A comunicação dos marginalizados nas rupturas democráticas
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Book preview
A comunicação dos marginalizados nas rupturas democráticas - Antônio Carlos Hohlfeldt
CONSELHO EDITORIAL DA SÉRIE NUPECC
Antonio Carlos Hohlfeldt (Editor) - PUCRS, Christa Berger - Unisinos, José Marques de Melo - Metodista, Marialva Barbosa - UFRJ, Nélia Del Bianco - UNB, Rosa Maria Dalla Costa - UFParaná, Maria das Graças Pinto Coelho - UFRN, Rudimar Baldissera - UFRGS, Paulo Vaz - UFRJ, Maria Immacolatta Vassalo Lopes - USP, Luciana Mielniczuk - UFRGS, Federico Casalegno - MIT, Moisés Martins - Universidade do Minho, Margarita Ledo - Universidad de Santiago de Compostela, Michel Maffesolli - Sorbonne V, Philippe Joron - Montpellier III
CONSELHO EDITORIAL EDIPUCRS
Chanceler Dom Jaime Spengler
Reitor Evilázio Teixeira | Vice-Reitor Manuir José Mentges
Carlos Eduardo Lobo e Silva (Presidente), Luciano Aronne de Abreu (Editor-Chefe), Adelar Fochezatto, Antonio Carlos Hohlfeldt, Cláudia Musa Fay, Gleny T. Duro Guimarães, Helder Gordim da Silveira, Lívia Haygert Pithan, Lucia Maria Martins Giraffa, Maria Eunice Moreira, Maria Martha Campos, Norman Roland Madarasz, Walter F. de Azevedo Jr.
MEMBROS INTERNACIONAIS
Fulvia Zega - Universidade de Gênova, Jaime Sánchez - Universidad de Chile, Moisés Martins - Universidade do Minho, Nicole Stefane Edwards - University Queensland, Sebastien Talbot - Universidade de Montréal.
Conforme a Política Editorial vigente, todos os livros publicados pela editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (EDIPUCRS) passam por avaliação de pares e aprovação do Conselho Editorial.
Cristina Schmidt
Antônio Hohlfeldt
Eliane Mergulhão
Orgs.
COMUNICAÇÃO DOS MARGINALIZADOS NAS RUPTURAS DEMOCRÁTICAS
Série Nupecc | 28
logo-edipucrsPorto Alegre, 2022
© EDIPUCRS 2022
CAPA Camila Borges
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Camila Borges
REVISÃO DE TEXTO Texto Certo
Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C741 A comunicação dos marginalizados nas rupturas democráticas
[recurso eletrônico]/ Cristina Schmidt, Antônio Hohlfeldt, Eliane Mergulhão (orgs.). –Dados eletrônicos.–PortoAlegre:ediPUCRS, 2022. 1 Recurso on-line(328p.). –(Série Nupecc; 28)
Modo de Acesso:
ISBN 978-65-5623-274-4
1. Democracia.2. Ciência política.3. Sistemas de governo.I. Schmidt, Cristina.II. Hohlfeldt, Antônio. III. Mergulhão, Eliane. IV. Série.
CDD 23.ed.321.8
Lucas Martins KernCRB-10/2288
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.
Todos os direitos desta edição estão reservados, inclusive o de reprodução total ou parcial, em qualquer meio, com base na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, Lei de Direitos Autorais.
Logo-EDIPUCRSEditora Universitária da PUCRS
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Caixa Postal 1429 - CEP 90619-900
Porto Alegre - RS - Brasil
Fone/fax: (51) 3320 3711
E-mail: edipucrs@pucrs.br
Site: www.pucrs.br/edipucrs
Sumário
APRESENTAÇÃO
Parte 1: A Comunicação dos Marginalizados nas rupturas democráticas
A COMUNICAÇÃO DOS MARGINALIZADOS NAS RUPTURAS DEMOCRÁTICAS: PANORAMA DESDE O AQUI E O AGORA
Prof. Dr. Antônio Hohlfeldt[ 1 ]
Referências
CULTURAS POPULARES NA FOLKCOMUNICAÇÃO E NA COMUNICAÇÃO POPULAR, COMUNITÁRIA E ALTERNATIVA: DA DECODIFICAÇÃO MIDIÁTICA À RESISTÊNCIA POLÍTICA[ 1 ]
Cicilia M. Krohling Peruzzo[ 2 ]
1 Introdução
2 Brasil, terra de desigualdades e de conflitos
3 Elementos das culturas populares e da Folkcomunicação na Comunicação Popular, Comunitária e Alternativa
3.1.1 Poesia de cordel na comunicação de movimentos sociais
3.1.2 Da Troça Carnavalesca à Marcha das Margaridas
4 Considerações finais
Referências
VOZES POPULARES E DISPUTAS DISCURSIVAS: PRÁTICAS DE ATIVISMO (FOLK)MIDIÁTICO NOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Karina Janz Woitowicz[ 1 ]
1 Introdução
2 Folkcomunicação, exclusão e práticas de ativismo
3 Da crítica aos meios hegemônicos à disputa de vozes
4 Meios independentes e ativismo nos movimentos sociais
5 Considerações finais
Referências
Parte 2: Contribuições da Folkcomunicação como teoria estratégica
CONTRIBUIÇÕES ESTRATÉGICAS DA FOLKCOMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DE RUPTURAS DEMOCRÁTICAS[ 1 ]
Cristina Schmidt[ 2 ]
1 Introdução
2 Das rupturas e crises aos protestos e insurgências dos grupos marginalizados
3 O descortinar estratégico: as contribuições da folkcomunicação
4 Considerações Finais
Referências
POR UMA PRÁXIS FOLKCOMUNICACIONAL: IDEIAS INICIAIS[ 1 ]
Guilherme Moreira Fernandes[ 2 ]
1 Os usos do Folclore pela Folkcomunicação ou o que chamamos de Folclore
2 O sentido de marginal
3 Por uma práxis folkcomunicacional
4 O descortinar estratégico da Folkcomunicação
5 Considerações finais
Referências
FOLKCOMUNICAÇÃO, GRUPOS MARGINALIZADOS E REALIDADE SOCIAL BRASILEIRA: UM DEBATE SOBRE A ABRANGÊNCIA SOCIOPOLÍTICA DO PENSAMENTO DE BELTRÃO[ 1 ]
Lawrenberg Advíncula da Silva[ 2 ]
1 Ponderações iniciais... a comunicação dos marginalizados de Beltrão e o campo acadêmico I
2 ... a comunicação dos marginalizados de Beltrão e o campo social II
3 Grupos Marginalizados no Brasil (1980-2016): a abrangência e atualidade do pensamento de Luiz Beltrão
4 Considerações parciais
Referências
Parte 3: Folkcomunicação, violências e transições
EL MERCADO COMO MARCO PARA LA EMERGENCIA DE AGENTES FOLKCOMUNICACIONALES EN UNA SOCIEDAD EN CRISIS: UNA MIRADA A CHILE[ 1 ]
Cristian Yáñez Aguilar[ 2 ]
1 Discusión inicial
2 El contexto económico en Chile como contexto para transformaciones territoriales y culturales
3 La perspectiva folkcomunicacional
4 Agentes folkcomunicacionales y Folkmarketing en una sociedad de mercado
4.1 Folkmarketing en la publicidad empresarial de un proyecto en riesgo de Conflicto Ambiental
4.2 Estrategias de Folkmarketing en una comunidad mapuche en conflicto socioambiental
4.3 Cantores locales como agentes folkcomunicacionales
5 Reflexiones finales
Bibliografía
MUROS QUE FALAM: COMUNICAÇÃO MARGINAL NA CIDADE EM CONTEXTOS DE RUPTURAS DEMOCRÁTICAS[ 1 ]
Júnia Mara Dias Martins[ 2 ]
1 Introdução
2 A crise da social-democracia
3 Sobre a cidade
4 Muros que falam
5 Considerações finais
Referências
MÚSICA POPULAR URBANA E COMUNICAÇÃO: O HIP-HOP COMO FERRAMENTA DE DENÚNCIA SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER MARGINALIZADA
Thífani Postali[ 1 ]
1 Introdução
2 Mulher negra e localização social
3 O rap das líderes-comunicadoras
Quadro 1 – Tabela de Conteúdos
4 Considerações finais
Referências
Parte 4: Interculturalidades, resistências e transformações
VISIBILIDADE, REPRESENTAÇÃO DISSIDENTE E FOLKCOMUNICAÇÃO[ 1 ]
Betania Maciel[ 2 ]
1 Introdução
2 Ciberativismo, cultura e grupos marginalizados: breves relatos
3 Considerações finais
Referências
GENDER AND MINOR AESTHETICS IN NORTHEASTERN BRAZILIAN BANDITRY: THE EVOLUTION OF CANGACEIRO ASSEMBLAGES IN PHOTOGRAPHY, FILM AND ORAL HISTORY
Jack A. Draper[ 1 ]
1 Introduction
2 Pre-History: Women’s Absence and Presence in Euclides da Cunha’s Os sertões
3 Beginnings: Northeastern Banditry in Film Narratives of Lampião’s Era through the 1950s
4 A Watershed Era for Cangaceira Narratives: 1970s-80s
5 Conclusion: Cangaceiras Moving Towards Historical Recognition and Redemption
References
SEMANA DE ARTE MODERNA: REFERÊNCIA DE TRANSFORMAÇÃO CULTURAL E DE FOLKCOMUNICAÇÃO
Eliane Mergulhão[ 1 ]
Sônia Jaconi[ 2 ]
1 Folkcomunicação: uma teoria que engrandece a identidade cultural do Brasil
2 Considerações Finais
Referências
AQUILO QUE NÃO É ISSO
Luiz Humberto Marcos[ 1 ]
1 Introdução
2 Alimentação, ritual
3 O calão nas artes
4 O calão nas redes
5 O corpo é uma festa
6 Festa do Cordeiro em Monção
7 Considerações finais
Referências
APRESENTAÇÃO
Na última década, temos testemunhado um processo de desestruturação dos sistemas democráticos em muitos países pelo mundo. Uma crescente onda de questionamentos e de críticas às instituições que a representam tem levado a um desmonte acelerado de políticas sociais, de direitos historicamente conquistados e à fragmentação de Estados que se pautam pela proteção social, pela inclusão e pela gestão participativa. Esse movimento vem sendo sustentado por um ideário neoliberal extremo, apoiado por grupos econômicos hegemônicos de direita e extrema direita.
Essa afirmação toma por base a análise de vários estudiosos e analistas políticos, que têm diagnosticado esse alinhamento entre o pensamento neoliberal e os grupos conservadores como o responsável pela morte das democracias
. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018), em seu livro Como as democracias morrem, apresentam uma série de práticas que vêm ocorrendo para o enfraquecimento da democracia. O aspecto mais grave apontado pelos autores é o fato de os sistemas democráticos serem desmontados ou extintos pelo mecanismo que mais os caracteriza: as eleições. Desde a Guerra Fria, dificilmente ocorrem mudanças de poder ou de sistema político por meio de golpes militares ou intervenções violentas para a tomada do poder. As lideranças eleitas vão subvertendo o ideário democrático por meio de processos legais: o retrocesso democrático hoje começa nas urnas
(LEVITSKY; ZIBLATTI, 2018, p. 16).
Os autores alertam que esse processo por via eleitoral é ainda mais perigoso e enganoso do que uma ação mais efetiva, como um golpe de Estado, em que tanques vão para a rua, ou em que o presidente é morto ou preso por um grupo conspirador. Assim como, nesse processo, as lideranças percorrem os caminhos legais
para assumirem o país, do mesmo modo, conseguem a aprovação de suas ações e decisões políticas pelo Legislativo e até pelo Judiciário – dependendo da configuração partidária e econômica dessas instituições, e também das negociações e dos interesses dos grupos de pressão hegemônicos. Essas articulações, que muitas vezes podem ser colocadas como um aprimoramento do sistema, vão minando a estrutura do Estado de tal forma que nem os direitos fundamentais são garantidos.
Acentuadamente, nos últimos cinco anos, fatores que afetam as democracias e as levam para o declínio ficaram evidenciados. Um dos principais é a desqualificação e a suspensão de funções do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, além da supressão ou da desvalorização de outras instituições democráticas, como partidos, movimentos populares, associações de classe etc. Com vários governos autoritários ou de extrema direita em ascensão, alguns movimentos sociais e grupos foram estimulados, ou foram definidas políticas que propunham limitar e enfraquecer a atuação dessas instâncias, o que vem fazendo com que a sustentação democrática fique comprometida.
Outro aspecto que fragiliza demasiadamente o sistema democrático é desabonar os resultados das urnas, ou seja, levar à população a dúvida sobre os resultados eleitorais e sobre o trabalho da Justiça Eleitoral. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a campanha de Donald Trump. Ele sempre colocou em dúvida os resultados eleitorais, insinuando fraude e manipulação de resultados. A postura desse candidato e de outros que também usam essa retórica acaba estimulando teorias da conspiração e intolerância com os concorrentes e com todo o sistema eleitoral.
Aliás, esse tipo de teoria conspiratória e de ódio tem dominado o meio político e, consequentemente, a sociedade em geral. A polarização, a criação de extremos, potencializa ações destrutivas institucionais, sociais e individuais. Conforme analisam estudiosos como Da Empoli (2019), D’Ancona (2018) e Castells (2018), com a utilização de meios de comunicação massivos e, principalmente, de redes sociais digitais, um exército de profissionais e robôs/máquinas disparam teorias distorcidas, mensagens dúbias, bem como notícias difamatórias e falsas. Essa rede de desinformação provoca processos de intolerância, que acabam em ações violentas contra grupos sociais, que ficam estigmatizados: partidos políticos, artistas, jornalistas, professores, cientistas, além de minorias sociais e culturais. Em resumo, todos que possam representar um conhecimento ou um posicionamento antagônico às lideranças autoritárias e populistas.
Os fatos elencados acima resultam em uma realidade global, que inclui países considerados potências econômicas, mas com muita desigualdade social, com um aumento significativo da pobreza, com interferências de religiosos extremistas e com a ascensão de governos populistas que beiram o autoritarismo. São vários os autores além dos já citados, como Dardot e Laval (2016), Souza (2019) e Arretche (2015), para citar alguns, que apontam esses agravos como consequência do neoliberalismo extremo, que levou impiedosamente a essa decadência social, por meio do desmonte dos Estados Democráticos.
Em razão disso, o ano de 2019 foi inteiramente marcado por agitações e grandes protestos populares por todo o mundo. Em todos esses protestos, as pessoas demonstraram imensa insatisfação com as medidas intransigentes dos governos ao longo dos anos, além das práticas recorrentes de corrupção, da ineficiência administrativa e da má vontade política para solucionar problemas recorrentes como fome, desemprego e violência, bem como questões ligadas a liberdade civil, moradia, saúde e educação; elementos esses ligados ao declínio das democracias.
O relatório da Economist Intelligence Unit (EIU) de 2019, que avalia os sistemas democráticos em 167 países desde 2006, indica que houve uma degeneração crescente nas democracias mundiais em relação ao começo da avaliação. O relatório aponta que esse processo decrescente retrata os rompimentos de políticas públicas de proteção social e os agravos nos problemas sociais. Além disso, o relatório evidencia as falhas estruturais dos governos; a ausência e os equívocos do sistema judiciário; a falta de responsabilidade e de compromisso social; a diminuição acentuada dos espaços participativos dos grupos sociais; o aumento da marginalização e da vulnerabilidade das minorias; e o grande distanciamento das classes política e jurídica em relação à sociedade em geral.
Nesse documento, o ano de 2019 foi considerado o pior em termos de rupturas democráticas; o relatório mostra que somente 5,7% da população mundial vive em uma sociedade de democracia plena. Por exemplo, os EUA, potência mundial, sob o governo de Donald Trump teve um recuo histórico e não se configura mais como democracia plena; assim como a Índia, o Brasil e a Polônia, sob governos descomprometidos com a democracia, que adotam medidas que variam de impedimentos à liberdade até cisões com as proposições constitucionais, restrições ao judiciário e estímulos a grupos antidemocráticos e a fake news, além da adoção de posturas autoritárias.
A avaliação considera que foram justamente as manifestações e os protestos sociais que acabaram promovendo alguns países como Chile, Bolívia, França, Hong Kong, Espanha, entre outros. Mesmo melhorando a sua pontuação, eles ainda são considerados países com democracia defeituosa
. De acordo com o relatório, são os muitos problemas de gestão e de posicionamento político, como os apresentados anteriormente, que levam ao crescente declínio global da democracia.
Esses mesmos problemas vêm sendo apontados nos protestos de modo cada vez mais contundente por grupos progressivamente mais marginalizados. O descontentamento emerge em grandes manifestações que apontam as falhas institucionais e que denunciam as rupturas dramáticas dos governantes com a ordem democrática. Movimentos crescentes de protesto e de reivindicação vêm tomando as indignidades como força e demonstrando que a esperança supera o medo; nesses movimentos, os grupos ocupam os espaços públicos para reivindicar a retomada da democracia.
Como salienta Castells (2013), os grupos marginalizados fazem das vias físicas e virtuais seu espaço de poder e de luta para se posicionarem como atores coletivos que, por não confiarem nas instituições como estão dadas na atualidade, propõem novas formas de convivência social que levem em conta os valores provenientes das mais diversas composições culturais. Desses grupos, surgem iniciativas de solidariedade, de formação e de proposição para os encaminhamentos de soluções às crises – desde associações para produção e arrecadação de alimentos até cursos de formação política e profissional, orientações jurídicas e administrativas para indivíduos ou para empreendimentos sociais e estruturações de bancos comunitários. São os próprios grupos marginalizados, em iniciativas construtivas, que emergem com a ausência do Estado.
Beltrão (1980, p. 2) considera esses grupos marginalizados como aqueles que, mesmo em suas singularidades, em seus interesses particulares e em suas necessidades específicas, estão vinculados a uma ideia e a um propósito comuns de adquirir sabedoria e experiência para sobreviver e aperfeiçoar a espécie e a sociedade
. Tal processo de aperfeiçoamento individual e coletivo, segundo o autor, é adquirido somente por meio da comunicação entendida como processo mímico, oral, gráfico, tátil e plástico, pelo qual os seres humanos intercambiam ideias, informações e sentimentos, através de signos simbólicos
(BELTRÃO, 1980, p. 3) – ou seja, por meio da Folkcomunicação.
Dentro desses parâmetros reflexivos e contextuais, idealizamos este livro, que vem como resultado de palestras, registros e vivências de pesquisadores de diferentes partes do mundo, que estiveram debruçados na seguinte temática: A Comunicação dos Marginalizados nas rupturas democráticas. Inicialmente, essas reflexões fizeram parte do IV Encontro Internacional de Folkcomunicação, em 2019, promovido pela Rede Folkcom e realizado pelo Departamento de Comunicación, da Facultad de Comunicación y Lenguaje, da Pontificia Universidad Javeriana, na cidade de Bogotá, Colômbia, por ocasião do XVI Congresso da Associação Ibero-Americana de Investigadores da Comunicação (IBERCOM - ASSIBERCOM). Alguns autores, devido à pertinência especializada de seus trabalhos, apresentaram partes ou até a integralidade de suas falas em congressos ou em revistas nacionais e internacionais. Porém, sobretudo pela efervescente discussão que ainda se pauta desde o Encontro Internacional, agrupamos esses estudos nesta coletânea para legitimar e divulgar amplamente tais reflexões.
Desse modo, por meio de visões que vêm de diferentes continentes, esta coletânea é uma contribuição para o descortinar de um momento tão ameaçador para a democracia e tão marcante para o campo da Folkcomunicação, pois é justamente a partir desse campo de produção teórica e cultural que os pesquisadores apontam entendimentos e superações. Para este projeto, somam-se a mim, como importantes parceiros para a organização, os professores e pesquisadores Antônio Hohlfeldt e Eliane Mergulhão.
O livro foi estruturado em quatro partes. A primeira traz o tema central do livro: A Comunicação dos Marginalizados nas rupturas democráticas; nessa parte, os pesquisadores buscam refletir sobre a conjuntura apresentada, voltando olhares epistemológicos para o campo da comunicação. São feitas aproximações disciplinares e teóricas para compor o entendimento da comunicação dos excluídos do processo democrático. Três capítulos compõem essa parte: A comunicação dos marginalizados nas rupturas democráticas: panorama desde o aqui e o agora
, de Antonio Hohlfeldt; Comunicação popular e resistência cultural por direitos
, de Cicília Peruzzo; e Vozes populares e disputas discursivas: práticas de ativismo (folk)midiático nos movimentos sociais
, de Karina Janz Woitowicz.
A segunda parte, Contribuições da Folkcomunicação para o descortinar estratégico, demonstra, de modo muito perspicaz, a Folkcomunicação enquanto teoria e processos vivenciados pelos grupos marginalizados no contexto de rupturas, como campo revelador para leituras e interpretações teóricas e como práxis orgânicas de transformação social. Os pesquisadores tomam a realidade social e os movimentos de protestos desse período de desmonte democrático como arena empírica de análise, e, por meio da Folkcomunicação, demonstram como é possível definir objetos, bem como fundamentar análises e práxis. Nessa parte, encontramos três capítulos: Contribuições estratégicas da Folkcomunicação no contexto de rupturas democráticas
, de Cristina Schmidt; Por uma práxis folkcomunicacional: ideias iniciais
, de Guilherme Fernandes; e Folkcomunicação, grupos marginalizados e realidade social brasileira: um debate sobre a abrangência sociopolítica do pensamento de Beltrão
, de Lawrenberg Advíncula.
A temática da terceira parte é Folkcomunicação, violências e transições. Aí são apresentadas três experiências que constatam processos de manifestação, resistência e posicionamento dos grupos marginalizados diante da crise socioeconômica dos últimos anos. Trata-se de pesquisas em Folkcomunicação que trazem esclarecedores registros e análises de manifestações que expõem expressões de empoderamento e de resistência, pesquisas essas que também evidenciam o distanciamento de um sistema democrático. São três capítulos: "El mercado como marco para la emergencia de agentes folkcomunicacionales en una sociedad en crisis: una mirada a Chile, de Cristian Yáñez Aguilar;
Muros que falam: comunicação marginal na cidade em contextos de rupturas democráticas, de Júnia Martins; e
Música popular urbana e comunicação: o hip-hop como ferramenta de denúncia sobre a violência contra a mulher marginalizada", de Thífani Postali.
A quarta e última parte, Interculturalidades, resistências e transformações, é composta por diferentes objetos e diferentes reflexões que demonstram o contexto da Folkcomunicação e da cultura popular como meios de expressão cultural e identitária. Essa parte também apresenta formas de apropriação por meio do entretenimento, como o cinema e as festividades populares e turísticas, e traz a arte como transgressora de padrões. São quatro capítulos: Visibilidade, representação dissidente e Folkcomunicação
, de Betânia Maciel; "Gender and Minor Aesthetics in Northeastern Brazilian Banditry: The Evolution of Cangaceiro Assemblages in Photography, Film and Oral History, de Jack A. Draper;
Semana de Arte Moderna: referência de transformação cultural e de Folkcomunicação, de Eliane Mergulhão e Sônia Jaconi; e
Aquilo que não é isso", de Luiz Humberto Marcos.
Cristina Schmidt
Abril de 2021
Parte 1:
A Comunicação dos Marginalizados nas rupturas democráticas
A COMUNICAÇÃO DOS MARGINALIZADOS NAS RUPTURAS DEMOCRÁTICAS: PANORAMA DESDE O AQUI E O AGORA
Prof. Dr. Antônio Hohlfeldt[ 1 ]
No trabalho que apresentou enquanto tese de doutorado, na Universidade de Brasília, e que só muitos anos depois seria editado em livro, Luiz Beltrão (2001) referia-se, essencialmente, aos meios populares em que ocorriam suas pesquisas e seus ensaios. Assim, logo na abertura do quarto capítulo daquela obra, esboçava um conceito do que fosse a Folkcomunicação, nestes termos:
Folkcomunicação é o processo de intercâmbio através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore e, entre as suas manifestações, algumas possuem caráter e conteúdo jornalístico, constituindo-se em veículos adequados à promoção de mudança social. (BELTRÃO, 2001, p. 73)
Nessa obra pioneira, ele enfatizava a questão do folclore – entenda-se, a cultura popular – e o jornalismo. Anos mais tarde, numa obra dedicada à teoria da comunicação, ele retoma o que agora denominará de sistema de Folkcomunicação, para explicitar:
[A Folkcomunicação] se origina, dirige-se e é utilizada pelos públicos marginalizados rurais e urbanos, minorias alienadas dos processos desenvolvimentistas, econômico e cultural da sociedade envolvente, por vezes mesmo em conflito com as forças que a compõem e mantém. (BELTRÃO, 2001, p. 124)
O conceito está, agora, superiormente enriquecido com algumas questões sutis fundamentais: existe uma contextualização histórico-social que lhe permite falar em marginalização econômica e cultural, advinda de uma marginalização histórica e social. O primeiro aspecto fora claramente abordado no livro pioneiro, mas o segundo aspecto passara ao largo. Aqui, contudo, torna-se o foco central de seu enfoque, o que o levará a distinguir três tipos de marginalização:
a) grupos rurais intelectual, econômica e geograficamente marginalizados;
b) grupos urbanos socialmente marginalizados;
c) outros grupos urbanos (BELTRÃO, 2001).
Observemos que, nos anos 1970, já no desenvolvimento do chamado milagre econômico perseguido pelos responsáveis pela ditadura militar implantada após o golpe de 1964, defendia-se o crescimento do bolo [econômico] para a sua posterior repartição. Naquele momento, efetivamente, o país experimentou um grande avanço industrial e o crescimento de relações econômicas internas e externas, mediante um forte movimento exportador, mas que nada ou pouco deixou para os segmentos populacionais populares, os chamados marginalizados. Pelo contrário: as legislações então editadas radicalizaram as distâncias entre os mais ricos e os mais pobres, o que acabaria levando, na década seguinte, à retomada dos movimentos grevistas, em que pese a sua repressão. O resultado disso tudo foi uma marginalização ainda mais radical.
Observemos que Beltrão distingue as características de cada grupo marginal: no caso rural, ela é, pela ordem, intelectual, econômica e, enfim, geográfica. Pessoalmente, acho problemática essa enumeração: priorizar a marginalização intelectual pode reprisar as teorias do final do século XIX, segundo as quais os mestiços seriam intelectualmente menos aptos do que os brancos, como em algum momento pretendeu inclusive Euclides da Cunha, corrigindo-se, depois. Por outro lado, pode-se pensar na referência à carência de escolaridade e à acessibilidade a instituições culturais como museus, cinemas, teatro, etc.: mas, de novo, isso implicaria certo preconceito por parte do autor. No entanto, este não é o centro da nossa questão, neste momento.
No caso da marginalização urbana, ela é social. De novo, mas ao contrário, parece-me que Beltrão, aqui, peca por omissão. É evidente que, antes de tudo, o que o marginal urbano enfrenta é uma marginalização econômica, mercê – regra quase universal – de sua condição migrante e um preconceito desqualificatório que enfrenta na grande cidade. Por fim, é excelente a atenção que, sob a designação de outros grupos urbanos, ele dirige àqueles que se constituem de indivíduos marginalizados por contestação à cultura ou à organização social estabelecida
(BELTRÃO, 2001, p. 128). Este conjunto se diferencia claramente dos demais porque nele surge certa voluntariedade que nos demais inexistia: aqui, são os indivíduos que, voluntariamente, negam-se a se integrar, mantendo-se à margem, ao contrário dos demais, afastados preconceituosamente do convívio geral. Só esta questão permitiria uma longa reflexão, mas a qual, uma vez mais, furtar-nos-emos, pois não é o cerne de nosso debate.
Num livro posterior, mas que certamente já se encontrava em gestação quando da publicação do antes mencionado, a questão da marginalização passa a ocupar, então, o centro de suas reflexões, aparecendo inclusive já no título da obra – Folkcomunicação – a comunicação dos marginalizados (BELTRÃO, 1980).
No segundo capítulo, intitulado O sistema da Folkcomunicação, ele esclarece:
Temos identificado os públicos usuários do sistema de Folkcomunicação como marginalizados, e tanto as expressões derivadas como o fenômeno da marginalidade são suscetíveis de significações as mais diversas e de conotações específicas no uso comum e nas ciências sociais. (BELTRÃO, 1980, p. 38)
Ele sintetiza, então, os diferentes estágios de significação, acumulativos, não necessariamente excludentes, por que passa a expressão, desde um artigo do sociólogo norte-americano Robert Park, valendo-se, para isso, de bibliografia, a que remete o leitor, de Janice E. Perlmann (1977)[ 2 ]. Nas suas referências, assim, a primeira característica seria a da mobilidade geográfica obrigada (migração), o que tornaria o sujeito um híbrido cultural, um marginal, na medida em que teria perdido sua identidade cultural[ 3 ]. Depois, ele segue a história, digamos assim, do termo e de suas conceituações, mostrando seu sentido pejorativo, de elemento perigoso, a que somaria, com os processos de colonialismo, em especial a partir do século XIX, aquele de sujeito avesso e inadaptado ao progresso e ao desenvolvimento industrial, nitidamente urbano; e, enfim, com o auge da Revolução Industrial e, mais recentemente, do surgimento da cultura de massa, identificaria um sujeito inapto para lidar com as novas tecnologias e os processos de massificação que hoje em dia nos qualificam e condicionam. Em decorrência deste aprofundamento de seus estudos e da tematização de sua categorização, ele mantém os grupos, antes identificados, mas