Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas
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Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas - Claudionor Aparecido Ritondale
Claudionor Aparecido Ritondale
DISPERSIVOS
CRONICONTOS
E REFLEXÕES SOLTAS
São Paulo
2015
Se voi star sano osserva questa norma
non mangiar sanza voglia, e cena leve,
mastica bene, e quel che in te riceve
sia ben cotto e di semplice forma.
Tradução:
Se você quiser ser saudável, observe esta norma:
Não coma sem vontade e faça uma ceia leve,
Mastigue bem, e aquilo que para si recebe
Seja bem cozido e de simples forma.
(Leonardo da Vinci)
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 14
SONHOS ............................................................................................................... 16
FIGURA CARIMBADA ........................................................................................ 17
AÇÕES PILANTRÓPICAS
............................................................................... 18
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANONIMATO .................................. 25
SORTE NAS CARTAS (Reescrevendo Machado de Assis) .................................. 27
A CARTOMANTE
, de MACHADO DE ASSIS (TEXTO ORIGINAL) .......... 36
COMO NÃO SE APAIXONAR ............................................................................ 45
MISTÉRIOS DE UM OLHAR ............................................................................. 49
POR UMA COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL LINGUÍSTICA EFICIENTE . 59
Desdobramentos deste texto .............................................................................................................62
A EMPRESA HUMANA ...................................................................................... 69
ESPARSAS CONSIDERAÇÕES HUMANAS POSSÍVEIS SOBRE NOSSO
MUNDO ............................................................................................................... 71
ADÁGIOS
PARA
PENSAR
SOBRE
DOENÇAS
SEXUALMENTE
TRANSMISSÍVEIS ............................................................................................... 74
MEU ÍDOLO ........................................................................................................ 76
RECEPÇÃO AOS VETERANOS ......................................................................... 77
SOBRE CAPACIDADE E ESCOLHA ................................................................. 79
TEMPO DE DESAFIOS ...................................................................................... 81
ENGANOS DE NOSSO TEMPO ........................................................................ 86
SER VOLUNTÁRIO É... ...................................................................................... 88
7
QUEM PODE MAIS TRABALHA MENOS ....................................................... 89
CANSAÇO ............................................................................................................. 90
EXERCÍCIO DE METALINGUAGEM .............................................................. 95
SETE VEZES PECAR .......................................................................................... 96
ENQUETE MÍNIMA DE LEITURA E CRIATIVIDADE .........................................97
REFLEXÕES SOBRE AUTOCONHECIMENTO............................................ 104
Autoconhecimento: reflexão inicial ............................................................................................... 104
O que realmente uma pessoa é está muito nos seus sonhos ............................................................ 104
Política pessoal: passo para o autoconhecimento ............................................................................ 107
Um item importante de nosso autoconhecimento: nossa sexualidade .............................................. 109
Conhecer-se não significa nada estático ......................................................................................... 112
Produção e inteligência como formas de autoconhecimento .............................................................. 114
RECONHECIMENTO DE MIM MESMO E DE MINHA LITERATURA .... 118
Eu que gosto de animais .............................................................................................................. 118
Fazer um nome ........................................................................................................................... 120
Boa forma aos professores após os 50 anos ................................................................................... 122
VIDAS EM CURSO, CONSCIENTEMENTE ................................................... 125
ÁLBUM DE FAZEDURA .................................................................................... 129
Perguntas de um velho escritor a um jovem escritor e professor de (futuros) escritores ...................... 131
NOVIDADES ....................................................................................................... 138
NÓS NÃO VENCEREMOS A ELEIÇÃO .......................................................... 139
ENTREVISTA DE EMPREGO: SEMPRE UM ENIGMA ................................ 148
A COMUNICAÇÃO EM UM MUNDO CERCADO DE RELAÇÕES
INTERATIVAS .................................................................................................... 151
8
O indivíduo e a sociedade ............................................................................................................. 151
A questão do autismo relacionada à comunicação ......................................................................... 152
O interacionismo simbólico ........................................................................................................... 153
O self
e a ordem social .............................................................................................................. 156
A importância do léxico na interação ........................................................................................... 157
CARISMA: O MAIOR MITO DA COMUNICAÇÃO ......................................... 159
Análise da obra ........................................................................................................................... 162
Três tipos de carisma ................................................................................................................... 162
O Programa de Desenvolvimento do Carisma .............................................................................. 163
Criar e manter uma aura carismática .......................................................................................... 165
Excesso de autoconsciência leva a perdas ...................................................................................... 166
O corpo fala e proporciona julgamentos......................................................................................... 167
A conversa como fonte de prazer e amizade .................................................................................. 170
A arte de perceber ........................................................................................................................ 171
Magnético não é essencialmente quem tem aparência bela .............................................................. 172
Vender pelo carisma .................................................................................................................... 173
Conclusão: Resumo e ligação com a teoria da comunicação e com a teoria da informação.............. 174
Palavras-chave ............................................................................................................................. 175
Bibliografia comentada ................................................................................................................. 176
SOBRE PRECE A DEUS
, DE VOLTAIRE .................................................... 178
Prece a Deus, de Voltaire ............................................................................................................ 178
Prière à Dieu (original francês) .................................................................................................... 179
Explicação e comentário .............................................................................................................. 180
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PORTUGUÊS ..................................... 182
ESTÍMULOS PARA UMA PESQUISA SOCIOLÓGICA SOBRE O FUTEBOL
.............................................................................................................................. 188
Considerações ............................................................................................................................... 188
9
Pesquisa assistemática .................................................................................................................. 188
UMA REITERAÇÃO NECESSÁRIA .................................................................. 190
Ter ou não ter namorado, de Artur da Távola ............................................................................. 190
AS DIVISÕES DO APODO ................................................................................. 193
A MEDIDA DO HUMOR (SOBRE O SENTIDO DO RISO) .......................... 224
Introdução ................................................................................................................................... 224
Objetivo e problema ..................................................................................................................... 225
Hipótese e delimitação .................................................................................................................. 226
Algumas considerações sobre o corpus adotado: reafirmação dos objetivos ...................................... 228
1. O que se pode traduzir como carências
e onde se vê no humor uma saída para o mundo. ...... 229
2. Base teórica para a reflexão com base semântica sobre os textos transcritos ............................... 231
3. Caminhos do humor ................................................................................................................ 233
4. Conclusão: O que é, afinal, o humor adolescente dos jovens infomaníacos? (uma quase conclusão).
.................................................................................................................................................... 235
5. Bibliografia teórica:.................................................................................................................. 236
COMENTÁRIOS SOBRE UMA SUPOSTA REVOLUÇÃO LINGUÍSTICA
PRAGMÁTICA .................................................................................................... 237
O texto do Dagomir .................................................................................................................... 248
RELATÓRIO DE LEITURAS PARA UM CURSO DE ESTILÍSTICA
MINISTRADO PELO PROFESSOR WOLFGANG ROTH .............................. 251
Sumário ....................................................................................................................................... 251
Introdução à estilística .................................................................................................................. 251
A contribuição de Mattoso Câmara Júnior .................................................................................. 253
José Lemos Monteiro ................................................................................................................... 258
Michael Riffaterre e a Estilística estrutural .................................................................................. 265
Voltando a José Lemos Monteiro ................................................................................................ 268
Enkvist ....................................................................................................................................... 274
10
Iniciando Guiraud pelo fim .......................................................................................................... 278
Retomando Guiraud .................................................................................................................... 279
A conclusão de Guiraud .............................................................................................................. 282
Uma concepção filosófica .............................................................................................................. 285
Roberto Brandão ......................................................................................................................... 292
Genette ........................................................................................................................................ 293
Retomando Nilce Martins ........................................................................................................... 294
Bakhtin ....................................................................................................................................... 298
UM POUCO DE REFLEXÃO SOBRE DISCIPLINA NÃO FAZ MAL ........... 305
PROBLEMAS DE EXPRESSÃO NÃO ADVÊM DA TELEVISÃO ................... 311
LINGUAGEM TÉCNICA E GÍRIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-
SOCIAL: UM POUCO DA HISTÓRIA DA INTERAÇÃO ENTRE HOMEM E
COMPUTADOR NOS DIAS DE HOJE ............................................................ 320
Questões históricas ainda mal formuladas .................................................................................... 325
ALGUNS ASPECTOS EXPRESSIVOS DA GÍRIA DOS SURFISTAS .............. 342
1. Alguns conceitos necessários ..................................................................................................... 342
2. Dois aspectos de expressividade a considerar ............................................................................ 344
2.1. Os anglicismos ...................................................................................................................... 344
2.2.
Criações em português, predominantemente metafóricas ................................................. 348
3.
Observação final: ainda um pouco do antigo preconceito linguístico contra a gíria ................ 351
Referências bibliográficas .............................................................................................................. 353
Anexo 1: O corpus, da forma como se apresenta na Internet ........................................................ 354
Surfnário ..................................................................................................................................... 354
UM EXEMPLO RARO DE DISCURSO INDIRETO LIVRE NUM TRECHO
DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA ....................................................................... 357
RETÓRICA AJUDA A ENTENDER A MÍDIA? ................................................ 361
TRADUÇÃO INTERLINGUÍSTICA: ALGUNS PERCALÇOS ....................... 365
11
URBANIDADE................................................................................................... 378
PARA ILUDIR-SE COM O SENTIDO DE DESEJAR ..................................... 379
REPENSANDO O ESPORTE ........................................................................... 380
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DO SINAL @ EM
INFORMÁTICA ................................................................................................. 384
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 384
1.1. Tema, delimitação do tema e objetivos ................................................................................... 384
1.2. Justificativa .......................................................................................................................... 385
1.2.1. Busca do corpus
............................................................................................................. 385
2. Visões de mundo diversas para um fenômeno aparentemente universal ..................................... 386
2.1.
Algumas considerações sobre o corpus adotado .............................................................. 386
3. Aproximações teóricas da linguística à informática: as técnicas de humor ................................. 401
4. Interacionismo e exercício de papéis: enfoques instigantes .......................................................... 426
4.1. Um pouco de interacionismo simbólico .................................................................................. 428
4.2. Teoria dos papéis segundo abordagem estrutural ................................................................... 431
4.3. Minorias, Goffman e outros instrumentos para análise ......................................................... 434
5. Empreendendo o esforço de juntar as peças ............................................................................... 437
6. À guisa de conclusão ............................................................................................................... 445
7. Referências............................................................................................................................... 449
UM POUCO DO UNIVERSO DA RENDA PARA PROFISSIONAIS DE
EDUCAÇÃO ........................................................................................................ 451
POSFÁCIO .......................................................................................................... 453
UM POUCO DO AUTOR E DA OBRA ............................................................. 454
LIVROS E PARTICIPAÇÕES MAIS IMPORTANTES DE CLAUDIONOR
RITONDALE ......................................................................................................................... 459
12
13
INTRODUÇÃO
Pensar em compor mais um livro é tarefa que me desgasta tanto
quanto montar e estruturar o livro. Demoro bastante para conceber a
unidade e trabalhar as ideias previamente à execução do texto final. Acho
que não é diferente o mecanismo para outros autores.
Não quis estruturar demais, porque não conseguiria compor nada.
Acho, mesmo, que o que se chama de bloqueio é a vontade de perfeição
que algumas pessoas têm, por erroneamente acharem que devem compor
algo absolutamente incontestável, se quiserem escrever um livro. Mal
sabem elas quanta coisa imprestável existe sob o rótulo de livro.
Não considero que algo que eu tenha feito e que eu tenha
considerado livro seja o suprassumo da escrita. Apenas tento dar uma
colaboração ao mundo, dentro das limitações que se impõem a um livro.
Creio que não é difícil imaginar que livros não são o passatempo favorito
dos brasileiros, embora nas últimas duas décadas o nível de leitura deve ter
melhorado, ou não haveria certos espaços enormes de venda de livros em
grandes centros de compras, tampouco haveria várias alternativas de
leitura na Internet que são acessadas. E, se eu concebo um livro num
idioma único, para venda apenas limitada aos falantes dele, reduzo ainda
mais meu público. Também posso pensar que minha condição de divulgar
meus textos ainda seja muito pouco desenvolvida.
Juntando todas as dificuldades, resta também pensar na própria
qualidade do conteúdo. Isso é o que mais me atormenta, porque não sei se
os leitores poderão ver utilidade no que produzi. Obviamente tenho que
me arriscar a receber reprimendas ou a mais dura das avaliações, que é a
indiferença.
Envolvi-me neste livro com a recuperação de textos que escrevi
em várias ocasiões e que me retornaram ao convívio a partir da
necessidade de fazer algo diferente de uma rotina insatisfatória do
momento. Pus-me a remontar as ideias, tentar ajustá-las sob a forma de
capítulos e trazer a eventuais leitores relatos de tanto pensar sobre muita
coisa, e observar, e criar mundos.
Se alguém se dispuser a querer entender meu pensamento no que
diz respeito a qualquer coisa, posso adiantar-lhe: procuro observar o que
14
tende para uma relativa ou grande estabilidade de comunicação, que é o
que considero linguagem; e, se tento aprender ou ensinar algo, vejo que o
que me interessa é a persistência que acompanha o trabalho de ensinar e o
de aprender voltada para a assimilação do coletivo que favoreça a vida
longa, não a obtenção de respostas imediatas de prazer. Em ambos os
casos, o que me interessa é a vitalidade que atravesse gerações, não
produtos de moda, que não sobrevivem à necessidade constante de
mudanças. Se o rito de adaptar-se é a condição para conduzir a espécie
adiante, creio que tento fazê-lo, porque adaptação é um tema que me
acompanha vida afora. Espero apenas que meu esforço seja compreendido
e possa ser útil a alguém.
15
SONHOS
Plantão de lançamento de imóveis, quase 11h da noite, um jovem
corretor que viera da França recentemente, casara-se com uma brasileira e
tentava encontrar ocupação no Brasil, falava pouco o português e
conhecia pouco da realidade cheia de contrastes sociais da maior cidade do
país preparava-se para ir embora. Sua casa ficava a menos de um
quilômetro, iria a pé, desconhecedor de algumas das surpresas do bairro.
Pouco antes de encerrado o plantão – o vigia já pedindo aos
últimos remanescentes que fossem aprontando suas coisas –, o corretor
resolveu fumar do lado de fora, enquanto aguardava outro colega para
deixar-lhe um recado. Não notou quando alguém se aproximou do
plantão. Ao ouvir um boa-noite
, virou-se e notou um rapaz com
expressão sofrida e vestes simples que nem esperou a resposta completa
da saudação e já foi disparando:
– Viu, moço, eu vi esses apartamentos aí, mas estão muito caros
para mim. Eu queria um apartamento bem baratinho, só vim trazer os
documentos. Eu moro ali perto, ‘tá aqui também a declaração de moradia.
O jovem corretor francês estranhou aquilo, pegou, sem atinar para
outra saída, os papéis que o rapaz lhe estendia: cópia de identidade e de
CPF e a tal declaração de moradia. O rapaz, sem mais cerimônia, foi
embora.
O corretor guardou aqueles papéis e comentou a situação no dia
seguinte com um colega. A declaração de moradia indicava um albergue
que ficava bem próximo ao local do lançamento. O outro corretor disse
que o rapaz não teria nem renda para um simples imóvel de um programa
social de moradia do governo.
O segundo corretor tinha naquele momento um compromisso,
saiu meio sorridente, meio pensativo. A chapliniana situação rendeu risos
de estupefação de vários outros corretores que souberam do fato. Não
houve para ninguém uma fórmula para pensar em encaminhar com
aqueles papéis a realização do sonho daquele pobre rapaz. Era um desafio
à profissão, algo maior vindo da realidade a gargalhar alto no cotidiano da
metrópole.
16
FIGURA CARIMBADA
Corretor novato, pouco tempo na capital, forte sotaque do
interior, aquele colega atraía situações grotescas. Uma delas foi quando
quis dar uma de engraçadinho e resolveu repetir o envio de um beijo que
uma jovem dava ao celular ao final de uma ligação. Para quê? Ouviu um
enxoval de palavrões da garota.
Outra ocasião foi quando, após apenas três semanas na capital,
ouviu de um policial, quando pedia informações, que ele já era conhecido
do agente da lei. O rapaz tremeu, pensando que havia feito algo de errado,
mas o policial apenas o vira num barzinho alguns dias antes bebendo uma
cerveja. A conclusão era que o cidadão deveria parecer uma daquelas
figuras carimbadas, porque a coincidência de haver uns 12 milhões de
habitantes na cidade de São Paulo e ele ser reconhecido por um policial no
único dia em que parou num bar, após apenas três semanas na metrópole,
era realmente significativa.
O cidadão atraía esquisitices e excepcionalidades. Num plantão, ele
recebeu de volta um e-mail de alguém que se dizia interessado num
investimento, possuía renda 3 vezes maior do que a exigida, era investidor
mais várias informações alvissareiras. O ânimo do novato foi crescendo
até que, após mostrar o e-mail para um colega mais observador, ele teve
que admitir que só podia se tratar de brincadeira. O nome assinado no e-
mail era Thomaz Tur... Bem, não completaremos o suposto sobrenome,
apenas acrescentaremos que lembra um gerúndio ao final, quer dizer, se
forem lidos nome e sobrenome de uma forma mais rápida, isso geraria um
termo que é um tabuísmo, algo que corretores sérios não ficam falando
em plantão, porque, afinal de contas, um cliente de verdade estava
chegando ali, o colega teve de conter sua cara de sem graça e ir atendê-lo.
Os demais, no entanto, não precisavam conter o riso, apenas afastarem-se
da frente do plantão, alguns até quase rolaram no chão de tanto rir.
17
AÇÕES PILANTRÓPICAS
Do bom tempo em que trabalhei em banco, constatei várias
situações engraçadas, inclusive de gente que queria se aproveitar dos
próprios bancários. Eu enxergava meus colegas com uma admiração por
sua experiência, mas às vezes o senso de solidariedade e a vontade de
resolver uma situação que se arrastava levavam a um desembolso não
pretendido de dinheiro próprio. Do ponto de vista da outra parte, pode-se
pensar numa palavra mais simples: golpe.
O Palácio era um sujeito que se considerava esperto, muitos o
admiravam por ser bem sincero com todos, ter trânsito fácil com as
pessoas, querer ajudar os colegas e tratá-los com cortesia. Também era
visto como um ótimo seguidor das regras, bom de serviço e de papo. Com
seu jeito de homem do interior e um sotaque indisfarçável, também era
um tipo muito engraçado.
Alguém que se dizia apenas de passagem pela grande cidade
dirigiu-se à mesa de atendimento e pediu um favor: precisava pedir a
alguém de sua cidade de origem que lhe enviasse uma ordem de
pagamento urgente para que ele pudesse voltar a sua cidade. Alegava ter
sido assaltado num parque turístico relativamente bastante visitado e
estava sem dinheiro nenhum.
Os valores representavam um dia inteiro de trabalho de qualquer
um de nós, que ganhávamos praticamente a mesma coisa – não havia
distinção de cargo, éramos todos escriturários, com tempos muito
próximos no banco.
O Fulano insistia, até dizia o nome certo do lugar onde teria sido
assaltado. Eu estranhei que não era um local próximo à agência do banco,
havia várias outras bem mais próximas. Ouvi o cidadão falar que estava
hospedado num pequeno hotel ali perto, fiquei à espera do que o Palácio,
que iniciou o atendimento, ia fazer. O pedinte falava de sua esposa, que
estava grávida e que eles não tinham como pagar o hotel, nem comer. O
dinheiro que ia ser mandado serviria para o hotel, a passagem e para
alguma refeição.
A questão mais delicada e que complicava as coisas, segundo meu
entendimento, era a da localidade de onde teria que vir a ordem de
18
pagamento. O cidadão pedia que fosse solicitada à agência do banco em
outra cidade uma comunicação com alguém que morava em uma
propriedade rural distante do centro da cidade. Ele dava o nome, o
sobrenome e até um possível endereço, mas não havia nenhum telefone
para um contato direto, por exemplo. Por isso, havia a necessidade de um
contato com a agência do banco, depois que alguém da agência pudesse
manter algum tipo de comunicação com a propriedade rural. Certamente o
dono da propriedade, que, segundo o Fulano, era seu patrão, poderia
dirigir-se até a agência do banco e enviar-lhe o dinheiro, por ordem de
pagamento. Como o patrão era correntista do banco, o gerente poderia
verificar sua ficha cadastral e até localizar um número de telefone.
O interesse do banco era mínimo, porque as tarifas não eram
muito altas, mesmo para ordens de pagamento urgentes, que, na época,
seriam as passadas por intermédio de telex ou até telefonema (com a
devida cobrança das tarifas de interurbano). Hoje em dia, com tantos
meios mais eficientes e rápidos (o uso da |Internet, por exemplo), poder-
se-ia pensar em uma comunicação menos onerosa. Mas, mesmo naquele
tempo, a possibilidade de receber uma tarifa a mais não era lá algo muito
atrativo.
O espírito de solidariedade do Palácio, entretanto, falou mais alto.
Ele, como funcionário dedicado e pessoa muito amistosa, resolveu mandar
um telex para a outra agência, pois era o meio mais rápido e barato que se
conseguia naquele ano de 1988.
A resposta não chegava, porque a agência não localizava o suposto
patrão do Fulano. Eles viram os dados, conferiram a conta, mas o nome
era relativamente comum, algo meio sujeito a vários homônimos. Naquela
agência daquela pequena cidade, acho que do Estado do Espírito Santo,
não havia outro ser com aquele nome. Isso parecia ser um facilitador, mas
infelizmente o número de telefone que constava da ficha cadastral não
atendia.
Dito isso ao Fulano que já esperava por quase meia hora junto à
mesa de atendimento, ele não desanimou e manteve a esperança de que
poderia a qualquer momento ser feito um contato. Disse que aguardaria ali
outras tentativas e praticamente suplicou ao Palácio para que tentasse
outra comunicação. Foi o que o Palácio fez, mesmo sabendo que havia
19
movimento rotineiro de telex a processar. Ele, no entanto, era amigo de
todos os funcionários, tinha a confiança dos gerentes, não havia problema
para ele pedir de novo a ajuda do rapaz que operava o telex.
A agência repetia que não havia conseguido contato nenhum com
o correntista.
E o Fulano firme lá no seu posto junto à mesa de atendimento.
Uma hora e meia transcorrida, mais duas tentativas, e nada.
Alguns outros colegas que viram o Fulano já tanto tempo ali
perguntavam ao Palácio sobre se ele já havia sido atendido. O Palácio
sumariamente explicou o ocorrido. Ninguém se dispôs a ajudar mais do
que o favor, que já estava grande àquela altura, de tentar mais algumas
vezes o contato com a outra agência.
Finalmente, depois de duas horas de espera, num horário que já
estava próximo do fechamento da agência, o Palácio, que era um mero
escriturário, nem ao menos tinha um acréscimo de uma comissão de caixa,
nada disso, resolveu abreviar o sofrimento do Fulano e emprestar-lhe o
dinheiro. O Fulano não pediu a quantia, ele alegou que não haveria
problema em escrever para o endereço do seu patrão, que era o mesmo
em que ele morava, pois, quando lá chegasse, era imediato o depósito na
conta corrente do funcionário. A ideia era de um empréstimo, não de uma
esmola.
Depois de algumas falas agradecidas e com uma comoção que me
impressionou, o Fulano, já de posse do dinheiro, saiu da agência rumo a
seu destino.
Não é preciso dizer que o Palácio nunca viu o retorno do
empréstimo
. O endereço para onde ele enviou uma carta não existia. Os
demais colegas só vimos quando o correio retornou a carta com o carimbo
de endereço inexistente. Nem hoje, passados já mais de vinte anos do
ocorrido, com as possibilidades de localização com programas sofisticados
de computador, não se chegaria ao endereço informado. Foi o que me
informou recentemente um ex-colega, que se lembrou da história e do
endereço e que tentou a localização do famigerado proprietário do lugar e
suposto patrão do Fulano que recebera o dinheiro do Palácio.
A história dele poderia ser instrutiva para que ninguém caísse
nessas histórias, mas acabou inspirando algo mais deletério a incautos:
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uma sociedade golpista. O povo cunhou a palavra pilantrópica
, que é
uma mistura bem-humorada (ao menos para quem conta a história, sem
ter vivido a experiência de ter sido vítima de nenhum golpe) da palavra
pilantra
, sinônimo de trapaceiro, com a palavra filantrópica
, que é o
adjetivo que se refere a quem pratica a filantropia, quem é generoso,
caritativo, solidário, especialmente com a doação de bens materiais e até
dinheiro em espécie.
A ideia foi aproveitar esse senso de generosidade de gente como
aquele colega do banco. A última notícia dele é que tinha sido vítima de
um gerente inescrupuloso e tinha sido demitido do banco. Ele realmente
era muito ingênuo.
A oficialização da sociedade partiu de um vendedor de bilhetes de
loteria de quem eu ouvira falar por outro colega de banco. O vendedor se
dizia explorado pelos que lhe vendiam bilhetes para que ele os revendesse.
Resolvera, então, criar uma concorrência com aquela máquina de trazer
sorte, que era a loteria. A essência não seria vender um nada, como era a
ideia da sorte trazida pelo arrecadar dinheiro de muitos e depois distribuir
a uns poucos afortunados. Ele entendia que se devia oferecer algo que
sensibilizasse a quem faria a transferência de fundos. Segundo ele, nada
mais atraente do que fazer o bem ao próximo. Estava criada a Sociedade
de Auxílio aos Carentes.
Como dizia o colega do banco sobre esse vendedor de bilhetes de
loteria, carente é que não faltava no mundo. Hoje a Sociedade estaria
próspera, porque, mesmo com tanto progresso, ainda há milhões de
carentes no Brasil. Acho até que as carências aumentaram. Numa aula da
faculdade, um professor de linguística falava da preposição sem
acoplada por hífen a substantivos que denotavam várias carências: sem-
terra, sem-teto, sem-comida, sem-roupa, sem-escola, sem-computador.
Na onda dos sem-isso e sem-aquilo
, o vendedor de bilhetes
arrecadou em seis meses o suficiente para lhe garantir a independência
financeira, findos os quais ninguém nunca mais ouviu falar da tal
Sociedade, nem do seu fundador. Os fundos desapareceram, ou seja,
instalou-se um enorme buraco social
a partir daquela entidade
supostamente benemérita.
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Acompanhei por crônicas de escritores famosos e pelo noticiário
de várias mídias que essas sociedades ditas pilantrópicas
já haviam
evoluído para as que recebiam verbas de governos.
Certa vez caí num golpe – não posso revelar minha ingenuidade,
por favor! – e fiquei obviamente me achando um estúpido. O fato de ter
lido sobre governos também serem vítimas propiciou-me certo alívio. A
história do Palácio e a das vítimas da sociedade montada pelo ex-vendedor
de bilhetes de loteria me fizeram, a partir do golpe em que caí, me fizeram
ver que a lábia do estelionatário pode ser muito melhor do que a maior das
experiências. Se até governos entravam na conversa...
O curioso é que eu guardei o nome do Fulano que deu o golpe no
Palácio. Passaram-se mais de 20 anos do ocorrido, mas até alguns traços
da fisionomia não me escapariam, se o visse hoje. E foi exatamente isso o
que me aconteceu: o Fulano apareceu-me diante dos olhos, mas não me
abordando diretamente no início. Ele estava fazendo compras numa
padaria que eu frequentava. Já ia saindo e dirigia-se para uma agência
bancária onde eu mantenho conta. A coincidência nos fez tomar o mesmo
rumo, ele, antes de chegar à porta giratória de segurança, já foi logo me
contando a mesma história de 22 anos atrás. Tinha vindo a São Paulo com
a esposa – agora, ela não estava grávida, mas eles estavam acompanhados
de 3 filhos – e tinha sido assaltado numa praça (curiosamente a mesma
daquele tempo), tinha que pedir a seu patrão lá de uma cidade do interior
do Paraná (o Estado havia mudado) que lhe enviasse um depósito para
que ele sacasse no banco. O problema era que seu cartão estava quebrado.
E o Fulano me perguntava se, por acaso, eu lhe poderia dizer se alguém do
banco poderia providenciar algum tipo de jeito de ele sacar o dinheiro sem
o cartão, mesmo ele estando longe da sua cidade.
Eu pedi para olhar, mesmo sem o ter em minhas mãos, o cartão do
banco. Vi que o nome não era o nome do Fulano de 22 anos antes. Fiz
minhas deduções sobre a esperteza do indivíduo. Fiquei pensando em uma
saída rápida, ou algo que pudesse enrolar
o cidadão até que fosse
possível a intervenção de alguma autoridade da segurança.
Rapidamente veio-me a lembrança da Sociedade de Auxílio aos
Carentes. Eu pretendia não expor outros colegas do banco, que eram já de
outra geração, mas de alguma forma ainda meus colegas, à história golpista
22
do Fulano, que agora já beirava os 50 anos. Chamando-o pelo primeiro
nome, que eu lera do cartão que ele me expusera, falei-lhe brevemente da
Sociedade (que obviamente não existia) e dei-lhe um endereço. Afiancei-
lhe que lá era um posto da Sociedade e que eles resolveriam o problema
dele sem a intervenção do banco. Eles tinham atendido naquele ano vários
casos. Eu mesmo já tinha tido um caso meu resolvido daquela maneira,
porque também não era de São Paulo, tinha tido o mesmo problema de
cartão quebrado, tinha sido assaltado no mesmo lugar, etc. e tal.
Não sei dizer se a coincidência o animou ou deixou-o desconfiado.
Sei que ele não entrou no banco, pegou o endereço do pedaço de papel
que eu lhe forneci, acho que foi até o local que eu lhe indicara. Ele não
tinha como saber que se tratava de uma delegacia de polícia. Muito
coincidentemente lá trabalhava um investigador que era meu conhecido,
porque fora companheiro de equipe de meu pai, que era policial
aposentado. O investigador em questão era bem mais jovem que meu pai,
ainda não tinha completado seu tempo de serviço a fim de ser aposentado.
Era, no entanto, bastante experiente, principalmente com estelionatários.
Assim que o Fulano dobrou a esquina, eu fiz uma ligação diretamente ao
celular do investigador. Por sorte, ele estava de plantão, não tive que pedir
para que repassasse recado a ninguém.
A delegacia não tinha, por fora, uma identificação chamativa,
nunca entendi direito aquilo, acho que era o resultado de alguma falta de
verba oficial para a confecção de uma placa. Eu telefonei ao conhecido, ele
me atendeu muito bem e prestou-se a receber o indivíduo quando lá fosse,
se é que ele iria até lá. Eu ouvi, é claro, do investigador que pessoalmente
ele não acreditava que o estelionatário fosse até lá. O mais provável,
segundo o policial, seria ele tentar o golpe em outra agência ou em outro
horário, na mesma agência. A abordagem poderia ser com outro
correntista, alguém mais disposto a colaborar
, não a indicar outra
solução.
Surpreendentemente, entretanto, o Fulano apareceu na delegacia, e
o investigador que falou comigo imediatamente o atendeu e, de posse do
falso cartão e sem que fosse possível uma reação de fuga do estelionatário,
prendeu-o. A ação imediata foi chamar o delegado de plantão, que, sem
pestanejar, perguntou ao indivíduo se ele estava vendo a arma que o
23
delegado portava. Sem responder o estelionatário mostrou o sim com um
movimento de cabeça. O delegado impôs-lhe silêncio absoluto; caso
contrário, aquela arma seria acionada.
Meu pai, que me contou o desfecho, após uma conversa com seu
ex-colega, esclareceu-me a atitude do delegado. Na interpretação daquele
agente da lei, se o estelionatário começasse a falar, poderia convencer até
mesmo o delegado.
Li nos jornais algo sobre a prisão daquele golpista, que já havia
superado os 10.000 golpes aplicados ao longo de mais de 30 anos de
atividade. Também havia sido preso na ocasião o fundador da Sociedade
Auxílio aos Carentes, muito mais endinheirado do que aquele golpista do
cartão.
Sem o saber, vinguei o Palácio, a mim mesmo e a tantas vítimas.
Mas não é que outro dia, telefonaram-me do banco para avisar que meu
pai, já um tanto desgastado pela idade, estava numa agência do banco
onde eu tinha trabalhado – lá ainda trabalhavam vários ex-colegas meus –
e ia retirar uma considerável quantia em dinheiro para dá-la a um Fulano
que lhe prometia alguma vantagem! A colega que conversou comigo ao
telefone até me aconselhou para cuidar dele, que não estava mais com
idade de ir sozinho a bancos.
O pior é que ele, do mesmo modo como o Palácio, eu e tantas
vítimas, ainda se justificava da vantagem que poderia auferir. Anos antes
ele mesmo havia mostrado uma frase no interior de um departamento da
polícia especializado em estelionatos que dizia que a ganância da vítima é
que favorece o golpe.
Aprendi que há pelo menos dois pontos de vista em qualquer
situação da vida: um deles é certamente a espetacular condição de
envolvimento que os golpistas têm; o outro é certamente essa observação
desse departamento especializado da polícia.
De ação pilantrópica em ação pilantrópica, aliadas a poucas reações
de sorte, como a que eu tive, vai sendo feito o cotidiano de vigarices neste
mundo.
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANONIMATO
Por que necessitamos tanto de referências? Em literatura, será que
alguém vai a uma estante de uma livraria e procura um desconhecido, com
um título que não diga algo de especial e leia um texto?
O papel da divulgação talvez seja tão ou mais importante do que o
da escrita. Será que eu não exagero?
O autor faz diferença, ou não teríamos uma quantidade bem maior
de títulos dos nomes conhecidos. Alguns nomes podem significar muito
mais e já identificar seu autor. Obviamente, quando o autor já tem fama
por uma outra área e até o título de algum livro seu foi muito divulgado
em qualquer mídia poderosa, pode haver até o afastamento do leitor. Um
exemplo poderia ser o título Marimbondos de...
. Bem, o autor não é
visto como literato, embora escreva e faça parte da Academia Brasileira de
Letras. O problema é que pode ter recebido a antipatia do leitor,
influenciado pela mídia, a partir de sua trajetória extraliterária (digamos!).
E isso não seria um pré-julgamento?
Voltando aos anônimos: o que importa, realmente, para o leitor: a
utilidade do texto.
Sim? Acredito que não seja de espantar tanto uma constatação
como a que agora faço, porque somos muito influenciados por
propaganda. Quem disser que nome não vende mente. Quem disser que
só busca qualidade pode estar à busca de fama e prestígio. Antes de ler um
texto não se pode dizer se é bom ou não.
Já presenciei várias ocasiões em que um texto é apresentado sem
que o que apresenta dê o nome do autor, também em muitos casos não se
oferece sequer o título do texto. Antes de conhecer a autoria, verifiquei, na
maioria dos casos, que o texto não era ao menos satisfatório. Depois de
ter sido revelado o nome do autor, se famoso, o texto passa a ser visto
com outros olhos. O contrário também ocorre: já vi quem visse um filme
pelo tema e pela forma (por exemplo, uma comédia), ficasse bem
impressionado e empolgado com o filme, mas perdesse muito do
entusiasmo após um crítico de algum veículo de imprensa poderoso tecer
comentários muito desfavoráveis ao filme.
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O julgamento da obra de arte é algo de grande responsabilidade,
especialmente porque é algo que parte do leitor para o próprio leitor. O
assujeitamento a ideias que nos comandem, permitido por nós, é uma
prova inequívoca de desvio de análise, de submissão cultural. Um
jornalista conhecido escreveu certa feita sobre um nome muito conhecido
da chamada música popular brasileira que não seria preciso nem ouvir uma
próxima composição do tal nome muito conhecido porque, de antemão, já
se poderia saber que era bom. Isso é puro preconceito!
Que tal, a partir de agora, buscar algo sem o nome e sem o título?
Procurar conhecer, de verdade, sem antes perguntar ao balconista – da
livraria, da locadora – ou ao ser por trás do nome famoso na crítica da
mídia o nome ou a referência dessa ou daquela obra? Isso pode não fazer
mal, constatem!
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SORTE NAS CARTAS (Reescrevendo Machado de Assis)
Shakespeare que me desculpe, mas não sei a que coisas ele se
referia quando coloca na boca de Hamlet, ao falar a Horácio, que há mais
coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.
Aquele ano de 1869, no Brasil provinciano em que vivíamos, num
Rio de Janeiro ainda sonhador, não poderia ser o palco de tamanha
elucubração por parte de uma apenas bela jovem, como era Rita, em um
diálogo pouco profundo com seu amante, Camilo. Um novembro sem
graça, sexta-feira insossa.
A novidade que Rita queria levar ao amante era que no dia anterior
fora consultar uma cartomante. Destino? Sim, ele poderia já estar traçado,
daí veio a explicação simplória com a cópia da fala da peça Hamlet.
Camilo não conseguia parar de rir. Ela ficava indignada:
– Você fica a rir, porque, como todos os homens, não consegue
acreditar em nada. Você não pode imaginar o que ela disse logo que eu me
sentei à mesa, antes mesmo de colocar as cartas: "A senhora gosta de
alguém...". Depois de minha resposta afirmativa, ela pôs-se a mexer com
suas cartas. Revelou-me o medo que eu sentia de que você me
abandonasse, mas que isso não iria acontecer porque...
– Então, ela errou feio! interrompeu Camilo, ainda contendo o
riso.
– Por Deus, Camilo, eu sofro por você e você continua a brincar e
a rir de mim!
Camilo interrompeu sua graça, tomou as mãos da moça, beijou-as,
olhou fixamente para ela e assegurou que a amava, que aquilo de ela ter
medo era só receio infantil, que a melhor cartomante sempre seria ele
mesmo, que era perigoso ela andar por essas casas de leitura de cartas, pois
Vilela, o marido ciumento, poderia vir a saber, então...
– Não, é impossível: tive muito cuidado desde quando entrei até o
momento de ir-me.
– Onde fica esse lugar?
– Na Rua da Guarda Velha. Reparei bem que não vinha ninguém
no momento de eu entrar lá. Fique calmo: não estou ainda sem juízo.
A risada de Camilo retornou:
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– Ainda? Não há de crer nisso, hein?, perguntou-lhe em deboche.
Veio o comentário trasladado de Hamlet: havia tanta coisa
misteriosa e verdadeira neste mundo de Deus, não podíamos descrer de
tudo. Teríamos que confiar porque a cartomante adivinhara absolutamente
tudo. Prova disso é que ela, Rita, voltara de lá tranquila e satisfeita.
Camilo ameaçou falar, mas conteve-se para não tirar de Rita as
ilusões. Tinha que confessar internamente que também fora supersticioso
em certo período de sua infância, com um monte de crendices a encher-
lhe a mente, incutidas pela mãe, mas que agora tinham desaparecido.
Também, já contava 20 anos. Assim como à religião, passou a não
acreditar em nada. Ambas as heranças da mãe foram-se como parasitas das
quais ele se desprendera. Não acreditava em nada e não sabia explicar os
motivos, apenas limitava-se a negar tudo. Ou melhor, nem negava, porque
estaria debatendo a questão: apenas dava de ombros, em total indiferença
ao assunto.
Com o dar de ombros, foi andando. Ambos estavam contentes no
momento da separação, ele muito mais que ela, porque tinha certeza do
amor de Rita. Ela também agora se certificara do amor de Camilo,
também pela cartomante. A tal figura deixou, em verdade, Camilo
envaidecido, porque o risco a que Rita se submetera era prova de seu
amor. Os encontros deles eram realizados na antiga Rua dos Barbonos, de
uma amiga comprovinciana de Rita, que seguiu pela Rua das Mangueiras
em direção a Botafogo, bairro onde residia; já Camilo desceu pela
mencionada rua onde era a casa da cartomante – inevitavelmente olhou de
soslaio para a tal casa, mal vendo o número mencionado por Rita.
E a origem do triângulo? Vilela e Camilo, amigos de infância,
tiveram destinos diferentes após os estudos médios. Vilela formou-se em
Direito e tornou-se magistrado. Camilo acabou na profissão de quem não
quer prosseguir nos estudos: o funcionalismo público. Contrariava o pai,
que o queria médico, mas o pobre velho morreu sem ver a realização
ansiada para o filho. O emprego público foi-lhe arranjado pela mãe.
Naquele ano da graça de 1869, Vilela, recém-chegado da província, onde
casara com a dama formosa e tonta que já sabemos quem é (a preciosa
Rita) e tendo abandonado a magistratura, abrira uma banca de advogado.
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Fora Camilo quem lhe arrumara a casa para os lados de Botafogo e até
fora recebê-lo. A efusividade de Rita surpreendeu-o:
– Então é o famoso Camilo?, exclamou estendendo-lhe a mão.
Meu marido fala sempre do senhor.
Muito amigos que eram, entreolharam-se os dois mancebos.
Em seus pensamentos, Camilo verificava que era mesmo formosa
a esposa do amigo, graciosa, viva nos gestos, olhos quentes, boca fina e
que deixava uma pergunta no ar. A beleza da mulher não desmentia as
cartas do marido. A idade dos três: trinta anos a da jovem; vinte e nove a
de Vilela; vinte e seis a de Camilo. Apenas um pouco mais velho, Vilela,
entretanto, com seu ar grave, parecia ainda mais distante em anos com
relação à mulher. Por seu lado, Camilo, um ingênuo na vida moral e
prática, não demonstrava tanto a ação do tempo: inexperiente e sem
intuição, brilhava como as lentes de cristal a demonstrar erroneamente seu
tempo de vida.
A ligação dos três deu-se em continuidade à amizade entre os
antigos amigos. De tanto conviverem, certa intimidade foi-se insinuando.
Com a morte da mãe de Camilo, para ele um desastre, os amigos
socorreram-no e aproximaram-se dele ainda mais. Vilela, na condição de
advogado, tratou até do inventário (já cuidara do enterro e de todos os
ritos), enquanto Rita foi a amiga do coração, tarefa na qual foi insuperável.
O amor veio, não se lembrava Camilo exatamente como. Ele sabia
que apreciava os passeis ao lado de Rita, sua enfermeira moral, quase uma
irmã, mas, para além disso, uma mulher e bonita. Seu perfume era algo que
o envolvia, ligava-o a ela. Muitas atividades compartilhavam: livros inteiros
lidos, passeios, teatros, jogos de damas e xadrez – nenhum dos dois era
bom jogador, ela ainda pior que ele. As sutilezas iam-se amontoando:
olhares dela a Camilo, antes de a Vilela, mãos frias, atitudes pouco usuais.
Em um seu aniversário, Vilela lhe presenteara uma bengala; Rita um
bilhete com um vulgar escrito a lápis e palavras vulgares mas consideradas
sublimes, deleitosas, a recordar a carruagem em que, fechadinhos,
passearam pela primeira vez, ah divino carro de Apolo! O homem e o que
o cercava estava definido.
Não havia mais como fugir àquilo, ainda que Camilo o tentasse
inúmeras vezes. Rita, serpente sutil, acercou-se do amigo do marido,
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enlaçou-o, comprimiu-lhe os ossos, envenenou-lhe a boca. Atordoado,
submisso, vexado, tomado pelos remorsos e desejos, envolto em mistura
estonteante, cedeu à batalha curta e achou-se delirantemente vitorioso. Os
escrúpulos? A luva vestiu logo a luva da situação, ambos foram indo
naquele andar juntos, braços dados, na estrada do perigo, apenas sentindo
as amarguras das saudades quando havia a distância da ausência entre eles.
Vilela parecia manter a mesma confiança e estima de sempre.
Uma carta anônima, em um momento qualquer, colocou medo em
Camilo. Chamando-o imoral e traidor, chamava a atenção para o fato de
que todos já sabiam daquela aventura. A saída foi rarear as idas à casa de
Vilela e Rita. É claro que o advogado notou-lhe as ausências. A resposta
de Camilo era uma desculpa ingênua: uma paixão à toa em que se
envolvera. Era um modo cândido de parecer astuto. Gradativamente, das
ausências passou Camilo ao definitivo cessar às visitas. A angústia pela
deslealdade talvez estivesse a determinar também o afastamento.
Rita não se fez de rogada: correu logo de volta à cartomante. O
desaparecimento de Camilo atormentava-a. A cartomante, no entanto,
restitui-lhe a calma, Camilo advertiu-a do perigo. Algumas semanas mais,
Camilo a receber mais duas ou três cartas anônimas, talvez de
pretendentes em despeito. Rita ao menos assim pensava, porque julgava
ser próprio de quem tinha interesse contrariado, já que o interesse leva à
ação e gasta-se mesmo nela, enquanto a virtude, esta não parece gostar de
agir nem de usar o tempo para manifestar-se.
Ainda assim, Camilo não sossegava: o tal anônimo poderia
denunciar tudo a Vilela, a catástrofe era iminente. Rita viu também a
mesma possibilidade:
– Fico com os sobrescritos e ponho-me a compará-los com as
cartas que eventualmente recebermos; no caso de haver alguma com a
mesma letra, separo-a e mostro-a a você; do contrário, nem me dou ao
trabalho: simplesmente a rasgo.
Nenhuma outra carta apareceu, no entanto. A novidade estava no
comportamento de Vilela, agora taciturno, carrancudo, talvez desconfiado.
Rita contou rapidamente a alteração a Camilo, na tentativa de encontrarem
algo a fazer. Na opinião da moça, Camilo deveria voltar à casa deles,
sondar o que ocorria com Vilela, talvez para descobrir algo menos
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corriqueiro nos negócios. Camilo não aceitava aquela saída: não pretendia
aparecer depois de tantos meses, porque assim confirmaria a suspeita ou
até se denunciaria. O cuidado era o melhor remédio. Tudo poderia ser
resolvido em algumas semanas, cartas poderiam ser trocadas com algum
modo mais seguro, em caso de necessidade. As lágrimas selaram a
despedida deles.
A espera pela solução durou até o dia seguinte, quando Camilo, na
repartição, recebeu de Vilela um bilhete: "Venha imediatamente à nossa
casa; quero falar com você sem mais demora". Passava um pouco do
meio-dia. Temeu pelo contido no bilhete, já martelava que seria mais
natural ter Vilela chamado a ele ao escritório, não a casa. Algo de especial
havia a ser tratado. Até a letra da carta parecia-lhe trêmula. O
comportamento estranho da véspera, notificado por Rita, combinava com
aquela carta em tom enigmático. Retornou os olhos ao papel, leu
novamente a praticamente intimação de Vilela.
A cena de sua morte passava-lhe em mente. Rita, totalmente sob o
jugo do marido, em lágrimas, presenciaria o drama de seu final. O medo
da morte fê-lo estremecer. O sorriso amarelo que se seguiu ao pânico não
lhe paralisara; ao contrário, fazia-o caminhar a esmo. Pensou em ir a casa,
talvez Rita lhe tivesse deixado um recado com alguma mínima explicação.
Nada, porém. De volta à rua, a ideia da descoberta avultava. O anonimato
daquelas cartas também seria o mesmo de uma denúncia a Vilela, por que
não? Obviamente quem o ameaçara também o delataria. Seu
desaparecimento sem motivo acabara por confirmar em Vilela o que já era
por ele sabido.
A inquietação marcava os passos de Camilo. Não voltara ao
bilhete, mas as palavras ficaram-lhe na mente gravadas. Sua voz ou a de
Vilela falavam a ele. Na voz do outro, o mistério crescia com a ameaça. O
motivo era qual? Por que a pressa? Quase uma hora da tarde, cada minuto
só provocava um aumento no abalo de Camilo. A imaginação já se
transformara em crença ou praticamente em visão do que viria. Ele era o
próprio medo a afirmar-se. Pensou em levar consigo uma arma, por
precaução – se nada houvesse, voltaria também tranquilo. Em seguida,
rejeitava a ideia, com um asco de si mesmo. Seus passos eram pesados,
sem vontade de caminhar em direção ao tílburi que apanharia no Largo da
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Carioca. Decidiu pegar o primeiro que vira, logo pediu pressa ao cocheiro
– era necessário ir logo e resolver aquela agonia...
, pensou.
A tensão só se agravava com o trote do cavalo. O tempo
caminhava com seu passo cruel, aproximava-se rapidamente o confronto
com o amigo, a representação acabada do perigo. Mas, no fim da Rua da
Guarda Velha, um incidente; uma carroça caída entravava a passagem, o
tílburi teve que parar. Parecia aquilo uma trégua, era razoável esperar.
Nem cinco minutos decorridos, reparou ao lado da roda esquerda do
tílburi o número da casa da cartomante, aquela mesma que Rita consultara
e que ele só entrevira de soslaio, indiferente. Se pudesse crer nas cartas! As
únicas janelas fechadas eram as da casa da cartomante. As demais traziam
olhares curiosos do incidente na