Cidade Quebrada
By Lucas Mendes
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Cidade Quebrada - Lucas Mendes
CIDADE
QUEBRADA:
terra dividida,
espaço comum
Lucas Mendes
Lucas Mendes
Cidade Quebrada:
terra dividida, espaço comum
Livro-reportagem de Bauru
capa7.jpg"Cidade grande, que comporta tanta gente,
eu vou chegar bem na moral e falar humildemente.
Eu vou até sair pro lado, pois eu posso me perder,
mais que zuar em Bauru city, você pode até morrer"
Bauru City das Vilas - Desacato Verbal e Força Interior
Dados Catalográficos
MENDES, Lucas Eduardo Tozzi, 2017
Cidade Quebrada: Terra Dividida, Espaço Comum - 1ª ed. / Lucas Mendes - Bauru, SP.
1. Jornalismo 2. Livro-reportagem 3. Bauru 4. Desigualdade Social
5. Urbanização 6. Resistência
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
, como requisito parcial para obtenção do certificado de graduação em Comunicação Social – Jornalismo, sob a orientação do Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier.
Redação, edição, diagramação e fotos por Lucas Mendes
lucasmendes962@gmail.com
Fortaleça a comunicação alternativa e contra-hegemônica!
Este livro não tem nenhum interesse comercial, apenas buscou oferecer um contraponto às narrativas dominantes na cidade de Bauru. Divulgue, compartilhe e reproduza o que quiser.
A reprodução de quaisquer conteúdos desta obra é livre, desde que citada a fonte e o autor.
Sumário
Introdução ........................................................... 7
Bauru: Ficha Técnica ..........................................14
Parte 1: Desigualdade social e de renda .......16
O Nascimento da Tragédia
Pouco mudou ...................................................................................16
O dinheiro manda ...........................................................................20
Divergências nos alpes suíços ........................................................26
Com o suor do trabalho .................................................................29
Estado, mercado e sociedade ........................................................33
Proteção social bauruense .............................................................37
Já me acostumei com a rua
........................................................40
invisibilidade e ação .......................................................................43
Parte 2: Moradia, habitação e urbanização...49
Ocupar e viver a cidade
A cidade como direito ...................................................................50
A cidade como finança .................................................................53
A cidade periferia ..........................................................................57
A vida no Minha Casa Minha Vida ............................................61
Lei escrita e direito conquistado .................................................67
Plano Diretor Participativo de Bauru .........................................70
Urbanismo para pessoas ...............................................................74
Parte 3: Resistência e organização..................80
Canaã, a terra prometida ................................................................85
Protagonismo, cidadania e expressão ...........................................87
Tecnologia, Mídia radical e comunicação alternativa ................90
Parte 4: Estado versus mercado.......................96
Notas....................................................................101
O momento da Movimentação ..................................................... 99
Considerações finais
Construir e contar a própria história
resis3.jpgAudiência Pública na Câmara Municipal de Bauru para discutir mudanças no Plano Diretor Participativo. Presença de ativistas e movimentos sociais agitou os debates.
Notas numeradas e autores, ver NOTAS no final do livro
Sobre Fordismo e as crises do capitalismo, ver https://goo.gl/ZMxuqb.
Sobre financeirização da economia, ver https://goo.gl/9vmwgs.
INTRODUÇÃO
Desde meados dos anos 1970 acontece no mundo um processo de transformação nos modelos tradicionais de acumulação do capital, motivados, segundo o geógrafo britânico e teórico marxista David Harvey¹, por um processo do superacumulação e pelas crises sistêmicas desse modo de produção.
Segundo ele, o modelo de produção baseado no Fordismo foi dissolvendo-se ao longo da década de 1960, sendo que o estopim para a mudança foi a crise internacional do petróleo-1973. A partir de então, passou-se a um modelo que ele chamou de Acumulação Flexível do Capital.
Nesse modelo os mercados de trabalho não são mais rígidos — privilegiam-se contratos temporários, terceirizações e a incorporação da força de trabalho imigrante. Adota-se a produção just in time
— a adequação da estocagem dos produtos conforme a demanda.
Na análise do britânico, os países do centro do capitalismo (Europa e EUA), tinham uma força de trabalho que dispunha de poder político e de negociação, devido à estruturação dos sindicatos, fato que garantia salários cada vez mais altos para a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, o Estado de Bem-Estar Social garantia uma rede de direitos sociais aos cidadãos. É aí que se dá a expansão do capital para o Terceiro Mundo
.
A intensificação da globalização faz abrir novos mercados ao redor do planeta, para absorver o investimento de capital gerado pela acumulação ao longo do século XX. Para Harvey, um importante meio de receber esse aporte foi (e ainda é) a urbanização, que passou por um crescimento exponencial ao redor do globo.
O geógrafo também atribui ao avanço tecnológico o processo de compressão da experiência do espaço-tempo, possibilitado por conta da aceleração das comunicações. Contudo, é a expansão da economia neoliberal que ele vê como principal legado da nova estrutura capitalista, pois ela atua na desregulamentação do mercado financeiro, contribuindo para a financeirização da economia.
Todos esses fatores e seus reflexos na Cultura, com o aumento do individualismo, despolitização e desengajamento
foi chamado pelo pesquisador de a condição pós-moderna
– momento em que as desigualdades sociais são acentuadas.
Desigualdade
O processo de acumulação flexível e financeirização da economia legou ao século XXI, principalmente na periferia do capitalismo e no Sul Global, não apenas a manutenção mas a reprodução das desigualdades sociais e de renda, como afirma o economista francês Thomas Piketty².
Segundo ele, com a financeirização da economia, e por consequência o rentismo, aumenta-se a concentração de renda, perpetuando-se as desigualdades. O raciocínio é simples, uma vez que a taxa de retorno sobre o capital (no mercado financeiro) é maior que a taxa de crescimento da renda (o crescimento dos salários).
Para Jessé Souza³ , sociólogo e ex-diretor do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os critérios de igualdade social e liberdade individual — pressupostos básicos de qualquer democracia — não foram universalizados, e num mercado de trabalho altamente competitivo o que resta para a população à margem do sistema são os trabalhos não-qualificados e a invisibilidade social.
Nesse conjunto desprivilegiado
está uma classe inteira de pessoas que estão abaixo dos princípios de dignidade e espoliadas dos seus direitos enquanto cidadãos. Em seu livro Ralé Brasileira
, Jessé atesta que essa classe compõe ⅓ da população brasileira, formada por pessoas que são não só miseráveis economicamente, mas também desprovidas das pré-condições psico-sociais
para ganhar a vida no capitalismo competitivo. Isso repercute na divisão social da cidade e na sua urbanização.
Moradia e direito à cidade
Na linha de pensamento de David Harvey, os efeitos colaterais da superacumulação do capital são o crescimento exponencial das cidades no mundo e seus impactos na garantia da posse e sua função social.
De acordo com o texto de fundamentos do Plano Diretor Participativo de Bauru, a Constituição brasileira de 1934 já estabelecia que o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. Porém, somente na Constituição Federal de 1988 é que a garantia ao direito de propriedade, erigida em cláusula pétrea, condiciona-se expressamente ao seu uso, ou seja, ao exercício de sua função social
.
Segundo consta na Relatoria de Moradia Digna das Nações Unidas, processos predatórios, desiguais e autoritários de reurbanização, desapropriação e periferização tornam-se frequentes na sociedade atual, principalmente nos países em desenvolvimento — onde os marcos jurídicos não são claros e a jurisprudência não garante a segurança da posse.
Aliados a isso estão os processos de especulação imobiliária (estratégia de valorização de imóveis ou terrenos) e gentrificação (fenômeno que altera a composição dos espaços, valorizando a região e afetando a população de baixa renda originária dali, que é obrigada a se mudar), como afirma a urbanista Raquel Rolnik⁴, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP).
Para ela, esses fatores compõem o procedimento global de financeirização das cidades e dos direitos à terra e à moradia — a transformação de um direito humano num ativo negociável. Na sua opinião, o resultado mais recente disso foi a crise imobiliária americana de 2008, um episódio que demonstrou a inabilidade do Mercado em prover moradia adequada à população.
Voltando-se para o Brasil, as Políticas de Habitação recentes (Minha Casa Minha Vida) pautam-se, segundo Rolnik, pelo financiamento como principal meio de acesso à casa própria — o imóvel é construído por grandes construtoras/empreiteiras e acessado pelas pessoas via crédito.
De acordo com a urbanista, que também foi relatora da ONU para Moradia Digna, a realização plena do direito à moradia não pode ser promovida exclusivamente com mecanismos financeiros, mas requer políticas de intervenção do Estado e uma diversificação de medidas, para além do financiamento à casa própria.
Segundo ela, a casa própria pode ser a melhor opção para muitos, mas conquistar moradia adequada para todos demanda uma variedade de soluções, como incentivos tributários, microcrédito, auto-gestão, cooperativas, urbanização de assentamentos, programas de locação, subsídios diretos para os pobres e moradia pública. Mercados, mesmo regulados, não podem prover moradia adequada para todos e um setor público ativo é fundamental
. E completa: Na cidade, sob a financeirização, a Moradia se tornou sinônimo de mercadoria
, dividindo e segregando o espaço urbano.
Fraturas expostas nas cidades
Nessa divisão, formam-se realidades distintas dentro de uma mesma cidade, numa relação que mostra as ligações estruturais entre riqueza e pobreza e no modo de vivência urbana a partir da conexão entre os grupos sociais privilegiados e os menos abastados, como teorizou Milton Santos⁵, geógrafo, pesquisador e escritor brasileiro. Na visão dele, configuram-se dois subsistemas urbanos — os circuitos Inferior e Superior da economia urbana.
Enquanto existe a cidade iluminada
, com largo uso de capitais e recursos diversos, ampla utilização de tecnologia e organização, existe também a cidade opaca
, com atividades econômicas de menor escala, muitas com marcas da informalidade, com uma organização mais fluída
e um uso criativo da tecnologia.
Ambos os sistemas relacionam-se dialeticamente, hierarquizam-se e concorrem entre si, pois ocupam o mesmo espaço — a cidade, segundo Milton Santos. E é essa relação que permite ações de resistência e transformação da sociedade.
Resistência
Nesse combate, eclodem ao redor do globo grupos e movimentos sociais de reivindicação de direitos, com novas ideias sobre o mercado financeiro (a exemplo dos protestos do occupy Wall Street
⁶, em Nova York) e propostas alternativas devido ao desencantamento com a política tradicional (auto organização, democracia participativa).
São pressões por Políticas Públicas inclusivas e pelo direito à cidade. É a apropriação criativa da tecnologia e dos métodos alternativos de expressão e comunicação. Como afirmou o filósofo esloveno Slavoj Žižek⁷, no acampamento de manifestantes em Wall Street, qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem
.
Grupos artísticos e culturais buscam articulação política para reivindicar suas demandas, para resistir e para mobilizar a juventude. Alicerçados pelo potencial da internet e da comunicação em rede, tecem conexões e geram novas organizações. É a mídia radical, conceito do ensaísta americano John Downing⁸, que alarga a definição do que seria comunicação. Afinal, zines e panfletos também comunicam, assim como cartazes, graffitis, pixos, stencils, lambes, uma música de protesto.
São novas maneiras de se relacionar e de significar o mundo e a sociedade, num movimento articulado entre movimentos sociais e comunicadores, já explícito no título do livro de Downing: Rebeldia nas Comunicações e Movimentos Sociais
.
Como afirma o jornalista e pesquisador Ricardo Gandour⁹, As redes sociais se transformaram em mega plataformas de distribuição
. A comunicação hegemônica por meio das mídias consolidadas