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Literatura E Pensamento Científico
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Literatura E Pensamento Científico

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Para além de seu enredo, a literatura expressa, com frequência, as ideias de seu tempo. Um exemplo é Frankenstein de Mary Shelley, no qual o temor existente no início do século XIX sobre as criações da ciência assume um papel central. Outro caso emblemático é o receio, na primeira metade do século XX, de George Orwell quanto ao controle e à vigilância expresso no livro 1984. No entanto, nem sempre a literatura é tomada como forma de conhecimento, reflexão ou crítica da história da humanidade. O desafio contido em Literatura e Pensamento Científico, dominado com maestria nos 12 artigos publicados, foi justamente trazer à tona esses aspectos da literatura. Fica, então, o convite ao leitor para explorar escritores, obras ou escolas literárias com um novo olhar. Aos exemplos citados, somam-se as reflexões de Dostoiévski sobre o niilismo e o liberalismo, a denúncia de Machado de Assis quanto ao higienismo e ao alienismo, a Laranja Mecânica e o estado policial, o testemunho do cárcere de Graciliano Ramos, o desvio beat de Jack Kerouac, a fantasia científica de Philip K. Dick, os questionamentos sobre o corpo e a mente e tantos outros.
LanguagePortuguês
Release dateFeb 12, 2015
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    Literatura E Pensamento Científico - Gabriel J. Chittó Gauer, Ruth M. Chittó Gauer (coord.) Leandro Ayres França (org.)

    Literatura e Pensamento Científico

    Discussões sobre ciência, política e violência nas obras literárias

    Gabriel J. Chittó Gauer

    Ruth M. Chittó Gauer

    (Coord.)

    Leandro Ayres França

    (Org.)

    iea academia_pb

    F814l  França, Leandro Ayres.

    Literatura e Pensamento Científico. / Leandro

    Ayres França (Org.). – Curitiba: iEA Academia, 2014.

    ISBN 978-85-67644-09-7

                            1. Literatura. 2. Ciências. 3. Direito. 4. Política

    I. Título.

    CDD 800

    APRESENTAÇÃO

    O caminho do romance se esboça como uma história paralela dos tempos modernos registrou num ensaio o escritor tcheco Milan Kundera. De fato, nos enredos e nas suas entrelinhas, nos personagens e nas suas tramas, a literatura traduz ideias de seu tempo. Reconhecer isso não é difícil; problema maior é instrumentalizar e aproveitar a leitura como forma de conhecimento, de reflexão e de crítica da história moderna. Por isso, lançamos o desafio: convidamos pesquisadores para que produzissem textos que investigassem quais e de que forma escritores, obras literárias ou escolas literárias interpretaram e reproduziram ideias e teorias científicas de seus respectivos tempos, explicando o respectivo contexto histórico-social e indicando as influências dessas ideias no mundo jurídico.

    Não tardou para que nos respondessem. Reuniram-se as reflexões de Dostoiévski sobre o niilismo e o liberalismo, a denúncia de Machado de Assis quanto ao higienismo e ao alienismo, a narrativa de Joseph Conrad sobre o imperialismo, os indícios das teorias da degeneração e da contaminação a partir dos escritores góticos urbanos, o relato da influência da escola positiva e da análise antropopsiquiátrica no Brasil, o receio de George Orwell quanto à vigilância e ao controle, o testemunho do cárcere de Graciliano Ramos, o desvio beat de Jack Kerouac, a fantasia científica de Philip K. Dick, a preocupação com o risco trazida pela disseminação da cultura zumbi contemporânea, os questionamentos sobre o corpo e a mente, enfim, uma coletânea retrospectiva da história das ideias, gravada nos livros. Os textos são um convite a um aprendizado da literatura e do pensamento moderno. Boa leitura!

    Leandro Ayres França

    Os Demônios de Dostoiévski – uma crítica à modernidade desde outra temporalidade

    Ruth M. Chittó Gauer¹

    Viviane Hippmann Gauer²

    O homem não tem feito outra coisa senão inventar um deus para viver, sem se matar; nisso tem consistido toda a história do mundo até hoje. Sou o único na história do mundo que pela primeira vez não quis inventar um deus. Que saibam de uma vez por todas. ³

    Kiríllov em Os Demônios

    Ler Dostoiévski é um ato de paixão. Para além do que já há de tocante em toda boa literatura, Dostoiévski se caracteriza por trazer a marca do romance de ideias. Seus livros trazem, disfarçadas por entre enredos e personagens complexos, discussões filosóficas as mais profundas, às quais é impossível permanecer indiferente, uma vez tendo sido tocado por elas.

    Por ter escolhido não apresentar suas ideias de forma abertamente filosófica, Dostoiévski concede a aqueles que não querem ou não estão prontos para refletir sobre tais questões a oportunidade de simplesmente não enxergar esta dimensão dentro das obras. A realidade, entretanto, não poderia ser mais oposta – seus escritos são construídos a partir de perturbadoras questões-chave, nunca meramente ornamentados por elas.

    Tal estratégia, por outro lado, tem o efeito de não apenas fazer refletir os que se abrem para o real significado do texto, mas de quase fisicamente arrebatar-lhes com os questionamentos e reflexões que se revelam. Acontece que, desde que estejamos realmente imersos em uma obra literária, um pouco de nosso próprio limite de eu é perdido ao misturarmo-nos com as personagens e os enredos do mundo novo em que adentramos. Assim, quando deparados com questões centrais para se pensar o humano em uma tal situação, estas não se apresentam sob um frio manto de curiosidade intelectual. Ao contrário, invadem de dentro para fora nosso já permeável ser, em uma torrente inelutável. Primeiro sentimos seu baque líquido, para depois podermos mergulhar racionalmente em alguns aspectos dos vários significados apresentados pelo autor.

    É a partir de um mergulho em ideias maravilhosamente invasivas que este capítulo foi concebido.

    Os Demônios talvez seja a obra mais crítica e panfletária de Dostoiévski. Sua inspiração tem origem em um episódio verídico, o assassinato do estudante I. I. Ivanov por um grupo niilista em 1869 ⁴. Nesta obra em especial (mas não somente nesta) o autor tece argumentos ferrenhos contra o niilismo e o anarquismo, mais especificamente, e contra o projeto ocidental de modernidade, de forma mais geral.

    Para uma breve contextualização da obra e das questões a serem discutidas, duas informações são importantes. A primeira é sobre o contexto russo da época. A Rússia, entre a segunda metade dos anos 1860 e o início dos anos 70, vivenciava a proliferação de movimentos populistas de diferentes concepções ideológicas, muitos destes atuando desde táticas terroristas contra o Czar e os administradores do antigo regime. Assim, havia uma tendência a movimentos críticos à tradição e aos valores russos e de intenção de superação do regime⁵. Dentre estes, o grupo que despertou especial atenção em Dostoiévski foi a organização denominada Justiça Sumária do Povo, liderada por Nietcháiev sob a incumbência de Bakúnin, idealizada enquanto uma seção russa da Alliance Révolutionnaire Européenne – Comité Générale.

    É dentro deste contexto que o jovem I. I. Ivanov é assassinado por ter decidido se afastar da organização. Estudando em profundidade o funcionamento do grupo, Dostoiévski percebe que tal gênero de crime é intrínseco à organização e que, para além disso, a principal missão do grupo era promover o caos e a destruição na sociedade russa, para que um novo regime pudesse ascender⁶.

    Anteriormente a este acontecimento, mas já sob a ascensão do movimento niilista russo, o célebre Turguêniev escreve Pais e Filhos (1862), obra que populariza o termo niilismo. Polêmica por sua condescendência para com o movimento niilista, a obra postula um conflito entre duas gerações⁷. Em Os Demônios, Dostoiévski, ao mesmo tempo em que expõe uma crítica a Turguêniev por tal obra, incorpora e desenvolve seu pensamento geracional, identificando o liberalismo de uma geração russa com o anarquismo de sua sucessora.

    A segunda informação importante a ter em mente é o posicionamento político e religioso de Dostoiévski. Desde Pedro, o Grande, estava sendo colocada em marcha uma política de ocidentalização da Rússia, que culminou com a reforma de abolição da servidão feudal em 1861. Dostoiévski, por outro lado, era um eslavista percebendo a invasão de ideias e movimentos ocidentais em solo russo, e a incorporação que a Rússia estava a fazer de tais perspectivas. Em uma carta ao amigo Nikolai Strákhov sobre a redação de Os Demônios, escreve: Os niilistas e ocidentalistas exigem a chicotada definitiva.⁸ O autor também era um cristão ortodoxo, sendo suas obras frequentemente interpretadas sob uma perspectiva religiosa⁹.

    Personificando o liberalismo ocidental na figura de Stiepan Trofímovitch, modelo de professor liberal da geração anterior à geração revolucionária, Dostoiévski discorre por intermédio de seus personagens os caminhos aos quais o ocidentalismo pode levar. Uma das figuras emblemáticas na obra é Kiríllov, um niilista cuja profissão de fé é o seu próprio suicídio. Em suas próprias palavras:

    Se Deus existe, então toda a vontade é Dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se não existe, então toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio. [...] Não compreendo como até hoje um ateu pôde saber que Deus não existe e não se matou no ato! É um absurdo alguém reconhecer que Deus não existe e no mesmo instante não reconhecer que é um Deus, se não ele mesmo se mataria. Se você o reconhece, é um rei e você mesmo já não se matará e irá viver na mais alta glória. Mas um, aquele que foi o primeiro, deve se matar infalivelmente, senão quem é que irá começar e provar? Serei eu mesmo a me matar infalivelmente para começar e provar. ¹⁰

    Kiríllov vê em seu suicídio a redenção da humanidade – ao se matar, irá proclamar o Arbítrio do Homem-deus, a única ideia capaz de salvar a todos os homens. O raciocínio de Kiríllov é de que, se Deus não existe, então não há nada, nenhuma lei ou sentido universais superiores ao ser humano; este passa consequentemente a ser o Ser Supremo através de seu Arbítrio, completamente livre e insubordinado a qualquer regra exterior a si. É o medo de seu próprio Arbítrio e a invenção de deuses para si que leva a humanidade à infelicidade. 

    Curiosamente, Kiríllov não sente como um rei, conforme menciona no trecho, tampouco como um Homem-deus. Afirma, inclusive, que é um Deus involuntário e que é infeliz por ser obrigado a afirmar o seu arbítrio. Kiríllov é um niilista e ateu com certeza; não acredita em Deus, nem em qualquer princípio transcendental exterior ao homem. Todavia, não é por vontade que mata Deus, mas por necessidade. Kiríllov não é um revolucionário que cria a ideia do Homem-deus para libertar-se das correntes da religião (ao estilo nitzscheano), mas sim um homem desesperado pela necessidade de um sentido no qual não crê, que escolhe então acreditar na possibilidade de gerações futuras serem mais fortes e realistas do que ele mesmo é, tornando-se, de uma forma um tanto quanto invertida, um profeta e futuro Deus.

    Quanto ao estilo nietzschiano, salta aos olhos a proximidade entre o pensamento de Kiríllov e o Zaratustra de Nietzsche. Tal relação e a possibilidade de Nietzsche ter se inspirado em Dostoiévski já foi extensamente relatada por Girard¹¹, entre outros autores. A ideia do Übermensch tanto é vinculável ao Homem-deus de Kiríllov, quanto ao homem extraordinário de Raskólnikov – ambos matam Deus ao saltar por cima da ideia de bem e mal (vide o trecho do livro no qual Kiríllov diz que tudo é bom¹²) para afirmar a supremacia de si mesmos. O próprio personagem já nos dá a dica do elo entre tais filosofias dostoievskianas quando responde a Piotr Stiepánovitch: Matar outra pessoa seria a parte mais vil do meu arbítrio; isso é para ti. Eu não sou tu: quero a parte suprema e vou me matar.¹³ Igualmente, ambos falham em seus desejos – matam, a si ou aos outros, mas não conseguem prescindir de um absoluto para além de si mesmos. Nenhum dos dois, no final, atinge o sangue frio e a supremacia a que aspiravam, tornando-se quase risíveis em seus desenlaces.

    Outro personagem que se destaca em Os Demônios é Piotr Stiepánovitch, filho de Stiepan (porém não criado por ele), líder da organização revolucionária e autor da conspiração pelo assassinato de Chátov, personagem provavelmente inspirada em Nietcháiev. Piotr é o retrato da personagem manipuladora, que não está na revolução movido por nenhum ideal humanitário, senão por sua sede de poder. Em suas ações, incorpora-se uma faceta mais obscura das consequências relativistas do ocidentalismo e de seu projeto de modernidade – se não há nenhuma Verdade Suprema acima de mim, então a satisfação dos meus desejos é tudo que resta.

    Em suma, é o personagem que demonstra o que o Arbítrio humano endeusado e desprovido de moral é capaz de realizar – desde o apoio à ideia de uma sociedade em que dez por cento governariam e os outros noventa seriam iguais na escravidão (ideia esta de Chigalióv, personagem quase profético em sua defesa do que ainda não era nomeado totalitarismo), até o assassinato de um ex-camarada com o objetivo único de manter seu grupo mais unido e confiável e, assim, intentar alcançar o poder.

    Ainda há uma personagem crucial na obra sobre a qual é necessário falar. Nikolai Stavróguin, aristocrata devasso e orgulhoso, antigo protégé de Stiepan, é certamente a personagem mais intrincada do livro e a de mais difícil análise. Envolto em uma aura misteriosa de escândalos, rumores e admiradores, Stavróguin parece ser paradoxal até perante si mesmo. Em um capítulo não publicado durante a vida de Dostoiévski (Com Tíkhon), em decorrência da recusa do redator-chefe do folhetim em fazê-lo, há uma imersão maior na realidade da personagem. Nesse capítulo, Stavróguin confessa ao bispo Tíkhon ter tido relações sexuais com uma menina que ora descreve como tendo 14, ora 10 anos, e a qual termina por matar-se. Interessantemente, antes de se suicidar, mas já doente após o acontecido, a menina dizia que matara Deus.

    Quem também se suicida no final da obra é o próprio Stavróguin, após ter enviado uma carta a Dária um dia antes, dizendo que nunca poderia se matar:

    Nem negação como tal consegui extravasar. Tudo sempre foi mesquinho e indolente. O magnânimo Kiríllov não suportou a ideia e matou-se; mas eu vejo que ele foi magnânimo porque não estava em perfeito juízo. Eu nunca posso perder o juízo e nunca posso acreditar numa ideia no mesmo grau em que ele acreditou. Não posso sequer me ocupar com uma ideia naquele grau. Nunca, nunca poderei me matar. ¹⁴

    Stavróguin pode ser descrito como um personagem arruinado pela angústia, algo como uma personificação da tragédia constituída pelo total vazio de sentido. Girard¹⁵ traz uma análise bastante complexa do aristocrata, tratando-o, entre outros significados, como uma espécie de deus que diversos personagens da obra acabaram por adotar, substituindo dessa forma o Deus religioso que fora esquecido. Stavróguin, assim, não seria um Deus em si, nem para si, apenas para os Outros.

    Tal análise profícua leva à recordação de que até mesmo Piotr Stiepánovitch, o cínico absoluto, adorava Stavróguin como a luz e a resposta para seus problemas. Por outro lado, Chátov, batalhando por acreditar em Deus, também parece necessitar da imagem de Stavróguin. Começa aqui o questionamento sobre se Dostoiévski acreditava ser a ideia divina uma ideia essencial para a existência de todo e cada ser humano, do mais puro até o mais aviltante. Este pensamento será retomado mais adiante no texto. Por hora, é possível afirmar que ler Os Demônios é ter a chance de vivenciar como Stavróguin não é apenas sua personagem mais angustiada, mas também a mais angustiante, e acreditamos ser ele o mais puro símbolo dostoievskiano do niilismo.

    Sabemos que a contemporaneidade vive intensamente o niilismo, bem como a temporalidade, nas palavras de Ortega Y Gasset¹⁶: o querer criador de um novo âmbito de realidade mostra também um momento ‘escandalosamente temporário’, não sujeito a mudanças, mas também sem normas ou raízes. O século XX, conforme Ortega o viu na obra A Rebelião das Massas¹⁷, era o primeiro período da história que não encontrava qualquer padrão no passado. Rompera até com a cultura moderna ou, pelo menos, recusava-se a considerá-la definitiva, como fizera o século XIX. Para Girard¹⁸ o niilismo é a fonte de todas as ideologias, pois ele é a fonte de todas as divisões e de todas as oposições do subsolo. Pensar a crítica ao niilismo é fugir à redução ao mal, ao aniquilamemto, à descrença absoluta. Se o progresso para os niilistas só seria possivel após a destruição do que existia, tal progresso só poderia ser pensado frente à destruição.

    Até agora muito se falou em niilismo e pouco em modernidade. O fio que une esses dois gigantes na obra é a questão geracional – a forma como a geração dos Stiepans, com sua filosofia liberal e seus modismos de francês, teria contribuído para gerar a leva de Piotrs, Kiríllovs e Stavróguins (poderíamos também pensar em Chigalióvs) a incendiar e enlouquecer a Rússia, na visão de Dostoiévski. Concebendo tal análise sob uma ótica mais abstrata, chegaremos ao postulado de diversos autores contemporâneos: o projeto de modernidade já carregava consigo o germe que possibilitaria a geração da dissolução dos valores, do niilismo e do relativismo típicos do que é chamado por alguns de pós-modernidade¹⁹.

    É desde a metade do século XIX (ou seja, à época da escrita de Os Demônios), principalmente no período do neo-iluminismo que, segundo Baumer²⁰, para a ciência foi à época considerada a esperança da humanidade para obter um futuro mais brilhante. A visão da natureza controlava a metafísica e a religião, mas esta última permaneceu muito viva, apesar de este mundo patrocinar o nascimento de uma nova religião que glorificasse o homem e seus feitos heróicos na história (positivismo). Sua antropologia era mais otimista, a filosofia da história centrava-se no progresso como lei, abrangendo métodos de desenvolvimento do pensamento, do conhecimento, da justiça social e da razão.

    Esta ideia de progresso, enquanto um dos fundamentos do projeto de modernidade, significa romper com temporalidades e tradições passadas, dessacralizando certas instituições com vistas a abrir espaço para um futuro humano mais iluminado. Assim, a inovação, a criatividade e a descoberta tornam-se pilares rumo a novos tempos; enquanto a mudança, a transitoriedade e o fugidio passam a ser condições necessárias para o advento do todo-poderoso progresso²¹.

    O pensamento dostoievskiano, então, encontra eco na análise que Harvey²² faz do modernismo: Se o modernista tem de destruir para criar, a única maneira de representar verdades eternas é um processo de destruição passível de, no final, destruir ele mesmo essas verdades. Em suma, a ode à quebra das tradições desestabilizaria não apenas aquelas remanescentes de uma sociedade feudal, mas também terminaria por tornar instável qualquer enraizamento de novas bases para a estruturação do humano e do social. Neste processo, a instabilidade tornaria-se o único elemento que se possa estavelmente esperar.

    Seguindo esta linha de pensamento, alcançamos, especialmente após os movimentos de contracultura de 68, um estado de fortes críticas à razão abstrata e à sua capacidade, junto à tecnologia e à ciência, de ser a fonte da emancipação humana. É desde essa perspectiva que Harvey²³ trata a pós-modernidade e afirma a existência de uma crise moral de nosso tempo.

    Para, além disso, Dostoiévski já traz à tona a problemática do centramento absoluto no Homem e na Razão. Tal perspectiva antropocêntrica e logocêntrica encontra-se brilhantemente ligada em sua obra ao individualismo – é o que permite distinguir os indivíduos extraordinários, dotados de iniciativa e liberdade de pensamento, do mar de piolhos (vide Raskólnikov), bem como o que sustenta o Arbítrio do Homem-deus de Kiríllov. A história testemunha o quanto o mito do descobrimento (científico ou do além-mar), bem como o mito do progresso desenvolvimentista, contribuíram para a dominação europeia de um Outro colonizado²⁴.

    Quanto ao chigaliovismo, a lógica logocêntrica que separa o pensar do fazer certamente é uma base necessária para se postular uma sociedade totalitarista à la Chigalióv, na qual uns poucos planejam a ordem social, enquanto os outros são reduzidos à ação destituída de pensamento, o que não deixa de ter certa semelhança à utopia de Nova Atlântida imaginada por Bacon²⁵.

    Assim como Kant, portanto, Dostoiévski coloca um limite no que a razão é capaz de fazer pelo homem. Em seu diálogo com Stavróguin, Chátov profere:

    Povo nenhum – começou como se lesse algo ao pé da letra e ao mesmo tempo continuando a olhar ameaçadoramente para Stavróguin -, nenhum povo se organizou até hoje sobre os princípios da ciência e da razão; não houve uma única vez semelhante exemplo, a não ser por um instante, por tolice. [...] A razão nunca esteve em condições de definir o bem e o mal ou até de separar o bem do mal ainda que aproximadamente; ao contrário, sempre os confundiu de forma vergonhosa e lastimável; a ciência, por sua vez, apresentou soluções de força. ²⁶

    Se realmente estamos vivendo um momento de impasse e de crise moral, há questões fundamentais a serem abordadas. Haverá alternativas para essa crise ou ela teria vindo para ficar? E se há a possibilidade de mudança, como pensar para além dos dilemas da modernidade sem reincidir em suas próprias soluções problemáticas? Ou, como traz para reflexão Lyotard²⁷ (1990), como se pode reescrever algo sem retornar à repetição do que foi escrito?

    Para além desta relação é fundamental ressaltar a categoria mais importante para pensar o ato de lembrar,

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