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Terras Novas
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Terras Novas

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Villa Rica, Minas Gerais, 1777. O ouro se foi. A maioria, que aqui ficou, pobre ficou. Largados em desamparo, os homens deste lugar teriam que outra vida pretender. Tramas de amor e guerra se entrecruzam em caminhos de chão e de almas. A morte, tão rotineira, cavalga ao lado desses guerreiros que olham para Deus, mas se sabem deslembrados. Nesse cenário de drama e aventura é construída a história das Terras Novas, lugar onde homens e mulheres vão medir seus tamanhos e desafiar seus destinos. Muitos, movidos pela cobiça e pelo ódio. E poucos, muito poucos, pautados pela honra e pela procura de um grande bem. Todos, então, saberão aprender: o mundo seguro é um lugar que não existe.
LanguagePortuguês
Release dateJun 4, 2021
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    Terras Novas - Paulo De Araujo

    As guerras que esquecemos

    Mortos foram muitos. Tanto o sangue quanto as águas das grandes enchentes.

    O ouro se foi. A maioria que aqui ficou, pobre ficou. Rolam pedras pequenas e grandes, mas não são de ouro.

    Nada mais aqui, tudo lá. Maldito seja Portugal.

    A manhã apressou os passos e veio enevoando tudo: casarios, igrejas e poucas gentes a andar pelas ruas. Alvorada esbranquiçada de frio a chegar, sobressaltando os quietos e botando canga em alguns que já estavam à vivência, querer descansar.

    Ares de a tudo deixar apreensivo, como um grito de criança no escuro. As terras das Minas Gerais estavam a explodir. Vidas se amotinavam naquilo que mais degrada quando sofremos: o abandono.

    A dor, em sua natureza que a tudo agasta, deixa claro que não vai perdoar nenhum desaforo. A ninguém será dado o privilégio de cobiçar repouso. As tréguas desta vida tiraram suas vestes de dormir e forraram seus peitos com as armaduras das batalhas. Que se aprumassem os homens bons de guerra. Ela vinha como esta manhã, ainda cedo, mas chegando. Chegando logo.

    As roseiras dos quintais vão em breve saber mais dos espinhos que sangram e menos das bem-aventuradas mãos de quem as plantou.

    Virá tudo em formação de tempestades, que vão a uma grande noite fazer. Noite viúva da luz a vir sem misericórdia, carunchando os corpos e as almas de quem se achava esquecido pela dor. Será tudo de abismo andar.

    *****

    Uma reunião de emergência fora marcada pelo próprio Governador. Isso era raro. Algo muito grave estava acontecendo ou para acontecer. Todos os que compunham o Conselho foram às pressas convocados.

    O Governador Dom Celso D’Ouro estava cansado de tudo. Nunca havia descanso, nunca havia paz. A toda hora, estava a alguém acudir. Pensava que estava na hora de a governança a outro entregar, mas não tinha jeito. Ele era o homem de confiança da Coroa. Os que pretendiam lutar para seu lugar possuir, não mereciam dele nem a confiança e muito menos o respeito. A esses, seu lugar só em estado de morte. E o Governador avisa:

    –– Estou apenas cansado, mas vivo! Quem quiser o meu lugar, que se atente: sou deserto que devora a quem nele entrar.

    O espinho da morte o arranhava sempre. As cercas que colocam limites à velhice já estavam circundando seu jardim. Ele dizia:

    –– O sofrimento dana, mas não proíbe a vida. No entanto, quando a morte e a velhice, velhas hienas, vierem a nos espreitar, peçamos que nos deixem para depois. Quanto mais nos refugarem, melhor!

    A verdade é que ele já dava sinais de querer descansar e se refazer em algum lugar. No entanto, isso estava muito longe de ser possível, pois muitas terras e céus ele ainda estava a decidir.

    Apegou-se como castigo à desgraça por não ter tido filhos. Queria um menino, alguém que continuasse a empunhar sua espada para defender o nome da família. Sua mulher, Dona Cecília, desejava uma menina que a ela fosse companhia nessas terras de grandes solidões. A vida não os atendeu e arbitrou: De vocês nada virá a esta vivência. Não serão castos. Serão infecundos.

    Não bastassem as próprias questões, tinha uma muito maior a intervir. Além do que, por mais vezes, era surpreendido olhando longe, como a querer ir de volta para casa.

    –– Não há um desgraçado nesta vida que na hora do desânimo não queira voltar para o colo da mãe. Se Dona Luzia, minha mãe, estiver viva, o colo dela; se estiver morta, o colo do lugar nascido.

    Estava sempre, em suas lembranças, a passear no Rio d’Ouro. Caminhar de cave em cave em companhia dos amigos de infância, se encantar pelas histórias do novo mundo, olhar o horizonte, que traz aquilo que está longe para perto, e dizer:

    –– Vou um dia a tudo conquistar.

    Amava passear entre os vinhedos, olhar as terras plantadas. Sua família produzia um dos melhores vinhos da região do Porto.

    Depois de tudo ver, ir para casa descansar e em Gaia dormir. Lá nasceu e queria lá um dia morrer. Mas no fundo sabia que Portugal já lhe era impossível. Às vezes até desqueria ir. Seus ossos ficariam por aqui, e no lugar dos vinhos ia contar sua vida tendo nas mãos as bagaceiras dessas terras largadas. Essa lembrança era como um fastio sempre presente, como um enjoo que não passava nunca. Desejou tanto essas terras, e agora, se pudesse, muito daria para abandoná-las. Mas, de certa forma, dela não largava mão.

    Dizia o Governador:

    –– O coração, alguém há de levar para Gaia. Que Minas se contente em roer os meus ossos.

    Ontem, antes de tudo começar, nem era noite ainda. Parecia aquela hora da tarde em que nada mais vai acontecer, mas aconteceu; muito.

    O Governador fora avisado de notícias carregadas de rasgos. Se não fosse insone, com certeza seria mais uma noite para justificar o não dormir. Além do mais, não queria morrer dormindo:

    –– Quero a ver chegando, olhar nos seus olhos. Vou cuspir na cara dela. Tudo porque sei que depois da morte não existe clarão, é tudo um buio só. – Nada dessa coragem era verdadeira. Ele tinha medo da morte, mas que fique claro: não de morrer. Sabia que era do certo, mais do que vinha depois, que era do incerto. Dizia, a quem pudesse ouvir, que sua eternidade seria vestida de escuridade. Embora, no dentro, esperasse ao menos algum luzeiro. Quem sabe, em lugar da solidão eterna, viesse a uma outra vida experimentar. Não contava com isso. Vivia contrariando quem achava que é melhor sofrer que fazer alguém sofrer. Emendava:

    –– Não existe mel mais doce que ferroar quem a gente não gosta.

    Nas coisas que chegam, mais uma vez ele seria testado na força, na habilidade política e no cuidado religioso. Tinha diante de si imensa contenda.

    Logo teria que decidir: ser maior ou menor do que era. Suas decisões iriam lhe dar a medida dessa estatura. Iriam dizer se o que sobrasse do seu corpo descansaria sob algum piso de igreja ou se seria lançado aos cães sarnentos.

    Suas convocações nunca foram um convite. Eram sempre uma ordem. Fora marcada a reunião para as primeiras horas do dia seguinte. Estavam já dentro do ano de 1777, ano da morte do Rei Dom José I.

    O Governador era baixo e troncudo. Ele dizia aos mais próximos: Sou esteio grosso de candeia nestas terras do rei.

    Tinha olhos da cor dos ursos marrons. Mãos pequenas. Possuía uma força de rocha bruta. Estava sempre em sentinela, era guardião de si e de tudo o que a Coroa dele esperava. Falava o que era para ser dito e, quando estava a dizer, era para ser mais que ouvido: era para ser obedecido.

    Não bebia nunca, mas as negras e suas quenturas, mais que fraqueza, eram um vício.

    Fora o primeiro a chegar à Casa Real. Estava inquieto. Era Governador, comandante das tropas e de tudo o mais que preciso fosse.

    Certa feita, mostrou seu enfado ao amigo de infância, Paulo Silvério, do Porto, e em carta revelou:

    Amigo Paulo Silvério:

    Por aqui, o que parecia insaciável, gastou. Os vales e grotas parecem não suportar mais. As águas já não dão mais ouro, estão apenas à sede saciar. As terras viradas e reviradas não mostram mais brilho algum.

    Não há nada a fazer para aplacar a ira desses homens despejados de seus sonhos de riqueza.

    Infestam as ruas, bandidos que seguem a saquear aquilo que lhes contentam. Na verdade, não se contentam nunca. Gente intratável. Dormem e acordam a querer do outro roubar pertences e vidas. Querem sempre o que não se lhes pode dar.

    Não fosse por uns poucos reinóis, seria insuportável a convivência.

    Tudo pede descanso, e este não há de vir. Tudo pede paz, e esta não nos chega e, a cada dia, para mais longe de nós ela se vai.

    O que a guerra não levar, as doenças e a fome se encarregarão de o fazer. O que será destas terras sem o ouro, que esgotou? O que fazer com esses homens resumidos a bateias, cuja pátria é somente o leito dos riachos e as grotas das matas?

    Eu, que nunca pensei em Deus, acredito agora que Ele não olha essa gente como filhos. Eles vivem apartados do céu. A eles sobrou a usura divina. Parecem largados em um mundo entranhado pela dor. Começa a me faltar ânimo. Começam a me escurecer as vistas.

    As coisas aqui parecem crescer em medidas contrárias à minha força. Tudo sobre nossas cabeças é severo. Invernos parecem mais longos e frios. Os verões seguem a incendiar matas e campos.

    A morte vem a cavalo cobrar de todos a paga. Não há perdão aos devedores. Logo, a Indesejável virá bater à minha porta. Enquanto ela não me encontra, vou estando neste mundo do lado de cá, neste canto de homens vazios de si e cheios de ódio. Estamos nós, caro amigo, entregues à própria sorte; não nascidos aqui, mas trazidos, pela força do destino ou por nossa gula de riqueza e poder.

    Dias ruins vêm a amargurar esperanças miúdas. Lugar em que Deus cuspiu para o lado e nunca mais voltou. Se é que por essas bandas algum dia esteve. Isso aqui virou um lugar de espios entre as moitas e de punhais sempre acordados. O que é parido pelo ouro, vai sempre ter contas a acertar com as madrugadas emboscadeiras. Este é um lugar de nunca se descuidar. Agora e mais longe, no fora e no dentro, teremos que muitas vezes desratizar a colônia do Brasil, esta terra de homens sem honra e de ganância, sem o querer do esforço. A vida está se entregando. Agora me cabe decidir o que viver: se me entregar ao prazer nesses dias que me restam ou ao dever me doar. Ou, quem sabe, me dar o direito de viver nenhum dos dois. Então, penso: o que não podemos é ser nada, o resto tudo podemos. É isso, meu amigo: não podemos ser nada, o resto tudo podemos.

    Fraternais saudações. Do amigo, Celso D’Ouro.

    O Governador nunca tirava seu tricórnio preto, que já apresentava algumas manchas, deixadas pelo suor. Alguns diziam que era para esconder seus poucos cabelos. Vã tentativa, pois, na verdade, já eram quase nenhum. De qualquer forma, Governador e tricórnio eram uma coisa só.

    Coxeava da perna direita, resultado de um tombo de cavalo quando a esta terra estava chegando. Sua mulher, Dona Cecília, tomou isso como um presságio ruim, e por tudo que os fazia sofrer, sempre olhava para a perna dele. Com o passar do tempo, já não precisava dizer nada. Apenas olhava, e a perna reclamava por ela.

    *****

    Assinava alguns papéis quando foi avisado de que todos já haviam chegado.

    O salão de reuniões em nada remetia aos da Corte. Especial lembrança ao de Mafra. Esteve lá antes de vir ao Brasil. Foi rezar, pois era um convento. Foi sonhar com as riquezas que lá estavam, porque era também um palácio.

    Imaginava poder contar um dia que, inspirado por esse lugar, também ele andaria em mármores ricos, teria móveis franceses e tapetes do Oriente. Tapetes de andar e de as paredes enfeitar. Teria jardins a perder de vista.

    Sonhava com obras de arte espalhadas pela casa inteira. Sobre suas mesas teria especieiros, baixelas, chaleiras de ouro e, no mais íntimo desejo, até um urinol de prata iria possuir. Teria negros bem-vestidos a lhe servir e negras de garupas largas a lhe entreter. Teria também terras sem fim a lhe pertencer.

    Ali estava, naquele salão. Móveis despojados, feitos de braúnas e jacarandás. Alguns poucos e rudes tapetes de arraiolo. Nada de estofados e poltronas; apenas cadeiras, cadeiras duras a se sentar. Muitas vezes, estava a dizer, ou por se conformar ou por entender:

    –– O que está a me faltar? Nada. A riqueza não é causa de viver.

    Um móvel chamava a atenção. Não só por sua beleza, mas por ter sido uma dádiva: um arcaz belíssimo, de duas portas e três gavetas. Sobre as portas, talhas douradas; os lados, arqueados em curvas suaves. Finos puxadores de prata e um tampo de mármore rosa com nervuras em branco. Tinha sido feito por um mestre florentino que estava em Lisboa a serviço da Coroa. O que tornava especial o arcaz era que tinha sido um presente do Rei Sol à sua pessoa.

    Gostava de caminhar naquela sala e, a cada vez que ia ou voltava, passava a mão sobre o arcaz. Aprazia-lhe a sensação dessa posse. Sobre esse móvel, um presente de sua mãe: uma imensa terrina de prata, que nunca deixou ir à cozinha. Era para olhar e lembrar-se de onde veio, como a querer recordar das sopas no inverno, que só esquentavam menos que o abraço de sua mãe.

    Nas paredes, apenas um quadro, uma paisagem de Portugal: cães e caçadores a cercar uma presa. No mais, tudo se mostrava em simplicidade quase pobre.

    No salão estavam algumas pessoas bem conhecidas. O Ouvidor Camilo Freitas, responsável por coisas da Justiça. O Provedor Luiz Caetano, respondendo pelas finanças da província. O Capitão-Mor Alexandre Neto e o representante da Câmara, Conselheiro Gustavo Dias, rico comerciante de Villa Rica e homem de confiança do Governador.

    No entanto, o que mais chamou a atenção foi a presença de frei Sebastião Abrantes, que estava no canto esquerdo da mesa, quase a querer-se invisível. Somente algo muito sério justificaria sua presença na Sala Real. Fazia tempo, muito tempo, que ele não aparecia por essas terras.

    O que um jesuíta estaria a fazer por aqui? Eles não haviam sido banidos do reino de Portugal? Desde sua chegada a Villa Rica, irrompeu um clima de revolta e medo. Um começo de assombro abocanhou a todos. Ninguém conseguia esquecer o auto da fé praticado por ele na Praça da Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Ele e quem estava com ele fizeram queimar uma família inteira, suspeita de heresia.

    Tudo começou com a mulher, que era parteira na cidade e benzia as crianças com ramos de alecrim.

    Dona Mãe era uma negra tida como santa por toda a gente dali. Trouxe das terras ultramarinas segredos e orações dos sacerdotes africanos. Tudo o que fazia era para o bem. Nunca a porta de sua casa estava trancada. A qualquer hora pode alguém chegar, vivia a dizer. Tinha outra mania, a de sempre deixar uma tigela com algo de comer ao lado de uma samambaia em um estendido da janela, que ela própria fizera. Ficava no alto, bicho não podia pegar. Abaixo estava um banco para quem desejasse, além de comer, poder também nele descansar. Dizia: A fome e o cansaço não escolhem hora nem lugar. A todos tinha uma palavra de ajuda. Benzia e ajudava sem distinção: Para as crianças, anjos do céu, ramos de alecrim; para os adultos, ramos de arruda.

    Fora batizada na fé cristã, já adulta, por um padre de Mariana, que teve sua mãe curada pelas suas rezas. Foi com ele que aprendeu a unir a fé dos seus ancestrais com a fé cristã. Se antes benzia assim: Mal do ar, mal do mar, mal do fogo, mal da lua, mal das estrelas, mal do ponto do meio-dia, mal do ponto da meia-noite: se tiveres quebranto, mau-olhado, feitiçaria e bruxaria, deixa este corpo para nunca mais voltar. Com a ajuda do padre, ficou assim: Mal do ar, mal do mar, mal do fogo, mal da lua, mal das estrelas, mal do ponto do meio-dia, mal do ponto da meia-noite: se tiveres quebranto, mau olhado, feitiçaria e bruxaria, deixa este corpo para nunca mais voltar. Com a ajuda de Deus e da Virgem Maria, com a graça do Filho e do Espírito Santo. O que Deus protege, o Demônio não leva.

    Quando nascia uma criança, ela benzia: De Deus para nós veio este anjo. Que nunca falte comida à sua mesa, nem casa para morar, nem saúde para viver; que entre as montanhas e o mar anjos venham sempre a ajudar. Passava a mão nos olhos da criança e benzia: Que estes olhos não fiquem cegos e possam ver as manhãs que nascem e as estrelas que brilham. Passava a mão no peito e dizia: Pai do céu, proteja este coração e afaste os males da dor do gostar, e que cresça forte e alegria dê aos seus pais. Passava as mãos nas pernas: Que nossa Mãe do Céu te faça andar e nunca esquecer que a vida é um caminho de volta para a casa do Pai. Finalmente, passava um óleo e benzia o sinal da cruz na testa da criança, perguntava o nome escolhido e entregava para Deus, dizendo: Se veio ao mundo, algo veio fazer; não deixa faltar nem força nem coragem para que esta criança cumpra sua missão e vida tenha a brilhar. Um dia, voltando para a casa do céu, possa dizer: ‘Pai, fiz o meu mandado, agora me deixa descansar no Teu colo’.

    Quando um adulto aparecia por lá, endemoniado, ela benzia:

    "Pode ser um, pode ser mais, mas é menos que Deus Pai.

    Pode querer matar, pode querer roubar, mas nada vai poder contra Jesus, filho e salvador.

    Pode ser cobra, pode ser escorpião, pode ser inveja, pode ser discórdia. Pode ser espada, pode ser traição, mas nada poderão contra o Espírito Santo de Deus.

    Venham os guerreiros anjos do céu gritando em nome da trindade: ninguém pode contra Deus e seu filho Jesus Cristo, na graça do Espírito Santo, amém.

    O Senhor, que está no céu e na terra, ordena agora que o mal seja expulso deste corpo para nunca mais voltar.

    Pode ser um, pode ser mais, mas agora é nenhum."

    Dona Mãe tudo fazia para que os sofrimentos das pessoas não ficassem em abandono. Amor de tudo a si, esquecer; aos outros, sempre lembrar.

    Nada disso foi o bastante para livrá-la, a ela e a todos os dela, da tirania de frei Sebastião. Todos foram condenados ao matadouro.

    Os sofredores chegaram diante da fogueira aos pedaços: olhos arrancados, ossos triturados, mãos sem unhas, genitálias expostas. Os que ainda conseguiam andar, se arrastavam e eram empurrados sem piedade. Outros, em uma carroça, já quase sem vida alguma. Matava-se uma família inteira.

    Antes de acender a fogueira, o frei disse:

    –– Ao povo de Villa Rica, que escute para nunca esquecer: não se pode servir a Deus e ao demônio ao mesmo tempo. Esta mulher era uma bruxa. Transformou sua casa em um lugar de adoração ao demônio. Adorava um deus que não é o nosso. Convenceu sua família a participar de rituais que são proibidos pela Santa Madre Igreja, a não confessarem seus pecados e nem reconhecerem seus crimes. Agora vão prestar contas no inferno.

    Gritou e jogou fogo sobre as lenhas secas. Logo, as chamas tomaram tamanho de morro alto.

    Não se ouviu sequer gemidos. Não se sabe se por faltar força aos moribundos ou se algum anjo bom veio a lhes acalentar e a levá-los imediatamente para o céu.

    O povo baixou a cabeça e voltou para as suas casas. Muitos daqueles que ali estavam tiveram filhos que vieram ao mundo pelas mãos daquela que o frei acabara de assassinar.

    Alguém gritou:

    –– Assassinos! Assassinos! Deus quer misericórdia, e não sacrifício!

    Era uma voz feminina, e pelo barulho dos passos correu muito para não ser encontrada.

    O frei ordenou a busca, e gritava:

    –– Vasculhem as casas! Tem mais uma bruxa à solta! Vamos aproveitar que o fogo ainda arde. Tragam-na para mim!

    Ninguém foi encontrado e a ira daquele jesuíta, naquela noite, estaria a se contentar com os que já haviam sido sacrificados.

    Tempos depois, o frei fora chamado a uma reunião, pois dera a ordem de morte sem a presença do Governador, e isso não era permitido. Céu e inferno, que se prestasse contas à Igreja. Vida e morte, somente ao Estado decidir.

    Cobrado por seu comportamento, defendeu-se, dizendo:

    –– O mal, senhor Governador, não dorme e nem descansa. O que fiz não foi crime de ódio; se exagero houve, o pecado foi o excesso, não o motivo. Causado desgosto ou desobediência, permita que eu enfrente o remorso, que por si só já é um grande castigo, embora não considere erro o meu agir. É sempre oportuno lembrar que Deus escreve certo por linhas tortas e que sua vontade está além da nossa compreensão. Para que todos fiquem no conforto, vejamos assim: eles deixaram de ser hereges para se tornarem mártires.

    Dom Celso, após ouvi-lo:

    –– Frei, o que vou dizer agora é para não ser esquecido: a ruína de um homem é viver longe das suas condições. Vou repetir para que o senhor possa sempre se lembrar: a ruína de um homem é viver longe das suas condições. Fui claro?

    –– Despreocupe-se, Governador. Estarei atento aos meus limites.

    Aos jesuítas, o perdão dessas terras nunca foi dado. Tentou-se, em sua saída, apedrejá-los. Rezou-se em todas as igrejas para que nunca mais voltassem. Não se viu festa tão grande quando da ocasião de sua expulsão das terras de Portugal. Foram desterrados por Dom José I. Um presente real a Villa Rica. Presente nunca esquecido. Muito se amava o Rei morto, também por isso.

    Com efeito, frei Sebastião era uma pessoa a se ter longe. De preferência, muito longe. Melhor mesmo era ele voltar para o lugar de onde veio, lugar esse que deveria ser o quinto dos infernos. Por tudo isso, sua presença ali era uma provocação.

    O Governador haveria de explicar. Agora, o que estariam todos a decidir viria a mover montes e montanhas, rasos e fundos de rios. Porém, teriam que saber escolher, pois os pescoços de alguns teriam que endireitar os passos de outros.

    As terras daquele lugar mergulhavam em ruínas enquanto eles se reuniam. As guerras ali a serem decididas eram redes que a todos vinham laçar. Os passarinheiros do mal já estavam a espalhar visgos de infernos e traições. Todos, de alguma forma, estariam em arrestos.

    As mães já podiam chorar pelos filhos que não mais voltariam para suas casas. As mulheres já estavam a reclamar do frio nas camas viúvas nos invernos das Minas Gerais.

    A hiena de Deus

    O mês de agosto ia já em adiantado de dias.

    As montanhas ainda estavam bordadas do lilás vaidoso do capim meloso, que, tardio, movia-se aos ventos, valsando como borboletas morenas, da cor das mulheres de Minas.

    Quando a porta, que dá para a sala, se abre, o Governador aparece com cara de quem vai coicear.

    Todos se levantam e ele acena com a mão para que fiquem como estão.

    –– Não preciso lembrar a ninguém que esta reunião está sob a ordem do calado. Estamos a ter problemas, e um em especial vai incendiar ainda mais aquilo que já arde. Se antes se matava por poucas varas de terras, hoje mata-se por nenhuma. As bateias estão jogadas à beira de córregos e rios grandes. Dão a dizer que tudo está se acabando. O ouro está em agonia e não há o que colocar em seu lugar. Poderá esta terra agora a outra fome saciar? No lugar de arrancar ouro, podemos nela plantar?

    Levante-se. Volte a sentar-se.

    –– O que fazer quando os homens se sentem fracassados em seus anseios? O inferno, senhores, é não ter direito a um depois. É desaparecer com a vida em travessias e abraços que nunca valeram a pena. Os homens que nesta terra estão, vieram de muitos lugares, desejosos que a vida os pudesse atender em seus anseios de riqueza e contentamento. Deixaram para trás coisas e gentes. Tudo apostaram nesta terra. Agora a eles, ela nega o que aqui vieram buscar. Nada aproxima mais o homem do seu estado animal do que a privação de suas expectativas. Não é pela sorte que foram abandonados, mas pela vida. Afirmo que é nesta hora que eles dão de saber de si, se são para o bem ou se são para o mal. Se suportam à espera de a algo melhorar ou se apressam em matar ou morrer. Ouso dizer que, se não pegarmos o ferro das bateias abandonadas e delas fazer arados e enxadas, vamos todos –– todos, ouviram? –– em vez de comida, merda vamos comer.

    Fala e pensa ao mesmo tempo:

    –– Essa gente que está sempre a andar, como dizer a eles de sementes e plantios? São errantes. Se tiverem que os campos cavar para comer e aos animais cuidados dar, não serão eles a fazer. Estarão sempre a olhar as bateias com saudade. No lugar de contar a sorte, o suor das enxadas trará a eles algum arroubo? Fosse talvez mais fácil para eles transformar as bateias vazias e viúvas do ouro em lanças e punhais, pois a violência mais que caseira já lhes era o pão de cada dia.

    O Governador agora pensa sem ser lerdo e fala sem ser corredor:

    –– O assunto, sabido por todos, mas que já estava em esquecimento, resolveu acordar e veio em forma de tormenta. Estamos sendo levados a coisas não buscadas, como se pólvoras estivessem espalhadas por nossas terras; o fogo em mãos de alguns e o Diabo a soprar.

    Frei Sebastião, no seu canto, faz o sinal da cruz.

    –– É do conhecimento de todos que, além das tropas que enviamos para a Capital, o Vice-Rei exigiu que enviássemos o que de melhor tivéssemos de gente e armas para fazer frente aos castelhanos que conquistaram uma Ilha lá no sul. Nossos sargentos maiores, nossos cabos de estrada, quase todos se foram acompanhados de negros, mulatos e mestiços, todos bons de guerra. Exigiram os fortes e conhecedores da mata e do campo. Nenhum doente. Apenas os melhores, deixando por aqui uns poucos homens e velhas armas.

    –– Senhores, o ouro está a acabar. As tropas estão a ir. Bandos vasculham as ruas sem saber o que fazer. Insaciados na bebida e incontroláveis nas perturbações. Gritos ferozes se ouvem madrugada afora. Corpos amanhecem pelos cantos. Cães mordem o que já está morto. Definha-se o que tanto se levou a construir. Vemos aquilombados se amotinando cada vez mais amiúde. Bugres que não se rendem e bandidos que estão a tomar de assalto os tropeiros, suas mercadorias e suas mulas. Nem o registro estamos mais a receber. Sem o ouro a enricar e sem a comida a barrigas encher, o abrandamento, que já era pouco, ficou nenhum. Sobre nós infesta o pior dos homens. Estão mais para bestas selvagens. São poucas as armas, faltam soldados bons de guerra, e quando reclamei com o Vice-Rei, ele apenas disse que os interesses maiores na defesa do Império estavam acima das preocupações particulares. Eu que me arranjasse com as questões das terras confiadas aos meus cuidados. O que era já ruim, senhores, ficou pior. Muito pior.

    Com expressão cada vez mais grave, prossegue:

    –– Recebemos uma missão, com ordens da própria Rainha Dona Maria I, filha do nosso sempre Rei José I. A ordem veio pelas mãos de frei Sebastião, motivo pelo qual ele está aqui. Chamei na mesma hora o Conselheiro Gustavo Dias e varamos a noite procurando saídas. Os gastos a todos vão custar. São ordens duras. Em outra época não nos intimidaria, mas hoje é uma tarefa que vai exigir muita força, uma força que, se não temos, vamos ter que encontrar. Preocupa-me ter que fazer mais do que podemos, mas dessa preocupação não morrerei. Conto com todos para saídas encontrar. Mas confesso aos senhores: estou ficando cansado de ver a dor amiudar as pessoas. Está tudo invernando no dentro das Minas Gerais. De arrasto, o angustioso viver vai fazer sumir quem descuidou de interessar-se por dar de existir ao que sente.

    Ouve-se a voz do frei:

    –– Deus proverá todas as nossas necessidades, senhor Governador.

    O frei tinha uma cabeça grande, mas que afinava em direção ao nariz, lembrando uma fuinha. Pomo-de-adão avantajado. Dedos finos e anel pesado no dedo indicador, trazendo a marca de uma cruz. Beijar aquele anel significava perdão e salvamento dos erros cometidos. Era um anel de raríssimos beijos. O frei não era dado ao perdão, nem de deixar a justiça do outro mundo julgar. Era ele a decidir sobre céus e infernos, quase sempre o inferno. Entre a vida e a morte, quase sempre a morte. Não amava o amor, caminho dos santos; amava o ódio, destino dos maus. Não era alto nem baixo. Usava um hábito preto e um enorme capuz, que parecia esconder um pouco o jeito já encurvado. No cinto, um cordão bege e um enorme rosário de madeira sombreada. Seus olhos pareciam a tudo ver. Sua marca maior era a ferocidade. No meio do próprio clero era chamado de a hiena de Deus. A ruindade o indumentava, dos pés à cabeça.

    Naquele momento ninguém dá importância ao que ele falou. Todos estão mesmo interessados em saber qual a ordem da Rainha.

    Antes de o Governador retomar a palavra, ouve-se um batido na porta.

    –– Já avisei que não era para interromper?

    O escravo, com voz trêmula, anuncia a chegada de uma pessoa chamada Eugênia Paixão.

    –– Quem? –– pergunta o Governador.

    O Conselheiro Gustavo toma a voz e esclarece:

    –– É a moça da qual lhe falei. Dom Celso, irritado, diz:

    –– Manda esperar um pouco.

    Todos se entreolham. O que uma mulher estaria fazendo ali?

    –– Um frei inquisidor e uma mulher? –– Camilo brincou, perguntando à boca miúda ao Provedor Luiz se as lenhas já estavam na fogueira.

    Quem fala é o próprio frei Sebastião:

    –– Desculpe, Governador, mas onde uma mulher seria útil senão em sua casa? Ela estaria aqui a nos servir?

    –– Senhores, perdidos estão os anéis, todos de ouro, ouro das nossas minas. Estamos aqui a lutar pelos dedos. A ideia da moça foi do Conselheiro Gustavo, e julguei que seria de bom valor ela vir até aqui.

    –– Excelência, mulheres não guardam segredos, e o que hoje fazemos aqui somente obterá sucesso se formos imperativos no sigilo.

    –– Frei, vamos dar tempo ao tempo. Esta mulher não é de beber no mesmo copo que todo mundo.

    –– Todas são iguais. O que em uma mulher pode ser diferente de outra?

    Nasceram filhas para morrerem mães, e isso no caminho delas é tudo.

    –– Senhor Governador, talvez o frei esteja se referindo às suas práticas de crueldade, onde se vangloria de fazer a todas falarem. Ele sempre alardeou, a quem fosse dele ouvir façanhas, que as mulheres são sem graça na tortura, pois falam cedo demais –– disse, sem cuidados, o Conselheiro Gustavo. Os olhos do frei faiscaram. Era ódio antigo, mas não acabado; era ódio que tinha muitas pernas a andar. Ele e o Conselheiro Gustavo nunca se gostaram, e antes que mais problemas surgissem, o Governador interveio:

    –– Já basta! Peça à moça para entrar.

    Eugênia entra. Parecia não combinar com nada e nem com ninguém naquele lugar. Aparentava certa fragilidade, ou melhor, delicadeza, como as mãos de uma mãe segurando o filho primogênito nos primeiros passos, mas também deixava ver força, uma força capaz de não deixar o filho cair. Os olhares dos presentes parecem medir a moça. Nada de cabeleira em prumos, saia com balão, pó de arroz branqueando a face ou lábios vermelhos. Sua face estava desnuda de qualquer adereço. Era para ser morena, sem deixar de ser branca. Sua pele era alva, muito alva. Contrastava com seus olhos, que eram escuros já bem pretos, mas com um brilho parecendo aquela a hora em que a noite vai se despedindo e entrega o tempo ao nascedouro das manhãs. Aqueles olhos possuíam esse brilho de sol que nasce, não do sol que se põe. Suas sobrancelhas eram meio fechadas. Corpo ereto. Mãos que não davam saltos. Seus cabelos negros traziam um laço indeciso, meio que escorregando, como aquelas nuvens que parecem que vão cair, mas que não caem, apenas escorregam céu afora. Sem leques nem lenços, apenas um vestido de pouca monta, azul claro, com uma renda branca contornando o pescoço. Usava um cordão com pingente em forma de pomba com asas abertas. Duas peças de pérolas pequenas como brincos eram tão pequenas que quase não se notavam. Nos pés, do pouco que se dava para ver, devido ao vestido quase a arrastar, sandálias, em vez de sapatos. Era de uma beleza constrangedora, transcendia em muito o lugar de homens rudes e peças feias. Sua presença parecia dar um pouco de alívio a um ambiente que já era sabido tenso e cuja intensidade ainda não dava para medir.

    Houve um encantar-se pela presença de Eugênia, e alguns, sem se acanhar, deram-se a contemplá-la.

    Não se enganem com a beleza de Eugênia. Mais que feições tentadoras, ela, se preciso fosse, músculos, unhas e inteligência usaria contra quem quer que dela mereça raiva.

    Luiz, o Provedor, tratou de puxar a cadeira para que ela se sentasse. O frei fingiu tossir, chamando para a reunião.

    Recomposto, o Governador não perdeu a oportunidade:

    –– Se houver uma próxima vez, que a senhora chegue no horário. Não aprecio atrasos! À exceção da senhora, todos aqui são velhos conhecidos. Para ganharmos tempo, o Conselheiro Gustavo poderia apresentar a moça.

    Antes que algo fosse dito, a voz de Eugênia se fez ouvir:

    –– Por favor, pode deixar que falo por mim mesma. O que o senhor deseja saber?

    Um clima, misturado de silêncio e espanto, estava formado. Pressentindo-se nuvens pesadas, tenta-se contemporizar:

    –– Eugênia, estamos felizes com sua presença e... –– interrompe o governador:

    –– Gustavo, deixe a moça falar.

    Ele perguntou a Eugênia:

    –– O que acha de valia sabermos sobre a senhora?

    –– Primeiro, gosto de ser chamada pelo meu nome, e ele vocês já sabem. Segundo, gostaria de saber por que estou aqui.

    Como ninguém disse nada, ela continuou:

    –– Encaro a vida em responsabilidades confiadas. Diferente de jogar os dados. Alguns acham que o destino é uma aposta, mas eu, que detesto jogos, descarto as apostas pois dou a mim mesma o direito de fazer o meu destino. Então, não estou aqui porque tinha que estar. Vocês me fizeram vir, e isso me incomoda. Talvez começássemos melhor sabendo por que forçadamente fui trazida para cá.

    Dizendo isso, olhou para todos, e antes mesmo que alguém falasse, sentenciou:

    –– Se houver uma próxima vez, quem sabe possamos nos conhecer melhor –– conclui a fala, olhando para o Governador.

    Ele bateu a mão com toda força na mesa, não de raiva, mas de espanto e alegria. Olhou para o frei e disse:

    –– Frei, existem mulheres que suportam a dor mais do que muitos homens. Eu não duvido que Dona Eugênia seja uma delas. Agora vamos aos fatos. No tempo certo, a senhora, ou melhor, você, Eugênia, irá encontrando as suas respostas. Um pouco de paciência, pois o assunto é de governo. O dever de Estado nos obriga ao sigilo, e da mesma forma que o exigi a todos, o mesmo se aplica a você. Tendo ou não uma próxima vez... O inventário da reunião será lido pelo Ouvidor-Mor.

    Camilo recebeu como uma honra a incumbência. Ele tomou algumas folhas nas mãos e recebeu do Governador a ordem de ler apenas as folhas marcadas em vermelho.

    –– Estamos sendo exigidos pelo pouco tempo que temos. Convém lembrar uma vez mais a estreita observância de que aquilo que for falado nesta sala nunca poderá dela sair. Mais do que um pacto entre pessoas, seremos regidos pelo estrito código de silêncio do Império. Pode começar a ler agora, Sr. Camilo.

    Antes que algo fosse dito, Eugênia pergunta:

    –– Um momento, por favor. Que código é esse?

    O frei, que estava se mexendo o tempo inteiro na cadeira, resumiu:

    –– É bem simples: se romper o código, paga-se com a vida, ou, na melhor das hipóteses, se conseguir a sorte grande, vai ao degredo africano.

    –– Se eu não estiver de acordo e não assinar este pacto?

    O Governador, com calma, pondera:

    –– Dona Eugênia, todos perderam a chance de escolher quando atravessaram aquela porta.

    –– O senhor afirmou que se houvesse uma próxima vez... Julguei que estivesse falando do exercício da minha liberdade. Além do mais, já disse que não escolhi estar aqui, fui trazida.

    Quase como uma sentença, o Governador esbraveja:

    –– Todos os que estão nesta sala deverão se submeter ao referido código. Disso não se fala mais. Sacrifícios terão que ser feitos e está bastada esta conversa. A senhora veja bem como se comporta, pois, dependendo do que aqui for aplicado, nem voltar mais para sua casa a senhora volta.

    –– Pelo amor de Deus, do que vocês estão falando? –– interpelou uma Eugênia, assustada.

    –– Se você não mais interromper a leitura do relatório, logo ficará sabendo. Se ajudar, tenha sua vinda aqui –– como você mesma disse –– como uma responsabilidade confiada. Isso será útil.

    –– Embora muitos tivessem conhecimento do que se tratava, fatos novos surgiram. Estamos a desenterrar defuntos. Bom mesmo era deixar do jeito que está, mas à ordem de uma Rainha não se mede a carga: carrega-se o peso e a ela se cumpre e se cala.

    Eugênia era uma mulher de fazer ela mesma a própria vida, mas estava ali em uma luta que não era a sua, em um lugar que não era o seu e com pessoas que em nada lhe diziam respeito.

    O pior ainda estava por vir. Algo, porém, deve ser celebrado. Era, até aquele instante, inimaginável uma mulher na sala da Casa Real. Mais ainda: estar a se fazer ouvir. O terreno, contudo, não estava domesticado. Haveria de se ter cuidado com as areias movediças que cada um tinha a ali lançar. Repudiar Eugênia seria um erro? Tê-la em importância de salvação seria outro? Ao menos por enquanto, deixa-se a vida a fazer seus prosseguires. Só o tempo dirá quem tem passos a dar por si mesmo.

    O Governador ordena silêncio:

    –– Que todos se atentem à leitura do Relatório.

    Lobos também sentem medo

    O que estava a vir daria aos homens deste lugar a chance de medirem seus ombros. Os que se movem pela força deverão ouvir os que discernem com as mentes.

    Não se verá lado certo ou errado, bom ou ruim.

    Passado e futuro estarão colidentes, pois o presente, em grande susto, não deixará marca ou espaço para mais nada, senão para os riscos.

    A palavra está com o Ouvidor.

    –– Deixamos tudo acontecer, pois as ordens eram para que assim o fosse. Deveríamos proteger os religiosos, assim o fizemos. Pelo que sabemos, eles cresceram e se multiplicaram, e a isso assistimos e consentimos. Parecem ter crescido em desmesurada conta, e nada se agiu, deixando tudo em vista grossa. Esse assim fazer deu o avanço ao que se está hoje. Não há culpados a se buscar. Eram mandados a obedecer.

    –– Senhor, senhor, aqui –– disse o Capitão-Mor, querendo justificar aquilo que os fatos lhe davam a compreender.

    –– Quando soubemos dos andamentos desses fatos, as tropas estavam todas ainda aqui. Nosso propósito, se fosse o caso, aplicava campanha em imediata ação. Mas todos julgaram melhor nada fazer. Foi que o se fez. As armas dormem ou caminham debaixo de mandos. É o que sabemos praticar. Somos homens de ordens a cumprir. Se fosse em outros tempos, o serviço seria de pouca consideração.

    O Capitão era muito respeitado por suas tropas. Era incansável nos combates, a quem das guerras nunca se viu fugir. Não era de muitas letras, era das melhores armas. Era de fazer e estava ao lado do Governador, que via como a um homem sem dúvida a pairar.

    –– Capitão, não se ataca quem está sob a proteção do Rei. Além do mais, aquela gente, pelo que sabemos, só trouxe coisas boas para

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