Ensaios Globais – Da Primavera Árabe ao Brexit (2011 – 2020)
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Ensaios Globais – Da Primavera Árabe ao Brexit (2011 – 2020) - Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Para Nataly,
minha Anjinha,
et Angelique,
ma Cupide.
AGRADECIMENTOS
A todos os eventos que moveram a escrita deste livro, ao longo de uma década.
A todos os lugares que me acolheram.
A Wanda, Carlos Roberto, Luiz, Pedro e Roberto.
A Maria e Eliane.
Aos colegas do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, do curso de Relações Internacionais do câmpus Porto Nacional da Universidade Federal do Tocantins e da School of Humanities & Social Sciences da Al Akhawayn University in Ifrane, Marrocos.
A Mônica Herz, orientadora acadêmica durante o doutorado (2007/2011).
A Paulo Esteves, orientador acadêmico durante o pós-doutorado (2014/2015).
A Nizar Messari, orientador acadêmico durante o pós-doutorado (2019/20).
A todos que viabilizaram a imunização durante a pandemia do COVID-19.
Graças à Ciência, graças a Deus.
APRESENTAÇÃO
A segunda década do século XXI foi marcada por um conjunto de transformações nas relações internacionais. O período — que se inicia com a Primavera Árabe no norte da África e se encerra com a saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit) — incluiu outros acontecimentos internacionais de grande relevância. Crises nucleares com Irã e Coreia do Norte. A guerra civil internacionalizada na Síria, seguida por um fluxo massivo de refugiados no Oriente Médio e Leste Europeu e a escalada terrorista do grupo Isis. Reflexos da Crise de 2008 nas economias desenvolvidas e emergentes — crises do euro e disputas comerciais — enfraqueceram instituições internacionais e transformaram a globalização. As contradições e crises da integração europeia. O combate à mudança climática no Acordo de Paris. A morte de lideranças longevas (Fidel Castro em Cuba, Jacques Chirac na França). Nesse período, o declínio da democracia liberal se acentuou — tendo como símbolo a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Uma escalada nacionalista foi visível nas eleições realizadas no Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Espanha. Por outro lado, a ascensão de China e Índia e a tentativa de retomada de protagonismo pela Rússia nos apresenta um sistema internacional bastante diverso das expectativas pós-queda do Muro de Berlim.
Ensaios Globais: da Primavera Árabe ao Brexit (2011-2020) aborda esse período de mudanças a partir de uma perspectiva brasileira, informada por uma diversidade de contribuições teóricas das Relações Internacionais.
Como parte do aporte analítico trazido por uma perspectiva brasileira, Ensaios Globais debruça-se sobre as idas e vindas do Brasil como estado e sociedade emergentes num mundo assimétrico, em transformação. Temas abordados incluem as Jornadas de Junho de 2013, as políticas externas dos governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, a realização de megaeventos esportivos, a participação do país no grupo Brics, o recuo da integração regional na segunda metade da década e a busca por retomar alianças com Estados Unidos e Europa.
Os 36 textos compilados por Ensaios Globais foram produzidos ao longo dessa década, em uma dezena de países, em português e inglês. Incluem contribuições do autor para jornais impressos e digitais, portais de notícias, bem como para periódicos especializados da área de Relações Internacionais e de divulgação científica em geral.
Ensaios Globais sumariza a trajetória intelectual e profissional do autor no período. Quando o livro se inicia em 2011, ele completa o doutorado em Relações Internacionais na PUC-Rio e coordena o Brics Policy Center. Em meados da década, após seu primeiro pós-doutorado, ingressa como professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Tocantins, onde também foi diretor de Assuntos Internacionais. O livro se encerra com o retorno do autor do seu segundo pós-doutorado, na Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos).
Sumário
O FIM METONÍMICO DO DITADOR 15
REORDENAÇÃO EM PROGRESSO NO BRASIL 19
PROTAGONISMO DOS EMERGENTES INCOMODA
(E MOTIVA) WASHINGTON 27
OS EMERGENTES, A PALESTINA E A OTAN 31
A COPA QUE NÃO TEREMOS 35
VIOLENT ANXIETIES:
BRAZIL ON THE RISE OF VIOLENT CONTRADICTIONS 41
CONQUISTAS E DESAFIOS DA POLÍTICA EXTERNA
DE DILMA ROUSSEFF 45
O FUTURO DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA:
O EURO A PERIGO NA CRISE GREGA 51
14 ANOS DE SILÊNCIO: A GUERRA AO TERROR
E
A TRAGÉDIA DOS REFUGIADOS NO ORIENTE MÉDIO 57
IDAS E VINDAS NA SEGURANÇA COLETIVA:
A ONU ENTRE AS TORRES GÊMEAS E O ISIS 63
A COP-21 E GOVERNANÇA GLOBAL:
UM FUTURO SUSTENTÁVEL? 67
O ACORDO NUCLEAR COM O IRÃ E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO ORIENTE MÉDIO 73
DIÁLOGOS INDIRETOS:
ARGENTINA E BRASIL REDEFINEM UMA RELAÇÃO EM CRISE 77
A SAÍDA DO REINO UNIDO DA UNIÃO EUROPEIA E SEUS IMPACTOS NUM BRASIL EM CRISE 81
RITOS DE PASSAGEM:
A CHEGADA EM SILÊNCIO DO BRASIL OLÍMPICO 85
DO G-20 À CÚPULA DOS BRICS: INFLEXÕES DA ECONOMIA INTERNACIONAL APÓS 2008 89
OS ESTADOS UNIDOS ENTRE TRUMP E HILLARY:
CENÁRIOS PARA OS PAÍSES EMERGENTES 93
A MORTE DE FIDEL CASTRO E DILEMAS DA REVOLUÇÃO CUBANA NA ERA DE TRUMP 97
ROLETA-RUSSA: 25 ANOS APÓS A UNIÃO SOVIÉTICA,
A RÚSSIA SE PROJETA NUM MUNDO ENTRE CRISES 101
ECONOMIA GLOBAL E INTEGRAÇÃO REGIONAL
NO MUNDO DE DONALD TRUMP 105
OS LIMITES DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
APÓS O IMPEACHMENT 109
A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NA FRANÇA E A UNIÃO
EUROPEIA EM CRISE 113
JOVENS RUÍNAS DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA 119
VITÓRIAS INCONCLUSIVAS: O DESGASTE DA
DEMOCRACIA LIBERAL 123
UNIFICAÇÃO ENTRE CONTRADIÇÕES: ALEMANHA
E EUROPA, ATRAVÉS DAS CRISES DA GLOBALIZAÇÃO 127
INTEGRAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, AUTARQUIA: CONTRADIÇÕES DA DEMOCRACIA LIBERAL NAS ELEIÇÕES NA ITÁLIA 133
AS REELEIÇÕES DE VLADIMIR PUTIN E XI JINPING
E A NOVA ORDEM INTERNACIONAL 137
TRIUNFO DA DIPLOMACIA CHINESA: DONALD TRUMP
E KIM JONG-UN SE ENCONTRAM EM CINGAPURA 141
EXIT BREXIT 145
SEPARADOS POR UMA PONTE: A VENEZUELA E
A DESINTEGRAÇÃO REGIONAL 147
A WINDOW UPON CONSTRAINTS:
THREE YEARS AFTER POPULAR VOTE,
THE UK STILL REQUEST FURTHER BREXIT DELAYS 151
UMA ESPANHA DIVIDIDA VAI ÀS URNAS EUROPEIAS 155
O BRASIL DO SÉCULO 21: A ALIANÇA COM OS ESTADOS UNIDOS E O ACORDO DE LIVRE COMÉRCIO COM A UNIÃO EUROPEIA 159
ENTRE A GLOBALIZAÇÃO E AUTARQUIA:
A FRANÇA DE JACQUES CHIRAC 165
A ESPANHA NA ENCRUZILHADA DE CRISES:
INCERTEZA, MEMÓRIA, DEMOCRACIA 169
INTEGRAÇÃO REGIONAL, ELEIÇÕES NACIONAIS
E AS INSTITUIÇÕES EUROPEIAS 173
REFERÊNCIAS 177
O FIM METONÍMICO DO DITADOR
¹
A noção revolucionária de revolução, na qual a modernidade desembocou, inscreve-se em movimentos contínuos e concêntricos, expandindo-se em círculos, hiperestimulada em seu centro (a capital, centro do território do estado; a praça, centro da capital; mirando seu alvo, a figura do ditador, que representa o centro do regime). Revolução, não mais apenas uma cunha aberta no tecido temporal, mas a concepção predominante do próprio tempo. O processo da revolução se pretende permanente, define-se como expansivo e trabalha na escala de espécie. Da Tunísia, pelas correntezas da internet, a revolução transbordou o Nilo. Multidões foram para as ruas dizer não.
Dizer não tem múltipla relevância no contexto de uma revolução. Não a Hosni Mubarak se amplificava. Sim ao futuro — sim, qual? O não parava, enquanto hesitavam as forças políticas, apresentando-lhes um leque de amanhãs, mais ou menos possíveis. A negação do plausível se estendia, levando o tempo para além dos marcos quantificáveis, as palavras para além dos signos fixadores. O tempo foi atropelado pelo não.
Não pressupõe uma pergunta. É aí que não se amplifica. Não houve pergunta. Não era apenas resposta à pergunta presumida e noticiada
Mubarak?
— por 30 anos esquecida, respondida com o silêncio, inscrito nos corpos e cerimônias intra e extraterritoriais, extraído cirurgicamente e performado alhures e nenhures. Não diz respeito ao desrespeito por perguntas antecipadas. Trata de restituir o direito de perguntar — sem esperar respostas.
Ouço e leio que os egípcios (ultimamente despidos do discurso oficial, com iniciais minúsculas) querem se empanturrar de democracia. Como presente que lhes foi, diacronicamente, negado pela inércia de mentes e corpos, malemolentes por dentre os biombos de homens fortes e impérios ensolarados — que lhes conferiam (apesar de ferimentos) a segunda melhor opção, um arremedo de rotina. A dádiva da primeira e melhor opção, a democracia vindoura — sabemos nós (e Marcel Mauss) — não é imune a transbordamentos. Querer tudo poder e tudo podendo querer, pouco afeitamos as condições de nossa escolha aceitando, na precariedade de nossos engajamentos, o que se nos apresenta como limiar do possível (logo, do desejável).
A relação — pressuposta como necessária — entre o passado de negação e a dádiva futura imprensa o presente. Esvazia o espaço da ação, ao passo que este se amplia, via negação da pergunta pressuposta. A ação é o objeto da disputa política — o traçar na areia das práticas das condições de possibilidade de práticas futuras. As vozes do não que a dádiva vem calar impregnam de sutura o paradoxo da ação, que se comprime e se expande na mesma coordenada espaço-temporal. É preciso que a ferida desabrida que rasga o planejamento com riscos seja fechada para que a intervenção nunca tenha existido.
Para mudar, é preciso sobreviver — a mudança não se produz por si só (isso o DNA moderno progressivamente consagrou no lugar do progresso, moto-continuo). O desacelerar da transformação espalha e torna inerte o agente. Cada mudança bem-sucedida cai sobre si e relativiza limites pregressos, recusando-os. Diz não sem ter perguntas. A decadência do pregresso é subentendida. Mubarak anteposto. A recusa de velhas lindes é pressionada por quem recusa a reconhecer sua queda — obliquamente dizem sim à pergunta, no interdito de outras respostas.
Posto Mubarak, o monoposto permanece simbolicamente vigiado, antes que os invasores de mil rostos o soprem com milhares de vozes que pregam hoje no que até ontem era apenas deserto. A revolução ou espraia no desrespeito de suas tradições ou perde o fôlego para salvar os dedos e inventar um hoje, no qual o amanhã possa se acomodar. Os dedos que aplaudiram o novo líder egípcio, o ministro da defesa, membro do Supremo Conselho Militar, no poder desde 1952, afunilavam-se nessa ambivalência.
A noção de que a transição deve ser rápida e retomar a estabilidade para evitar o possível caos (expressa por diversos governos em 11/02/2011, pelo Nobel da Paz e postulante à presidência, Mohammed El Baradei) coloca um pé nos rostos que se fizeram ver nas ruas; cala as vozes dos últimos desaparecidos da estabilidade de 3 décadas de Mubarak e de 59 anos de homens fortes da nação. O pé no freio da transformação mimetiza as formas dos últimos muxoxos da ditadura — ao usurpar aos que disseram não a criação de perguntas — e legitima, em vestes de sacrifício transicional, a violência dos estertores do regime, como uma mão alheia estendida para apascentar a cólera intermitente do sistema solar civil-militar, no seio do qual Mubarak pôde orbitar durante 30 anos. A resposta de bate-pronto é a chancela do trono vazio, mas sempre preenchido – ilusão moderna que não vê a si mesma, diria Agnes Heller (1997), pelas línguas e olhos a serviço da fixação do soberano, diria Étienne de la Boétie (1576).
A busca pelo alívio imediato da transformação, via produção da estabilidade, retoma a noção pré-revolucionária de revolução. No discurso de El Baradei e das chancelarias da sociedade internacional, a revolução dos egípcios se torna um retorno, a conduzir o Egito de volta para o status quo ante, em prol do bem dos egípcios (agora como portadores da responsabilidade perante a ordem interestatal, como destinatários de um presente). A ameaça anarquista que grassa no não sem pergunta é respondida com o silenciamento em tempo real da revolução nas frequências que veiculam a presença sempre presente das soberanias.
O movimento pacífico que levou à queda de uma das mais longevas e toleradas ditaduras contemporâneas é enquadrado como perturbação necessária, transicional, momentânea que, no longo prazo, reitera a estabilidade da comunidade política. Canalizando os frutos da Modernidade, uma temporalidade cíclica, naturalista e necessária é postulada, uma cosmovisão metabólica das formas políticas que se sucedem e reproduzem, como um ciclo de imanência e necessidade, de fragilidade natural… O tempo teria um conteúdo próprio, uma essência que resistiria às práticas humanas, fechado em si mesmo, repetitivo, incessante. A marcha inexorável desse tempo torna-se um mantra repetido suavemente contra o pano de fundo branco dos rostos e das vozes que resolveram dizer não. A revolução, dantes associada com um movimento espontâneo, necessário, de reequilíbrio, torna-se um movimento instável, uma ruptura, um processo aberto de ação, para Hannah Arendt (1958).
A busca de um balanceador
que, no tempo, realiza o retorno
à estabilidade torna, performaticamente, metonímica a queda de Mubarak — fundindo, nas imagens, o corpo desaparecido e mumificado do ditador (em resorts de luxo e numa clínica de saúde perto da Viena de El Baradei) e o conteúdo da transformação possível
. Mas imagens são atritadas e fraturadas por não dizeres em tempo real — que sangram na praça, que queimam por conta própria e respondem ao fogo amigo
, imagens que se imaginam, que transbordam, progressivamente borrando e contaminando outras imagens.
A concepção do tempo cíclico e naturalista depende de uma visão estática do espaço (fechado e autossuficiente). O