Dissonante
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Book preview
Dissonante - Nathan Ritzel Dos Santos
Harmonia
Sangue, Corpo e Alma
Dentre as aptidões daquele humilde homem, talvez a mais marcante delas fosse ordenar que seus dedos executassem belíssimas coreografias em cima das teclas de seu piano. Sapateados frenéticos e melodias inebriantes eram as coisas que lhe acalmavam e atribuíam sentido à sua vida, vez que seu coração fora surrupiado do peito ao som de uma violenta sinfonia.
Era, ao mesmo tempo, nostálgico e doloroso este belo vazio no qual sua vida havia se convertido. E havia somente um algoz. Uma mulher, que, portando uma simples faca, cometeu não o pecado mais grave, sob seu ponto de vista, mas privou-lhe da evolução. Tornou-o estanque.
Dizem que você pode fazer as piores coisas do mundo com objetos caseiros, e com ele não foi diferente.
Ela arrancou seu coração e destruiu-o, usando apenas uma faca comum. As lendas dizem que nem ponta ela tinha, enquanto outras falam sobre a extrema ferrugem de sua lâmina.
O ridículo e o cruel andam de mãos dadas com a melodia, sempre presente, que acompanha seu calvário desde o começo. No início era preciso que a música fosse tocada em homenagem a ela, a tragédia, e só desta maneira a energia virtuosa da vida corria por suas veias. Mas, atualmente, a peça deve surgir galopante do fundo do ferimento. Um negro buraco.
Uma música vinda do vazio, mas, triste. Tão triste que nem o seu coração, longe da respiração ofegante e das lágrimas, podia senti-la de tal forma. Destrutiva e sádica, mas, ainda sim, bela.
Bela tristeza.
E o piano segue incessante, enchendo a casa com as mais puras notas da mais sincera tristeza, fruto de um buraco no peito, ferida que sangra sem parar. Em suas veias corria a própria tristeza, seu sangue impuro, e de seu peito jorrava melancolia a cada fisgada de dor. A melancolia se espalhava por cima do piano, quase líquida, e ali se moldava em uma canção sangrenta, tão sorrateira quanto um odor discreto. A casa, jamais silenciosa, agora tinha as escadas, paredes, chão e teto completamente ensaguentados. Difícil era entrar ali e não perceber o sangue no ar.
Você respira e sente a canção em seus pulmões, sufoca, e então percebe a vermelhidão do sangue. Tristeza. Nostalgia. Ouve mais um pouco. Dor. Sofrimento. Então, para de ouvir e sai da casa, aos prantos, sendo seguido somente pelo piano, cuja alma revela-se cansada, nada mais que uma sombra.
Alices e Coelhos
I.
O relógio parecia encarar Alice de forma maliciosa. O ponteiro estava fora do lugar, ela tinha certeza! Sabia que havia ajustado corretamente, mas o maldito ponteiro sempre dava um jeito de trocar de lugar.
II.
O Coelho Branco parou, atônito, quando viu Alice prostrada em sua frente segurando uma faca na mão esquerda e um relógio de bolso na mão direita. Era o seu relógio de bolso. Ela sorriu e caminhou em sua direção, pronta para uma brincadeira.
III.
O inimigo do meu inimigo é meu amigo
, constatou Alice, quando percebeu que o tempo, antes inimigo do Coelho Branco, havia se tornado seu mais novo aliado.
IV.
Subitamente, o atraso do Coelho passou a ser uma adiantada chegada. Tão adiantada que até seu relógio estava atrasado, afinal, ele deveria estar em suas vísceras, mas ainda estava na mão de Alice.
V.
Oh, droga...
, disse Alice, enquanto chegava à conclusão de que couro de coelho era trabalhoso de ser cortado sem manchar muito o pelo de vermelho. Isso estragaria parte da diversão.
VI.
Alice enterrou o Coelho Branco em um belo cemitério e escreveu seu epitáfio. Esperava que as instruções que escrevera em sua lápide servissem de atraso o suficiente para o Coelho após sua morte.
VII.
"Aqui jaz o Coelho Branco, um dos maiores mestres do tempo que já existiu, e que, no entanto, era enganado por seu relógio. Este precioso bem, meu amigo, está muito bem guardado, e está consigo neste exato momento. Espero, do fundo do meu coração, que encontres o teu precioso controlador. Mas, saibas que para continuar essa jornada você precisa ser pontual ao extremo. Portanto, comece agora a arrumar um meio para descosturar sua barriga e pegar de volta o relógio. Não vá se atrasar! Torço por você.
Alice".
VIII.
A garota saiu assoviando do cemitério nebuloso, como quem acaba de realizar uma tarefa há muito esperada. Tentava limpar com as mãos, sem sucesso, uma mancha vermelha do vestido azul e branco, quando tateou um dos bolsos e lembrou-se que havia esquecido de colocar o relógio dentro do Coelho. Parou de caminhar e olhou para a lápide do pobre animal. Pensou. Pensou novamente, e seguiu caminhando para fora do cemitério, com um olhar de indiferença no rosto.
Isolamento
1
Mais um sonho? Não. Desta vez parece real... Parece... Material, como se o ar pudesse ser pesado. É. O peso dele sufoca, invade os pulmões, e a sensação de mal-estar volta. E novamente a pouca saliva em meu estômago sobe pelo esôfago e termina por explodir de minha boca, sujando o chão. Já não consigo lembrar-me de quem sou, ou de minha aparência, e estou faz incontáveis noites sem dormir. O sono precisa ser ignorado. Eu não posso dormir. Não posso sequer fechar os olhos, que doem e coçam. Eu os coço com as mãos sujas, mas eles coçam mais e mais.
Tenho ouvido sons mais altos. Ouço sons diariamente. Pelo menos acho que os dias ainda passam. O sol me diz isso.
Rangidos. Murmúrios. Correntes se arrastam e algo pegajoso pinga. E de novo. Cai em uma poça. E pinga novamente, de forma lenta. Escuto o choro de crianças e alguns gritos. Uma mulher parece gemer de dor. Eu nunca suportei ver mulheres chorando. Algo está sendo afiado. Uma Lâmina. Não, várias. Sim, várias lâminas são afiadas e os gemidos de dor parecem ter sido abafados.
Permaneço trancado neste quarto, apenas vendo a tênue luz que me desperta dia após dia, invadindo a janela engordurada deste local e iluminando parcialmente o quarto. Eu odeio esse lugar, e é esse ódio que motiva a ficar aqui, solitário. Se eu sair, tenho certeza de que encontrarei o pior dos demônios, o mais cruel dos torturadores. E ele escuta o que penso. Ele sabe, sempre soube. Eu não posso sair.
Mais um dia, e a tortura sonora segue, incessante, perfurando e destruindo meus ouvidos. Só que agora, sempre que alguém grita, a porta do quarto bate, soltando a poeira presa a ela. Parece um chute ou algo sendo arremessado. As batidas ressoam por todo o quarto, que é inundado por batidas e solavancos, uma verdadeira orquestra maldita.
Eu preciso ajudá-los... porém, se eu fizer isso, o próximo serei eu. De qualquer forma, o próximo serei eu.
Eu os ouço rindo e conversando. Eles vão entrar, eu sei disso. Eles precisam de carne nova, de sangue já enfraquecido. Talvez eu deva sair. Talvez eu deva tentar escapar desse calabouço antes que me matem também. Algo dentro de mim diz para girar a maçaneta e caminhar para fora desta casa. Mas quem fala isso é uma de minhas metades, enquanto a outra se apresenta como uma total antítese, provocando o que sou hoje: o resultado de uma bela e engenhosa equação, a partir da qual minhas neuroses e meus credos são somados ao meu temor e ampliados dentro desta casa.
Mas