluíam, portanto, o lucro. Outro aspecto ressaltado é a construção de alianças – amizades, reciprocidades – através do matrimônio, que viabilizavam o acesso a propriedades, cargos políticos e vantagens econômicas. Este conjunto de trocas e reciprocidades estabelecia uma complexa rede de hierarquias sociais baseadas na honra, no prestígio e no privilégio.

    Não obstante as contendas surgidas na antropologia ou na historiografia sobre a procedência de uma economia do dom para sociedades escravistas e de mercado como a América portuguesa, lembra a historiadora Laura de Mello e Souza:

    à medida que o Antigo Regime foi se aproximando do termo, o sistema atributivo viu-se paulatinamente solapado por um sistema contributivo, e o caráter positivo da liberalidade foi sendo recoberto pela sua negação.²³

    No entanto, se no século XVIII, dom, graça e mercê enfraqueciam-se enquanto instrumentos centrais da realidade, nos seiscentos e nos anos iniciais do século seguinte, estes ainda eram constitutivos das relações sociais e, assim, seriam categorias analíticas válidas. Portanto, parece plausível conceber esses grupos – reinol e americano – inseridos no rol dos tratados internacionais e das questões econômicas do século XVII, mas igualmente com valores contratuais de reciprocidade, referenciais culturais comuns e relações além do mercado, nem por isso fora da esfera econômica.

    A qualidade das relações que uniam vassalos e soberanos no ultramar foi matéria amplamente discutida pela historiografia brasileira, sendo expressiva a visão da centralidade da Coroa. A preocupação em marcar a exploração justificando a dependência e explicando a realidade brasileira marcou algumas dessas interpretações.²⁴ Por outro lado, influenciada pela produção historiográfica portuguesa e a de alguns brasilianistas, a nova historiografia brasileira tem privilegiado o imaginário e a negociação política dos súditos ultramarinos na construção das relações entre centro e periferia, ou como tem preferido, centros e periferias. Neste sentido, a nova perspectiva rejeita uma visão dualista da metrópole enquanto centro de decisão e da colônia enquanto polo subordinado, deslocando a ação política para outros campos além do político-institucional.²⁵

    Nesse sentido, o desenvolvimento da investigação tem buscado perceber um ponto de diálogo entre as referidas vertentes interpretativas. Ao aprofundar a discussão no desenvolvimento do Capítulo II, identificamos graus distintos de imposição fiscal e de negociação. Isso tem levado a alguns questionamentos. Ao longo do tempo o termo donativo não perderia sua especificidade, seus sentido e caráter extraordinários? Como ecoava o discurso elaborado como justificativa para esta contribuição em torno da simbologia régia nas diferentes regiões reinóis ou ultramarinas? A instabilidade do pacto exigia a constante justificativa de sua realização, ou tornava a relação entre a Coroa e os vassalos mais objetiva? As fontes deixam evidente que, enquanto na Bahia seriam recorrentes o termo donativo e o vínculo entre a contribuição e o serviço, em São Paulo raramente aparecia o mesmo termo, enquanto nas câmaras reinóis a contribuição para o dote não recebeu essa designação.

    Afirmamos inicialmente no projeto de doutorado que a contribuição, quando solicitada, era justificada através da serventia do propósito, sendo utilizadas as seguintes expressões: utilidade, quietação conveniência, necessária, precisa. Além disso, outro elemento singular do vocabulário utilizado era a afetividade – com ânimo, boa vontade, confiança, zelo, alegria e amor.²⁶ Entretanto, a pesquisa indica que os vassalos ultramarinos valeram-se do fato de contribuírem para o donativo do dote e paz como um artifício político para negociarem benefícios simbólicos e econômicos. No primeiro caso, solicitando um posicionamento melhor nas reuniões de cortes. No segundo, que o fornecimento de escravos fosse regularizado. Todavia, os relatórios dos desembargadores, dentre outros documentos, apontam para a construção de uma imagem diferente do donativo. Há uma preocupação com as formas de arrecadação e as mazelas da política fiscal, com a proeminência do donativo do dote e paz como causa primeira dos problemas que os vassalos enfrentavam em fins do século XVII. Assim, este material corroborava o discurso dos oficiais camarários, no qual a contribuição era recorrentemente considerada como ruína e castigo. Dessa forma,

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