Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

A Quarta Dimensão
A Quarta Dimensão
A Quarta Dimensão
Ebook279 pages4 hours

A Quarta Dimensão

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

Os contos são ordenados cronologicamente e abrangem as diversas relações do homem com o Tempo. Os quatro primeiros tratam do passado. “Espelhos da Alma” é um diálogo que expõe a condição do “homem de ciência” da Renascença e sua relação com o homem médio, não muito diferente do que ocorre hoje. Em “Beijo de Ópio” um brasileiro na Era Vitoriana conta como se deixou seduzir pela total decadência moral. “Primeiro-Tenente” acompanha um militar sob um comando abusivo no início da República. “Carolina de Óculos” mostra as estranhas visões documentadas no diário de uma menina de imaginação fértil. Os quatro contos seguintes ocorrem no presente. Um garoto tenta entender a capacidade de parar o tempo que aprendeu com o pai em “Entre Segundos”. Um estranho sinal parece ser a resposta à monotonia da vida reclusa de um matemático em “Saudações do Futuro”. O título de “Parafuso Frouxo” traz a causa de um mundo chegar ao fim. “Mulheres e Crianças Primeiro” mostra qual força tem as convenções sociais quando a causa de um acidente de ônibus é revelada. Seis contos ocorrem no futuro. “A Maçã Elétrica” acompanha um solitário programador de inteligências artificiais em conflitos emocionais com suas criações. “Futuro Seguro” traz uma distopia bem-humorada de um futuro em que as corporações regozijam sem limites. “Na Linha de Montagem” discute a evolução da tecnologia comparada à da moral humana. “Controle Remoto” mostra a brutal opressão de uma sociedade controlada através de televisores. “Planeta Asfalto” é um mundo dominado por automóveis inteligentes. “A Água de Croma” é uma reflexão sobre a evolução sentimental da humanidade. A coletânea conclui com “Ouroboros”, que discute o eterno retorno com a documentação medieval de um interrogatório feito a um visitante distante.
LanguagePortuguês
Release dateJun 25, 2018
A Quarta Dimensão

Read more from Eduardo Capistrano

Related to A Quarta Dimensão

Related ebooks

General Fiction For You

View More

Related articles

Reviews for A Quarta Dimensão

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    A Quarta Dimensão - Eduardo Capistrano

    Eduardo Capistrano

    A Quarta Dimensão

    2ª Edição

    Curitiba

    Edição do Autor

    2018

    Capa: Efeito Droste usando o GIMP (www.gimp.org) com o plug-in MathMap (www.complang.tuwien.ac.at/schani/mathmap) em foto do Lote 329 do leilão Important Collector's Wristwatches, Pocket Watches, Clocks and Horological Tools realizado em 9 e 10 de maio de 2009 pela leiloeira especializada Antiquorum (www.antiquorum.org). Da descrição do Lote (tradução do autor):

    Excepcional Ratrapante de 1928 com Único Mostrador Luminoso, para Tiffany Patek Philippe & Co, Genève, comercializado por Tiffany & Co, Nova Iorque. Feito em 1928, vendido em 23 de setembro de 1938. Extremamente fino e único devido a seu mostrador luminoso, importante e muito adiantado, relógio de pulso de ouro amarelo 18K com cronógrafo ratrapante de um botão, registro de 30 minutos vertical e segundos constantes, mostrador luminoso, terminais de pulseira móveis.

    Vendido incluindo prêmio do comprador: 606,000 SFr. / 550,909 USD

    Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor _____________________________________________________

    C243q

    Capistrano, Eduardo, 1980-

    A Quarta Dimensão / Eduardo Capistrano. – 2. ed. – Curitiba: Edição do Autor, 2018.

    190 p. ; 21 cm.

    ISBN 978-85-924917-1-0

    1. Contos brasileiros. I. Título.

    CDD: B869.35

    CDU: 821.134.3(81)-3

    _____________________________________________________

    Índices para Catálogo Sistemático

    1. Contos: Literatura brasileira 869.35

    Espelhos da Alma

    O burguês, com gestos mais do que um pouco afetados, deixou cair uma pitada de sal em um pequeno frasco, tampou com o dedo, agitou com vigor e o colocou contra o sol. O líquido em seu interior assumiu uma coloração sanguínea. Ouvindo o barulho de passos se aproximando, rapidamente derramou o líquido fora, guardou o frasco, ajeitou colete e casaco, e voltou sua atenção ao prisioneiro diante de si. Procurou chamar sua atenção: — Olá? Olá?

    Divertiu-se agitando um lenço delicado no rosto do aprisionado. O infeliz homem, maltrapilho e imundo, mostrava na face insanidade tanto de corpo quanto de espírito. Pois, não obstante tais condições e o fato de estar agrilhoado ao chão enquanto era tratado como objeto de estudo, sua expressão era de indiferença e apatia, observando um ponto fixo muito além das paredes que o cercavam.

    Juntou-se ao burguês um senhor de porte generoso — obtido graças a uma vida nada generosa — e feições orgulhosas que, vestidas com cetim e veludo, eram mais do que suficientes para fazer dele um homem da nobreza, mas não de nobreza. Esse senhor parecia bastante incomodado com o lugar, que nada mais era que uma cela quadrada. Suas paredes seriam apenas a pedra nua dos seus grandes blocos, não fossem por alguns grilhões pendendo das paredes, pela pesada porta que era a única saída, e por uma janela com grades, bloqueada com panos.

    — Parece-me, senhor Quintino, que seu brinquedo está quebrado. É como um relógio sem engrenagens — disse o burguês.

    — Não é, de fato, assim, Borges. É seu temperamento: fala apenas quando quer — disse o nobre.

    — E o que fala? Que frases de insofismável sabedoria dizem ele pronunciar?

    — Você está sendo inoportuno, Borges. Eu lhe trouxe aqui por seu pai ter afirmado que teria capacidade de ver o que não vejo.

    — O que seria isto? — perguntou o burguês, franzindo o cenho com genuíno interesse.

    — Este homem tem algo nos olhos. É um brilho estranho que fala por ele, quando não abre a boca.

    — E... agora posso eu interpretar brilho nos olhos?!

    — Não é essa a sua arte?

    — Não, meu caro Quintino. De maneira alguma posso deitar os olhos em alguém e dizer o que pensa. Minha arte não é feitiçaria dessa natureza.

    — De que natureza é, então, a sua arte?

    A voz, que quebrava a discussão, não saíra de Quintino ou Borges, mas do aprisionado.

    — Ele falou!

    — Como havia lhe dito, Borges. Quando fala, o faz apenas para indagar.

    — E o que você perguntou, que não pude ouvir direito? — Borges perguntava ao próprio aprisionado. Sem obter resposta, direcionou-se a Quintino: — Qual foi a pergunta?

    — Creio que ele tenha perguntado qual a natureza de sua arte, vez que não era feitiçaria.

    — Hum! Devo responder, Quintino?

    — Elucidar-me-ia, se não por outra finalidade.

    — Para satisfazer-lhe, então. Desde jovem venho me dedicando a determinar se há no corpo algum tipo de humor ou carne responsável pelos ânimos. Ainda que tenha tido alguma frustração para conseguir um corpo em que pudesse operar...

    — Bom Deus, Borges! — interrompeu Quintino, espantado.

    — ... resolvi, enquanto essa barreira grosseira e anacrônica não é derrubada, concentrar meus estudos sobre os aspectos externos do corpo.

    — Seu pai havia mencionado, especificamente, os olhos.

    — Sim, produzi um ensaio a respeito. Infelizmente, não o poderei publicar. Após análise pouco meticulosa, decidiram que não poderia ser aproveitado. — O burguês afastou-se alguns passos e, assumindo pose e voz inequivocamente teatrais, brandiu seu lenço e declamou: — Em minha perscrutação minuciosa do corpo humano, percebi que, apesar de se manifestarem também através das mãos e de outros movimentos, as expressões da face são as mais utilizadas para transmitir ânimos.

    — Estão certos, então, os venezianos — gracejou Quintino.

    — De fato. E de todos os elementos da face, creio que os mais expressivos sejam os olhos. Pois as diferenças entre interesse ou desdém não são apenas alguns milímetros de pálpebras cerradas? O simples levantar de uma sobrancelha não exprime dúvida, fúria ou lamento? Não consigo ver nos olhos brilhantes de um ente querido a satisfação ou a alegria, e em brilho similar a avidez e luxúria, a tristeza e melancolia, e a loucura? Todavia, são os olhos o foco do ânimo, meu bom Quintino. É deles que se avizinha todo o espectro do humor. E — com que palavras direi? — talvez neles haja uma centelha de todas as emoções. Talvez até da Emoção essencial!

    — Neste último pensamento não consegui o compreender.

    — Pois então, Quintino, não é verdade que se me dizer alegre você compreenderá? E de maneira semelhante, se me disser furioso ou magoado você saberá do que falo? E se antes que dissesse, você detectasse em meu comportamento algo que denotasse tal emoção, já não seria suficiente? Se minha face exprime mais emoção do que tudo em meu corpo, se meu olhar exprime mais do que o resto de minha face, se são os olhos os principais elementos do olhar, não será possível analisar apenas estes para se compreender toda e qualquer emoção?

    — Intrigante, Borges.

    — Algo mais?

    A voz inesperada do aprisionado soava novamente. Os dois voltaram-se para ele. Borges respondeu a pergunta, mas para Quintino:

    — Sim, há mais. Minha pesquisa trata de humores e carnes, ou seja, fluidos e vísceras, pois esse interesse nasceu eminentemente de minha instrução médica. O corpo, Quintino, é banhado por toda sorte de líquidos, dos quais o mais importante é o sangue. Mas nem mesmo de longe é o único. Temos a saliva, o muco, o cerume, o suor, a urina, o sêmen, o pus, a bile, o líquido craniano, e os fluidos femininos, como o leite materno e a água parturiente. Aprendemos que esses líquidos apresentam características que indicam problemas do corpo. E temos as lágrimas, que molham os olhos todo o tempo, mas que em certas circunstâncias de ânimos fortes, abundam e se precipitam. Creio que há, nas lágrimas, substância que guarda alguma relação com o estado de espírito da pessoa que as verteu.

    — Por isso ouvi de Marco, o genovês, que você estava se dedicando à poesia. Não o compreendi então, mas agora compreendo. É o que você está fazendo: está a procurar dor nas lágrimas!

    — Tenho muito apreço por Marco, mas ele nada compreende do que faço. Se bem o conheço, disse o que disse com desprezo, como se eu buscasse algo no éter, como fazem os poetas.

    — De qualquer maneira, trouxe-o aqui para que examinasse este nosso interlocutor, se é que podemos chamá-lo assim. Mais justo seria ouvinte, coisa para a qual está sempre disposto. Como viu, ele raramente diz alguma coisa, e quando o faz é para perguntar. Nossas tentativas de extrair dele qualquer tipo de informação foram em vão.

    — Qual é seu interesse neste homem? E a propósito... o que fez ele para estar assim agrilhoado?

    — Pois, Borges, esta é uma história interessante. Como sabe, tomei conhecimento desta bela construção quando estava a caminho de Sevilha, e enamorei-me dela a ponto de mudar todas as minhas atividades para cá. É um prédio vistoso e amplo, e depois de alguma investigação, descobri que seu antigo proprietário entregou-se à vida religiosa e o cedeu para ser usado como algum tipo de monastério. Todavia, o lugar foi depois abandonado e os responsáveis por ele foram tão receptivos às minhas ofertas que parecia que a Igreja estava ansiosa para ver-se livre dele.

    — Quanta nebulosidade, Quintino!

    — Ela se avoluma. Qual não foi minha surpresa ao inspecionar as masmorras do castelo e encontrar esse homem, atado a essas mesmas correntes, largado à incognitude! E posso jurar-lhe que acompanhava pessoalmente o senescal quando destrancou os pesados portões de ferro que, depois averiguei, eram os únicos meios de acesso à prisão!

    — Há quanto tempo ele poderia estar lá?

    — Esta morada ficou sem dono por décadas!

    — Ah... sempre foi um supersticioso, Quintino! Digo-lhe que este vagabundo deve ter traído seus colegas bandoleiros, que o deixaram trancafiado no primeiro forte abandonado que encontraram! Só não sabiam que um louco como você iria achar beleza no lugar a ponto de adquiri-lo.

    — Chama-me de louco, mas não sabe o que é isso. Veja o que é loucura — disse Quintino, apontando o homem.

    — Está exagerando, Quintino.

    — Não exagero. E foi para provar isso que pedi que viesse. Desde que encontrei esse homem, tenho a impressão de que cometi um grande erro. A primeira conversação que ele acompanhou, a de dois criados que coloquei para mantê-lo sob guarda, recebeu suas incômodas inquirições misteriosas. Ao saber disso, a princípio, permiti que ele estivesse próximo de minhas próprias conversas. Ele... me divertia. Mas minha companhia sempre ficava perturbada! Principalmente minha esposa, cujas admoestações me fizeram transferi-lo para este aposento afastado. Quando olho para ele, sinto uma amargura imensa, uma incrível mágoa, que sua voz temperada e serena não transmite. Que sua face tranquila não expressa, Borges!

    — Entendo. E quer saber se são seus olhos.

    — Ao menos para descartar mais esta hipótese.

    — Não vejo mal em sua preocupação, Quintino, e vou atendê-lo. Mas saiba que em meu íntimo reprovo sua conduta. Achasse-me eu em seu lugar, entregaria esse homem às autoridades.

    — Comprei o castelo, Borges, e tudo que veio com ele — gracejou Quintino.

    — Não pode comprar um homem.

    — Por que não, Borges?

    Era a terceira fala do misterioso prisioneiro.

    — Desta vez usa meu nome! Agora ficarei preocupado, se esse homem for um mau-caráter e usar meu nome indevidamente se vier a ganhar a liberdade.

    — Responda a ele, Borges. Por que não se pode comprar um homem? Os antigos o faziam.

    — Os antigos faziam muitas coisas, Quintino, e nem todas eram corretas. Veja o que resultou da escravidão, para os romanos.

    — Um grande império.

    — E uma grande derrota! Uma agonia desgraçada e tortuosa, ao descobrirem que o poder era um barco remado por centenas de escravos que, se revoltosos, facilmente sobrepujariam o capitão e o lançariam ao mar. Não se compra um homem, meu caro Quintino e meu caro prisioneiro, porque não se pode determinar quanto vale. Diria mais: não se pode determinar o que deve ser pago, o que deve ser considerado para se estabelecer um preço final, pois cada homem é um complexo amálgama de carne e espírito. Como se desvinculam apenas na morte, e assim desvinculados não temos mais um homem, não se pode comprar um homem como carne, e não se pode comprar seu espírito sem conhecê-lo.

    — Mas, Borges, se compramos um ovo sem saber se dele virá galo ou galinha, por que não podemos comprar um homem, sem saber se estamos comprando carne ou espírito?

    — Continue tratando homens como ovos, Quintino, e terá grandes surpresas em sua vida. Agora deixe-me trabalhar.

    Borges afastou-se do homem acorrentado, que desde sempre estivera sentado de pernas cruzadas no chão. Foi até a bolsa que havia deixado no chão de pedra, e dela tirou um telescópio.

    — Os olhos do homem estão aqui, Borges! Não nas estrelas! E ainda é dia! O que fará você com o brinquedo de Galileu?

    — Controle sua exaltação, meu caro. Sei que é dia porque é essencial a luz do sol para este experimento. Talvez não saiba que este instrumento funciona nos dois sentidos. Na falta de instrumento apropriado, e de paciência ou conhecimento para fabricar um, me sirvo desse, ainda que os resultados nem de perto sejam plenamente satisfatórios.

    — Faça o que tem de fazer.

    — O que quer saber exatamente?

    — Tudo o que for possível obter sobre essa pessoa.

    — Muito bem.

    Borges caminhou até a janela e removeu os panos que a encobriam, deixando entrar a possante luz do sol. O prisioneiro virou a cabeça e emitiu um gemido, antes de cobrir o rosto com as mãos.

    — Agora sabe porque estava fechada — disse Quintino.

    — Não me importa. Perguntei anteriormente se ele sofrera queimaduras e você disse que não. Então, não há perigo.

    Aproximando-se do prisioneiro, Borges virou a cabeça dele para que a luz a atingisse lateralmente. Em seguida, colocou a extremidade menor do telescópio sobre um dos olhos do preso, e examinou pela outra. Estava curvado de maneira ridícula, e nessa posição começou a dar pequenos passos para um lado e para outro, girando também a cabeça de seu paciente, como se quisesse regular a quantidade de luz. Súbito, ergueu-se e encarou o prisioneiro demoradamente, estudando suas feições.

    De sua bolsa retirou uma garrafa tampada, com a qual se aproximou do prisioneiro. Virou a garrafa de cabeça para baixo rapidamente, desvirou, tirou a tampa de vidro e assoprou nela na direção do prisioneiro, lançando sobre sua face um pó branco e cintilante. Ele imediatamente contorceu o rosto enquanto apertava os olhos e lágrimas saíam deles. Borges mais do que depressa coletou as lágrimas com uma tira de tecido. Deixando seu paciente, tirou um frasco e um palito de sua bolsa, inseriu o palito no frasco e deixou cair algumas gotas sobre a tira. Colocou a mão com o pano ao sol e as áreas onde as gotas haviam caído adquiriram uma tonalidade avermelhada.

    — Eis sua resposta, meu bom Quintino!

    — É róseo... quase vermelho... o que significa?

    — Não mentirei: esse homem tem propensão para a violência.

    — Bom Deus!

    — Sua aparência temperada e comportamento tranquilo escondem uma besta feroz, uma avidez por sangue e morte, oh! — neste momento, a cor do pano completava a transição para um vermelho vivo — incomparável!

    — Isto é certo, Borges?

    — Absolutamente — respondeu o médico. — Quanto mais sanguínea é a cor desta reação, mais cruéis são as intenções.

    — Assombroso, Borges! Diga-me, este resultado... há piores?

    — Meu bom Quintino, confesso-lhe que nunca vi cor tão rubra!

    — Veio de Deus, então, o bom julgamento de mandar chamá-lo. Minha esposa, como sempre, estava certa. Esse homem não verá outra noite como meu hóspede.

    — Bem o faz, Quintino — Borges começava a guardar suas coisas na bolsa. — Se o atendi corretamente, senhor, permita-me explicar uma questão que me aflige.

    — Seu pai me adiantou o problema, e até agora eu estava julgando a validade de minha participação.

    — E qual foi sua conclusão?

    — Não há como retribuir pela paz de espírito que me concedeu. Mas se for suficiente, ficarei honrado em patrocinar seu trabalho.

    — Muito agradecido, meu senhor — respondeu Borges, deixando a sala com o nobre.

    A um sinal de Quintino, guardas que esperavam do lado de fora entraram na sala. Na face do prisioneiro, apenas indiferença.

    Beijo de Ópio

    Morrerei jovem, mas é como beijar Deus.

    — Lenny Bruce

    Do diário de Felipe Manoel B____.

    Rio de Janeiro, 19 de outubro de 18__.

    Escrevo estas linhas no crepúsculo de meus dias, encerrado entre paredes invisíveis, acorrentado ao conforto. Entretanto, não há tranquilidade nascida neste lugar que possa abater a terrível verdade que guardo. Recentemente vieram a mim informações concernentes à minha saúde, advindas dos mui solícitos homens da medicina que de mim trataram, que me instaram à precaução. Receio que meu estado seja tal que os homens que mencionei tenham realizado um esforço particular para cuidar de minha pessoa. Não desejo esquecer deles aqui, e deixo gravadas as minhas considerações para com eles logo neste princípio, em que ainda posso ser tratado com o mesmo respeito e dignidade, pois serão certamente poluídas com o decurso desta narrativa.

    Anteriormente à narrativa em si, comando desde logo que esta última anotação de minhas memórias escritas, desentranhada de sua encadernação ou em cópia integral, seja remetida às autoridades para que use o que puder no reparo de toda a tragédia para a qual contribuí, certa e desgraçadamente.

    Esta história começa, como a própria história de um homem, com uma mulher, certamente a mais bela em que já pousei os olhos. Uma dama de maneiras e reputação primorosas que, não obstante, impediu que apenas isso formasse sua imagem. Era dotada de brilhantismo dificilmente encontrado, de uma racionalidade elucidada que emergiria grande, não fosse limitada pelo peso da tradição imposta pelo marido.

    Tive a felicidade de encontrá-la livre da presença do homem que mutilara sua liberdade e me orgulha poder afirmar que muitos de seus lampejos desde então se deram devido ao meu apoio. Era oriunda de terra distante, esquecida no mais das vezes pelos habitantes das terras em latitudes opostas, e trazia em seu ventre a semente de uma nova vida. A muitos poderia isso causar espanto, por imaginar que tal fato deveria ou efetivamente me causasse vergonha. Asseguro-lhes, outrossim, que a verdade é outra.

    Vinha de uma colônia da Coroa à qual seu marido servira em armas. Uma mesma bala causou-lhe tanto pranto quanto esperança. Não achem que me alegra a morte de qualquer outro ser vivo; mas vezes há em que o fortuito atende a causas maiores que as daquilo em que manifestou seu toque aleatório. Os oficiais a buscaram para que lhe mostrassem o cadáver, mas também para acorrentá-la ao destino dele. Não sucederam em encontrá-la antes que eu mesmo o fizesse.

    Era noite no porto quando embarquei, e a maré trazia os restos de naus destroçadas em batalhas distantes contra homens e deuses desconhecidos. As caixas, cujo conteúdo adquirira, já estavam seguramente guarnecidas nos compartimentos apropriados de um navio que rumava ao Império Brasileiro. A perspectiva de todo investidor neófito é de que sua atividade lhe renda lucro, o que viria em paralelo aos verdadeiros rendimentos, sendo estes a inteligência e a capacidade que lhe seriam imputados pelos seus colegas e futuros clientes. Minhas perspectivas, entretanto, seguiam ponto de vista contrário ou pelo menos distorcido. Devido à natureza ilícita de minha carga, só esperava, verdadeiramente, os proveitos pecuniários, e quanto mais substanciais fossem, mais saberia terem valido meus esforços.

    Apesar de ter detectado logo na primeira semana de viagem que vários dos tripulantes, especialmente aqueles encarregados da conferência das cargas, se mostravam perturbados por algo, o restante dos passageiros só foi tomar conhecimento dos motivos exatamente três semanas depois. Isso foi possível graças à conferência geral das cargas em um porto, cumulada à impossibilidade de prosseguir devido a uma tempestade com que os céus imperam sobre os mares. Mais de uma vez havia visto os veteranos do mar saindo do ventre do navio invocando para si a proteção do sinal da Cruz. Até mesmo o Capitão, Scott Lent, um bretão endurecido por batalhas navais e honrado muitas vezes pela bravura, persignou-se tantas vezes que, se não tivesse conversado com ele durante nossa viagem, poderia dizer que não era mais do que o cozinheiro chinês, que ao menor sinal de tormenta prostrava-se na cozinha e por isso recebera a infame alcunha de Rodilhão.

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1