Pedro, O Seminarista
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Pedro, O Seminarista - Renato Mendonça
PRÓLOGO
Uma grande compreensão só se realiza pela metade, no círculo de luz de nossa mente; a outra metade se realiza no solo escuro do mais íntimo de nós e é, antes de tudo, um estado da alma em cuja ponta extrema, como uma flor, pousa o pensamento.
Robert Musil (1880-1942), escritor e romancista austríaco.
Quando me dispus a escrever esse livro, esbarrei num questionamento óbvio para os escritores amadores. Como retratar um capítulo da sua biografia, assim como quem quer revelar os negativos de fotografias antigas, guardados sem os devidos cuidados no porão úmido de sua casa? Como, se a memória muitas vezes não é fiel à exatidão dos acontecimentos e fatos, dos episódios marcantes nem usa o arquivo fotográfico da mente de maneira lúcida.
Socorri-me num texto do pesquisador da Psicologia e professor Augusto Cury, no seu excelente livro intitulado O Mestre dos Mestres
. Nele, o autor elucida a maneira sagrada como Jesus Cristo explorava a sublime capacidade de educar as mentes dos seus discípulos e, ao mesmo tempo, usava as parábolas para ensinar ao povo sofrido e iletrado, adotando uma forma pragmática. Uma bela e bíblica pedagogia de difusão de ensinamentos.
Cury, também um renomado psicólogo, nos oferece seu ensino: Não recordamos o passado com exatidão não apenas pelas dificuldades de registro cerebral, mas também porque um dos mais importantes papeis da memória não é transformar o ser humano num repetidor de informações do passado, mas um engenheiro de ideias, um construtor de novos pensamentos.
Assim, consegui sossegar minha alma e, por um sopro divino, consegui resgatar quase integralmente os fatos, ficando de fora apenas as emoções do passado. Mas, estas podem — e devem — ser relatadas na sua plenitude, para que os leitores possam intuir — e às vezes, vivenciar — os sentimentos de um garoto pré-adolescente dos anos 60, vivendo numa cidade provinciana, longe das grandes metrópoles.
Pedro, com apenas doze anos, é levado ao colégio interno por seu pai. Era um rito adotado para tender à proposta do pároco do seu bairro. Embora o menino não estivesse apto a decidir por sua vocação, aceita submisso a decisão paterna; aceita a própria vida, e tenta se adequar à disciplina eclesiástica. Porém, ao final de dois anos, um incidente rui o castelo de cartas do seu espírito ortodoxo.
No ambiente interno, ele coexiste com dificuldades de ambientação num grupo de seminaristas heterogêneos. Contudo, encontra amizade, zelo e a solidariedade de um veterano, que procura lhe ensinar os meandros de uma vida em clausura, a arte da convivência em comunidade e o acatamento aos dogmas de um colégio de padres.
Brasil é seu melhor amigo e mentor, vanguardista no estilo de vestir-se, um hábil discernidor político, um admirador dos heróis rebeldes como Spartacus, que lutou contra o Império Romano; até mesmo Robin Hood, um mítico inglês que viveu à época das Cruzadas. Seu herói contemporâneo era Fidel Castro, o mais famoso rebelde cubano que derrubou o governo despótico da Ilha apoiado pelos norte-americanos.
De Pe. Ruas, um enigmático e intelectual sacerdote, guardou as melhores lembranças. Ele soube, como poucos, encantar os alunos e conquistar admiração de seus colegas de batina. Em O Jornal, um periódico local, deixou a marca indelével do seu intelecto, tecendo ensaios e crônicas sobre cinema, teatro, poesia ou literatura. Um prosador que transformava a escrita em arte.
Espero alcançar o complexo objetivo de delinear com exatidão memórias fidedignas, para contá-las com extremo carinho e cuidado, por se tratar de um período difícil da história política do país — os primeiros anos do governo militar; desejo também que esse livro possa deixar aos ilustres leitores, alguma mensagem de fé, de resignação e de devoção, abstraído dos ensinamentos religiosos de um Seminário.
O Autor
CAPÍTULO 1
Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado.
Resignação para aceitar o que não pode ser mudado.
E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.
São Francisco de Assis (1182-1226)
Aproximava-se o final do ano de 1963, a situação política do país andava trôpega; a instabilidade econômica afligia a população e o desemprego era cada vez maior. A região norte do país, embora longe da balburdia dos políticos em busca do poder, sobrevivia do rescaldo dos escombros: escassez de oportunidade de trabalho batendo à porta da maioria das famílias, por isso cada qual buscava alternativa para se livrar da situação adversa; cada pai de família tentava olhar para o horizonte distante, em favor de uma boa perspectiva.
Pedro, na primavera dos doze anos, preparava-se para ingressar no curso ginasial, para isso precisaria ser submetido previamente ao Exame de Admissão ao Ginásio, como se fosse um vestibular para habilitação à próxima etapa educacional. Faltava-lhe ainda a última prova do último bimestre do ano letivo do curso primário. Como bom estudante que fora durante o ano, já tinha nota suficiente para ser aprovado, mas habitava em seu interior a responsabilidade e o desejo da competência, a fim de conseguir o primeiro lugar da classe. Honorino, seu colega de turma, rivalizava com ele, despertando em ambos o espírito da concorrência.
Porém, naqueles dias, Pedro não andava bem de saúde. Sem mais nem menos, um zumbido estranho, nos dois ouvidos, vinha atrapalhando o seu bem-estar. E cada vez mais amiúde, esse incômodo vinha acontecendo, às vezes três a quatro vezes por dia. Não se podia dizer que era um sintoma apenas físico, senão espiritual, psicológico. Isso costumava ocorrer com mais frequência na sala de aula. Quando acontecia, ele botava as mãos nos ouvidos, como se o barulho viesse do lado externo, se estivesse na presença de alguém, apenas fechava os olhos e esperava o zumbido passar.
Apenas sua professora, Aldaise, havia percebido nele esse episódio indesejado. Ela era sua única confidente, contudo ele não relatara todos os pormenores, não queria transferir para ninguém essa preocupação inesperada, nem mesmo à família, particularmente ao pai, abarrotado de preocupações com a supervivência do lar. Talvez porque acreditasse que era alguma coisa passageira ou porque tinha a plena certeza de que seria um indesejado encargo clínico a ser debitado ao minguado orçamento familiar.
No entanto, esse sintoma já estava ocorrendo há quase um mês, notadamente quando soube que deveria ingressar no Seminário, logo que fosse aprovado no disputado Exame de Admissão; e normalmente acontecia se estava estudando para as provas ou fazendo uma leitura interpretativa, quando o estado mental se alterava e havia um maior âmbito de concentração e encargo.
A professora, no último dia de aula, percebeu que o garoto estava demorando demais para entregar a sua prova escrita, não era normal acontecer, ele sempre terminava em tempo exíguo. Do seu púlpito, observou-o com dificuldade para se concentrar; além dele, apenas dois alunos, que naturalmente precisavam de pontos, ainda buscavam na memória vazia as respostas salvadoras. Não era o caso de Pedro, este queria apenas concluir a prova, conseguir nota máxima, uma obsessão que o seguia, como uma meta, um desejo íntimo.
Ele finalmente desvaneceu. Viu como a professora o notava com um olhar de preocupação e resolveu entregar a prova, faltando duas questões, das dez propostas. Atinou que não havia razão para permanecer ali, esforçando-se e tentando responder, porque não estava conseguindo lembrar-se do que estudara nos livros ou nos cadernos nem mesmo o que assimilara na sala de aula, das explanações efusivas da professora ao sabatinar os alunos; não conseguira resgatar mais nada da sua memória tão desajustada, alienada com outras preocupações.
Levantou-se e entregou a prova. Dobrou o papel almaço para que a professora não visse as duas questões em branco e mais uma pela metade. A mestra abriu a prova, olhou-o com carinho, e disse-lhe: não vá embora agora, me espera no corredor, quero falar com você...
Pedro, triste, assentiu com a cabeça e confirmou com um sim, eu espero
.
Alguns intermináveis minutos depois, quando os dois últimos alunos saíram, a professora abriu a porta e pediu para ele entrar. Como se fosse uma psicóloga, orientou para que ele se sentasse ao seu lado.
Cobrou-lhe novamente um relato sucinto do que estava acontecendo e, sem constrangimento, falasse dos sentimentos íntimos, da expectativa com o regime de internato que seu pai estava idealizando para ele. Diante dos fatos, quis saber como andava a sua alimentação e se estava dormindo bem. Percebeu no tom das palavras do garoto, que esse novo horizonte o afligia; que o corte do cordão umbilical familiar estava sendo encarado como um estorvo. Contudo, não quis ligar o sintoma do zumbido à uma preocupação desmensurada ou uma simples situação indesejada. E disse-lhe que era normal as pessoas ficarem apreensivas com o desconhecido, mas procurou amenizar esse transtorno, afiançando-lhe de que poderia ser algo temporário, fruto do desgaste de um ano intenso, de muito estudo, até para um menino na flor da juventude. Em nenhum momento colocou em pauta a decisão familiar de o matricular num regime interno. Tranquilizou-o e pediu para que, se o problema persistisse, conversasse com o pai, e ele saberia procurar a ajuda de um médico, ou procurasse uma benzedeira, porque ela também acreditava nisso, nesse poder da fé, da cura espiritual.
Os sete minutos de conversa com a professora foram profícuos e eficazes para ele, sentiu uma paz interior e uma espécie de acalanto nas palavras e no olhar maternal da sua professora; sentiu-se mais confiante e descontraído; desfez-se, momentaneamente, um conflito interno dentro dele, da luta entre