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Aspectos da referenciação em diferentes textos
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Aspectos da referenciação em diferentes textos

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Aspectos da referenciação em diferentes textos traz esse tema tão relevante dentro dos estudos de Língua Portuguesa, fundamental no tripé leitura, escrita e gramática. A partir de panoramas teóricos e práticos, as autoras articulam conhecimentos essenciais para o estudo das práticas textuais, sob uma perspectiva sociocognitivista, possibilitando ao leitor se aprofundar no assunto ou iniciar a expansão de seus conhecimentos na área.
LanguagePortuguês
Release dateMar 29, 2023
ISBN9786558403371
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    Aspectos da referenciação em diferentes textos - Maria Teresa Tedesco

    APRESENTAÇÃO

    Há algum tempo planejamos a divulgação desta coleção de trabalhos que desvelam as pesquisas que vêm sendo realizadas pelo grupo Integra, vinculado ao Diretório de Pesquisa do CNPq, coordenado por nós, professoras de Língua Portuguesa do Instituto de Letras, respectivamente, da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A oportunidade surge neste ano de 2020, atribulado e turbulento devido à situação sanitária que avassalou as vidas nos diferentes cantos do mundo. Encontramos na pesquisa o refúgio necessário para que pudéssemos atravessar todas as agruras com a certeza de que estudar, de que pesquisar, de que ensinar são caminhos irrefutáveis para a construção do ser humano, em qualquer área de conhecimento, pois se constituem em vida, em formas de cidadania.

    Nosso grupo de pesquisa – Integra – Interação, Texto e Gramática – tem como objetivo desenvolver estudos em Língua Portuguesa, considerando dois pressupostos básicos: (I) o texto como forma de interação; (II) os elementos gramaticais da língua como materialidade do projeto de dizer do falante/ escrevente. O grupo, ainda, tem como perspectiva a formação docente, com o fito de desmitificar as questões que envolvem o ensino de língua portuguesa no tripé leitura, escrita, gramática. Nosso suporte teórico está embasado na linguística textual, que traz o texto como a sua base primeira de análise.

    Parte de nossas pesquisas é apresentada neste livro cujo objetivo é expor diferentes estudos, tendo a referenciação como ponto central, buscando traçar um panorama teórico com aplicabilidade nas abordagens de diferentes textos, com vistas ao ensino, sem dúvida, sem, entretanto, a preocupação metodológica que o estar em sala de aula nos exige.

    Além de constituirmos o Grupo de Pesquisa Integra, compartilhamos o mesmo aporte teórico, outra característica que nos une é o fato de todos os autores dos capítulos terem sido orientados por uma de nós em suas pesquisas de Mestrado e/ou Doutorado. Esse fato muito nos orgulha: ver cada um/uma de nossos/as pupilos/as trilhando o caminho acadêmico, disseminando as perspectivas teóricas com as quais nos coadunamos e acreditando que o trabalho textual é essencial para o entendimento e o aprendizado da língua portuguesa.

    Organizamos este livro em doze capítulos. O Capítulo 1, de autoria de Vanda Maria Cardozo de Menezes. Intitulado, Referenciação: implicações conceituais, trata de questões diversas de natureza conceitual, que subjazem aos estudos sobre de referenciação. A autora inicia seu texto pela discussão acerca da estabilidade e da instabilidade das categorias linguísticas, características que não se opõem quando consideramos a língua em funcionamento e os textos em processo de construção; em seguida, apresenta a noção de categorização, considerada como um expediente de organização de nosso conhecimento do mundo e de nossas experiências. Em continuidade, aborda a relativa equivalência entre os termos referente e objeto de discurso, observando a pertinência deste último termo no âmbito da análise textual. Subjetividade e intersubjetividade são mais duas noções apresentadas como características que se complementam e, mais que isso, que se encontram imbricadas. Por fim, tece considerações sobre a noção de contexto, com o objetivo de suscitar a necessidade de mais estudos sobre o assunto.

    O Capítulo 2 é de autoria de Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu, intitulado Referenciação e a função discursiva das menções retoma os conceitos de referência e referenciação, postulando o entendimento dos termos no texto, não na perspectiva gramatical de per si, mas na visão de escolhas eivadas da percepção cultural do falante. Para tanto, analisa textos produzidos por estudantes em diferentes momentos da escolaridade, discutindo a contribuição da seleção vocabular no texto, em função da situação discursiva em que textos e interlocutores estão envolvidos. O postulado teórico da autora é que a língua deve ser entendida como um processo de reconstrução do real, sendo as menções textuais, materializadas por diferentes elementos linguísticos, (re) elaboradas a partir das relações que ocorrem no texto, estabelecendo sentidos que o produtor quer imputar. Por fim, a autora pretende estabelecer relações entre essas escolhas e um grau maior ou menor de coesão do texto.

    Wagner Alexandre dos Santos Costa é autor do Capítulo 3, intitulado "Referenciação, discurso e cognição: um experimento de leitura a partir da crônica Ela, de Luís Fernando Veríssimo". O autor apresenta um experimento de leitura dirigido a alunos do 7º ano do ensino fundamental, tendo como recorte a construção de sentidos atribuídos ao objeto de discurso ela, que dá nome à crônica de Luís Fernando Veríssimo. Nessa crônica, o cronista apresenta no texto sucessivas repetições desse elemento linguístico ela, sem, no entanto, utilizar uma expressão nominal que categorize seu significado. Cabe, assim, ao leitor, compreender as diversas pistas textuais disponíveis e, a partir delas, ativar conhecimentos e realizar inferências. A proposta, em linhas gerais, foi compreender qual interpretação os informantes construiriam para o objeto de discurso ela e em quais pistas textuais se apoiariam. Para tanto, alia o quadro teórico dos estudos cognitivistas ao dos estudos sobre a atividade de referenciação na perspectiva cognitivo-discursiva.

    O Capítulo 4, escrito por Fabiana Gomes Carvalho, trata dos processos de referenciação e de retomadas predicativas em reportagens on-line. É um recorte de sua dissertação de mestrado, defendida em 2019, na Uerj. Seu objetivo é categorizar e analisar os adjetivos encontrados nas reportagens on-line selecionadas, propondo um estudo discursivo dessa classe de palavras. Para tal comparação, foi escolhido o jornal Folha de São Paulo, com reportagens atuais, cuja temática é de cunho global. A autora sedimenta sua análise na teoria da referenciação no que tange à posição tópica do adjetivo no projeto de dizer do texto, aos encapsulamentos de ideias trazidos pelos adjetivos, dentre outras retomadas predicativas possíveis encontradas, no corpus. Partindo de cinco categorizações do adjetivo, a saber: 1ª morfossintática, 2ª semântico-discursiva, 3ª tamanho do sintagma, 4ª gênero e 5ª tipo semântico do adjetivo, os resultados da análise apontam que a classe do adjetivo revela, argumentativamente, a posição assumida por cada enunciador em cada discurso; além disso, do ponto de vista da posição do adjetivo no sintagma nominal, os dados indicam, majoritariamente, em língua portuguesa, a posição posposta a seu referente.

    Leila Figueiredo de Barros é autora do Capítulo 5. Intitulado A constituição da referenciação em narrativas orais de idosos cariocas e alunos da EJA de uma comunidade Rural de Mato Grosso, tem como objetivo compreender o processo de referenciação em narrativas orais de dois corpora distintos e significativos, ambos compostos de narrativas de idosos, com no mínimo 60 anos, sendo uma parte de habitantes do Rio de Janeiro e outra parte, de Mato Grosso. A base desta pesquisa qualitativa, interpretativa e exploratória é a parceria estabelecida entre Brasil e Alemanha por meio do Projeto institucional chamado Varia-Idade, sediado na Uerj. Contemplam-se teoricamente as postulações de Marcuschi (2008), Koch (2008), Tedesco (2002), autores da Linguística Textual entre outros teóricos, discutindo como ocorre o processo de referenciação em retomadas de menções.

    O Capítulo 6 é dedicado à intertextualidade. De autoria de Valeria Cristina de Abreu Vale Caetano, Intertextualidade: uma contribuição ao ensino da leitura e de produção escrita tem como objetivo principal demonstrar que a realização de um trabalho de leitura e de escrita, baseado em intertextualidade, resulta no desenvolvimento de habilidades de escrita dos alunos do sexto ano de escolaridade do ensino fundamental. Do ponto de vista teórico, esta pesquisa propõe percurso histórico da intertextualidade tanto na perspectiva literária quanto na linguística, baseando-se nos autores Bakhtin (2011), Bazerman (2011), Koch (2007), Vigner (2002), Laurent Jenny (1979), Barthes (2013) e Ducrot (1987), o que contribui para a ampliação do conceito-chave: intertextualidade. A autora postula que o trabalho de leitura de diferentes gêneros leva os alunos a produzirem textos com nível mais alto de informatividade, argumentatividade e expressividade. Conclui que os resultados dessa estratégia didática favorecem o surgimento de novos procedimentos para o ensino de Língua Portuguesa, contribuindo, sobremaneira para o desenvolvimento da competência discursiva dos estudantes.

    O Capítulo 7, intitulado "Referenciação e a construção das identidades social e discursiva: uma análise linguístico-discursiva do pastiche-paródia satírico Bossa do Paulista de Marcelo Adnet", de autoria de Gabriela Porfírio, apresenta um estudo linguístico-discursivo do pastiche-paródia. A autora defende que a intertextualidade é importante para o processo de leitura desse gênero, pois a interpretação exige do leitor recorrências a conhecimentos previamente adquiridos para que a leitura seja satisfatoriamente processada. Esse caráter dialógico e interdiscursivo da intertextualidade fica evidente na análise de paródias satíricas e pastiches satíricos em que, para sua construção, o satirizador se inspira não só num texto-fonte, como também tenta imitar o estilo de um autor ou gênero textual para a realização das suas críticas. Porfírio debruça-se na construção linguística das críticas que estão subjacentes. Para isso, leva em consideração os processos de referenciação e (re)categorização no que se refere à escolha lexical por parte do sujeito para concluir de que forma esses processos ajudam a construir sua identidade social e discursiva.

    Manoel Felipe Santiago Filho, no Capítulo 8, intitulado Cognição e coerência textual: uma análise descritiva dos aspectos cognitivos na escrita de alunos do 8º ano do ensino fundamental II, parte de um pressuposto de que cada interlocutor, a partir de suas experiências pessoais, interage com aquilo que escreve ou fala, assim como com aquilo que lê ou ouve, gerando expectativas relacionais oriundas de suas memórias de curto, de médio e de longo prazo. Tais memórias, tratadas e armazenadas, estão e são disponibilizadas para a representação sensível de um contexto predeterminado, compartilhado ou não, na qual essas mesmas memórias reproduzem, cognitivamente, uma ideia, um discurso ou uma performance limítrofe entre aquilo que o código, presumidamente, tenta expressar e aquilo que realmente significa. Logo, um texto reúne marcas linguísticas, socioculturais e sociocognitivas; seus interlocutores tornam-se ativos construtores desse texto, produzindo objetos de discurso. Assim, o objetivo é analisar os aspectos cognitivos em amostra de 21 textos, derivados do exercício da ditação do texto original, expresso pelo primeiro interlocutor, o professor emissor do texto, confrontando o original com os resultados apresentados pelos alunos receptores.

    Os estudos sobre cognição, linguagem e cultura desenvolvidos no âmbito da Linguística Cognitiva (LC) e da Linguística Textual (LT) surgem como um meio de compreender as motivações cognitivas e culturais que favorecem tanto a convencionalidade quanto a especificidade do frame BOTO que subjaz nas narrativas orais amazônicas, analisadas nesta pesquisa. É com este encantamento da Amazônia que Maria do Carmo Ribeiro Casseb, no Capítulo 9, nos encanta com "O homem que vira boto nas narrativas orais amazônicas: contribuições da Linguística cognitiva (LC) e da Linguística textual (LT) para a análise do frame Boto". Fundamentada no arcabouço teórico da Linguística Cognitiva (LC), especificamente da Semântica de frames e da Linguística Textual, no que tange aos estudos da referenciação, Casseb busca mostrar que as narrativas orais amazônicas são parte inerente da cultura do povo amazônico e que os pressupostos cognitivistas acerca do fenômeno do significado e da referenciação ajudam o leitor a compreender como se dá a apreensão do conhecimento acerca do frame BOTO, objeto de análise do estudo proposto.

    O ensino do português é preocupação de Hilma Ribeiro. A autora afirma que o ensino de língua portuguesa tem sido fragmentado, de modo que as áreas linguística e gramatical ainda se encontram dissociadas, dentro das salas de aula do ensino básico. Contudo, ambas são fundamentais para se dar conta do todo que compreende a didática para o aprimoramento de metodologias para o ensino da Língua Portuguesa. Ambas as áreas são faces de um único processo que diz respeito à intencionalidade do dizer, nas diferentes esferas de veiculação de um dado texto. Por isso, e tendo como base o pragmático e a intencionalidade dentro do conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, a autora, no Capítulo 10, propõe uma reflexão sobre o papel da predicação na estruturação morfossintática das assertivas que compõem o texto, tão dramático e intimista. Como aspectos linguísticos conceituais, a Pragmática e os estudos da descrição sobre a Predicação são elementos norteadores do paradigma teórico e conceitual no capítulo intitulado A predicação para além da descrição gramatical: uma proposta de ensino a partir da intencionalidade da trama narrativa em ‘Felicidade Clandestina’.

    Trazemos, no Capítulo 11, de autoria de Silvia Adelia Guimaraes, A BNCC e uma necessária reflexão do processo de ensino da língua materna: considerações co(n)textuais aportadas nas relações anafóricas de textos estudantis. A autora postula que, no contexto contemporâneo de deferimento do documento que dita a base dos temas e dos conteúdos a serem ministrados nas escolas públicas e privadas, faz-se necessário massificar o debate sobre uma questão importante: a aplicabilidade do documento no contexto educacional do país. Para tanto, Silvia Guimarães elegeu, no capítulo, alguns textos de estudantes de diferentes periferias cariocas, objetivando demonstrar as peculiaridades e a riqueza de apenas um dos diversos mundos culturais contemplados pela BNCC. A teoria linguística que embasa a análise proposta é a Referenciação, assumida pela concepção sociocognitiva da linguagem: a que considera que os sentidos do texto se constroem no curso da interação, sendo, esta, intersubjetiva. Além disso, com as análises realizadas por meio das anáforas, a autora assume uma tendência teórica atual que agrega, além da correferencialidade, a perspectiva da recategorização a partir de diversos fatores co(n)textuais possíveis para sua manifestação. Na efetivação das análises, mapeia todas as estratégias lexicogramaticais que serviram para a constituição das anáforas diretas em três textos, o que desaguou na discussão dos resultados. De caráter interpretativista, o capítulo possibilita pensar os usos da língua(gem) em textos estudantis, e a reflexão sobre uma necessária metodologia que instrumentalize os alunos a partir das peculiaridades linguístico-discursivas ali encontradas. Seria, nesse sentido, a BNCC, realmente, libertadora para tudo isso? Foi a pergunta que concluiu o capítulo, sem querer responder-se.

    Para finalizar, Cristina Normandia, em Os aspectos argumentativos do gênero digital comentário, nos leva a refletir sobre o quem vem acontecendo com a sociedade nos últimos vinte anos quanto ao uso da comunicação digital. Trata-se de uma comunicação que envolve uma diversidade de pessoas, com os mais distintos pontos de vista, em que se encontram em redes sociais para o entretenimento da informação. Para estudiosos da sociologia, da antropologia e da filosofia, a comunicação na internet foi um divisor cultural, que influenciou o comportamento dos indivíduos. Há teóricos que são entusiastas diante desta comunicação digital, como é o caso do Lévy (2010). No entanto, há os que veem com resistência esta comunicação em que todos podem opinar livremente sobre qualquer fato. Entendendo que esta resistência, também, faz parte daqueles que se ocupam de estudar a linguagem, o objetivo do capítulo é discutir o uso virtual da linguagem no gênero digital comentário, no Facebook, com foco nas particularidades argumentativas existentes em sequências textuais do gênero. A proposta é fundamentada nas concepções variacionista e sociointeracionista com Koch (2002), Marcuschi (2001) e Tedesco (2002/13), a partir do método etnográfico.

    Evidentemente, este conjunto de textos ora apresentado a você, leitor, não esgota o tema da referenciação. Queremos instigá-lo a novas leituras e a novas pesquisas, por se tratar, reconhecemos, de uma área muito específica. Além disso, talvez, nosso maior objetivo seja fazer nosso leitor refletir sobre a promissora abordagem textual, a leitura de textos, na perspectiva sociocognitivista.

    Rio de Janeiro, dezembro de 2020.

    Vanda Maria Cardozo de Menezes

    Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu

    1. REFERENCIAÇÃO: IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS

    Vanda Maria Cardozo de Menezes

    Introdução

    Considerar textos sob a ótica sociocognitiva requer que adotemos, já num primeiro momento, uma concepção de categorização e de referência que se afaste, de todo, de uma visão objetivista. Tomaremos ambos – categorização e referência – mais como ações/atividades do que como atos/efeitos, o que justifica o emprego do termo referenciação, proposto por Mondada e Dubois (2003), para expressar não apenas a dinamicidade das operações de fazer referência, mas também a existência e a atuação de sujeitos.

    Com isso estamos dizendo que as categorias linguísticas não são dadas a priori pelo sistema da língua, mas que elas são constituídas na dinâmica do uso da língua. Na perspectiva sociocognitiva, essa dinâmica pressupõe a ação de sujeitos situados, ou seja, de sujeitos sociais participantes de uma dada comunidade, considerando-se, assim, todos os fatores socioculturais de que uma comunidade depende para ser nomeada como tal. Não há, pois, uma separação entre usuários da língua, de um lado, e categorias linguísticas, de outro, como se tudo já se encontrasse definitivamente pronto no sistema, visto como um container, de onde os usuários extrairiam as palavras certas para as coisas certas.

    Estamos, pois, também dizendo que não há uma relação direta entre língua e realidade, o que desautoriza a concepção objetivista que prevaleceu durante tanto tempo nos estudos da linguagem. No objetivismo não há lugar para os sujeitos, a língua é tomada como cópia fiel da realidade, cabendo aos usuários apenas a tarefa de tomar conhecimento dessa estreita relação entre língua e mundo. Em vez disso, dizemos que os sujeitos são atores e isso se constata não apenas na atividade comunicativa em si mesma, considerada em seus aspectos linguísticos, pragmáticos e cognitivos, mas também em atividades prévias, social e culturalmente compartilhadas, que envolvem múltiplas condições, tais como a aprendizagem da língua e a prática, a memória, o conhecimento de mundo etc.

    Enfim, são os sujeitos, enquanto sujeitos sociais, que promovem tanto a estabilidade das categorias linguísticas, quanto a instabilidade. São exemplos de atividades linguísticas de que os sujeitos participam em conjunto, direta ou indiretamente, a nomeação, os modos de constituição de enunciados, a estabilização de gêneros textuais etc. E, aqui, não podemos deixar de incluir as construções gramaticais, considerando-se que a gramática pode ser pensada como uma organização cognitiva de experiências com a língua (Bybee, 2010, p. 8). Colaboram para a estabilização das categorias linguísticas fatores de natureza diversa, tais como as limitações cognitivas dos sujeitos, que não conseguiriam lidar com uma variabilidade extrema; as exigências do processamento da fala, dada a característica de produção on-line, por exemplo; as exigências da escrita, que, além do processamento, requer a apropriação de um conjunto de normas linguísticas e sociais que lhe são peculiares; as pressões da escola e toda uma tradição de estudos da linguagem, ainda que estejam baseados no uso da língua. Alguns desses fatores, internos ou externos aos falantes (embora seja muito difícil considerar fatores como externos, pois todos fazem parte da dinâmica no uso da língua) também promovem a instabilidade das categorias linguísticas, e assim o fazem pela natureza multifacetada dos atos comunicativos em que os sujeitos não apenas se envolvem, mas também conjuntamente atuam.

    Mondada e Dubois (2003) assinalam o reposicionamento das investigações, a partir da concepção de sujeito social, o que justifica a abordagem sociocognitiva.

    Isso nos leva a deslocar nossa atenção do problema das entidades da língua, do mundo ou da cognição para a análise dos processos que a constituem, assegurando a essas entidades uma evidência e uma estabilidade mais ou menos grandes. O problema não é mais, então, de se perguntar como a informação é transmitida ou como os estados do mundo são representados de modo adequado, mas de se buscar como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e dão sentidos ao mundo. (Mondada; Dubois, 2003, p. 20)

    Assim, no empenho do estudo dos processos de domínio geral que criam as estruturas da língua e que subjazem às atividades linguísticas em níveis diversos, é que aqui reunimos algumas das questões teóricas básicas para uma abordagem sociocognitiva, válidas para os estudos de textos e, também, para os estudos gramaticais, embora mantenhamos o foco nos textos.

    Estabilidade e instabilidade

    Os avanços dos estudos sociocognitivos apontam para a necessidade de relativização das noções de estabilidade e de instabilidade das categorias linguísticas nas dimensões sincrônica e diacrônica. Essas noções passaram a ser pensadas não mais em termos tão somente dos fenômenos linguísticos, mas em termos das mudanças sociais e culturais, tanto nas práticas individuais e coletivas, quanto nas concepções mesmas dessas práticas.

    Bybee (2010) retoma algumas constatações já amplamente conhecidas, com o objetivo de chamar a atenção para processos cognitivos recorrentes que operam no uso da língua e que, por serem recorrentes, promovem aparente estabilização, enquanto também possibilitam variações em qualquer tempo. Partindo de uma interessante comparação com dunas de areia, a autora afirma:

    As dunas de areia têm regularidades aparentes de formato e estrutura, contudo elas também exibem considerável variação entre instâncias individuais, assim como gradiência e mudança ao longo do tempo. Se quisermos entender fenômenos que são tanto estruturados quanto variáveis, é necessário olharmos para além das formas superficiais mutáveis e considerarmos as forças que produzem os padrões observáveis. A língua também é um fenômeno que apresenta estrutura aparente e regularidade de padronização e que, ao mesmo tempo, mostra variação considerável em todos os níveis: as línguas diferem uma das outras, embora sejam notoriamente moldadas pelos mesmos princípios; construções comparáveis em diferentes línguas têm funções semelhantes e baseiam-se em princípios semelhantes, ainda que difiram uma das outras de certa maneira; enunciados em uma mesma comunidade linguística diferem uns dos outros, embora exibam os mesmos padrões estruturais; as línguas mudam ao longo do tempo, mas de forma bastante regular. Assim procede que uma teoria da linguagem possa coerentemente centrar-se sobre os processos dinâmicos que criam as línguas e que lhes possibilitam ter tanto sua estrutura como sua variância. (Bybee, 2010, p. 1)¹

    Estudos sobre a evolução da linguagem humana (não humanos/humanos; crianças/adultos) foram retomados por Tomasello (2008), para confirmar a hipótese de que a estabilidade da comunicação convencional não é uma etapa mais avançada de uma fase de comunicação natural representada pelos gestos e pelas mímica, mas que essas duas tendências podem ser observadas no curso da atividade da linguagem. Com relação à linguagem das crianças, foi observado que, mesmo numa fase de emprego de palavras variadas em que produzem aparentemente diferentes frases, ao menos um elemento quase sempre é recorrente. Seguindo Braine (1963 apud Tomasello, 2008), nós podemos chamar estes expedientes de esquemas pivô, que representam uma estratégia ampla e produtiva para crianças aprenderem muitas línguas, às vezes incluindo frases nunca ouvidas dos adultos. Com relação à estabilidade e compartilhamento, observados, também, na linguagem gestual, poder-se-ia perguntar se os gestos configuram sinais arbitrários ou representações icônicas de ações reais. De acordo com Tomasello (2008, p. 219), muitos gestos mantêm-se icônicos por um longo período de tempo e se tornam mais arbitrários no decorrer do tempo, visto que são também convencionados – no sentido de compartilhados – o tempo todo.

    Ainda considerando os estudos de Tomasello (2008), o autor chega a propor o entendimento de que primeiro vem o compartilhamento de convenções, e, então, há uma espécie de ‘pressão para a arbitrariedade’ ao longo do tempo. A comunicação convencional, segundo Tomasello (p. 219),

    usa signos arbitrários e estes requerem compartilhamento de experiências de aprendizagem entre todos os membros do grupo (todos sabem, em princípio, que compartilham essas experiências de aprendizagem).

    Portanto, entendemos que iconicidade e arbitrariedade, ambas, também fazem parte do curso da língua que os sujeitos usam e, de certa forma, moldam, não sendo, pois, etapas que definitivamente se contrapõem em bloco.

    Mondada e Dubois (2003, p. 28) tratam as categorias linguísticas como resultado de reificações práticas e históricas de processos complexos, compreendendo discussões, controvérsias, desacordos. As categorias linguísticas, portanto, conjugam instabilidade e estabilidade (ou convencionalidade), uma vez que elas se manifestam e se constituem nas práticas dos sujeitos em interação, nas quais eles negociam uma versão provisória, contextual, coordenada do mundo (p. 29). A estabilização referencial de expressões lexicais convencionalizadas é um processo gradual de base sociocognitiva e serve bem para exemplificar o papel da repetição e da imitação nesse processo.

    Dentre os mecanismos atuantes nos eventos sociocognitivos em que a língua se manifesta, Bybee (2010, p. 16) destaca o mecanismo da imitação, que colabora para a relativa estabilização de construções (gramaticais e lexicais), sua recorrência e seu fácil compartilhamento. Segundo a autora, há certo equívoco na compreensão da imitação como sendo uma operação simples demais, tanto que nem teria valor para a atividade discursiva. De fato, não se trata de imitação simplesmente, mas da imitação junto a outros tantos mecanismos criativos e potencialmente gerativos de novas construções em, também, novos enunciados, possibilitando que as sequências imitadas sejam usadas de forma produtiva em novas situações (p. 16). E também Bybee (2017, p. 17), entre outros linguistas cognitivistas atuais, enfatizam que o reconhecimento de um elevado nível de habilidade dos sujeitos, tanto na imitação quanto na capacidade de segmentar, categorizar e recombinar, nos dá mais chance de explicar como a linguagem funciona.

    O exame dos processos de lexicalização que atuam na construção de expressões lexicais para funcionamento em bloco e também a análise do uso dessas expressões e do que representam nas manifestações discursivas, servem bem ao entendimento do que a abordagem sociocognitiva discursiva da referência postula em termos de instabilidade e estabilidade, sem deixar de considerar o caráter dinâmico das manifestações linguísticas que se fazem nos textos de sujeitos

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