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Etelvina
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Etelvina

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About this ebook

Etelvina   é um romanc­­e em primeira pessoa, estruturado como o diário de partida de uma mulher idosa, diante do diagnóstico de uma doença terminal. A protagonista mal completou o curso primário, daí o primeiro desafio narrativo autoimposto pelo autor, no plano da linguagem: criar uma voz plausível a uma narradora que se aventura pela primeira vez na escrita. Ela conta da sua passagem por quatro locais muito distintos: o vilarejo em que viveu seus primeiros vinte anos, a fazenda em que passou as duas décadas seguintes, levada pelo marido, a cidade pequena em que residiu por mais dez anos e a cidade grande em que se fixou até o tempo presente, em que escreve, aos noventa anos. 
No decorrer de curtos capítulos, alternando tempos sem cronologia definida, percebemos, a despeito do vocabulário restrito e das limitações de recursos gramaticais, o surgimento de uma musicalidade muito lírica, indissociável de sua escrita, repleta de oralidade. À medida que se aproxima o prazo do pano de fundo proposto, ou seja, o da morte iminente, vamos percebendo o surgimento do verdadeiro drama em questão, o do silenciamento dessa mulher em uma sociedade dominada por homens, em que a ela foi destinado apenas um papel na vida: servir. 
A narrativa aponta para o que foi, mas sobretudo para o que poderia ter sido essa personagem no tempo, caso vivesse em um mundo não patriarcal. Na construção do romance, Marcílio Godoi não apenas se inspirou nas histórias contadas por sua mãe e nos acontecimentos descritos por ela ao longo de sua vida, o autor procurou sobretudo explorar a simplicidade naturalmente literária da prosódia interiorana de Etelvina e a alta dose de sabedoria popular ali presente. 
LanguagePortuguês
Publishere-galáxia
Release dateSep 7, 2022
ISBN9788584742905
Etelvina

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    Etelvina - Marcílio Godoi

    > 1

    AQUI, ABRAÇADA aos envelopes dos meus exames de imagem, olho pro nada enquanto decido onde vou esconder isso. Não vou deixar minha vida virar novela. Nem vou ficar de olho caído e cara borrada de fuligem, borra de maquiagem, feito palhaça que diverte os outros com seu drama. Voltei do médico agorinha mesmo. Fui com a Chica, a empregada, que me esperou na salinha. Entrei sozinha. Lá dentro foi rápido. O doutor, frio e direto, como cabe a um bom plano de saúde. Seco, não sei dizer se é assim mesmo que se faz. Olhou os exames por cima dos óculos, o braço esticado. Passou as páginas dos laudos, dessa vez por baixo dos óculos. Parecia alguém procurando uma palavra no dicionário. Depois disso, juntou aquilo tudo num silêncio monstruoso, atirou os envelopes sobre a mesa, como que dizendo que nada mais precisava ser visto ali, que nada mais precisava ser feito ali. Tirou os óculos e foi dobrando a armação com uma lentidão que dava nos nervos. Depois colocou eles com cuidado no bolso do jaleco, onde dava pra ler o nome e a especialidade de doutor num bordado fino, azul. Até que, sem me olhar nos olhos, vesgo de indiferença, disse, como quem faz um pedido numa lanchonete, que sentia muito, mas que o câncer havia tomado o peritônio e que estava em estágio avançado, três ou quatro. A sobrevida, nesses casos, costuma ser de pouco mais de um ano, disse, calmo de estarrecer, deixando o rabinho da última palavra, Talvez. Eu fiquei assim paralisada, sem saber pra que banda ia aquele Talvez. Não foi pra banda nenhuma. Palavra foi feita pra ser usada nos momentos que não a gente não tem muita certeza. Quando se tem certeza absoluta sobre qualquer coisa, a palavra desaparece, pode reparar, fica sem serventia. De todas as que ele usou em seu breve palavrório, a que mais me pegou foi a tal da Sobrevida. Mesmo que não viesse acompanhada da faca fria daquele Um ano, talvez. Talvez. Quem sabe. Mas a gente sabe. A gente sempre sabe. Sem tempo pra baixar a cabeça, soquei aqueles papéis de cobra na sacola colorida, dessas de feira, chamei a moça na salinha e fomos pra casa. Fazer almoço. Da janela do táxi, olhando a rua, eu nem vi que tinha chegado, sair como, eu, que mal tinha entrado naquele carro. Na cozinha de casa, enquanto a Chica cortava umas grossas fatias de abobrinha já cozidas pra enfeitar a salada, tomei o primeiro pedaço de papel que vi pela frente e anotei ali, Meu Deus, fazei que eu desligue de tudo que não mais me pertence. Colei aquilo na porta da geladeira com um ímã de farmácia e fui refogar a couve. Foi o meu jeito de dizer a todos o que estava acontecendo. Apertei na mão com força a minha medalha milagrosa. Eu tenho um ano, Talvez. Pra santinha das Graças, enquanto eu ia picando a cebola, aproveitei pra pedir o de sempre, que os meninos não sofram com o meu sofrimento e que tudo dessa passagem se dê sem grandes traumas de morte que, de amarga, basta a vida. E os médicos. O povo meu passa lá, lê aquilo quando vai pegar água na geladeira e, entre um gole e outro, diz coisas como, Bonito isso. É da Bíblia, mãe? Digo que é, que é, sim. E não digo mais nada. Nem pretendo dizer. Estou velha demais pra radioterapia ou quimioterapia e lúcida demais pra não saber que de nada vai adiantar ficar alardeando o quanto padeço. Guardo pra mim nos meus quase noventa anos o quanto posso da intimidade tão funda desse momento. Morrer é a coisa mais particular que tem. Em vez de provocar um drama familiar, uma procissão de despedida, cheia de compaixão e choro, resolvi entregar tudo na mão da minha santinha. Como bem repete meu marido andando pela casa, Quem tá com a coisa é que sabe. Comigo, levo a água benta num vidrinho e o pano, o retalhinho de agnus dei na bolsa que não me sai do colo. Tenho também uma oração pregada atrás da porta do quarto, escondida atrás do roupão. E o meu terço de rosas secas, que, quanto mais eu uso, mais as pontas dos meus dedos ficam perfumadas. Tudo está quase pronto. No mais, tenho essa vontade louca de aproveitar o restinho, nisso que o povo chama de fé, vai que eu me cure mesmo, por que não? Depende de eu achar a novena certa, de pedir com jeito, de agarrar com Deus e não deixar que ele me abandone aqui. Decidi seguir em frente. Meu Deus-mulher não vai se esquecer de mim. Estou agarrada ao que me resta dessa vida, tão bonita ela. Levanto meu queixo, abaixo meu queixar. Eu ainda vejo muita vida aqui nas minhas toalhas bordadas, nas minhas rosas meninas, nos meus cachepôs polidos. Isso pra não falar dos meus filhos, seus filhos, os filhos que estão vindo deles, essa corrente de pequenos grãos de milho grudados uns nos outros, plantados ao sol de cada estação. Quem tá com eles é que sabe.

    > 2

    TUDO É feito de seu começo. E eu venho disso que sou. Sou feita de carne, osso e da pouca mágoa que eu me lembre agora ou que mereça arrependimento. Minhas tristezas, com o tempo, foram se dissolvendo no sangue ralo de uma chance grande que sempre figurei no pensamento, a de que tudo talvez nem tenha acontecido mesmo. Sempre tive na vida uma certeza, a de que o tempo redesenhava tudo, passava as coisas todas a limpo, de um jeito mais conforme. Então, talvez que eu seja feita metade das lembrança que perdi, metade dos sonhos que não dei de realizar. Talvez que eu seja só isso o que a vida acabou me dando no fim, passado e futuro, tudo junto, uma coisa toda se desfazendo no desfeiteado do meu sem tempo. Fui mulher de religião, de ir na igreja, como se costumava dizer, como se isso fosse um selo de garantia da minha bondade, da minha castidade, minha pureza. Rezar era também um atestado de que eu não estava louca. Então eu rezava. Pra bater bem das bolas. E represei em mim tudo o que me amofinava como uma forma de ter paz. Sou de um tempo que só se podia aceitar. E sem muita pergunta. Quando menina na cidadezinha, depois quando mulher no campo, depois quando senhora na cidade grande, queriam de mim só isso, uma espécie de não ser, de não me atrever a pensar. Agora eu vejo, uma parte de mim ficou parada naquele ponto, entre dois caminhos. Mexo com isso de escrever aqui, uma hora tarde dessas, quem sabe, pra poder voltar naqueles quadros, naqueles quandos da estrada, por um instante que seja. E talvez entender o que se deu ali, como se deu. Nos primeiros vinte anos da minha vida, Deus era com quem eu conversava, virou um alento, uma palavra que no fundo era a minha mesma, consolo das ameaças diárias sobre a menina pobre que fui. Depois de casada, por outros vinte anos na roça do Amanhece, Deus era um choro de filhotes indefesos, os olhos d’Ele neles arregalados pra mim, na imensidão escura da fazenda, no ermo mais selvagem. Uma cobra, um raio, uma onça ou uma doença boba podiam me levar um filho meu. E só havia Deus. Depois é que vieram as outras coisas mesmo, assim, coisadas, sem Deus. Depois mudamos pra cidade pequena e pra cidade grande. E Deus também foi mudando em mim, foi virando outra coisa, mais inteligente. Coisa de não pegar com a mão. Acho que foi no dia que eu vi a escada rolante, na Mesbla ou foi na Sears, uma coisa que me chocou muito, ou quando eu topei de cara com o mar pela primeira vez. Aí Deus foi ficando uma coisa mais comezinha, mas ainda assim cheia de sofrimento e culpa. Só depois dos filhos mais ou menos criados é que fui tomar a coragem de ir fazendo com que Deus, aos poucos, fosse se transformando no que ele é hoje pra mim, na Santinha que levei dependurada no peito a vida toda. Assim, por linhas não muito tortas, naturalmente que meu Deus foi virando sua própria mãe. Ou a minha mãe, não sei dizer… Não sei como me chegou esse Deus-mulher pra mim. Talvez que da intimidade de duas comadres conversadeiras, eu e Ela, quem sabe, minha santinha. Talvez porque a gente era igual, fervorosas devotas de nossos filhos, ela mais amorosa, eu atrás, com menos graça, me inspirando na luz dela, no seu Fio. Talvez que tenha sido pelo tanto que pedi, nas catorze vezes que engravidei, como se pede a uma amiga parteira, que é mais conversadeira, que intercedesse por mim. E foi de jeito que a intimidade com ela pegou. Fez chama e fez brasa. Fez sopro. E eu já tinha rezado tanto nessa vida que não dei de achar jeito de dizer de outra maneira que não fosse em fio de oração tanta coisa que eu sentia e queria botar nesse mundo.

    > 3

    ERA UM azul levinho, coado nos raios das primeiras luzes da madrugada. Era um sol fresco logo intrometido na cerca, entre alguns pés de bucha e chuchu, com flores amarelas, não sei se alamandas ou o buquê da moita do murici se engraçando no campo quando o ano cisma de acabar. Talvez que fosse a rosa do cerrado quando seca. Talvez não. Não sei dizer isso. Mas sei que era a friagem e a quentura dessa vida inteira, criadeira, mudando o rumo das coisas pelando de fogo sem que a gente pudesse pôr a mão nem assoprar antes. É de manhãzinha na minha lembrança. Mas o que eu sei dizer é que era a borra. A borra do fogão de lenha, a borra da réstia do café no pano encardido do coador, a borra da fuligem no cano da serpentina, a borra no latão de colher esterco, a borra na vasilha do leite, a borra no final do casulo já sem fios de algodão no carretel. A borra de tantos escuros enodoados de carvão pra se arear no tacho, a borra do chão breado, a borra dos lutos e dos erros que me fizeram padecer desde cedo nessa vida. Não era tristeza. Era só a borra o que eu via. O pó sobre a mobília, o defumado do piche de depois do fogo, os cinzas de tantas cinzas que formaram o borralho frio de onde escrevo agora, já no fim do meu longo dia, eu é que sei. O que eu vou dizer é isso, que eu sou toda feita dessa borra, do breu de betume de quando me dei por mim e já era de tarde querendo anoitecer. Mas lá fora tinha um imenso clarão no céu, e eu não era infeliz. Eu sempre soube que a vida me seria só esse espacinho mesmo, entre o relâmpago e o trovão, bem no centro da borra. E o que ela pedia de mim era uma coisa só, lá no seu dentro mais dentro, fome. Fome e dúvida, que é o jeito que a gente acaba encontrando de andar pra frente. Então a minha lida veio disso, da borra e da fome, da certeza de saber meus pés descalços junto das achas, em torno do fogão de lenha, apanhando borralho do chão. O fogão de lenha era um tubo, uma torre no meio do mundo que me ligava ao céu. Eu nunca me esqueci dessa minha primeira lição, que todo pau é lenha, que qualquer galho catado, toco, graveto, que qualquer estilha possui o fogo em si. Assim, o pé da mesa que a gente comia era uma grande tocha adormecida, luz esperando pelo seu instante de fogo segurando tábua, segurando prato, segurando feijão, segurando gente, gente que também um dia há de se consumir. E, se foi assim por todos esses longos anos, que seja ainda assim mais um cadiquinho, um outro tanto desse, na carreira, no borrão da gente aqui escrevendo com esse grafite pregado de borra no papel da minha memória, antes que nem de mim nem dele eu não possa mais me lembrar.

    > 4

    O VULTO do meu pai está cruzando lento o céu do meu pensamento. Feito um balão. Daqui posso ver e recordar aquele sujeito magro, calvo, um gogó elegante roçando colarinho e gravata. E sempre vestido no balanço daquele seu terno branco, de linho cento e vinte, conversando animado com os amigos na praça. Meu velho era poeta de marca maior, vivia encantado e desafiado pela graça das palavras. Seu maior feito foi a homenagem em púlpito oficial que prestou, como orador da cidade, ao futuro presidente da República, na época, em campanha ao governo do estado, e de passagem pela nossa cidadezinha. Isso tudo em mil novecentos e eu menina. O pai brincava com todo mundo, fazia boa figura, como ele gostava de dizer. Às vezes tinha lá o seu destempero de humor, meio sistemático, mas muito amoroso. Acendia um Continental sem filtro no outro, tossia e escarrava dentro do jornal como se dado por lido, meio que desmerecendo alguma notícia que não concordasse. O olhar dele ia longe, sempre escapado num atalho pra fantasia. Minha mãe era pessoa simples, transparente. Ele, não. Ele tinha inteligência inquieta e padecia de sofisticada ironia. Aquilo que ele chamava de Verve. Vai saber o que ia no seu pensamento… Pelo franzido da testa, a gente desconfiava que seria intuição, trocadilho ou só mais uma maquinação mesmo o que viria dali. Podia ser poema, podia ser palpite de jogador, xingamento mal digerido rolando pelo fígado, tosse ou só mais uma promissória vencendo mesmo. A silhueta dele paira imensa e colorida como um zepelim no meu altarzinho de recordações, vejo suas duas mãos, grandes, magras, desproporcionais. Tinham as veias saltadas, as unhas amareladas, frisadas, duras. E um cheiro inconfundível: mistura de linotipo de jornal, fumo, perfume de Aqua Velva mentolada dos barbeiros amigos seus e, no fundo, um misterioso travo, talvez das mulheres da rua do Alecrim, onde ficava a zona boêmia da cidade. Um dia, meu irmão me contou como tinha sido sua primeira vez, ainda rapazote, na zona. Ele tinha ido com uma mulher muito carinhosa e estava disposto a voltar lá outras vezes, confessou à prostituta. Mas ela se fez de difícil. E alertou meu irmão, Você vai ter que ver se o rei da zona vai deixar!, Rei da zona?, perguntou o menino. E ouviu, assustado, a resposta da meretriz, Sim, o seu

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