Cuidado de si e atitude crítica em Michel Foucault
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Cuidado de si e atitude crítica em Michel Foucault - Ronaldo Moreira de Souza
CAPÍTULO I O CUIDADO DE SI
Parece-me que a aposta, o desafio que a história do pensamento deve suscitar, está precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de dimensão determinada, pode, efetivamente, constituir, na história do pensamento, um momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno
.
(Michel Foucault. A hermenêutica do sujeito).
A fórmula aportuguesada cuidado de si
é uma derivação da fórmula grega: epiméleia heautoû, que os latinos traduziram, de forma insípida, por "cura sui", e designa um conjunto de práticas e exercícios espirituais que podem ser exercidas pelo sujeito sobre si mesmo com o objetivo de modificar seu modo de relacionar-se consigo, com os outros e com o mundo. Em Michel Foucault o tema aparece, pela primeira, vez no seminário Os anormais (1974-1975), mas é nos cursos proferidos no Collège de France a partir de 1981, especialmente, A hermenêutica do sujeito (1981-1982); O governo de si e dos outros (1982-1983); A coragem da verdade (1983-1984) e os dois últimos volumes da história da sexualidade: Uso dos prazeres e O cuidado de si, ambos publicados em 1984²², que o cuidado de si é problematizado em todas as suas dimensões – ética, política e estética. Contudo, embora os ditos e escritos posteriores às lições do curso intitulado A hermenêutica do sujeito²³ (1981-1982) apresentem comentários e reflexões críticas sobre o cuidado de si (epiméleia heautoû) antigo, este curso, publicado somente em 2001, constitui referência bibliográfica principal sobre o tema na obra de Michel Foucault. Onde o filósofo elabora uma historiografia exaustiva da noção de cuidado de si, abarcando desde seu aparecimento na cultura persa ligada ao rei Ciro, sua transposição para o pensamento filosófico através de Sócrates. O período da grande explosão na cultura e no pensamento filosófico do Alto Império romano (séc. II d. C) quando a exortação ocupa-te de ti mesmo
(heautoû epimeleisthai) alcança sua verdadeira idade de ouro
, estendendo-se a todos que fossem capazes de compreender o significado desse chamado, até sua marginalização na modernidade, consumada pela filosofia cartesiana, quando o conhece-te a ti mesmo
(gnôthi seautón) será privilegiado como condição única para acesso à verdade.
O exame da história das práticas de si na cultura e no pensamento filosófico ocidental pode ser visto não só como tentativa de apreensão de um fenômeno cultural, de dimensão determinada [...], no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno
²⁴, trata-se, também, de um esforço para escrever uma história da filosofia a partir da prática filosófica de si, que conduziu das formas primeiras da atitude filosófica, tal como se a vê surgir entre os gregos, até as formas primeiras do ascetismo cristão
.²⁵ O que significa dizer que a história da filosofia no Ocidente está marcada indelevelmente pelo vínculo entre o cuidado de si e o conhece-te a ti mesmo²⁶ da cultura grega, que, ao serem transpostos para o pensamento filosófico, através de Sócrates, vão tornar-se a própria condição para a atividade filosófica, uma vez que na espiritualidade antiga é impossível alcançar a verdade sem antes exercer-se, no sentido de purgar a alma dos vícios e paixões que a impede de concentrar-se em si mesma. A prática de si se torna, então, a condição para o exercício da filosofia, ao mesmo tempo em que a atividade filosófica, será identificada, cada vez mais a uma forma de atenção, de conversão do olhar que estava nos outros, no mundo e nas coisas para si mesmo.
A precedência do cuidado de si associado ao conhece-te a ti mesmo como condição para o exercício da filosofia na antiguidade greco-romana, para Foucault, foi tradicionalmente marginalizada pela historiografia filosófica moderna, ao privilegiar o conhece-te a ti mesmo em oposição ao cuida de ti mesmo, causando assim um divórcio entre essas duas noções fundamentais para o pensamento e a cultura antiga. É sobre o quadro geral que forma esses dois preceitos que queremos nos deter neste primeiro capítulo desse texto; partindo de uma análise historiográfica do conhece-te a ti mesmo, perguntaremos se há, de fato, uma oposição em relação ao cuidado de si ou se a aparente independência existente apenas esconde uma interlocução em que o conhece-te a ti mesmo só se realiza no interior do cuidado de si, podendo até serem identificados. Em seguida buscaremos mostrar como o cuidado de si e o conhece-te a ti mesmo pode atuar na transformação ética do sujeito e quais as implicações disso para o aperfeiçoamento de seu ser político, revelado no modo de relaciona-se com os outros.
1.1 CUIDADO SI E CONHECIMENTO DE SI: INDEPENDÊNCIA OU SUBORDINAÇÃO?
A exortação ocupa-te de ti mesmo
é precedida historicamente na cultura grega pelo preceito da religião do templo de Delfos, o conhece-te a ti mesmo
²⁷, o qual, embora com significado e importância voltado, especificamente, à prática religiosa, expressa uma atitude do sujeito sobre si que pode ser identificada àquilo que posteriormente será a função fundamental do cuidado de si na filosofia socrático-platônica – o conhecimento de si como atitude gnosiológica e moral. Seu significado, no contexto específico da prática religiosa, não era, certamente, o conhecimento de si como fundamento de uma moral ou mesmo como princípio de uma relação com os deuses; tratava-se, por outro lado, de um conselho endereçado àqueles que fossem consultar o oráculo de Delfos e devia ser tomado como uma espécie de regra que fazia parte do próprio ritual da consulta, isto é, uma exigência para que o consulente obtivesse um conhecimento pontual daquilo que queria apresentar ao deus; somente aquilo que fosse o mais necessário: nada em demasia
(medèn ágan), dizia o segundo preceito. Havia ainda um terceiro princípio que aconselhava prudência à pessoa que fosse procurar o oráculo: não te comprometas com coisas ou compromissos que não poderás honrar
²⁸, exortava; juntamente com esses preceitos o conhece-te a ti mesmo fazia parte de um ritual preparativo que antecedia a consulta ao oráculo, a qual deveria ser precedida por uma atitude crítica do sujeito da consulta sobre si mesmo, que consistia em obter um saber pontual e mensurado daquilo que se pretendia apresentar ao deus e dele ouvir os conselhos e exortações que iriam orientar o curso da ação sobre si mesmo, ou sobre aquilo a que se referia a consulta ao