Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Vim, Vi, Venci!
Vim, Vi, Venci!
Vim, Vi, Venci!
Ebook701 pages11 hours

Vim, Vi, Venci!

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

Contra tudo e contra todos, a autobiografia de Mara Miranda se destaca como uma lição de vida para qualquer ser humano, de qualquer classe social e de qualquer origem. É uma história de luta, mas também de muita fé, muita virtude e muita esperança na bondade do Altíssimo, que mesmo parecendo distante e indiferente, faz-se presente na vida de seus filhos, sobretudo daqueles que não deixam de confiar na sua generosidade e misericórdia.
LanguagePortuguês
Release dateOct 15, 2019
Vim, Vi, Venci!

Related to Vim, Vi, Venci!

Related ebooks

Biography & Memoir For You

View More

Related articles

Related categories

Reviews for Vim, Vi, Venci!

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Vim, Vi, Venci! - Mara Miranda

    M A R A M I R A N D A

    VIM, VI, VENCI

    – AUTOBIOGRAFIA –

    1ª edição

    SÃO PAULO

    Edição Marcos A. Fiorito

    2019

    Copyright © 2019 Mara Miranda – Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização expressa da autora.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a Deus, primeiramente, porque sem Ele nada de relevante se concretiza. Agradeço pela minha vida, pela vida dos meus filhos, que me deram motivo para que eu prosseguisse meu caminho em meio a grandes tempestades, e sem desanimar. O meu agradecimento vai para todas as pessoas que passaram pela minha vida; uns fazendo o bem, outros fazendo o mal, mas todos contribuíram para que eu fizesse uma profunda reflexão sobre a existência e o convívio humano. Em cada rasteira que eu levei, soube me levantar mais forte e confiante para prosseguir. Tudo isso só me fortaleceu!

    A vida nos prega peças... Elas são tais, que achamos impossível ir avante, principalmente quando pensamos estarmos só. A verdade é que sempre encontramos bons anjos de luz que vem em nosso socorro, para iluminar a nossa caminhada e mostrar-nos a direção correta a prosseguir na escuridão com segurança. Sou privilegiada, pois encontrei vários desses. Recebi muitas ajudas e, em troca, aprendi a me doar também. A todos que fizeram parte da minha vida e fizeram parte da minha história, devoto-lhes eterna gratidão! Alguns eu nunca havia visto, mas estenderam-me a mão sem nenhum interesse, sem perguntar quem eu era, de onde vim, por onde andei ou com quem andei. Ajudaram-me com simpatia e generosidade. Agiram como o bom pastor, que ao encontrar a ovelha perdida, a acolhe e a abraça sem se importar com a razão pela qual ela se afastou dele. A alegria de poder recupera-la é o que, de verdade, importa! O que está em jogo é recuperar o animalzinho que parecia perdido. Esse bom pastor se revelou em cada um quê, de uma forma ou de outra, tornou o meu fardo mais leve.

    O meu agradecimento também à minha querida amiga e irmã Legionária, Rosa Marina Antunes e Silva, que me ajudou na digitação desta obra. Talvez sem o seu apoio, este livro ainda estaria na gaveta da minha escrivaninha. A você, amiga, meu muito obrigado!

    Que Deus, na sua infinita bondade, perdoe-nos pelas nossas faltas e nos ensine a enxergar com benevolência e amor as misérias dos nossos irmãos.

    Mara Miranda

    SUMÁRIO

    Prefácio

    Capítulo 01 – Uma infância regada de sofrimento, pobreza e maus tratos

    Capítulo 02 – Uma aventura arriscada: em busca de uma vida melhor, mudança para o Paraguai

    Capítulo 03 – Pré-adolescência e início dos estudos regulares

    Capítulo 04 – Adolescência e juventude sacrificadas e as primeiras experiências amorosas

    Capítulo 05 – O encontro com o homem que iria me lançar no precipício e a minha primeira gravidez

    Capítulo 06 – Quando parecia ter surgido uma luz no fundo do túnel, as trevas se fizeram mais densas do que nunca

    Capítulo 07 – Na mudança para São Paulo, abria-se uma nova oportunidade de vencer – Casamento e terceira gravidez

    Capítulo 08 – Após 9 meses de nascimento da Erika, chega o grande dia

    Capítulo 09 – Partida do homem que deu sentido à minha vida

    Capítulo 10 – O caçula vem ao mundo: Romildo Silvestre Ferreira Júnior

    Capítulo 11 – Luta hercúlea para conseguir pôr as crianças na creche e poder trabalhar

    Capítulo 12 – Conhecendo pessoas de coração generoso e amor ao próximo

    Capítulo 13 – Creche em férias, cirurgia da Erika, situação financeira que se agrava

    Capítulo 14 – A marginalidade atenta contra os meus filhos – Fé, luta e perseverança

    Capítulo 15 – Namoro com o Kobayachi, oportunidade

    de trabalho, desemprego de novo e vizinha mau caráter

    Capítulo 16 – Situação financeira insustentável que iria se solucionar de uma forma completamente inesperada – Cristo não abandona nunca os seus

    Capítulo 17 – Era chegada a hora de retribuir a imensa caridade feita pelo Sr. Antônio

    Capítulo 18 – Namoro com o Luiz e piora da saúde do Sr. Antônio

    Capítulo 19 – Sr. Antônio entrega a sua bela alma a Deus...

    Capítulo 20 – Compra do trailer, trabalho com venda de                         lanches e primeiro contato com a Legião de Maria

    Capítulo 21 – Encontrando Cristo em cada necessitado,                        em cada família pobre, em cada morador de rua, em cada idoso que vive abandonado por sua família

    P R E F Á C I O

    O título deste livro foi sugerido por mim, pois tive a oportunidade de ler a biografia da Mara e, impactado com a história da nossa guerreira, lembrei-me de um fato ocorrido na Roma Antiga com Júlio César. Após a sua vitória sobre Farnáces II, rei do Ponto, na Batalha de Zela, o grande general enviou uma carta aos senadores romanos dando-lhes notícia do seu triunfo: Veni, vidi, vinci! Vim, vi, venci!.

    Embora muita gente entenda que a frase se aplica a uma vitória segura, rápida e arrasadora, também pode ser entendida na vida de Mara Miranda como alguém que não teve medo de lutar em sua longa e áspera jornada, apesar das inúmeras contrariedades pelas quais passou e que apontavam para um destino incerto e temerário, provavelmente para um final infeliz.

    Contra tudo e contra todos, a autobiografia de Mara Miranda se destaca como uma lição de vida para qualquer ser humano, de qualquer classe social e de qualquer origem. É uma história de luta, mas também de muita fé, muita virtude e muita esperança na bondade do Altíssimo, que mesmo parecendo distante e indiferente, faz-se presente na vida de seus filhos, sobretudo daqueles que não deixam de confiar na sua generosidade e misericórdia.

    Marcos Antonio Fiorito

    Teólogo e Historiador

    – CAPÍTULO I –

    Uma infância regada de sofrimento,

    pobreza e maus tratos

    Em Jequié, estado da Bahia, eu, Felisnóia Silva Miranda, vim ao mundo no dia 14 de janeiro de 1957. A primeira filha do casal Sebastião Jesus Miranda e Anelita Silva Miranda. Meu pai nasceu em Santa Inês (BA) e minha mãe em Jequié (BA). Conheceram-se ainda muito jovens, e, com apenas 3 encontros, sob os olhares da mãe, Da. Maria, foi marcado o casamento. Depois de 6 meses, como previsto, já estavam casados. Minha mãe com 16 anos e meu pai com 21 anos.

    A casa da nossa família foi construída por eles mesmos. Minha mãe aprendeu a fazer tijolos em uma olaria em que trabalhou e meu pai era pedreiro... Perfeito! Uniram o útil ao agradável, puseram dois cômodos em pé e se instalaram. O terreno já existia e ali todos eram donos de tudo, não havia demarcação de terra. O bairro era muito pobre e todos construíam onde bem entendessem. Bem próximo dali morava minha tia Julita, irmã de minha mãe, e minha avó Maria.

    A casa era simples, feita de tijolos e rebocada de barro. O chão era de terra, fogão de lenha, uma prateleira de tábua onde se colocavam as vasilhas, como acostumávamos chamar as louças. Havia uma mesa rústica de madeira com dois bancos de um metro mais ou menos de comprimento; no canto duas latas de água, pois não existia pia. Lavávamos as vasilhas fora da casa, em uma tarimba de madeira. Não tínhamos poço, a água era apanhada de um rio chamado Rio de Contas. No começo não foi nada fácil, porque logo minha mãe ficou grávida e o dinheiro era curto; então minha mãe resolveu vender bebidas ali mesmo na janela da cozinha. Fizeram um balcãozinho de madeira do lado de fora da janela e ela vendia não só bebidas, mas cigarros e balas. Não era tudo, mas era o que dava para fazer.

    Minha mãe não era mulher de se contentar com pouco, e queria mais. Meu pai, já mais sossegado, não esquentava a cabeça, mas minha mãe tinha um plano para deixar a Bahia. Ela ouvia dizer que no Paraná o povo estava ganhando muito dinheiro; outros diziam que em Minas alguns já estavam milionários trabalhando no garimpo e na colheita do café. Então ela começou a cogitar sair da Bahia sem falar nada a ninguém. Quando a ideia já estava madura, disse ao meu pai que precisavam sair dali e ir em busca de uma vida melhor.

    Meu pai concordou, e, de comum acordo, avisaram os familiares e partiram para Adamantina, Minas Gerais. Foram trabalhar em uma charqueada. Nessa época eu tinha dois anos e uma irmã de oito meses.

    No começo não foi nada fácil para meus pais, com duas crianças pequenas e sem dinheiro. Foram morar na roça, no meio de um terrível matagal, em um rancho de sapê, na beira de uma estrada, sem nenhum vizinho por perto.

    Nesse lugar, não havia trabalho, não havia dinheiro e muito menos o que comer. Valiam-se de mamão verde e alguns almeirões bravos que encontravam no pasto. A água era de um poço muito velho, assim como a casa, que há muitos anos se encontrava abandonada. Por todo o lugar que se olhava, via-se picão, carrapichos e capim gordura. Meu pai saía nas roças vizinhas para procurar serviço, mas voltava sem sucesso. Minha mãe também procurava alguma coisa para fazer, mas não achava. Começaram a carpir em volta da casa e plantar algumas verduras com mudas que encontravam pelos matos. Meu pai achou uma espiga de milho bem seca e não pensou duas vezes, debulhou e plantou. Começou a fazer alguns bicos na roça de um e de outro, carpindo, roçando, arando e, assim, tocavam a vida.

    Depois de um ano, encontrou um serviço em uma charqueada ali perto. Com esse trabalho, minha mãe teve a oportunidade de fazer arroz-doce e vender para os trabalhadores da charqueada. Não era muito, mas já ajudava na alimentação. Minha mãe, naturalmente, não estava satisfeita com esse ganho, queria mais e falava sempre para o meu pai que assim que melhorasse a situação, sairiam dali. Mas meu pai estava muito contente, pois para quem não tinha nem um punhado de farinha para comer e agora tinha um salário, estava bom demais.

    Além de trabalhar na charqueada, ganhávamos a cabeça dos porcos, os pés, as orelhas, as entranhas do boi... Ganhávamos também o bucho, que hoje é a dobradinha, os pés e o rabo. A situação era tão difícil, que até o chifre do boi era bem-vindo. Nessa época, eu já tinha quase quatro anos e eu era a responsável pela carne de sol da charqueada. Meu pai trazia a carne em uma carroça e pendurava no varal, eu ficava com uma vara de bambu sentada embaixo do varal cuidando para os urubus não virem comer, e esse era o meu serviço a tarde toda! Às vezes chorava por conta do sol muito forte, dava-me sono, mas não atinha perdão, ou fazia ou apanhava feio.

    Um dia meu pai levantou e foi para a charqueada como de costume, minha mãe foi lavar roupa em um rio que ficava do outro lado da rodovia. Ela costumava nos levar junto e eu até gostava, pois o rio atinha uma boa correnteza e muitas pedras pequenas, médias e grandes. Todas as lavadeiras da região vinham com suas trouxas, latas, lenhas e sabão feito de mamona ou gordura. Ali elas lavavam as roupas, batiam nas pedras e acendiam o fogo com aquelas lenhas. O fogo era para ferver as roupas com o sabão de mamona, depois de fervidas, eram esfregadas e enxaguadas; passavam anil para alvejar tudo isso porque não tinham os recursos que temos hoje para deixar as roupas brancas. Para secar, colocavam nas pedras grandes, outras levavam para casa molhada. Nesse dia, minha mãe secou pouca roupa nas pedras e trouxe o restante para secar em casa. As secas, ela dobrou e me entregou para trazê-las. Chegando em casa, ela não entrou, foi direto pro varal e me disse:

    – Leva essa roupa e põe em cima da cama.

    Eu empurrei a porta, pois estava aberta e fui para o quarto. Quando entrei, vi um homem deitado na cama de minha mãe; ele estava muito sujo, barba grande e cheirava mal, os cabelos muito brancos e longos. Olhei, e imediatamente voltei e disse:

    – Mãe, tem um homem lá no quarto!

    – Você não guardou essa roupa ainda? Se você sujar essa roupa, eu te mato!

    – Eu estou com medo! – comecei a chorar.

    – Vai guardar essa roupa, menina! Medo de quê? Você quer apanhar? – gritou comigo.

    Eu sabia que apanhava mesmo, então voltei para dentro da casa. Mas eu olhava os pés daquele homem e me dava um pavor. De repente, ele começou a se mexer e eu me apavorei e saí correndo para o quintal com as roupas caindo de minhas mãos. Minha mãe estava ainda pendurando as roupas, quando me viu naquele desespero, e a roupa limpa rolando naquela terra... Ela veio ao meu encontro parecendo uma onça feroz, agarrou nos meus cabelos me arrastou para perto de uns gravetos e começou a me espancar, me chamar de louca, mentirosa, preguiçosa.

    – Você fica inventando coisas para não trabalhar, sua vagabunda!

    Enquanto falava, batia-me com força. Depois me empurrou, pegou as roupas do chão, chacoalhou e entrou. Voltou na maior gritaria, quando deu de cara com o homem que já estava sentado na cama rindo pra ela. Pegou a minha irmã no colo e pegou meu braço, saiu arrastando em direção a rodovia em busca de ajuda. Ali era uma rodovia, mas passava pouquíssimo carro. Então ela avistou um homem de carroça que vinha em nossa direção e pediu ajuda. O homem foi até lá em casa e retirou o indigente de lá. Depois disse à minha mãe:

    – A senhora reforça as portas e as janelas, porque aqui nessa rodovia há muitos andarilhos e loucos. Se encontrarem a porta aberta, eles entram mesmo. E se forem loucos, podem fazer algum mal para a sua família. E aqui a sua casa está longe de tudo e de todos; o vizinho mais perto da senhora é a fazenda do meu cunhado, que fica quase meio quilômetro daqui, mesmo gritando, não vão escutar...

    Minha mãe agradeceu o homem e saiu olhando o andarilho que sumia pela rodovia afora. Minha mãe entrou e olhou tudo, e viu que um pouco de feijão com pé de porco que estava em cima do fogão de lenha tinha sumido com a panela e tudo; depois encontrou no quarto a panela vazia e o bule de café também que costumava ficar cheio o dia todo, pois ela fumava e bebia café. Toda vez que colocava o café na boca, era um cigarro. O andarilho foi embora, mas o cheiro ficou, ninguém aguentava entrar no quarto. Meu pai veio almoçar e não tinha feijão, mas minha mãe ferveu uma carne seca, fritou e ele comeu com farinha. Eu só não sei dizer se ela contou isso para meu pai. Mas eu acredito que não, pois a depender dele, não teria saído da Bahia, foi ela quem quis.

    O tempo passou e, um mês depois, mais ou menos, ela resolveu lavar todas as roupas no mesmo lugar, só que agora deixando a casa bem trancada. Naquele mesmo rio, as mulheres riam, nós crianças brincávamos nas pedras, ficávamos só de calcinha e nos banhávamos nas águas que corriam por cima das pedras, enquanto as nossas mães lavavam as roupas.

    Minha mãe já havia lavado os dois cobertores, pois esses demoravam mais para enxugar, quando estava enxaguando o restante, olhou para a rodovia, que passava carro só de meia em meia hora ou mais, e vê um pau-de-arara com muita gente. Ela olha, mas não dá importância, de repente ela escuta alguém gritar: Nelita! Nelita! Ela olha assustada e pensa:

    – Deve ser alguém que me conhece!

    No entanto, mais uma vez alguém a chama. Ela olha bem para aquele pau-de-arara e vê sua irmã mais velha, minha tia Julita:

    – Julita, o que você faz aqui?! – exclamou.

    – Estou indo pro Paraná colher café. Dizem que lá o povo está ganhando muito dinheiro e tem trabalho para todos – retrucou.

    Minha mãe ficou muito interessada e disse:

    – Quem te contou?

    – Uma amiga nossa foi pra lá e mandou uma carta pra nós dizendo o que eu estou te contando. Você não quer ir? Onde você mora?

    – Ali em frente! E eu quero, sim! Será que cabe mais uma família aí?

    – Cabe! Vamos, ajunte essas roupas e joga aqui no caminhão! E vamos lá no seu rancho pegar o resto.

    Ela logo juntou tudo e fomos para casa. Ela e minha tia juntaram o pouco do que tinha. Foi quando meu tio disse:

    – E o Santo? Precisa chamá-lo! Onde ele trabalha?

    – Lá embaixo, na charqueada – respondeu minha mãe.

    Tio Eurico se foi e, uma hora depois, chega meu pai sem entender nada. O pouco que tinha já estava no caminhão, inclusive os filhos. Ele disse:

    – Eu preciso saber aonde vamos.

    – Depois lhe explico – retrucou minha mãe.

    Meu pai, então, respondeu:

    – Eu já pedi a conta na charqueada, mas eles ficaram devendo ainda um dinheiro de alguns dias de trabalho.

    Minha mãe, porém, não estava nem aí. O que eram alguns dias de trabalho para quem ia ganhar milhões no Paraná?! Mixaria... Muito ambiciosa, os olhos brilhavam mais do que o ouro que ia ganhar para colocar nos dentes.

    Então partiram felizes e contentes, deixando aquele casebre de beira de estrada em Diamantina. Conforme o caminhão acelerava, a poeira subia e as roupas e os cabelos ficavam impregnados de poeira. Nesse pau-de-arara estavam cinco famílias, todas com malas de roupas e algumas vasilhas, como copos de vidro, canecas esmaltadas, panelas, etc. No percurso do caminho, bate a sede e ninguém tinha água para beber... As crianças reclamavam do sol, calor, fome, poeira e sede. Conforme rodava o caminhão, ficavam de olho para ver se avistavam algum rio, mina ou uma casa que pudesse fornecer a água. Mas nada disso foi encontrado. Logo apareceu uma roça de plantação de melancia. O caminhão parou e os homens vão pegar melancias que estavam penduradas nos barrancos da estrada, porque entrar mesmo na roça, nem pensar. A cerca de arame farpado era muito alta, mas deu para colher umas dez melancias que foram divididas para todos. Mais adiante, uma plantação de laranjas, os pés estavam carregados… Era limão! Só! Mas a fome era tanta que ninguém sentiu. Colheram dois sacos. Só descobriram que eram azedos quando chegaram em uma cidadezinha (um lugarejo) para jantar e com a barriga já cheia foram pegar as laranjas para chupar e não conseguiram. Então descobriram que era um horror.

    E assim foram pelas estradas afora... Uns cantavam, riam, contavam histórias, outros faziam planos com o dinheiro que iam ganhar nas colheitas do Paraná. A noite chega e estão todos empoeirados e cansados: é hora do banho. O caminhão parou na estrada, na beira de um rio e ali as mulheres deram banho nas crianças e tomaram também seus banhos. Alguns metros dali, atrás das grandes pedras, os homens se banharam, isso já eram 19 horas. Então começou a discussão entre mulheres; umas diziam que não iam banhar seus filhos, pois isso deveria ser antes do jantar, outra dizia que não fazia mal, pois o jantar foi às 17h e banho de estrada tem que ser a noite... Umas chamaram as outras de porcas, e nisso criou-se uma rixa entre elas.

    Ao voltar para o caminhão, arrumaram uns cantinhos para cada pessoa, ou melhor, para cada família; e assim todos se acomodaram como puderam; e o caminhão correu à noite toda. Quando amanheceu, paramos novamente na estrada, precisávamos tomar café. Alguém trouxe uns biscoitos que havia comprado onde paramos para almoçar e uma senhora havia trazido pó de café. Então umas tinham açúcar, coador, bule, e cada um pegaria suas canecas esmaltadas. Pronto, por falta de café ninguém morreria. Então, na beira da estrada, ali no acostamento, fizeram um fogão de pedra e puseram uma caneca de alumínio com água para ferver, e o café ficou pronto. Os biscoitos foram distribuídos para todos.

    É hora de levantar acampamento, as mulheres começaram a colocar as crianças no caminhão e voltaram para juntar as vasilhas que foram usadas no café. Subiram no caminhão e seguiram viagem. Alguns voltaram a dormir, pois não tinha nada para fazer, outros conversavam, olhavam as paisagens... Minha mãe também encostou em uma trouxa e dormiu. Eu não estava com sono e fiquei brincando com duas meninas que estavam nesse caminhão. Os homens riam, brincavam e faziam planos.

    Mas uma mulher muito esquisita sempre ficava acordada e sempre mexendo com as mãos em algum lugar; nessa manhã, enquanto todos estavam distraídos e alguns dormindo, ela mexe em um saco que não era dela. E eu, sempre muito calada e observadora, vi quando ela tirou duas canecas e colocou no seu saco, em seguida enrolou em um lençol já bem surrado que também não era dela. Observei onde ela colocara e fingi que não vi.

    Às 11h já estavam todos com muita fome, precisavam parar em algum lugar para o almoço. O motorista disse que há dez minutos chegaríamos num armazém na beira da estrada que vendia pão com mortadela. Todos concordaram. Chegando ao local, as mulheres desceram com as crianças, usaram a casinha (banheiro) e os homens esperavam suas esposas e filhos. Ali havia para comer além de pão e mortadela, bolo de mandioca e carne seca cozida. Meu pai logo comprou uma quantia, pôs farinha que havíamos trazido, misturou e foi dividindo entre nós. Outros comiam o pão com a tal da mortadela que cheirava de longe, e eu fiquei torcendo para que meu pai comprasse, pois nunca havia comido. Pedir para ele comprar, eu não tinha coragem, mas a minha tia tinha comprado para os seus filhos, o Dikinho e Nadinho, e ela viu que eu olhava, então disse:

    – Dikinho, dê um pedaço a sua prima.

    E meu primo me deu. E depois de comermos, chegava a hora de beber água. Cada um vai pegar as canecas e, nessa ora, minha tia sente falta de uma caneca, a outra senhora sente falta de duas canecas, e começam procurar e jogar indiretas... Ficou um clima pesado, todo mundo desconfiando de todo mundo. Começa a discussão...

    – Tem ladrão aqui. Vamos olhar tudo!

    A outra senhora disse:

    – Minhas colheres também sumiram.

    Então resolvi abrir a boca:

    – Ela pegou a caneca e pôs aqui! – apontei para um saco.

    Uma senhora me disse:

    – Você viu, filha?

    – Vi! – disse.

    A dona do saco achou ruim, dizendo:

    – Esse saco é meu e ninguém vai pôr a mão! Essa menina está mentindo.

    Minha mãe já me olhou e disse:

    – Isso é verdade, sua linguaruda?

    - É! – respondi.

    Então a minha tia achou melhor que todos olhassem os sacos para ver aonde foram parar os objetos procurados. Todos concordaram, menos a tal mulher apontada por mim. Ela sentou em cima do saco e disse que ninguém mexeria ali. Foi quando o marido pediu que a esposa lhe entregasse o saco, mas ela negou categoricamente. Ele repetiu:

    – Dê-me o saco, mulher.

    – Não! Eu não dou! – repetiu!

    Então ele a pegou pelo braço e arrancou de cima do saco e virou o mesmo com tudo no meio do caminhão. Dentro estavam muitas coisas, entre elas as canecas, pratos, colheres, chinelo e até uma saia que pertencia a uma senhora que estava ali; ela nem sabia que a saia havia sido roubada... Cada um pegou o que era seu, algumas a chamaram de ladra. O marido não tinha palavras e a mulher passou a viagem toda calada. Ninguém mais falou com a mulher, e agora cada um cuidava de suas trouxas.

    O clima ficou insustentável, o Paraná ainda estava muito longe. O cansaço era demais, nós que éramos crianças já começávamos a chorar, incomodadas pelo cansaço da viagem longa, comida precária, noites mal dormidas. Tudo isso nos deixava irritadas. Os adultos, mesmos cansados, guardavam esperança no olhar e ansiedade. O dinheiro da colheita do café já estava cheirando. Só se falava nisso, e o caminhão rodava dia e noite sem parar.

    De repente, alguém disse:

    – Gente!!! Nós estamos chegando em uma cidade e parece grande. Que cidade é essa?

    Todos olhavam, mas ninguém sabia responder. Um senhor chamou o motorista e perguntou a ele qual o nome daquela cidade? E ele disse:

    – São Paulo!

    – São Paulo?

    Sim, São Paulo. Nós vamos parar lá para descansar um pouco – disse o motorista.

    Alguns ficaram contentes, outros não gostaram. Disseram que estava demorando demais a chegar no Paraná. Minha tia, no entanto, disse que seria melhor mesmo, pois as crianças estavam cansadas, precisavam sair um pouco do pau-de-arara, correr, brincar, esticar as pernas...

    Entramos na grande cidade e as luzes encantavam a todos. Vimos um bondinho passando, eu perguntei a meu pai o que era, foi quando me esclareceu que se tratava de um bonde.

    O caminhão rodava pelas ruas de São Paulo e, de repente, parou diante de uma grande e linda casa, com muitas escadas. O motorista desceu e disse:

    – Pessoal! Aqui é a casa da Irmãs da Caridade. Aqui elas costumam dar janta para as pessoas que vem do Nordeste e, às vezes, dão pousada e até roupas. Vocês decidem se vão dormir ou só tomar banho e jantar.

    Conversamos e achamos melhor descansar naquela noite ali, naquela casa de apoio ao nordestino. E uma coisa me marcou ali até hoje, eu não esqueço. Essa casa, como já disse, tinha muitas escadas, o piso era brilhante, muito limpo, espaçoso, com muitas colunas grossas, várias cadeiras para o povo se sentar. As mães chamaram as crianças e deram banho. Veio uma senhora trazer roupas para nós. Colocou em uma mesinha ao lado dos banheiros e disse:

    – Vejam o que vocês precisam e podem pegar.

    Quando todos estavam já prontos, sentados no corredor, vi uma freira muito gorda, que me chamou a atenção. Eu fixei os olhos nela, achei linda suas vestes e perguntei para minha mãe:

    – Por que aquela mulher estava usando aquela roupa?

    Minha mãe me disse que ela era uma freira, era uma mulher que resolveu casar-se com Deus, o Papai do Céu. Eu não entendi nada. Continuei na ignorância. Eu continuava encantada com a casa, com a freira que levou a roupa para o banheiro. De repente, um sino toca e todos que estavam ali, naquele saguão, se levantam e saem acompanhando a freira gorda. Andamos por um corredor que parecia não ter fim, as paredes cheias de quadros, e, em cada porta dos quartos, um crucifixo. Chegamos em um grande salão, cheio de mesas compridas, com bancos também compridos. Todos sentaram e minha mãe disse:

    – Nós vamos jantar!

    Depois de todos sentados, entra umas dez freiras mais ou menos no refeitório. Foi quando gritei:

    – Olha, tia, quantas mulheres de Deus!

    Minha tia riu e disse:

    – É mesmo! Bonitas, não é?!

    Afirmei que sim, ri para elas e fiquei olhando tudo. Uma delas, disse:

    – Boa noite a todos! Quantas crianças lindas! Vocês estão com fome?

    E nós respondemos que sim.

    Então uma delas nos convidou, antes de comer, para acompanhá-la até a sala do lado. Nessa sala tinha um altar com algumas santas e Jesus no crucifixo. Nesse salão, tinha uma parte mais alta, como se fosse um palco ou altar, e para subir no palco, tinha três ou quatro degraus, e foi nesses degraus que a freira pediu que sentássemos. Depois nos perguntou:

    – Vocês sabem rezar?

    Eu disse que não, outras crianças também disseram que não. Diante da negativa, ela disse:

    – Então vamos cantar!

    Ensinou a gente cantar o canto Mãezinha do Céu, eu não sei rezar… Foi o primeiro canto religioso que eu aprendi. E nunca mais esqueci aquele lugar e aquelas religiosas. Após o canto, ela nos levou de volta para os nossos pais, que nos aguardavam em umas mesas menores. Todas as crianças jantaram juntas com a freira e, em outras mesas, os adultos com outras freiras. Fizeram a oração e, depois, todos jantaram. Serviram uma sopa muito gostosa.

    Acabando de jantar, todos foram para os aposentos, mas o canto não saía da minha mente. Passamos a noite ali. Logo de madrugada, todos levantaram, fomos no refeitório e tomamos café. O salão estava repleto de freiras indo e vindo, parecia tochas de algodão de tão brancas que eram as roupas. Umas traziam pães, outras café, outras leite, outras arrumando mais mesas, trazendo as canecas, bules, faca... E eu ali atenta a tudo, nunca tinha visto tanta beleza e bondade. Todas demonstrando sempre alegria. Mas uma tristeza tomava conta do meu coração: eu não queria deixar aquele lugar, tudo era tão bom, cheio de paz, de amor... Aquelas freiras olhavam a gente com tanto amor que chegava a contagiar! Mas, infelizmente, tínhamos que seguir nosso destino.

    Alguns já se dirigiam para o caminhão, outros ainda agradeciam as freiras, e eu olhei para elas que foram até a escadaria do casarão se despedir de todos desejando boa viagem. Ali havia vários paus-de-arara esperando o povo para prosseguir viagem. O motorista nos advertiu que de São Paulo ao Paraná teria mais vinte horas de viagem ou mais. O destino era Mairinque. Saímos da cidade de São Paulo, mas tudo que aconteceu ali não saía da minha cabeça. Saímos de São Paulo e fomos para Mairinque. Ali não tinha plantação de café, mas tinha muitas terras para serem preparadas para o plantio de várias coisas. Então meu pai e outros senhores desceram do caminhão e entraram na fazenda para falar com o patrão, ou melhor, o dono da fazenda. E na mesma hora foram contratados. Tinha casa apenas para cinco famílias, então três ficaram sem acomodação e seguiram para outras fazendas. As casas não eram lá grande coisa, eram de barro, mas benfeitas. A cobertura era de sapê, era grande, quatro cômodos, tinha um poço e uma sombra muito boa e um riacho com água muito limpa. Havia também dois pés de poncã, mais seis pés de mexerica, três de manga, muito caqui, maxixe, chuchu, abóbora e moranga, e o capim gordura imperava. Meu pai acertou com o patrão para carpir e roçar o mato para o plantio de milho e algodão. Nessa ocasião, minha mãe ficou grávida pela terceira vez.

    Mas mesmo grávida, enfrentava a enxada e a foice, às vezes o machado, pois tinha algumas árvores que precisavam de machado para derrubar. Nesse lugar, ficamos por um ano. Depois do plantio do milho, meus pais foram para outra fazenda, que era do mesmo dono, para cortar cana. Iam de caminhão, com saída às quatro horas da manhã. Minha mãe grávida, levava eu e minha irmã juntas para o canavial. Ali ficávamos embaixo de uma árvore até às 17h. Quando chegava o caminhão, era uma alegria para mim, pois estava cansada, fatigada com o ardente sol de 40 graus, tomando água quente, dormindo no chão – apenas forrado com folhas de bananeira –, engolindo aquela poeira vermelha o dia todo, sendo picada por formigas e outros bichos. Minha irmã chorava o tempo todo e minha mãe gritava lá do meio do canavial para que eu a fizesse parar de chorar. Ela queria água. Então minha mãe me mandava buscar água.

    Eu, com um medo danado, pegava a moringa e saía olhando para todos os lados, mas ia, pois ai de mim se dissesse que não ia... Descia o barranco, e lá embaixo eu olhava para cima e já não avistava mais o canavial, só o barranco. Pegava a água e subia às pressas, pegava a caneca empoeirada e colocava a água para minha irmã; logo ela parava de chorar. Passava alguns minutos, começava o chororô novamente, e eu ficava sem saber o que fazer. Afinal eu também era uma criança, tinha apenas 6 anos, não sabia cuidar de criança. Minha irmã tinha 4 anos.

    Faltavam poucos meses para nascer a terceira filha, minha mãe já se sentia cansada, o trabalho no canavial era duro. Quando chegava em casa, já não tinha coragem para nada, tinha que descansar, pois logo às 3h teria que estar de pé para preparar as marmitas, pois o caminhão passava às 4h para levar os trabalhadores para o canavial. Minha mãe e outra senhora de muita idade ia na cabine do caminhão, os demais trabalhadores iam na carroceria. Às 5 h, chegávamos, e as mulheres que levavam seus filhos os arrumavam embaixo das árvores, e penduravam suas marmitas nos galhos para que as crianças não mexessem em nada. Vestiam as camisas de saco, colocavam os lenços amarrados embaixo do queixo, pegavam os facões e entravam nos canaviais. Enquanto isso, as crianças brincavam catando bolinhas de plantas, flores dos campos para brincar, etc.; e assim passávamos o dia.

    Quando chegava à tarde, todas as crianças estavam marrons de tanta terra. Enquanto minha mãe fazia a janta, ela esquentava um caldeirão de água e em uma gamela de pau, misturava a água quente com a fria e pedia para eu dar banho em minha irmã, e depois eu tomava. Depois era meu pai e, por último, minha mãe. Jantávamos, eu recolhia a lenha para dentro do galpão e íamos dormir. Na roça, todos dormiam cedo, pois não tinha televisão e nem rádio. Meu pai, depois de ganhar algum dinheiro, comprou um rádio, mas à noite, quando começava a hora do Brasil, desligava e ia dormir – isto às 19h. A barriga da minha mãe já estava enorme e eu a ouvi dizer para uma senhora que precisava procurar uma parteira, pois estava chegando o dia do parto. A senhora perguntou a ela para quando seria, e ela disse que, pelas contas dela, talvez fosse na próxima semana.

    – Essa semana eu já não vou para o canavial, preciso arrumar as roupinhas da criança.

    Então a senhora disse a minha mãe que conhecia uma parteira muito boa e que ia falar com ela. Minha mãe perguntou o nome dela.

    – É Da. Chica –respondeu.

    – Eu já ouvi falar dela. Ela cobra muito caro? – perguntou minha mãe.

    – Não, ela não cobra. As pessoas dão o que podem, mas ela não faz questão. Às vezes as pessoas dão galinha, alimento, cabrito e até cavalo ela já ganhou.

    Então minha mãe disse:

    – Pode falar com ela, depois o meu marido vai falar também.

    Naqueles dias, minha mãe arrumava as roupinhas do bebê. As roupas eram usadas, havia ganhado de algumas mulheres, e até da minha irmã, que ela havia guardado. Lavou, passou, arrumou tudo dentro de uma caixa. Nós não perguntávamos nada, isto era assunto de adultos. Meu pai dizia que logo, logo a cegonha traria um bebê no bico, e eu muito curiosa perguntei:

    – A que horas essa cegonha chegaria, pois eu queria ver.

    – Às vezes ela chega num horário que ninguém vê, coloca a criança na cama e saí voando pela janela.

    Eu não tirava os olhos da janela durante o dia e a noite. A janela era fechada e eu ficava incomodada e perguntava:

    – Pai, a janela está fechada, como a cegonha vai entrar?

    – Ela bate na janela e eu abro.

    – Mas o senhor disse que ela chega sem ninguém ver, como ela vai bater?

    Meu pai olhou para mim e disse:

    – Eu acho bom você dormir, já falou demais. Vamos pra cama, já, as duas!

    Eu e minha irmã pulamos na cama de tarimba e colchão de palha de milho, sem lençol, apenas um cobertor, muito ruim. Travesseiro não existia, mas dormíamos muito bem naquela tarimba de solteiro. Dormia eu e minha irmã, mas só eu pensava na outra criança que iria chegar, onde ela ir dormir, etc. Nessa cama não dá, será que vão comprar outra cama? Virava de um lado para o outro preocupada com a tal cegonha.

    Amanhece o dia e nada, tudo normal. Meu pai vai para o trabalho, eu vou escolher o feijão e colocá-lo no fogo para o almoço. Meu pai levou sua marmita, mas precisava fazer o almoço para nós que não íamos para a roça. Minha mãe já era estressada por natureza, com a gravidez ficou pior. Acordava estressada, gritando, batendo nos filhos, xingando nomes horríveis por nada; e se eu que era a mais velha perguntasse qualquer coisa, ela respondia com um tapa na cara e já mandava eu ir para o inferno, e me forçava a fazer trabalhos como carregar água do riacho que ficava longe da casa, com uma lata de 18 litros cheia. Naturalmente eu não aguentava, tinha apenas 6 anos, então ela fazia um suporte de pano, colocava na minha cabeça e colocava a lata d'água, que caia na mesma hora e eu ia junto para o chão aos gritos. E isso se repetia várias vezes na mesma hora. Eu não conseguia, doía o pescoço. Até que resolveu deixar a lata pela metade, mas mesmo assim era difícil, andava cambaleando pelos caminhos cheios de obstáculos, no meio do pasto. Saía do riacho chorando até a casa e ela ficava lá no rio lavando as roupas.

    Quando eu entrava em casa, um pote de barro grande me esperava, e eu chegava perto dele para despejar a água, nem tirava a lata da cabeça, inclinava em direção do pote e despejava a água, sendo que metade ia pro chão. Voltava em cima do rastro para buscar mais, precisava encher esse pote, e para isso precisava de muitas viagens. Carreguei a primeira, segunda e terceira, já não aguentava mais, sentei em uma pedra ali perto de minha mãe, e ela falou:

    – O que foi? Não vai me dizer que já cansou?

    Eu nada respondi. Então ela disse:

    – Vamos, pegue a água e leve-a.

    Eu fui pegar e não aguentei, caí. As pernas tremiam e minha mãe disse:

    – Anda, sua molenga! Já está morrendo? Com duas viagens de água, com dois dedos de água dentro?

    Uma senhora, indignada, disse:

    – Da. Nelita, ela está cansada. Ela é muito nova para fazer esse tipo de serviço. Essa menina mais tarde vai sofrer com problema de espinhela caída (problema de coluna).

    Minha mãe, imediatamente, respondeu:

    – A senhora cuida de sua vida e de seus filhos! Eu não pedi sua opinião, eu sei como cuidar dos meus filhos.

    A senhora se afastou sem dizer nada e minha mãe continuava tentando fazer eu carregar aquela lata. Mas eu já não tinha mais forças e não adiantava falar, só ela era quem sabia de tudo. Depois de muitas tentativas, ela desistiu, me dando alguns tapas e me empurrou de costa sobre a pedra. Ali caí e fiquei aos prantos. Ela juntou algumas roupas já lavadas e me deu para levar para casa, e disse:

    – Você não vai levar a água, mas isso não vai ficar assim, não! Hoje você não janta, sua ordinária, vagabunda! Levanta daí, sua maldita, e pegue essa roupa e leve-a para casa. E cuidado para não sujar, senão eu faço você lavar embaixo de pancada.

    Peguei as roupas e saí. Ela veio atrás com a lata d'água na cabeça e segurando a mão de minha irmã. Depois de cinco minutos, mais ou menos pelo meio do pasto, chegamos em casa.

    Entrei, coloquei as roupas na cama e algumas caíram no chão, eu assustada peguei rapidamente e, quando levantei com as roupas, senti uma dor enorme na coluna que me faltou o ar. Comecei a chorar, mas até para chorar era difícil, tinha dificuldade para respirar, falar, andar e até chorar. Saí do quarto com muita dificuldade e fui para o quintal onde minha mãe estava colocando as roupas no varal e falando com a vizinha ao lado. Eu mal podia dizer de tanta dor, ali no batente da porta, parei e a vizinha me olhou e disse:

    – Olha, Da. Nelita, a sua menina parece passar mal.

    Minha mãe olhou de disse:

    – Sabe o que é isso, preguiça! Essa aí é muito preguiçosa.

    A vizinha que estava socando o arroz no pilão, diante da indiferença de minha mãe, deixou o pilão e veio em minha direção, segurou minha mão e disse:

    – O que foi, filha? Está sentindo dor?

    Eu disse que sim, e ela perguntou onde. Respondi que era nas costas. Minha mãe veio em minha direção e viu que o assunto era sério. Aí a vizinha disse:

    – Ela está com a espinhela caída. Chame a Da. Rosa, ela é boa nisso. Outro dia eu estava assim, por conta de um feixe de lenha que carreguei da roça até aqui, e ela colocou a minha espinhela no lugar.

    – Ó Da. Ana, essa menina e muito nova para ter esse tipo de problema, nós sim podemos sofrer desse mal, mas essa criatura, que não faz nada? – Disse minha mãe.

    A vizinha insistiu que era preciso pedir ajuda, pois eu não me aguentava de pé. Ela sabia que eu havia carregado muito peso naquele dia, ela me viu chorando enquanto carregava a água. Então a vizinha decidiu chamar seu filho Serginho e pediu que ele fosse correndo buscar a Da. Rosa. O Serginho correu, e em cinco minutos chegaram. E eu continuava ali, imóvel. Qualquer movimento era uma dor terrível. A Da. Rosa segurou minhas mãos, juntou as duas, e começou a puxar, depois levantou os dois braços, massageou o pescoço... Eu só sei que em poucos minutos eu já estava melhor. A vizinha então perguntou se eu estava sentindo ainda alguma dor. Eu respondi que sim, nas costas. Então ela levantou a minha blusa e lá estava a prova do crime. A dor era por conta do empurrão que minha mãe me deu sobre a pedra lá no riacho. Da. Rosa exclamou:

    – Nossa! O que foi isso?

    Eu calei e minha mãe disse:

    – Eu empurrei ela lá na pedra porque ela estava com preguiça de carregar a água, mas é bom pra ela aprender que comigo não se brinca.

    Da. Rosa olhou para Da. Ana e não disse nada. Da. Ana agradeceu a Da. Rosa e as duas saíram. Eu entrei e fui em direção do quarto, quando minha mãe me chamou para eu lavar as louças. Voltei, peguei a bacia, coloquei em uma mesinha que ficava lá fora. Ela colocou a água e eu subi no banquinho e comecei a lavar as louças, ainda sentindo dor, mas devagar até que dava para fazer algumas coisas. Foi a partir desse dia que eu comecei a sofrer descaso, humilhação e preconceito da minha própria mãe. Eu me sentia sem importância para minha mãe. O que eu sentia ou deixava de sentir não lhe dizia respeito. Era como um traste que não valia nada. Ela não queria perder tempo com os meus sofrimentos ou sentimentos. Se eu tinha fome, sede, sono... Se estava cansada, triste, ela não tomava conhecimento, vivia totalmente desinteressada.

    Humilhação, porque me batia na cara, puxava meus cabelos, me chutava perto dos meus amigos. Eu fazia xixi na cama, ela contava para todo mundo, me chamava de porca fedida.

    Preconceito, porque me punha defeito, dizia que eu nunca iria ser alguém na vida, que ninguém ia gostar de mim porque era feia, seca demais, tinha o cabelo horroroso, cabelo de vassoura e, além de tudo, era negra e preguiçosa. Tudo isso me doía profundamente. As pessoas que ouviam isso me consolavam, dizendo totalmente o contrário:

    – Sua mãe é muito nervosa. Seu pai não toma nem uma atitude, talvez, para não complicar as coisas.

    Eu era criança, não entendia bem dessas coisas. Passaram-se três dias, e as três da manhã eu acordei com pessoas andando pela casa. Uma senhora passou na porta do meu quarto em direção ao quarto de minha mãe. Eu levantei e fui ver o que acontecia, minha irmã também acordou, meu pai entrou naquele instante junto com aquela mulher estranha com uma pequena bolsa na mão e me disse:

    – Vai deitar, filha! Sua irmã está chorando, ponha-a para dormir e não saía do quarto.

    Mas eu escutava gemidos de minha mãe, ouvia vozes no quarto e meu pai passava toda hora do quarto para a cozinha. Depois uma senhora foi para a cozinha e voltou com uma bacia. Logo em seguida, ela pede toalhas para meu pai e, depois, a outra mulher passa com água quente em uma chaleira. Eu ali deitada, fingindo que dormia, prestava atenção em todo o movimento, mas nem passava pela minha cabeça que era a parteira que estava ali para trazer minha irmã ao mundo.

    De repente dormi, e, quando acordei, só tinha uma mulher ali, a outra já tinha ido embora. A que ficou estava juntando umas roupas para lavar. Eu olhei e segui para cozinha e vi meu pai colocando café em uma caneca e dois pedaços de mandioca. Meu pai olhou para mim e disse:

    – Está cedo, filha, vai deitar.

    Achei estranho meu pai em casa àquela hora, mas me calei por alguns instantes e resolvi perguntar sobre a movimentação toda à noite e quem eram aquelas mulheres.

    – Elas vieram ver sua mãe e sua irmãzinha que a cegonha trouxe.

    – Trouxe? – perguntei eu!

    Sim, trouxe. Eu não lhe falei que a cegonha trazia um bebê? Pois está lá no quarto, é uma menina!

    – Eu posso vê-la?

    – Sim, vamos lá, mas sem barulho, pois sua mãe está descansando. Ele pegou o prato de mandioca e a caneca de café, saiu na frente e eu atrás. Atravessamos a sala, passei pelo meu quarto e depois chegamos no quarto de meus pais, que se encontrava com a porta fechada, com um velho cobertor que servia de porta. Meu pai disse para levantar o cobertor para eu entrar. Eu obedeci, então ele entrou com o café e o prato de mandioca e eu atrás. Ele deu a volta na cama e colocou o café e a mandioca em uma mesinha, e eu fiquei ali parada, aos pés da cama. Foi quando ele me mostrou minha irmãzinha. Mas como eu olhava a toda hora para a tal janela, perguntei a meu pai:

    – Pai, a cegonha entrou pela janela?

    – Sim!

    – Mas a janela está fechada!

    – Ah, sim, é que eu fechei depois que ela foi embora.

    – E aquelas mulheres que estavam aqui, como elas ficaram sabendo que a cegonha chegaria esta madrugada?

    – Ah! É que elas estavam acordadas no quintal e viram quando ela entrou. Vai tomar seu café, eu fiz chá de hortelã pra você. Eu saí para tomar o café.

    Quando estava já na cozinha, escutei meu pai falando com minha mãe e eu tomei o café e pensei: será que eu devo falar com ela? E se eu for e ela me xingar? E se ela me bater? Ou me chamar de fedida? É melhor não ir lá. Mas tudo aquilo me doía profundamente. Graças a isso tudo, tornei-me uma menina assustada, magoada, ferida, não só no corpo, mas na alma. Vivia pelos cantos desconfiada, sem ânimo para viver. Cada vez que ela me chamava, eu tremia. Às vezes já ia chorando... Enfim, eu vivia com os nervos abalados, então achei melhor ficar no meu canto. Talvez meu pai houvesse me chamado para ver o bebê quando ela estava dormindo para evitar que ela falasse algo que me machucasse, por isso a acordou depois que eu saí do quarto.

    Naquele dia, eu lavei a louça, arrumei a cama, fui buscar gravetos para acender o fogo para o almoço. A vizinha veio ver se precisava alguma coisa e acabou fazendo o almoço e lavando a louça. Meu pai havia comprado uma galinha gorda para o pirão que foi feito pela vizinha. Esse pirão todos nós comemos. A galinha foi separada, os pedaços melhores para minha mãe, os pés, pescoço, fígado, moela e as costelas eram para nós. Meu pai mesmo fez essa separação, e a vizinha indagou o porquê da divisão. Meu pai falou que era porque minha mãe só gostava dos bons pedaços do frango.

    Ela não questionou, colocou a comida nos pratos e nos deu. Varreu a cozinha, limpou o quintal e lavou o restante da louça; depois deu banho no nenê, levou as roupas para lavar. Eu me lembro que já estava quase na hora do jantar e eu ainda não tinha entrado no quarto para falar com minha mãe. Até tinha vontade, mas tinha medo dela. A vizinha chegou à tardinha com as roupinhas do bebê lavadas e passadas, disse para eu levar no quarto e pôr na mesinha que ficava no canto, ela iria pegar a bacia e o balde que haviam ficado na casa dela.

    Eu fiquei ali na sala com as roupas nas mãos procurando coragem para entrar. Ela chegou com a bacia e o balde e me viu ali com as roupas em cima da cadeira, olhou para mim e disse:

    – Você já viu sua irmãzinha?

    – Sim!

    Ela fez silêncio e passou a mão em meus cabelos, se abaixou à minha frente, pegou no meu queixo e levantou para que eu olhasse para ela, e me perguntou se eu já havia falado com minha mãe. Eu calei por um instante e disse que não. Ela levantou-se, pegou as roupas que estavam em cima da cadeira, pegou a minha mão e me levou até o quarto. Eu levantei o cobertor que fechava a porta para a vizinha entrar e ela entrou, mas eu fiquei. Ela percebendo que não entrei, voltou e pegou em minha mão e levou para junto de minha mãe. Eu cheguei e olhei a neném e minha mãe agradeceu à vizinha pelas roupas lavadas, o almoço, enfim, pelo apoio que ela deu durante o dia. Eu continuei calada. Então a vizinha, vendo que ela não me deu atenção, disse:

    – É, mas essa moça aqui também ajudou. Não é querida?

    Eu estava calada, mais calada fiquei. Minha mãe, então, disse:

    – E isso faz alguma coisa que preste? Isso só me dá desgosto! Olha o cabelo dessa nega, parece uma bucha. Será que ela penteou esse Bombril hoje? A vizinha, inconformada, retrucou:

    – Não fale assim, ela é uma criança. Até que faz muito para a idade dela.

    – Que nada! Isso não vale nada!

    Eu abaixei a cabeça, não sabia se chorava ou se corria – responder, nem pensar. A vizinha me abraçou e disse a minha mãe:

    – A senhora quer jantar agora? Eu ponho!

    – Não, o Santo chega logo. Ele foi à venda pegar umas coisas e ia passar na fazenda para pegar um frango para amanhã. Logo ele estará aí. Muito obrigado!

    – Amanhã eu volto para dar uma ajuda. Até lá!

    Tirou-me do quarto e lá fora disse:

    – Se comporta para sua mãe não brigar com você. Olha! Você é muito bonita e inteligente também. Sua mãe a chama de preguiçosa porque ela não entende que você é uma criança. E criança precisa brincar. Você será uma mulher de coragem e muito trabalhadora.

    Passou a mão no meu rosto e disse:

    – Sua mãe briga com você, mas ela te ama viu? Vai tomar banho e dê banho em sua irmã. E janta, tchau!

    Eu, quieta, escutava tudo sem dizer uma palavra. Fiz o que ela mandou e meu pai chegou com algumas compras e dois frangos. Trouxe também canjica, pois eles diziam que a mulher que amamenta precisava comer muita canjica para não faltar leite. Meu pai foi direto para o quarto, falou com minha mãe e, não sei por que, ela discutiu com ele. Meu pai voltou para a cozinha e perguntou se já tínhamos jantado. Eu disse que não, então ele disse para pegar dois pratos. Eu peguei dois pratos esmaltados e as colheres. Ele colocou a comida e entregou para nós, depois em uma tigela colocou a comida e levou para minha mãe. Depois tomou banho e jantou. Esse lugar em que morávamos era um lugarejo, quando dava 18h, muita gente ia dormir, porque não tinha nenhum divertimento, não existia TV e nem rádio. Sem contar que o povo acordava 3h da madrugada para pegar às 4h o caminhão boia-fria para as lavouras. Às vezes levava mais de 1 hora de viagem, e trabalhavam até às 17h debaixo de um sol de 40 graus. Então tinham que realmente chegar e ir logo para a cama.

    Meu pai ficou três dias em casa para ajudar minha mãe. Depois de dois dias, já estava em pé. Ela começou a me ensina a lavar roupa e as fraldas do bebê sujas de cocô. Pedia para eu tirar a sujeira para ela lavar. Eu tinha um nojo tão grande, que no dia em que fazia isso não conseguia comer. Com 20 dias de dieta, minha mãe já foi para a roça e o bebê ia junto. Eu era quem cuidava das crianças o dia todo debaixo das árvores. Antes cuidava da Edna, agora era o bebê que ainda não tinha nome. Muitos perguntavam qual era o nome, e eu dizia que ela não tinha nome. Até que em um dia, sábado à tarde, eu escuto minha mãe dizer que já tinha arrumado um nome, disse a meu pai que a criança chamaria Noélia, e meu pai não se opôs. Disse que poderia chamá-la de Néi, e assim ficou Néi.

    A vida corria e todos trabalhavam com afinco a fim de ganhar o pão de cada dia. A vida era muito difícil: trabalhava-se muito e se ganhava-se pouco. Às vezes, chegava o dia do pagamento e não aparecia o dinheiro e muito menos o patrão. Às vezes era preciso que os trabalhadores se juntassem e ir até a fazenda cobrar pessoalmente. Ao chegar, o capataz dizia que o patrão havia viajado e não sabia quando voltaria.

    Os trabalhadores entravam em desespero. Os alimentos acabavam, nem café da manhã se tinha; faltava açúcar para o chá das crianças... Sim! Chá, porque leite era coisa de luxo.

    Todos os dias havia briga lá em casa. Minha mãe com um gênio muito difícil, reclamava de tudo e começou pôr na cabeça do meu pai sair daquele lugar. Depois de 6 meses, mudamos para outra fazenda, outro rancho de sapê. Tínhamos três vizinhos, e a casa de uma das vizinhas era de madeira. Uma casa boa, tinha duas crianças que tinha uma porção de bonecas de vários tamanhos, e no dia em que chegamos, eu já fiquei de olho com vontade de brincar. Mas, com a mãe que tinha, podia esquecer. Nessa fazenda a colheita era de batatinha e mandioquinha.

    Nesse lugar, os trabalhadores não precisavam levar marmita. O dono da fazenda fornecia o alimento às 10h. Chegava a dona da fazenda, uma moça muito simples e muito alegre. Chegava em uma charrete trazendo três caldeirões: um de feijão, um de carne frita e o outro de arroz cozido, com batata ou mandioquinha. Às vezes a carne era cozida com o feijão, outras vezes algumas verduras cozidas. Nessa época eu já tinha 7 anos e ia trabalhar na parte da manhã. Ela ia sempre até o trevo que ficava perto da minha casa e eu saía correndo. Ela ficava lá parada me olhando até eu sumir na curva das paineiras. Se chamava assim porque nessa curva tinha quatro paineiras, duas de cada lado. Bem na curva, cinquenta metros era a porteira da fazenda em que eu morava.

    Antes de chegar em casa, passava por uma casa que guardava todas as tralhas de animais, ferramentas e tantos outros, depois era a minha casa, que ficava ao lado da casa bonita de madeira. Quando chegava em casa, falava com alegria da comida que almocei. Minha mãe, como sempre, não dava ouvidos, já dizia para lavar as vasilhas sujas e arrumar a casa, recolher a roupa do varal, etc. Pegava o chapéu de aba larga, vestia as mangas de sacos nos braços, calça também de sacos por baixo da saia e saía. Eu ficava para cuidar das crianças e fazer o serviço doméstico, recomendado por ela. Mas como já disse, ao lado da minha casa, tinha as meninas com as bonecas que me encantavam. Eu queria brincar com elas, às vezes elas me chamavam para brincar, mas minha mãe não deixava e, se desobedecesse, apanhava para valer. Mas eu tinha um desejo incontrolável de pegar no colo uma boneca. Às vezes eu ficava ali na cerca de madeira olhando e esquecia dos afazeres de casa. Quando minha mãe chegava e me via sem fazer alguma coisa, era um prato cheio para me espancar. E dizia:

    – Tira os olhos dessas bonecas, porque você nunca vai ter uma. Eu nunca brinquei de boneca e estou viva até hoje, dizia ela.

    Um dia estava chovendo e ela começou a brigar com meu pai. Eu não entendi bem, mas falavam de mais filhos. Alguns meses depois fiquei sabendo que ela esperava mais um filho. A situação estava muito boa, já comíamos bem, tínhamos leite todos os dias. Minha mãe já comprava roupas para nós. Eu me lembro que minha mãe comprou um vestido godê cor de abóbora ou cenoura, não sei bem, e um casaco todo de pelo azul-turquesa, muito bonito, e guardou para quando minha quarta irmã nascesse, pois ela ia usar para ir ao baile. Já tínhamos chinelos! Foi nesse lugar que eu, com 7 anos, pus um chinelo no pé. Era sandálias havaianas de correias azuis, lindo. Eu me lembro que quando saía para algum lugar, carregava o chinelo nas mãos para não sujar. Eu calçava 34, minha mãe comprou 36 para durar bastante. Então eu achava estranho andar com aquilo no pé, porque além de não estar acostumada, era grande demais. Mesmo assim eu gostava, estava feliz.

    Minha mãe, mesmo grávida, trabalhava na colheita da batatinha. O nervoso e o estresse era a mesma coisa. Com o tempo, só piorava, brigava por tudo e por nada. Eu continuava sendo saco de pancadas. Com 7 anos de idade, já era responsável pela casa, lavava as louças, pegava água na mina, dava banho nas minhas irmãs, colocava comida para elas e ainda trabalhava no período da manhã na lavoura de batatas. Mas tinha um sonho, ter uma boneca. Quando via uma criança com uma, ficava parada, olhando... Quem me via, achava que eu estava hipnotizada.

    Um dia me atrevi a perguntar para minha mãe porque eu não tinha uma boneca. Ela me respondeu que a minha boneca era o serviço da casa e as irmãs para cuidar.

    – Pode tirar isso da sua cabeça, se não quiser apanhar! – Ralhou!

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1