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A Esquizofrenia De Lorena
A Esquizofrenia De Lorena
A Esquizofrenia De Lorena
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A Esquizofrenia De Lorena

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About this ebook

Bianca é uma jovem em busca de sua identidade. Foi abandonada aos seis anos de idade num orfanato. Dessa época se lembra de poucas coisas, tais como: uma casa de tons claros e janelas de vidro, uma menina de cabelos pretos e uma mãe completamente descontrolada. Embora lhe ame a mãe de Bianca não suporta seus olhos e a menina nunca entendeu ao certo o motivo. Tudo começa numa noite chuvosa em meio ao caos do trânsito, quando Bianca decide ajudar alguém que jogado numa viela escura lhe parece perfeitamente um mendigo. Ela se arrisca para salvá-lo e desde então sua vida corre perigo. Tudo está irrevogavelmente em jogo e cada instante é decisivo. Enquanto luta para sobreviver ela descobre novos fatos sobre sua família biológica. Sua realidade eletrizante colide com o passado e isso lhe dá outra direção. Desesperada ela vai atrás das recentes descobertas. Lúcia Torres é a nova descoberta. Lúcia Torres é aquela que entende o passado doloroso de sua família como ninguém. E por meio dela é possível conhecer a história de uma jovem que desembarca atordoada numa estação de trem, numa cidadezinha de interior. Ela é conhecida como Clara Albuquerque, mãe de Bianca. Da perspectiva de Lúcia Torres, que estranhamente conhece os sentimentos mais íntimos de Clara, a narrativa muda. Clara vai estudar biblioteconomia na casa de campo de um vetusto senhor, onde as telas de um rapaz de olhos incrivelmente azuis lhe cativam de maneira sobrenatural. O rapaz das telas é o filho falecido de seu professor. Mas a presença dele é inerente ao lugar, a tudo o que ela pode ver e tocar, incluindo as pessoas com quem agora convive. Sem que perceba, ao longo do tempo, Clara se apaixona pelas telas e pelos resquícios da vida do rapaz morto, assim como pelos mistérios envolvendo sua morte. Então, Guilherme Fonseca, provavelmente o pai de Bianca, chega na bucólica região, confundindo Clara por inteira. Ela se divide entre ele e as telas chamativas nas paredes de seu professor.
LanguagePortuguês
Release dateApr 15, 2020
A Esquizofrenia De Lorena

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    A Esquizofrenia De Lorena - Jéssica Ferreira

    A ESQUIZOFRENIA DE LORENA

    Para todos aqueles que me provocaram a vontade arrebatadora de sair à noite numa rua deserta e cantar Wave, Tom Jobim.

    Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam. Clarice Lispector


    […]

    onde encontrara telas tão vivas

    que mergulhou num azul profundo demais.

    Durante o tempo em que esteve submersa,

    a vontade de resgatá-lo lhe consumiu.

    Precisava salvá-lo, de si mesmo.

    Ouvia seus gritos e pedidos de socorro

    durante a noite. Seu rosto, retratado por

    toda parte, lhe perseguiu. Ali, no fundo

    daquele oceano, lutou ferozmente para levá-lo à

    superfície, contudo, acabou naufragando.

    A Esquizofrenia de Lorena

    O Despertar

    Jéssica Ferreira

    Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. Antoine de Saint-Exupéry

    TULIPAS AMARELAS

    Mamãe, todas as outras murcharam, ergueu seu valente olhar para a jovem mulher ao lado. Não tem jeito. Eu vou matar todas.

    A mulher riu baixinho.

    Querida, você só precisa de jeito, beijou os cabelos castanhos da menina. Como tem regado?

    A criança pegou o regador e despejou um pouco de água em cada tulipa amarela.

    Por que rega assim, querida?

    Papai me disse que as flores só são bonitas porque nós damos água a elas.

    E ele tem razão, mas nós damos água às flores de outra maneira, a mãe pegou o regador e despejou um pouco de água no vaso. Assim, querida. Entendeu?

    Como as flores podem ser bonitas se nós colocamos água no vaso, mamãe?

    A mulher levou o vaso até uma enorme janela, aberta logo mais à frente. Em seguida apanhou a filha para juntas sentarem lá. Em seu colo, a menina admirava o sol, iluminando as lindas tulipas amarelas.

    Porque a aparência é apenas resultado, filhinha. Quando bem cuidado, todo interior reflete beleza.

    Eu acho que não entendo.

    A mãe encostou sua cabeça na pequenina dela, sussurrando-lhe, enquanto o olhar de ambas estava nas tulipas amarelas.

    A parte da flor que está dentro do vaso é seu alicerce, como se fosse seu coração. As flores só são bonitas porque cuidamos da parte delas que está dentro do vaso, querida.

    Beijou seus cabelos e lhe apertou no colo.

    Clara, se quer que as coisas, as pessoas ou as flores sejam bonitas, cuide da parte delas que está dentro do vaso, cuide de seu coração.

    Prefácio

    A verdade de sua vida e as verdades de seu coração foram-lhe de súbito reveladas. Aquele era o segundo inverno que passava com o Sr. Ofredo, em sua casa. No inverno anterior, Clara foi apresentada ao caminho mágico que acessava o lago congelado. Essa memória alegre estaria pela eternidade gravada em seu coração. Após conhecer esse caminho, com suas trilhas tortuosas e encantadas, ela instituiu seu reino.

    Eram extremamente raros os dias em que apaixonada não percorria tal trajeto. Independentemente do que estivesse em sua mente e coração era com o lago que precisava discutir. Somente ele irradiava a tranquilidade necessária para controlar suas emoções, e colocar cada uma delas em seu devido lugar. O lago era testemunha de suas maiores descobertas.

    Os obstáculos para alcançá-lo agora estavam ainda mais visíveis, todavia, ela lutara bravamente com todos eles, e vencera todos, sempre correndo. Correndo entre as árvores tortuosas, correndo pelo caminho tortuoso, mostrando a todos como era a legítima herdeira daquele trono.

    E nesse dia, patinou na superfície sólida do lago como em nenhum outro dia fizera. As lâminas que lhe sustentavam, cortantes, deslizavam ferozmente pelo gelo. Seu corpo cortava velozmente o ar gélido e seu cabelo lhe chicoteava o rosto. Por baixo de toda a roupa ela suava. O fogo lhe queimava por dentro, transformando num sentimento absolutamente selvagem aquele seu prazer de dançar ali uma coreografia não ensaiada.

    Sua vontade era ultrapassar todos os limites que existiam e fugir. Clara girava desnorteada. A ferocidade que transpassava seu corpo lhe desorientava absurdamente, e num instante toda a extensão daquele pequeno lago era insuficiente. Ela só queria correr. Como uma prisioneira, ela tomava conhecimento de suas barreiras e limitações, e aguçava em seu peito a vontade devastadora de subjugar todas as fronteiras.

    Sua coreografia já não era mais tão bela, ao invés disso, desmanchara-se em fúria. Completamente em fúria ela rodopiava às margens do lago, como se estivesse enjaulada. Tornou-se um animal selvagem que desejava ir alhures.

    Aconteceu então tão rápido que ela nem conseguiu ver: em meio ao transtorno o seu rosto, queimando, foi de encontro ao sólido - ao lago petrificado, inquebrável como rocha.

    O cheiro de sangue alcançou-lhe, o gelo fustigava seu rosto provocando ardente dor, seu corpo estava imóvel e seus olhos piscavam brevemente. Clara era incapaz de se levantar.

    Durante aqueles segundos procurou levar seus pensamentos para um lugar distante, não queria se imaginar na situação em que deveras estava. Pensou sobre tudo o que havia recentemente descoberto, no motivo da morte de Felipe, no porquê ele saíra na chuva naquele dia em que todos lhe consideraram morto. Não sabia se sentia raiva de si mesma ou de Felipe, não sabia se sentia mais raiva dele ou da autora de sua morte.

    E ali, pela primeira vez, ela admitiu amar alguém que estava morto há muito tempo. A inconsciência chegava sorrateira, portanto, a menina acreditou que somente ela poderia lhe fazer admitir tamanha insanidade.

    Lágrimas quentes arderam na sua face machucada e a fúria que a dominou se transformava lentamente numa insuportável dor, uma dor que lhe fez implorar pela inconsciência.

    Enquanto a neve cair incessante, Clara ouviu, em seus pensamentos, no mais interior de seu ser, e isso lhe permitiu admitir outra coisa: odiava Lorena porque essa era uma promessa feita a ela. E de repente, a menina se descobriu mais humana do que sempre julgara ser. Inegavelmente humana, ela se descobriu alguém que sentia raiva, talvez odiasse - dependendo do que isso quisesse dizer - e ainda assim era capaz de amar, incondicionalmente.

    Seus olhos lentamente se fecharam e antes da inconsciência lhe tomar por inteira, Clara sentiu seu corpo ser envolvido, sentiu um calor a aquecer, e um azul indescritível lhe erguer do chão. Então tudo ficou escuro.

    Primeira Parte

    O Ser Humano

    O ser humano é também indefinível. O humano sente.

    No humano, tudo dói. Alguma coisa, pelo menos, sempre dói.

    O humano é indefinível.

    Tudo o que é humano se vê sorrindo, se vê chorando, tudo o que é humano, se vê cantando, se vê pintando. O humano tece, e como uma colcha de fuxico, dá extensão ao que antes não era nada. O humano não é insensível.

    O que é humano atinge o coração. O humano não é impassível. Não existe ninguém que não tenha chorado ou já tenha (r)ido.

    Ele não era nada e se tornou humano, por isso talvez, e só talvez, torne matéria algo que nem imaterialmente ousava existir. Dentro do humano há uma estrutura incrível. Físico, metafísico, espiritual e mental. Uma corporação perfeita que por insistentes vezes age de maneira tão imperfeita. O humano é forte e ao mesmo tempo limitado, quase um brinquedo. O humano é uma estrutura imperfeita feita para a perfeição.

    O que é humano corre atrás do extraordinário, quando tudo o que precisa ser e ordinário.

    O humano corre atrás de tudo, tantas coisas, e de alguma maneira, termina.

    O humano é um protótipo humano defeituoso, porém perfeito. O humano pode ser hostil, pode ser covarde quando sente hostilidade, é um animal racional irracionalmente.

    O humano tem olfato, tato, paladar e ouve, ora bem, ora mal.

    O humano é um animal, é gente, que sente. E contente descontentemente.

    Sua expressão é definida pelo indefinível. O humano e contraditório. É humano.

    A vida existe porque o humano esta aí, para o que der e vier. E quanto à vida…

    É claro que a Vida é boa, e a alegria, a única indizível emoção. É claro que te acho linda, Vida!, alguém deve ter dito. Por que não acharia?.

    O humano e a Vida.

    E se perguntares o que se sabe sobre a humanidade ou a vida, rir-se-á, e finalmente responder-se-á que não se sabe. Tudo o que se entende é que o eu é humano, assim como o tu.

    E às vezes, uma repetição exaustiva e exaustivamente (des)necessária.

    1. Sra. Torres

    Lá estava eu mais uma vez, sentada no banco do parque, observando as famílias passearem com seus lindos cachorros. Não sei o porquê ver aquilo parecia tão fascinante. Suspirei, quando um cachorro passou por mim correndo e latindo, atrás de uma bola.

    Talvez ser eternamente masoquista fizesse parte do meu planejamento de vida.

    Levantei dali, seguindo até o estacionamento. No caminho eu tirei da minha bolsa o papel amassado que continha, na minha letra cursiva seriamente abalada, a decisão do meu futuro, a decisão que mudaria tudo, definitivamente. Eu só não sabia ainda se mudaria para melhor ou pior.

    Minha velha Mercedes parou em frente ao casarão antigo e meu coração deu um enorme salto. Tirei a chave da ignição e continuei reunindo coragem para sair da minha zona de conforto e enfrentar o que viesse a seguir. Eu não queria ser covarde, embora não tivesse certeza se era corajosa.

    Um dia, provavelmente, eu me odiaria ou agradeceria por tomar a decisão de tocar a campainha, mesmo que tanta coisa, dentro de mim e até mesmo fora, relutasse tenazmente.

    Tudo, qualquer coisa que pudesse me fazer mudar de ideia, estava completamente fora de questão quando um empregado muito bem vestido surgiu à porta.

    - Olá, o meu nome é Bianca Albuquerque. Eu gostaria de falar com a Sra. Torres.

    Ele me analisou meticuloso e eu me senti trêmula durante o instante em que recebi sua avaliação.

    - A Sra. Torres não está disposta hoje - ele já fechava a porta -, receio não poder ajudá-la, senhorita. Tenha um bom dia!

    - Por favor, espere! - Joguei meu corpo contra a porta que ele fechava. - É muito importante para mim, senhor - sua expressão permanecia irredutível. - Poderia ao menos dizer a ela que estou aqui, por favor?

    Aguardei pelo que me pareceu uma eternidade. A expressão no rosto do estranho era impenetrável.

    - Tudo bem, eu falarei com a Sra. Torres - disse por fim. - Muito embora eu não acredite que ela vá recebê-la. Espere aqui, por gentileza.

    - Obrigada, de qualquer forma.

    Ele assentiu e se retirou.

    Aqueles foram os minutos mais angustiantes da minha vida, qualquer resposta que viesse dali de dentro seria capaz de transformar todas as minhas crenças. Mudaria até mesmo as pessoas que faziam - e, principalmente, fizeram - parte da minha história.

    Tudo estava prestes a mudar, já não dava mais para covardemente fugir, sobretudo, quando o empregado da Sra. Torres, visivelmente a contragosto, veio anunciar que ela me atenderia.

    A casa da Sra. Torres era ainda mais antiga por dentro, porém, não era velha, muito pelo contrário. O piso, espelhando o lustre nesse aspecto, estava impecavelmente polido, as paredes brancas refletiam a mesma limpeza impecável. O primeiro cômodo, uma espaçosa sala, levava a diversas outras possibilidades. Num desses outros espaços era possível notar uma enorme mesa e suas cadeiras - a emitirem um silêncio profundo e fúnebre. Na sequência haviam dois lances de escadas acessando o segundo andar, por onde eu fui conduzida.

    Os corredores silenciosos passaram a me provocar medo quando me ocorreu que não chegávamos nunca a lugar nenhum; só um monte de corredores. A sala de visitas da Sra. Torres devia ser a última no último dos corredores da casa. E quando enfim o seu empregado abriu uma porta o meu coração saltou mais uma vez.

    As paredes da sala eram revestidas em prateleiras atulhadas de livros.

    - Sra. Torres, esta é a Srta. Albuquerque - anunciou, saindo da minha frente para que pudéssemos nos ver.

    - Obrigada, Armando. Pode ir agora.

    Uma senhora aparentemente distinta estava exposta ao sol, do outro lado do cômodo, perto de uma imponente janela. Eu lhe estudei sutil e brevemente naquele nosso primeiro encontro. Encarava-lhe como minha única esperança.

    - Obrigada por me receber, Sra. Torres - iniciei, insegura. - É um imenso prazer conhecê-la.

    - Por que?

    Fiquei paralisada com a pergunta, refletindo sobre a veracidade dos meus sentimentos por trás da cordialidade inicial, até perceber que ela tinha razão. Por mais estranho que parecesse, eu não sentia prazer em conhecê-la. Eu apenas precisava de algo que somente ela possuía: a verdade.

    - Porque a senhora é minha única esperança.

    Ela sorriu enigmática.

    - Sente-se, por favor - indicou um enorme sofá em couro, enquanto se encaminhava até mim para trocarmos um aperto de mão.

    Ela sentou de frente para mim.

    - Acho que não a conheço, Bianca Albuquerque.

    - Eu sei - concordei -, por isso preciso agradecê-la por me receber ainda assim. O que tenho para falar é muito importante para mim, Sra. Torres.

    - Em que posso ajudá-la?

    - A senhora foi casada com Jonathan Torres, o médico da família Fonseca - avaliei-lhe brevemente, mas ela permanecia inexpressiva. - Guilherme Fonseca foi casado com Clara Albuquerque, minha mãe.

    Ela sustentava meu olhar, mas desviou ligeiramente, entregando-me a certeza que de alguma forma esteve envolvida com o passado da minha família, cuja história eu precisava desesperadamente encontrar. No entanto, no segundo seguinte, ela voltou a me fitar; e outra vez sua expressão não delatava absolutamente nada.

    - Sra. Torres, precisa me ajudar. É a minha mãe - eu procurava manter uma postura firme -, eu preciso saber o que aconteceu com ela, e com toda a minha família.

    O seu silêncio perturbador me fez acreditar que ela não diria nenhuma outra palavra. Eu me lembrei dos cômodos da sua casa, igualmente silenciosos, e daquela mesa demasiadamente grande para que somente ela fizesse as refeições. Em minha breve pesquisa, realizada para encontrá-la, acabei descobrindo que ela não passava de uma reservada e solitária senhora de classe alta.

    Aguardei calmamente uma resposta.

    - Receio não poder ajudá-la - falou por fim -, como você mesma disse eu fui apenas a esposa do médico da família. Jonathan não me falava muito sobre seus pacientes.

    - Por favor, tente se lembrar de alguma coisa, Sra. Torres - eu já implorava. - Qualquer coisa.

    Ela suspirou lentamente, em seguida passou a me analisar com cautela. Sua curiosidade me constrangeu.

    - Por que quer remexer em coisas do passado, Bianca?

    Ponderei ao responder.

    - Eu passei quinze anos procurando a minha verdadeira identidade - havia um tom suplicante em minha voz -, não posso parar agora. Eu só quero entender o que aconteceu. É como acordar de um sonho numa vida nova e descobrir que os meus pais não estão lá.

    - Não gosta de seus pais adotivos?

    - Como sabe que sou adotada?

    Nós nos encaramos por alguns segundos, quase desafiadoras. Pensei que finalmente compreenderia sua expressão, mas ela tornou-se indecifrável.

    Ela suspirou novamente, e desta vez parecia que eu era uma vendedora incômoda a lhe abordar na calçada, enquanto ela desejava apenas seguir caminho com seu Louboutin.

    - Não foi difícil adivinhar que é adotada, minha jovem.

    Eu não podia ser tão transparente assim.

    - Eu amo os meus pais adotivos, Sra. Torres, mas isso não me faz abandonar a busca. Eu preciso entender o que aconteceu, tenho esse direito.

    Voltamos ao silêncio, e novamente eu lhe esperei com paciência. As minhas respostas valiam a espera.

    - Como eu lhe disse, Bianca, não posso ajudá-la. Não tenho as respostas que você procura, mas se me permite um conselho, fique bem longe disso. Eu sinto muito, Bianca.

    Assenti nitidamente de mau gosto.

    - Qual o sentido em me aconselhar a ficar longe de uma história que não conhece? - Indaguei precisa.

    Ela não respondeu, então levantei me dando por vencida.

    - Tudo bem, Sra. Torres. Obrigada de qualquer forma - eu lhe entreguei o meu número de telefone, após anotá-lo rapidamente. - Caso se lembre de qualquer coisa, por favor, me ligue. Eu lhe agradeço mais uma vez.

    Ainda estava incerta se encontraria a saída sozinha, porém, sair dali era tudo o que eu podia fazer. Quando fechei a porta atrás de mim imaginei o silêncio lhe consumir dentro daquele cômodo, e pela primeira vez desejei que ela fosse completamente devorada.

    //+||

    Segui velozmente, esperando não desabar em lágrimas antes de chegar na minha casa. Porém, o que eu reprimia veio à tona no primeiro sinal.

    Aquela mulher era minha única esperança e todos os meus esforços para alcançá-la foram totalmente inúteis. Deixá-la para trás certa de que ela detinha algumas respostas era a pior parte.

    Trancafiada, eu passei a minha vida inteira, esperando liberdade. Enquanto aguardava alguém irromper o escuro e sanar todas as minhas dúvidas, não percebi que definhava. Na minha busca incessante por respostas, só haviam decepções. E esse quadro insistente não demonstrava sinais de mudança.

    Ainda não entendo o motivo que leva as pessoas a fugirem, e a veementes manterem distante de mim a história da qual faço parte. Talvez não compreendam os meus sentimentos como deveriam. Uma vida inteira eu dediquei para descobrir minha própria identidade, e agora tudo parece ainda mais longe.

    Tenho alguns fleches dos meus primeiros seis anos de vida. Lembro de uma casa grande onde todas as janelas eram imensas e de vidro. Minha mãe nessa época era muito vulnerável e chorava tanto. Todos estavam sempre de luto e eu não sabia o porquê. Travei algumas batalhas pelo coração da minha mãe, que estava dividida entre mim e esse luto que não passava nunca. Mesmo naquela época eu era capaz de sentir sua dor quando me olhava, e isso me transformou, aos seis anos de idade. Lá era mesmo minha casa, embora eu me sentisse completamente perdida o tempo todo.

    No entanto, haviam algumas pessoas que me faziam sorrir, como uma mulher doce, de cabelos pretos, por exemplo, e um homem de sorriso enorme. Também uma menina que me levava para passear. Estar com eles me deixava feliz, mas tudo o que eu queria era que minha mãe também estivesse, e ela não estava, nunca.

    Recordo uma vez em que eu disse que lhe amava, numa noite onde várias luzes saltitavam transbordando alegria, ela me abraçou e disse que também me amava. Então, ela colocou em meu pescoço o colar que eu nunca mais tirei. Depois as coisas pioraram, eu passei a ouvir discussões pela casa o tempo todo. Era como se sua vulnerabilidade tivesse afetado todos os outros. Eu fiquei ainda mais perdida, incapaz de reajustar qualquer coisa. Nada estava ao meu alcance. Nada melhorou, e não melhoraria. Soube disso numa noite ao ouvir minha mãe dizer que não suportava encarar meus olhos.

    Não demorou muito tempo para que ela me acordasse cedo numa manhã incrivelmente fria. Nós nos agasalhamos e saímos. Mamãe me levou até uma casa muito antiga, e conversou com uma mulher muito gorda um assunto que eu não entendi. Em seguida ela me beijou e disse que voltaria em breve.

    Nesse momento as lágrimas irromperam ferozmente e eu lhe perguntei se ela me deixava ali porque não suportava os meus olhos. Prometi a mamãe que se ela me levasse de volta eu nunca mais lhe olharia. Ela chorou muito, me abraçou forte e saiu da casa grande, me deixando sozinha com a mulher muito gorda.

    //+||

    As buzinas no trânsito me fizeram perceber que o sinal já estava aberto. Eu me esforcei para voltar à realidade.

    Pensei na Sra. Torres, e desejei fervorosamente que ela me ligasse. Em determinado momento dessa existência, eu acordei e descobri que minha verdadeira história estava perdida em algum lugar, então decidi encontrá-la. Após tanto tempo seria impossível recuar.

    Enquanto dirigia lembrei ainda da conversa que eu tive com meus pais adotivos anos atrás, quando lhes afirmei que buscaria o meu passado - e na forma como ficaram magoados. Porém, eles não saíram do meu lado, nem mesmo quando eu voltei a assinar Albuquerque. Eu esperava que meu sobrenome funcionasse como um pisca-alerta, então, de alguma maneira, eu seria encontrada, mas nada aconteceu.

    //+||

    Estacionei na garagem de casa e entrei na cozinha pelas portas do fundo. Os meus pais não estavam ali, e não estariam nos próximos dois dias. Viajavam para um encontro com parentes distantes que eu nem conhecia.

    Segui para a sala, inevitavelmente reparando os porta-retratos espalhados pela casa, onde tudo indicava que aquelas três pessoas eram a família mais feliz do mundo - e mais uma vez observei como eles eram diferentes de mim. Ríamos nessa fotografia.

    Continuei até o meu quarto no segundo andar da casa, passando pela janela estilhaçada e pelas marcas de tiros na parede, tentando ser completamente indiferente ao que acontecera bem ali há apenas algumas horas.

    Joguei minhas coisas em cima da cama e fitei o espelho.

    O meu rosto era pequeno e os meus cabelos loiro-escuros desmanchavam em ondas; os olhos eram verdes. Toda vez que eu encarava o espelho acabava tentando imaginar como eram meus pais biológicos. Sua aparência era a minha? E meu sorriso tímido, de onde viera? Minha testa pequena, de quem eu herdara?

    Era isso que ninguém entendia, ninguém sabia como era viver assim. Tais questões viviam aprisionadas, desesperadas por uma resposta.

    Por isso, toda a certeza que eu tenho é que nunca poderei me arrepender da escolha que fiz. Vou encontrar o que tiraram de mim há quinze anos.

    Suspirei, enquanto me encaminhava até a janela do quarto, de onde eu podia ver uma chuva fina cair. Fiquei ali por um tempo que mensurar eu não pude. Passaram-se dois dias desde o momento em que minha vida mudou totalmente. Essa mudança brusca me redirecionou. Enquanto observava a chuva cair do lado de fora da minha janela, dentro de mim, as lembranças de tudo o que aconteceu vinham à tona, me invadindo.

    Aonde estaria Mackenzie naquele instante?

    Fechei os olhos e imagens vieram à minha cabeça automaticamente. Lembranças de horas atrás, lembranças que inevitavelmente remeteram-me ao pesadelo recente do qual eu acordei. Todo o ocorrido me levou àquele ponto; especificamente, a Lúcia Torres.

    //+||

    Os meus olhos não deixavam o movimento incessante do para-brisa. De alguma maneira, esse movimento parecia extraordinário. O céu logo à frente parecia muito inconstante e era incomumente escuro. Trovões, relâmpagos e chuva, muita chuva. E eu só conseguia pedir a Deus que a cidade não caísse em semelhante escuridão antes de eu chegar em casa.

    O semáforo à frente continuava vermelho, enquanto eu reprimia a vontade de deixar tudo e continuar a pé. Suspirei; o sinal ficou verde em seguida. O meu Sedan preto e mais uns trinta automóveis dispararam com a ansiedade crescente de chegarem em seus lares sem novas interrupções. Porém, nossos temores se concretizaram quando o semáforo seguinte ficou vermelho.

    Droga!, bati as mãos no volante em fúria, enquanto respirava profundamente e olhava mecanicamente pela janela do carro, encontrando na calçada, do outro lado da rua, o motivo pelo qual minha vida mudaria num espaço de tempo praticamente ridículo.

    No princípio eu só consegui ver o quanto ele tremia debaixo daqueles cobertores velhos. Os olhos estavam veementemente fechados, o cabelo, já grande, grudava no rosto molhado e a expressão em sua boca, nos traços finos dos lábios, confrontava os arrepios contínuos que faziam seu corpo inteiro tremer. Era como se ele risse de sua própria desgraça.

    E algo, eu não sei exatamente o quê, me provocava a vontade de ajudá-lo, de lhe tirar do frio. Com esse pensamento eu choquei a mim mesma, enquanto continuava analisando a estranha figura fisicamente tão perto de mim.

    Agindo num irreconhecível impulso, eu me empurrei para a chuva lá fora, quebrando em poucos segundos o espaço que existia entre nós. Ao alcançá-lo, lhe estendi minha mão.

    Me dê a sua mão!, gritei para ele na chuva.

    Não obtive resposta.

    Avaliei-lhe por mais alguns segundos. Era como se ele não pudesse me ouvir, e isso me manteve paralisada por um tempo imensurável.

    Venha! Não tenha medo!.

    Continuei sem resposta.

    Não vou machucá-lo!.

    Então grandes e assustados olhos azuis me encararam; o medo dos olhos confrontando o sorriso descarado dos lábios.

    Me dê a sua mão, pedi num tom mais baixo, estendendo-lhe minha mão ao mesmo tempo. Não vou machucá-lo, repeti mais uma vez. Pegue a minha mão.

    Ele me encarava, enviando ao meu corpo arrepios, enquanto hesitante me estendia sua mão. O seu toque era quente, muito quente; seu estado era febril.

    Ainda dominada pelo impulso, eu lhe levei até o carro estacionado na calçada, acomodando-lhe no banco traseiro, a fim de que tivesse mais espaço. O sinal estava aberto e os veículos atrás de mim buzinavam ferozmente, seus donos gritavam insultos na noite escura.

    Entorpecida por esse sentimento que me fez arriscar tudo para salvar um desconhecido, eu pisei no acelerador.

    Eu vou levá-lo a um hospital! Não se preocupe!, garanti, agora tremendo um pouco também.

    Ouvi um sonoro pigarro no banco de trás, e instantaneamente lhe averiguei pelo retrovisor.

    Por favor… Não….

    Fiquei completamente imóvel com essas três palavras.

    Sua voz ecoando na minha cabeça, fazendo-me estremecer novamente. Era uma voz demasiadamente intensa para alguém em sua condição.

    Balancei a cabeça, tentando organizar os pensamentos.

    Não… Eu não posso….

    O desconhecido continuou implorando, e assustadoramente eu cedi, chocada.

    Tudo bem, nós não vamos.

    Só então me ocorreu que ele podia estar fugindo de algum lugar, da polícia, de uma clínica. Esses pensamentos ocuparam minha cabeça por confusos e torturantes minutos. Contudo, no final, eu preferi acreditar que ele só tinha medo de hospitais.

    Durante nosso trajeto eu me mantive calada, observando sua figura trêmula pelo retrovisor. Ele tremia tanto que em certo ponto delirou, repetindo várias vezes a palavra não, sofrendo com algo que não desejava que acontecesse. Enquanto analisava sua condição, foi fácil deduzir que provavelmente seus temores se concretizaram.

    Negligenciando todas as regras de segurança que eu obedecia e que meus pais me impunham, eu o levei até a minha casa. Meus pais não estavam lá e isso me deixou aliviada até certo ponto - e completamente aterrorizada em outro.

    Quando alcancei minha garagem, permaneci alguns segundos dissecando o desconhecido, ainda pelo espelho retrovisor, e tentando assimilar o que eu havia feito. Embora soubesse que ele precisava se aquecer - que eu precisava me aquecer -, e que ele corria sérios riscos, eu não consegui fazer nada além de continuar paralisada.

    Levou mais tempo para eu sair da paralisia.

    Por favor, fique aqui, eu lhe disse, embora não estivesse certa se ele ouviu.

    Saí do carro e corri ao meu quarto, tentando não sucumbir ao longo do caminho. Peguei o máximo de cobertores que eu consegui reunir. Voltei à garagem rapidamente e entrei no banco traseiro com o estranho, que ainda tremia convulsivamente. Retirei seus cobertores encharcados e então eu percebi uma coisa: não daria para simplesmente substituir seus cobertores molhados por secos e deixá-lo passar a noite na minha garagem, uma vez que ele próprio estava completamente molhado.

    Senti raiva da minha estupidez.

    Por favor, venha. Está tudo bem, estendi minha mão mais uma vez. Você pode tomar um banho e vestir umas roupas do meu pai.

    Então, sobretudo quando ele me entregou sua mão, eu notei que ele não registrava muito o que eu falava, somente me entregava sua mão, como se confiasse em mim o suficiente.

    Nesse estado, ele permitiu que eu lhe conduzisse.

    Chocada ao perceber isso, eu o ajudei a descer do carro e a entrar na minha casa. Atravessamos rapidamente a sala e o corredor, até alcançarmos o banheiro. Abri o chuveiro, fui ao quarto dos meus pais e peguei uma camisa e calça velha - que eu esperava que papai não usasse mais -, e ainda uma toalha.

    Voltei ao banheiro e fitei o estranho ali, que tinha os olhos distantes, completamente perdidos.

    O que aconteceu em seguida foi um pouco perturbador. Eu lhe ajudei a tirar uma pesada jaqueta e sua camisa de manga longa. Seu peito despido me provocou mais arrepios, enquanto enrubescia, desviei minha atenção para seus pés, retirando também seus sapatos, sob o olhar azul perdido dele.

    Fique à vontade, disse perdida também, e saí dali.

    Suspirei do lado de fora, aquilo não era verdade, eu só podia estar sonhando. Que tipo de pessoa é tão insana a esse ponto? Tentei pensar em tudo o que eu havia feito nos últimos minutos e parecia irreal. Eu havia mesmo parado no meio da chuva para ajudar um mendigo e trazido o desconhecido para minha casa? Principalmente quando estava sozinha nela?

    Então algo ainda mais assustador me ocorreu.

    Caminhei languidamente até a cozinha, procurando controlar a respiração. Ele não podia ser um mendigo. Podia se parecer perfeitamente com um, jogado numa viela escura daquele jeito, mas suas roupas… Suas roupas molhadas não pareciam rasgadas, sua jaqueta parecia realmente de couro, seus sapatos…

    Sentei trêmula, completamente alarmada. O que eu fiz? Quem era o estranho no meu banheiro? Era mesmo um sem-teto de olhos incrivelmente azuis e um peitoral extraordinariamente sedutor?… Sedutor?… Não! Sedutor, não…

    De repente eu me senti extremamente solitária, e percebi que eu não tremia só de frio, mas também de medo. Sim, eu estava com muito medo. Havia um estranho no meu chuveiro - estranho que até poucos segundos atrás eu julgava um pobre coitado sem-teto, ao qual me senti estranhamente ligada e arrisquei tudo tentando salvar, quando devia acionar as autoridades competentes.

    O barulho do chuveiro parou, e eu senti uma onda de frio percorrer meu corpo, me congelando por dentro. Caminhei vagamente até a porta do banheiro e esperei. A maçaneta girou e nos segundos subsequentes eu me vi inteiramente presa num olhar azul capaz de me fazer tremer ainda mais, de frio e calor.

    O homem que me encarava não era o mesmo que eu deixara lá dentro. Esse, diante de mim, era um pouco mais alto que eu, parecia de alguma maneira mais forte, tinha o olhar mais firme, embora ainda fosse extremamente perdido… E vestia roupas que eu sinceramente esperava que meu pai não precisasse mais.

    Obrigado, e com sua voz eu senti novamente um calafrio.

    Tudo bem, sorri rapidamente. As roupas ficaram boas. Venha, vou preparar alguma coisa quente para você tomar, encaminhei até a cozinha, com ele em meus calcanhares. Deve estar com fome.

    Ao chegar na cozinha eu iniciei o preparo de uma das sopas prontas que minha mãe tomava quase toda noite.

    Sente-se, gesticulei para a mesa, e ele o fez. Não vai demorar muito.

    Ele entrelaçou suas mãos em cima da mesa, e seus olhos perdidos estudavam meus movimentos, provavelmente sem processá-los.

    Qual o seu nome?, perguntei.

    Mack… Mackenzie.

    Eu também lhe avaliava, discretamente.

    Mackenzie, eu sou Bianca. Muito prazer.

    O que era para ser um sorriso se formou em seus lábios.

    Obrigado, Bianca.

    Mais calafrios ao ouvir sua voz dizer o meu nome, e quando nosso contato se tornou direto, havia algo em sua expressão que eu queria desesperadamente entender.

    O que aconteceu com você, Mackenzie?, perguntei de repente, e me arrependi logo em seguida, quando seu rosto ganhou traços tristes. Ele redirecionou sua atenção para as mãos entrelaçadas e não disse mais nada.

    Desculpe, sussurrei, mas não sei se ele ouviu.

    Ainda mais perdida agora, eu me virei para a sopa e não desviei minha atenção até que estivesse pronta. Então desliguei o fogo. Apanhei o necessário e fui até a mesa, prepará-la. Mackenzie voltou a avaliar meus movimentos, porém ainda parecia sofrer com o que lhe atormentava. Servi a sopa e ele sussurrou um obrigado tão baixo que se eu estivesse um passo mais longe não teria escutado.

    Devia tomar um banho também disse, me surpreendendo completamente.

    Eu assenti, insegura.

    Os olhos quentes dele estavam em mim mais uma vez e eu não sabia como corresponder.

    Caminhei em direção ao corredor, secretamente grata por ter um motivo para me afastar do seu campo de visão.

    A água quente caía macia em meus ombros pesarosos. O desconhecido estava sozinho em minha casa e quanto ao seu caráter eu não sabia absolutamente nada. Isso parecia muito imprudente.

    Ao entrar no banheiro, recolhi suas roupas espalhadas pelo chão, assim como os sapatos, e pensei que provavelmente nenhum mendigo teria sapatos tão bem lustrados e jeans caros como aquele tinha. Procurei reprimir meus medos.

    Desliguei o chuveiro, vesti uma roupa quente, penteei os cabelos e os sequei. Voltei à cozinha e ele não estava mais lá. Uma onda mista de calor e frio percorreu meu corpo então. Enquanto eu lentamente avançava pela cozinha em direção ao próximo cômodo, automática e bruscamente eu parei, paralisada devido ao que via: o estranho dormindo em meu sofá. Não consegui parar de analisá-lo.

    Eu me aproximei mais, sentando defronte a ele, observando-lhe cautelosamente. Algo, eu não sei o quê, me mantinha presa na figura dele, incapaz de desviar.

    Cuidei do estranho por toda a noite, principalmente quando seu sono se tornou algo difícil de vigiar. Por repetidas vezes ele tinha pesadelos, e pesadelos que pareciam cansar de maneira sobrenatural toda a fisionomia que me pareceu bonita em algum momento. Pesadelos capazes de fazer com que o sono do qual ele não conseguia sair se tornasse uma tortura.

    Eu não lhe acordei, e como também não conseguia deixá-lo, cuidei dele, fazendo-lhe bolsas de água quente para cuidadosamente colocar sobre sua testa. Em algum momento eu também sucumbi ao sono, contudo, não me lembro quando isso aconteceu.

    Acordei na madrugada ainda, e o primeiro pensamento que me ocorreu foi que tudo não havia passado de um sonho. Alarmada, analisei ao redor e lá estava o estranho, agora dormindo tranquilamente - fazendo algo dentro de mim sorrir.

    Voltei a dormir por algumas horas.

    Pela manhã, tentei me manter calma, tentei seguir com minhas costumeiras atividades, mas algo sempre me levava de volta ao estranho, e de repente, uma solidariedade, um cuidado, me fazia largar tudo para novamente vigiar seu sono. Ele dormiu por horas a fio, e nem mesmo a fome que deve ter sentido foi capaz de acordá-lo.

    Ele despertou bem tarde, e quando isso aconteceu, eu estava distraída. Fui pega de surpresa ao de repente me deparar com um par de olhos azuis me analisando. Quando saí da confusão que ele me causava, lhe ofereci comida. Tomou mais um banho depois de alimentado.

    Quando o barulho do chuveiro enfim cessou naquela tarde, eu sabia que estava prestes a conhecer alguém diferente, a conhecê-lo de verdade. Então esperei.

    Um homem alto e incrivelmente atraente saiu de lá.

    Eu preparei algo para você tomar, eu lhe disse, sem saber ao certo como agir. Venha.

    Caminhamos até a mesa, mas nos interrompemos quando ele começou a falar.

    Bianca, você fez muito por mim, mas eu poderia lhe pedir só mais um favor?.

    Sim, peça.

    Preciso de um telefone para falar com minha família.

    Então você não é um sem-teto?.

    Enrubesci quando ele tentou reprimir um sorriso e fracassou na tentativa, abrindo um estonteante sorriso. E só então eu percebi o quanto os dentes dele, os lábios, a boca num todo, eram bonitos.

    Não. Eu não sou.

    Desculpe por perguntar, mas o que…?.

    Ele suspirou, me detendo.

    Mackenzie caminhou até a mesa e se sentou, encorajando-me a fazer o mesmo. Eu aceitei o que parecia ser um convite.

    Eu tenho uma família, Bianca. Há dois dias eu saí com uns amigos e fomos a uma festa. No início eu não percebi o que estava acontecendo, mas estava sendo drogado, um pouco de droga em cada dose servida. Eu tentei parar de beber e então apareceram uns caras…, Mackenzie parou, eu acreditei que ele não voltaria a falar. Entretanto, depois de se perder numa parte da história que certamente era difícil lembrar, ele prosseguiu: a verdade é que tentaram me sequestrar e eu fugi dos sequestradores. Só me lembro de ter acordado com fome, sede, e muito frio naquela viela…, ele sorriu para mim, antes de você me ajudar.

    Por que alguém o sequestraria?, perguntei, lembrando repentinamente de seus sapatos aparentemente caros. Eu me senti uma tola então.

    Mas a fisionomia de Mackenzie era inexpressiva.

    Eu não sei, mas vou descobrir.

    Você devia chamar a polícia.

    Ele se sobressaltou.

    Eu não posso fazer isso.

    Por que não?.

    Os caras que me sequestraram….

    O que têm eles, Mackenzie?.

    Mackenzie me intrigou com sua expressão de medo.

    Acredito que eles sejam a polícia.

    Ergui uma inquiridora sobrancelha.

    Então o que exatamente você está me dizendo?.

    É melhor deixar para lá, Bianca. Não vou envolvê-la nisso. Esqueça, por favor. Eu só preciso de um telefone, se você puder me emprestar.

    Eu me levantei, caminhei até a sala e peguei o telefone, lhe apertei em minha mão e voltei à cozinha.

    Mackenzie é tarde, por que não espera amanhecer?.

    Eu não quero incomodá-la mais.

    Você pode ficar se quiser, não tem problema, eu abri minha mão mostrando a ele o aparelho telefônico. Mas a escolha é sua.

    Mackenzie parecia levemente confuso, mas instantes depois erguia aqueles olhos para mim, fazendo com que eu me perdesse neles. Alguma coisa dentro de mim quis sorrir quando eu soube sua resposta.

    Você pode ficar à vontade, eu lhe disse, minutos mais tarde, abrindo a porta do quarto de hóspedes para que ele entrasse. Tem mais cobertores no armário se você precisar.

    Obrigado mais uma vez, Bianca, ele sorriu, e então retirou a chave da porta, sua mão roçou a minha que ainda estava na maçaneta. Eu quero que tranque a porta e fique com ela, ele me entregou a chave.

    Franzi a testa, analisando seu rosto.

    Você já se arriscou demais por alguém que não conhece. E devo dizer: foi uma tremenda estupidez da sua parte. Não faça isso novamente.

    Reprimi o riso e continuei estudando sua expressão engraçada.

    Boa-noite, Bianca. Obrigado mais uma vez, Mackenzie se voltou para a cama. Durma bem.

    Boa-noite, eu sussurrei, enquanto trancava o desconhecido no quarto de hóspedes e caminhava até meu quarto no segundo andar.

    Pela manhã, ainda na cama, os acontecimentos da noite anterior pareciam fazer parte de um sonho maluco. Não era possível que uma pessoa em sã consciência fizesse o que eu supostamente havia feito. Ri de mim mesma, revirando na cama.

    Levantei num pulo, alarmada. Era mesmo verdade?

    Mas ao notar a chave do quarto de hóspedes em cima do criado-mudo, tive certeza. Novamente, eu estava apreensiva.

    Desci com cuidado até o quarto de hóspedes, destranquei a porta e hesitante entrei no cômodo.

    Mackenzie?.

    A cama estava vazia e arrumada.

    Bianca?.

    Eu gritei, lhe reconhecendo no escuro do quarto.

    Desculpe, arfei. Você me assustou.

    Mackenzie reprimiu o riso.

    Não era minha intenção.

    Tudo bem, tentei dar um sorriso. Você dormiu bem?.

    Como não acontecia há muito tempo.

    Há muito tempo?

    Quanto tempo você passou nas ruas?.

    Tentei fazer as contas, minhas lembranças estão um pouco confusas, mas acredito que tenha ficado lá pelo menos uns três dias.

    Sua família deve estar desesperada, Mackenzie.

    Quer saber Bianca, eu não tenho certeza não, disse timidamente. Talvez eles estejam pensando que eu apenas fugi de casa, de novo.

    Assenti, e por fim não quis me intrometer naquilo. Parecia pessoal demais.

    Vamos tomar café, eu segui em direção à cozinha com ele em meus calcanhares. Vou preparar alguma coisa para….

    E antes que eu pudesse terminar a frase, eu me encontrava no chão, salva pelo estranho dos tiros que irromperam a janela da minha casa. No chão, eu arfava.

    Meu Deus!.

    Bianca, você está bem?, Mackenzie arfava também.

    O que foi isso Mackenzie?!, gritei.

    Eu não sei.

    Quem é você?!.

    Eu queria gritar mais, eu explodia por dentro, a descarga de adrenalina percorria todo o meu corpo. Contudo, Mackenzie me puxava para ele quando eu menos esperava, e sua mão estava em minha boca, me silenciando.

    Eu não sei quem são eles ou o porquê de estarem aqui, mas é possível que estejam atrás de mim, sua voz oscilava, apesar de manter um fundo incrivelmente firme. Vamos sair escondidos até sua garagem, vou precisar do seu carro. Você ficará segura quando a atenção deles se voltar para mim. Se eu não morrer no caminho, devolvo seu carro, ele disse num disparo, mas existia um medo real em sua voz. Eu não vou deixar nada machucar você, Bianca. Soltarei você agora, mas não pode gritar.

    Tentei me acalmar e quando ele percebeu que eu não gritaria mais, me soltou. Eu tremia, mas Mackenzie tinha uma expressão muito difícil de desvendar.

    Como vamos sair daqui?, eu quis saber.

    Me acompanhe.

    Mackenzie, ainda agachado, seguiu até o balcão da cozinha. Eu lhe imitei.

    Qual a melhor maneira de chegarmos até a garagem sem sermos vistos?, ele perguntou num tom sussurrante, analisando nossas saídas. Tem alguma outra passagem até lá?.

    Procurei me lembrar de algum outro caminho.

    Tem uma escadaria inutilizada que leva até a garagem, eu respondi, ainda sem ar. Acho que conseguimos passar por ela.

    Mackenzie assentiu antes de dizer:

    Você nos leva até la.

    Nunca temi como naqueles minutos, onde nossas vidas dependiam inteiramente de mim. Houve um momento em que duvidei que conseguiríamos. Enquanto descíamos lances e mais lances de escadas, a sensação era a de que nunca chegaríamos a lugar nenhum. E se chegássemos, podia ser tarde demais. No entanto, enquanto atravessávamos também a barreira do medo e pessimismo, alcançamos a garagem.

    Correndo contra o tempo, eu me dei conta de uma verdade que se abateu sobre mim com uma força extraordinária: ele partiria, e seja lá no que estivesse envolvido, suas chances de fugir para sempre não eram nada boas. Mackenzie podia morrer dali a dois quarteirões. E por um segundo, eu quis de alguma forma acreditar que se eu estivesse com ele, talvez suas chances seriam maiores.

    O insano pensamento tomou conta de mim nesse decisivo instante.

    Tenho uma dívida eterna com você, Bianca. Você salvou minha vida, Mackenzie disse, ao alcançar o volante, enquanto eu permanecia paralisada à sua porta. Não sei como isso vai terminar, mas se terminar….

    Fechei abruptamente a porta dele e corri ao banco do carona, pulando ali e fechando a minha porta também.

    Não me prometa nada eu lhe disse, nós ainda podemos morrer.

    A confusão tomou conta de seus traços.

    Bianca, o que…?.

    Não temos tempo para isso agora, Mackenzie. Precisamos sair daqui imediatamente.

    Ele compreendeu o que eu disse, e em seguida dava a partida.

    Sabíamos o que aconteceria assim que os portões da garagem se levantassem. Dois automóveis pretos esperavam do lado de fora, e não podíamos fingir normalidade, porque, seja lá quem fossem aquelas pessoas, elas sabiam que Mackenzie estava ali dentro.

    Assim, ao perceber exatamente isso, Mackenzie acelerou, e numa fração de segundos tínhamos em nosso encalço ambos os veículos. Com a adrenalina, eu não consegui supor o quão arriscado era tudo e não quis pensar no que poderia dar errado.

    Mackenzie seguiu pelas ruas, tentando desviar das rotas de maior tráfego, conforme apontava o GPS. Algo me dizia que o estranho, seja lá quem fosse e no que estivesse metido, conhecia muito bem aquelas ruas.

    Casas, prédios, árvores e veículos passavam numa velocidade assustadora, o que me permitia supor que a velocidade em que nós estávamos era ilegal. Eu não pude simplesmente reparar o velocímetro.

    Mackenzie parecia extremamente focado na direção, e assim, dentro de alguns minutos, virava num quarteirão. Então, nossos perseguidores contumazes recomeçaram a atirar.

    Meu Deus!, eu gritei, quando dois tiros atingiram o vidro de trás do meu carro. Papai me mataria, principalmente porque não tenho certeza se o seguro cobriria esses danos.

    Calma!, Mackenzie gritou para mim. Nós vamos conseguir!.

    E eu sei que ele também tentava se convencer.

    Fugimos por um tempo que não pude cronometrar, e quando pensamos que havíamos enfim despistado aqueles carros, fomos surpreendidos com viaturas e mais viaturas policiais, que passaram a nos perseguir também.

    O que está acontecendo, Mackenzie?.

    A polícia deve ter sido acionada quando os tiros foram disparados.

    Por favor, não me diga que eles acham que fomos nós quem disparou.

    Droga!, Mackenzie gritou, batendo no volante.

    A raiva tomava conta de seus traços e gestos.

    O que foi, Mackenzie?.

    Seu rosto assumiu uma cor levemente escarlate e os olhos queimaram em fúria.

    Mack!.

    Ele se voltou rapidamente para mim.

    Estão nos levando para uma emboscada, e os policiais fazem parte do jogo.

    Processei a informação de maneira fragmentada, mas uma das partes me incomodava mais. Como Mackenzie sabia daquilo?

    Como sabe disso?.

    Estão nos controlando desde que saímos da sua casa, Bia. Sabiam o caminho que faríamos. Não estava muito claro no início, mas agora tudo faz sentido. Não queriam nos capturar, queriam que estivéssemos aonde em menos de dez minutos estaremos. A menos que nos entreguemos agora para os civis.

    Não tem como tomar um caminho diferente?.

    Nossa última chance de tomar um caminho diferente ficou para trás quando viramos no último quarteirão.

    Estremeci, enquanto Mackenzie fitava a rua como se implorasse para uma cratera se abrir do nada.

    Então fomos pegos?.

    Mackenzie não respondeu.

    Quando você disse que seus sequestradores poderiam ser a polícia, o que exatamente você quis dizer?.

    Sei que tem policiais envolvidos, mas acredito que não é o caso desses que nos perseguem agora. Estão aqui porque estamos violando todas as regras de trânsito e possivelmente acreditam que fomos nós quem disparou os tiros.

    Assenti, digerindo as novas informações.

    Então vamos caminhar direto para a armadilha?, perguntei, embora não estivesse certa de que queria uma resposta.

    Estou pensando….

    Algo em sua voz fez com que eu lhe fitasse imediatamente.

    Não vai acontecer nada com você, Bia. Eu prometo.

    Não era somente comigo que eu preocupava, e eu quis lhe dizer isso, mas algo em minha garganta não permitiu.

    Mack, talvez nós possamos….

    Antes que eu pudesse terminar a frase, Mackenzie pisou ainda mais forte no acelerador e deu a volta na rua, de modo que ficasse de frente para as viaturas. Ele encarava as viaturas, e em sua nova posição, obrigava-lhes a parar, acreditando que nos entregaríamos. Mackenzie levou poucos segundos para concluir sua estratégia, quando então lhe executou. Arrancou dali, ultrapassando todos os limites ao empurrar as viaturas do seu caminho - quando perceberam o que tentávamos fazer, passaram a atirar.

    Com o coração ameaçando sair pela boca, e os cacos dos vidros estilhaçados a caírem sobre minha cabeça, eu me abaixei até onde o cinto de segurança permitiu. Dali, eu só fui capaz de ouvir os gritos de Mackenzie e os tiros.

    Batemos várias vezes contra as viaturas e eu só fui capaz de abrir os olhos quando o riso entusiasmado de Mackenzie invadiu o ambiente. Percebi então que não havíamos parado.

    Você está bem?, eu perguntei, notando que apenas duas viaturas restantes nos perseguiam, mas agora estavam mais distantes.

    Esse seu carro é um possante, Bia!, ele exclamou, me examinando com aquele sorriso estampado no rosto. Você está bem?.

    Sim.

    Não estamos mais caminhando para uma armadilha, Mackenzie estava subitamente animado. E não levo mais de vinte minutos para despistar os civis inoportunos.

    Deixei que minha cabeça caísse no encosto do banco.

    Você parece pálida, Bia.

    Não pude deixar de rir.

    Pareço, é?.

    Ele concordou com a cabeça.

    Se segura, vamos correr mais um pouco agora.

    Como havia dito, ele não levou mais de vinte minutos para despistar os policiais. Com maestria ele seguia por ruas abandonadas, demonstrando novamente como conhecia a cidade. E após transpormos

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