Percorrendo territórios da(s) Saúde(s) no Brasil: Perspectivas contemporâneas
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Percorrendo territórios da(s) Saúde(s) no Brasil - Esmael Alves de Oliveira
1. MEDICALIZAÇÃO DA VIDA E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO CONTEMPORÂNEOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE NARRATIVAS DE CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO BRASILEIRO
Esmael Alves de Oliveira
Introdução
Este capítulo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS) e que foi desenvolvida junto ao Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs). Ao tomar como base a narrativa de professores universitários e estudantes de pós-graduação de algumas Universidades Públicas, que faziam uso de ansiolíticos e/ou antidepressivos, o intuito foi o de tentar compreender quais os sentidos atribuídos à experiência da medicalização¹, bem como o pano de fundo em que se desenrolavam. Se diversas pesquisas têm apontado para o aumento no consumo de psicofármacos pela sociedade em geral, pouca atenção tem sido dada com relação a esse crescimento também no contexto universitário. Em um cenário dominado pelo que alguns autores têm chamado de farmaceuticalização da vida (Illich, 1975; Biehl, 2005; 2008; Esher; Coutinho, 2017), a antropologia tem cada vez mais problematizado as várias possibilidades de compreensão deste fenômeno.
Assim, seja ao levantar questões de ordem ética, política e econômica que atravessam as intervenções da bigfarma (Petryna, 2009), seja ao evidenciar a dimensão biopolítica das práticas de medicalização da vida (Caponi, 2016; Azize, 2002) ou mesmo ao refletir sobre os processos de subjetivação e estratégias de agenciamento dos sujeitos medicalizados
(Biehl, 2005; 2008; Fleischer, 2012; Andrade; Maluf, 2016; Oliveira; Martins, 2020) – aspectos que certamente não podem ser tomados isoladamente –, a perspectiva antropológica mais uma vez nos convida a uma compreensão desnaturalizada das práticas e experiências dos sujeitos contemporâneos. Se, como afirmam Oliveira, Harayama e Viégas (2016, p. 103), nem toda pessoa medicalizada é patologizada, […] todo processo de patologização da vida [insere-se] no fenômeno da medicalização.
É a partir deste movimento de desnaturalização que busquei compreender a experiência do consumo de psicofármacos. Para isso, tomei como norte algumas questões: afinal, sujeitos medicalizados ou relações medicalizadoras? Seria a noção ontologizante sujeito medicalizado
suficiente para dar conta da experiência dos diferentes processos de subjetivação contemporâneos? São aspectos que busco explorar ao longo do presente capítulo.
A pesquisa foi realizada no período de março de 2018 a março de 2019. Como metodologia utilizei a proposta de bola de neve (Vinuto, 2014), que consistiu em acionar alguns contatos de contatos pessoais e estes, por sua vez, me indicavam outros interlocutores. Desse modo, à medida que a relação era estabelecida e os propósitos da pesquisa apresentados, logo fui remetido a uma série de colaboradores que talvez teria dificuldade para acessar de outra forma em decorrência da densidade do tema e das representações moralizantes que ainda o envolvem. Ao todo, dialoguei com 8 pessoas, sendo 5 professores universitários e 3 estudantes de pós-graduação de diferentes universidades públicas do Brasil. Todos os colaboradores foram selecionados a partir de dois critérios: sujeitos que iniciaram o consumo de ansiolíticos e/ou antidepressivos na universidade e que também eram altamente produtivos em termos acadêmicos (utilizei o Lattes como base).
Ao me colocar disponível e atento aos modos como os diferentes sujeitos significavam a si mesmos, ao mesmo tempo enunciavam os contextos em que suas vivências e experiências em torno da medicalização eram forjadas, como diria Geertz (2001, p. 65), estava mais preocupado em examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria
.
Entre memórias, trajetórias e desabafos
Acredito que os altos índices de adoecimento de docentes e discentes das universidades brasileiras, bem como a expansão do que tem sido chamado como bigfarma, revelam a face de uma cultura da medicalização (Petryna, 2009; Azize, 2002). Esta precisa ser desnaturalizada e compreendida a partir de processos sociais, políticos, econômicos e ideológicos mais amplos, que buscam, por meio da psiquiatrização da vida, o estabelecimento de estratégias que resultem tanto na responsabilização individual dos sujeitos, ignorando arbitrariamente os dispositivos biopolíticos, quanto em sua exclusão social – gerando verdadeiras zonas de abandono (Biehl, 2005; 2008). Portanto, entendo o fenômeno da medicalização enquanto um processo em que as dimensões da vida social e tudo aquilo que a atravessa e a constitui, são reduzidas à lógica biomédica, vinculando aquilo que não está adequado às normas sociais a uma suposta organicidade e que se expressaria na ideia de adoecimento psíquico do indivíduo, mas que é da ordem de uma produção social do sofrimento (Víctora, 2011).
Os relatos a seguir, obtidos e transcritos a partir de diálogos que travei ao longo do trabalho de campo junto a professores universitários e estudantes de pós-graduação, permitem pensar quais os elementos acionados em suas narrativas para significar suas trajetórias acadêmicas e os atravessamentos pela experiência da medicalização. Ao pedir que falassem sobre suas memórias dos tempos de estudantes e seu posterior ingresso na docência e/ou pós-graduação, desejava compreender como a universidade e sua dinâmica de funcionamento era retratada e, mais do que isso, se era possível vislumbrar alguma inter-relação entre a dinâmica de trabalho que caracteriza esse universo e o início do uso de psicotrópicos.
Dentre os vários aspectos a serem ressaltados, a questão temporal merece destaque. No geral, são sujeitos que têm sua trajetória acadêmica iniciada a partir da década de 1990. Não é de se menosprezar o fato de que, desse momento em diante, novos corpos e subjetividades de docentes e discentes também são reconfigurados a partir da produção de medicamentos em escala cada vez mais globalizada, do crescimento do poderio econômico e político da indústria farmacêutica (que em relação aos psicofármacos já atuava desde a década de 50 do séc. XX), da expansão e consolidação da psiquiatrização da vida a partir da contínua reformulação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM (Russo; Venâncio, 2006; Biehl, 2011; Caponi, 2014; 2016), bem como das transformações pelas quais passaram e passam as políticas voltadas ao ensino superior no Brasil e no mundo (Freitas, 2019).
Em cena, narrativas que dão conta de algumas dessas transformações e que nos ajudam a compreender que os processos de adoecimento estão longe de se constituírem como uma questão de ordem individual e biológica, antes não podem ser desvinculados das discussões em torno de governo, mercados, sistemas e políticas de saúde, saberes biomédicos e psi, corpos e subjetividade(s) (Biehl, 2011; Caponi, 2016).
É importante pontuar que aqui subjetividade é compreendida como um processo de constituição de sujeitos em determinado tempo histórico. De acordo com Rose (2011), os processos de subjetivação são produtos históricos e sociais, não podendo ser devidamente compreendidos fora dos jogos das relações de saber-poder. Não por acaso, sustentando-se em Foucault, propõe uma genealogia da subjetivação
(Rose, 2011, p. 40). Nos termos do autor, a subjetivação deve ser compreendida como […] processos e práticas heterogêneas através dos quais seres humanos passam a se relacionar consigo mesmos e com outros sujeitos de um certo tipo […]
(Rose, 2011, p. 43). Nesse sentido, vale ressaltar que a compreensão dos processos de subjetivação contemporâneos não se esgotam em si mesmos. Antes são constituídos e constituidores de/por aspectos sociais e coletivos que não se reduzem ao debate da subjetividade.
Dito isso, apresento abaixo alguns trechos de entrevistas realizadas com meus/minhas interlocutores/as e que nos ajudam a acessar e compreender as nuances e complexidades da problemática em tela:
Minha trajetória sempre esteve marcada por certo deslumbramento da vida acadêmica. Me recordo que durante a graduação na década de 90, ser professor universitário era algo que rendia bastante prestígio. Era raro ter aulas com um professor com doutorado (não sei se era algo particular da região onde me situava), e quando se tinha aula com algum doutor era ocasião de orgulho. A impressão que tínhamos naquele momento era que o doutorado seria uma espécie de coroamento de uma trajetória. Tanto é verdade que quando nossos mestres saíam para o doutorado, voltavam e permaneciam pouco tempo – logo depois se aposentavam. Quando olho para o que se tornou a universidade hoje, com todo seu carreirismo meritocrático é algo insano. (Trecho do diário de campo – Mário², homem cis, branco, classe média, 60 anos)
Nasci na década de 90, ingressei na universidade em 2006. Na época tinha 16 anos. Venho de uma família de classe média alta e havia muita expectativa de que eu fosse bem-sucedido como grande parte de meus familiares. O desejo de meus pais na época era que eu fosse estudar fora, mas eu não desejava. Acabei ingressando numa universidade renomada do Sudeste, lá fiz graduação, mestrado e doutorado em história – para decepção dos meus pais que desejavam medicina ou direito. Essa experiência foi marcada por muita cobrança. Lembro de alguns professores que nos diziam: ‘Vocês precisam ser os melhores, nada menos do que isso. Afinal, vocês ingressaram nessa instituição’. Isso gerava um ambiente competitivo. Havia uma aura de encantamento com os professores renomados. O que posso dizer é que isso teve um preço. Ser o melhor no mundo acadêmico custa caro – e quem dera estivesse falando em termos econômicos! Ao longo de minha trajetória acadêmica não foram poucos colegas que surtaram porque não deram conta do sistema meritocrático. Eu sobrevivi, mas não posso dizer que sem marcas. (Trecho do diário de campo – Pedro, homem cis, branco, classe média alta, 31 anos)
Sou professora universitária há pouco tempo, se comparada com outros colegas. Ingressei no magistério superior em 2008, na época em que os concursos ainda contemplavam vagas para mestres. Posso dizer que sou filha de uma universidade em transição. A formação que tive ao longo da década de 90 quando ainda estava na graduação (formei em 2000) e a realidade que vivenciei no doutorado, quando já era professora universitária, é completamente diferente. A impressão que tenho é que houve uma mudança radical entre um modelo que privilegiava o tempo e o amadurecimento das ideias, e uma época da agilidade, eficiência e produtividade. Acho muito simbólico o fato de alguns colegas receberem uma bolsa que tem justamente esse título: produtividade. (Trecho do diário de campo – Maria, mulher cis, branca, classe média, 50 anos)
Ingressei no mestrado em 2016. Nossa, que loucura! Na verdade quando via meus professores lamentando em sala de aula ou pelos corredores a respeito da sobrecarga de trabalho, não fazia ideia de como era verdadeiro. Enquanto aluno de graduação posso dizer que aproveitei muito: as festas, os namoros, as redes de amizade. Confesso que nem sempre estava no curso