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Meu Divã Interior
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Ebook133 pages1 hour

Meu Divã Interior

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Fabiano tenta lidar com dois problemas: suas constantes noites de sono interrompido e sua incapacidade de se relacionar de novo com alguém. O relato de suas tentativas para resolver ambos oscila entre os diálogos de suas sessões de terapia com Alice, suas divagações entre as falas e lembranças intercaladas com reflexões.
LanguagePortuguês
Release dateAug 14, 2020
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    Meu Divã Interior - Rodrigo Bastos

    Meu divã

    interior

    Rodrigo Bastos

    Agradecimento

    Meu muitíssimo obrigado ao filósofo e psicanalista Fabiano Conte pela leitura cuidadosa e pelos preciosos comentários!

    PRÓLOGO

    Fabiano é uma pessoa comum, assim como eu e você. A exemplo de Alieksiéi Karamázovi, não tem nada de extraordinário. A não ser o fato de, tal como Alieksiéi, ser notável, de certo ponto de vista. Todos podemos ser. E se o chamo de Fabiano é porque assim ele se autodenomina. Deixemos a alcunha, do modo como ele escolheu.

    Da mesma forma que o poeta fingidor de Pessoa, Fabiano finge suas dores, que podemos supor de fato sentidas, e as apresenta em um relato sem dúvida falseado aqui e acolá e ao mesmo tempo repleto de verdades desnudas, com pinceladas que não seriam nem impressionistas, muito menos expressionistas. Românticas, talvez, com um toque de classicismo. Claro, escuro, Apolo, Dionísio, real, falso. A falsidade é inerente à narrativa, ainda que ela verse sobre a realidade.

    Ou alguém acredita que caiu nas mãos de Umberto Eco um livro que seria reprodução de um manuscrito do século XIV, o qual atiçou sua 5

    curiosidade de pesquisador e culminou em sua narrativa que mescla Holmes e Watson com Dom Quixote e Sancho Pança?

    Que Brás Cubas não escreveu do além túmulo é óbvio demais para ser mencionado aqui.

    Mas fica a menção. Por falar em autor defunto, a leitura

    do

    relato

    de

    Fabiano,

    em

    que,

    paradoxalmente, nos revela pensamentos que ele próprio confessa ter ocultado nas situações relatadas, pode levar à interpretação de que ele já estava mais para lá do que para cá e resolveu abrir sua caixa de Pandora. Ou não. Em literatura, tudo (ou quase tudo) é fingimento sincero e verdade floreada.

    Esse relato que nos lega Fabiano oscila entre a espontaneidade de uma conversa de botequim e os adornos de uma pretensa reflexão que ele supõe ir além de suas próprias dores. Se é bem sucedido nisso, deixo para que o digam os cinco ou dez leitores que podemos estimar para sua obra, assim como o fez o autor defunto sobre seu relato de além túmulo.

    6

    I

    – Você acha que pode me ajudar, depois de tudo que eu já tentei? – arrisquei, receoso.

    – O que você acha, Fabiano? – retrucou Alice, sem hesitação.

    Imagino que ela queira saber se eu realmente quero ser ajudado. Mas não vou tentar decifrar isso em seu olhar firme e sereno. Lembro do dia em que Alice fez como a Sharon Stone naquela cena de Instinto Selvagem em que a personagem dela está sendo interrogada como suspeita do assassinato de um amante: a cruzada de pernas mais famosa da história do cinema. A diferença é que essa personagem estava sem calcinha e Alice estava usando uma branca com bolinhas pretas. Será que, por ser junguiana, estaria sendo displicente em relação à possibilidade de envolvimento entre analisando e analista, assim como Jung se deixou envolver com Sabina? Pode ser que tenha sido um ato involuntário. Pode ser que tenha sido premeditado. Um pouco antes, Alice 7

    tinha perguntado se eu presto atenção às coisas à minha volta. Sim, até demais, foi o que respondi.

    Não sei se ela tinha a intenção de confirmar se a minha resposta era apenas uma crença minha ou se era realmente verdadeira. Mas eu não vou dizer nada disso a ela. Não tenho coragem. São apenas pensamentos que passam como relâmpago por minha cabeça.

    – Não sei. Não sei nem mesmo se o meu problema é psicológico. Se fosse, talvez ter feito yoga e meditação pudesse ter ajudado. Nem mesmo a acupuntura ajudou.

    – Você parece estar mais preocupado agora com o problema do sono do que com o fato de não querer ficar sozinho.

    – É. Não é que eu tenha desistido ou me conformado. Mas acho que preciso resolver primeiro uma coisa pra depois tentar resolver a outra. Preciso ficar bem primeiro. E pra ficar bem, tenho que dormir bem. É básico. Eu nem tenho mais vida noturna. Saí da banda porque tanto os ensaios quanto as apresentações eram à noite.

    8

    Recuso convites pra ir a shows ou qualquer outro programa que seja à noite. Vou pra cama super cedo, porque sei que vou acordar várias vezes durante a noite. Aumento o número de horas na cama pra tentar garantir um mínimo de sono reparador, pra não ficar tão cansado.

    Ao colocar os dois problemas lado a lado, é inevitável lembrar de quando eu disse a Alice que sabia que não podia fazer isso, mas se pudesse, queria pedir a ela para me deitar em seu colo e para ela fazer cafuné em mim. A nossa relação aqui não é essa, foi o que me respondeu. Eu sabia que não. E falei que não sabia se uma coisa estava relacionada com a outra, mas achava que o meu problema do sono ia se resolver quando eu encontrasse novamente alguém que quisesse ficar comigo, que me oferecesse o colo e me fizesse cafuné. Eu também acho, ela comentou.

    – É só isso mesmo? Não tem mais nada? –

    indagou, segura em sua astúcia de analista.

    – Eu tenho me lembrado de algumas coisas da minha infância e da minha adolescência que têm 9

    a ver com a minha solidão. Quando eu era criança, a minha família frequentava um clube. Eu pegava uma bola de basquete emprestada e ia pra quadra jogar sozinho.

    – Você nunca jogou com outras pessoas?

    Pergunta esperta. Se ela tivesse questionado se eu nunca jogava com outras pessoas, estaria se referindo a esse período específico que eu mencionei. E a resposta seria não. O tempo verbal

    que

    usou

    expandiu

    o

    escopo

    do

    questionamento.

    – Sim, joguei. Quando minha família se mudou de cidade, eu entrei numa escolinha de basquete. Dois caras que tinham acabado de ser campeões brasileiros criaram essa escolinha. O

    Jean e o Amaro. Um ônibus velho, de um verde escuro como os veículos do exército, que a gente chamava de Abacatão, levava a gente pros treinos e também quando a gente ia jogar em outros clubes como visitantes. A molecada chacoalhava o ônibus cantando uma paródia de uma marchinha de 10

    carnaval que me assustava, eu não conseguia achar aquilo divertido.

    – Por quê? O que te incomodava?

    Não sei por que tenho tanto pudor, mas não vou contar a ela a letra da paródia: Se essa porra não virar, olé, olê, olá, eu chego lá. Rema, rema, rema remador. Vou botar no cu do trocador. Se o trocador for vigarista, vou botar no cu do motorista. Pobre coitado do motorista que tinha que conduzir aquele bando de delinquentes ouvindo isso! Eu entendo o uso de temos chulos e vulgares quando as pessoas expressam fúria, raiva. Mas como diversão, não consigo entender. Já vi uma pessoa culta, ligada à ciência e à arte, postar em rede social o termo cu de uma maneira totalmente descontextualizada, ela não estava se referindo a ninguém especificamente, não estava manifestando sua raiva em relação a nenhum fato, pelo menos não de maneira explícita. Um uso totalmente gratuito de uma expressão chula.

    11

    – Eu achava agressivo. Não entendia como eles podiam achar graça cantando uma coisa tão agressiva – foi só o que consegui dizer.

    – E aí você acabava se sentindo isolado no meio do grupo?

    – Nessas brincadeiras bobas, sim.

    Novos relâmpagos de pensamento passam por minha cabeça. A minha participação em algumas brincadeiras bobas mais sérias do que essa foram traumatizantes para mim e jamais vou me esquecer da barbárie. Em uma delas, eu estava em um grupo de amigos e começamos a atirar pedras uns nos outros. Uma coisa totalmente estúpida!

    Não era uma briga. Era só uma brincadeira idiota de um bando de inconsequentes. Sem perceber, fiz uma péssima escolha de pedra com extremidades pontudas e cortantes e lancei, descuidadamente, em uma direção arriscada demais para aquele tipo de brincadeira. Quase ceguei um amigo. Ele faltou alguns dias à aula, mas felizmente ficou bem.

    A outra experiência terrível foi em um ônibus. Eu e alguns amigos estávamos na parte de 12

    trás esperando a nossa parada e uns começaram a empurrar os outros só por diversão. O motorista, querendo acabar com aquela brincadeira, cometeu a imprudência de abrir a porta antes de parar o ônibus. Justo no momento em que eu empurrava um amigo. Eu podia

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