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A Pedra Dos Sonhos
A Pedra Dos Sonhos
A Pedra Dos Sonhos
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A Pedra Dos Sonhos

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Um jovem acorda sozinho, no meio de um deserto, sem ninguém à vista, e sem memória alguma a respeito dele mesmo e de qualquer outro elemento que o cerca. Ele não se lembra nem de que há um mundo ao seu redor, que existem outros como ele, cidades e nada sobre organizações sociais. Apenas com algum instinto de sobrevivência, e uma aguçada intuição que muitas vezes o impele a continuar, ele tenta achar algum caminho que leve às respostas mais urgentes para si - sobre a sua existência, sobre a possibilidade de haver mais alguém como ele, e sobre o que teria acontecido para ele ser abandonado à própria sorte num local tão remoto. Internamente, ele percebe que os seus processos mais profundos, inconscientes, também estão em conflito, querendo aflorar, e conseguindo dominá-lo muitas vezes, mesmo que acordado e consciente. Com esses sentimentos, vai desbravando um mundo que não se parece em nada com a nossa realidade atual. O ano é 2066, onde se observa um planeta muito modificado após uma longa e traumática guerra mundial sem precedentes, que multifacetou a Terra e transformou-a em redutos quase isolados, pouco tolerantes entre si, e habitados por seres diferentes . É nesse contexto que o jovem tentará responder a questões como quem ele é e de onde se origina; como voltar para casa num ambiente tão hostil, se existir algum grupo ao qual ele pertença; e finalmente, se há algum responsável pelo castigo recebido - se não fora ele mesmo. Porém, o maior desafio ainda o aguarda, caso ele obtenha sucesso na sua tarefa quase suicida. Um projeto de dimensões inimagináveis, que afetará a paz interior e exterior de todos os humanos que pisam sobre a Terra, independentemente da raça à qual pertençam. A Pedra Dos Sonhos traz uma visão fantástica de um futuro pontuado pelo que talvez seja o pior sentimento do ser humano em relação a outro - o preconceito - pontuado por questões fundamentais sobre sociedade, globalização e respeito, e ao mesmo tempo, discute preceitos de Jung e Freud na análise do comportamento e da vida do homem.
LanguagePortuguês
Release dateOct 1, 2012
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    A Pedra Dos Sonhos - Rafael Melo

    PREFÁCIO

    Os dizeres populares concordam que o ser humano é um ser extraordinário, capaz das maiores proezas, pronto para realizar feitos que apenas em sonhos poderiam acontecer. A história da humanidade, os próprios campos das artes e da filosofia, também atestam para essa tendência fantástica do homo sapiens. Porém, assim como para o lado positivo a imaginação é ilimitada, para as intenções negativas e sombrias também não existe fim para a criatividade do homem.

    A Pedra dos Sonhos é, antes de tudo, um projeto. Nasceu de uma música, de autoria desse que se apresenta aqui, e que mostra uma das facetas do que esse livro se propôs a mostrar: o lado sombrio, oculto e desconhecido da mente humana, manifestada em sonhos e em tudo aquilo que Sigmund Freud desenvolveu e defendeu no início do século XX. Mas, a música, que explora a mágica de um mundo fascinante, porém perturbador e pouco explorado, não era suficiente. Ela requeria algo mais. E de uma das características mais lembradas mundo afora para os sonhos – o seu suposto caráter premonitório – novas intenções floresceram da canção. A ideia tornou-se mais ampla e complexa: o futuro e os seus segredos. É possível apontar um? Melhor perguntando, há como se apontar, com grande possibilidade de acerto, o que virá a acontecer em alguns anos?

    Assim como a questão remete-nos a pensar, e sempre terá inúmeras variáveis, a resposta é igualmente aberta. No entender desse autor, cada um pode imaginar o que está reservado para nós a partir do ponto da linha do tempo em que estamos. E assim, decidiu-se exibir tal ponto de vista. Daí nasceu A pedra dos sonhos: uma outra tentativa de vislumbrar um futuro tendo como base fatos e situações do presente. Porém, é conveniente lembrar que o livro anterior também tinha essa mesma intenção. Por quê?

    Ambos fazem parte do mesmo projeto: duas visões de futuro distintas, e embora não pareçam, são completamente antagônicas. Um acredita mais no consagrado final feliz, prevê bons fluídos para os próximos anos da aventura humana na Terra. O outro aposta em nuvens, trovoadas, tempestades e tempos sombrios para os habitantes da Terra. Esse outro é justamente A pedra dos sonhos, que reúne esse teor justamente pela temática que se valeu para desenvolver a sua história.

    O preconceito é algo quase tão antigo quanto à presença do ser humano na Terra. É algo mais que cultural: pode-se dizer instintivo. A primeira impressão em si, algo tão natural e difundido (e porque não estimulado?) pela sociedade, já se configura em um pré-conceito. A história universal não mente: muito do que somos hoje foi construído em cima de discriminações e julgamentos baseados em características físicas e mentais. As religiões e a escravidão falam por si só.

    A Pedra dos Sonhos vê isso como corriqueiro no futuro próximo. E vai mais além: tenta comprovar que é isso justamente o que atrapalha o desenvolvimento da futurista, porém delicada, sociedade de 2066 (ou 10 dGC, conforme a terminologia criada para aquela época). É um dos maiores obstáculos, inclusive, para o protagonista da história, principalmente na primeira fase de sua jornada.

    Por outro lado, há os processos mais íntimos, regidos em cada indivíduo pelo interior de sua psique. O Id é o responsável pelos sonhos, anseios e pulsões do homem, conteúdo geralmente reprimido e impróprio para a vida dita normal, egótica. Com linguagem própria, suas manifestações são difíceis de discernir por uma análise superficial. E o controle dessa poderosa ferramenta mental faria do detentor de tal dom um proeminente vencedor, tanto nessa sociedade hipócrita, conservadora e preconceituosa de 2066 quanto em qualquer outra.

    Assim, chegamos aos objetivos principais do livro. A interdependência entre pessoas, entre povos, entre diferentes, não é só atraente e ideologicamente correta. Ela é necessária. Nenhum ser humano sobrevive sozinho com autonomia. Ele precisa do contato com os seus. E o preconceito é a maior arma contra a busca pelo outro. Na história, o ataque a ele é massivo, ou se propôs a ser assim. Ao mesmo tempo, o autoconhecimento e a valorização dos desejos ocultos também são primordiais. Quando corretamente mediados e manipulados, atacam o problema pela raiz: se o preconceito é enraizado, a sua cura também. Os sonhos dizem-nos tudo, precisamos apenas interpretá-los. As manifestações do Id são inúmeras, nunca damos a devida atenção a elas. Se o planeta o fizesse, muito do mal produzido pelo homem não seria estrela dos nossos noticiários atuais. Aliás, nem esse livro existiria, já que ele se pauta pela premonição de um futuro no qual o homem é ainda mais preconceituoso contra si mesmo. Algo que, em menor escala é claro, já ocorre nos dias atuais.

    Tenham, com vocês, o mundo complexo e ficcional criado para abrigar uma história com tais ingredientes. Um planeta assim, fantástico demais para quem começa a entender, não está longe de vir a existir. Como poucos gostam de admitir quando pensam nas grandes tragédias, isso pode acontecer com você também. O pessimismo, explicado linhas acima, está em toda a parte, inclusive nos próprios sonhos. O mundo escuro e desconhecido também. Isso também pode ser construído pelo homem, que não tem mãos só para o bem. Porém, ainda resta um fundo de esperança, pelo menos nesse livro, para os personagens que ainda acreditam num mundo melhor. E na vida real, eles também existem.

    PARTE 1

    RECONSTRUÇÃO DA REALIDADE

    Domínio:

    INCONSCIENTE

    I            1

    DESERTO

    1            I

    EU

    Despertei. Minha cabeça roda. Estou deitado, tonto. Não estou bem...

    Acabo de levantar-me. Olho em volta, não me reconheço, nem reconheço o ambiente que me cerca. O que é isso? Que paisagem é essa?... Quem sou eu?

    O que sou eu? O que significa o eu, a minha pessoa? O que são essas palavras que estou pensando?

    Estou atordoado, confuso. Sei, ou imagino, que não devo ser o único. Entretanto, também desconfio de que o meu estado não é normal. Mas, o que pode estar errado comigo? O que posso fazer se nem ao mesmo sei quem sou, o que é isso, o que significam todas essas sensações... e onde estão os outros iguais a mim... se é que realmente existem...

    Começo a andar. Algo em mim diz que minhas perguntas têm respostas, as quais são as que espero e imagino. Na minha mente, uma dança confusa de imagens recém capturadas com outras, que não sei o que representam... que eu nunca vi ou vivi... ou, de acordo com a minha voz interior, que eu não me lembro.

    De pé, observando a paisagem em torno de mim. Não me remete a nada. Sou uma pessoa sem reações frente a tudo isso. Não sei o que é nada. Preciso de ajuda...

    Estou desesperado. Cansado, raciocino e não penso, não chego a ponto nenhum, vou e volto ao mesmo lugar no meu inquieto interior... mas, consigo pensar nesta estranha forma de expressão, conheço algumas palavras, sei o significado da palavra palavra, mas não sei de onde tudo isso vem...

    Ponho-me a chorar, algo não vai bem, sei que estou fora do normal... afinal, alguém é normal com tantas dúvidas, com tanta angústia?

    Alguém me ajuda, por favor... alguém, sei o que é isso. Se há uma palavra para designar outro semelhante a mim, é porque realmente existem outros como eu. E podem me auxiliar.

    Cesso as lágrimas. Estou melhor, sei que posso ser compreendido. Mas não sei aonde ir. A minha volta, a mesma visão. Começo a sentir algo em relação a isso. Não me faz bem olhar para este lugar tão... desolado? É este o vocábulo?

    Sinto-me mal ao observar este ambiente. Desolado sim, é isso. Vazio, monótono, uniforme. Apenas areia e pedra, vento e poeira. Não há outras cores diferentes de amarelo, laranja, vermelho e bege. Tudo me dá um aspecto de calor.

    Calor... estou molhado, e água é o que não há aqui. A água vem de mim. Calor... é isto, estou acalorado, muito quente este lugar... não me sinto bem comigo mesmo e também fisicamente... preciso sair deste inferno o quanto antes.

    Inferno... sei o que é isso, mas estranho não ter imagens sobre. Como as outras palavras as quais vou descobrindo enquanto penso... pensar, é claro! Conheço o seu conceito. E sei como melhorar o meu interior... pensando, e de preferência, para alguém ouvir. Para que alguém, em algum momento, possa ouvir... e me ajudar em seguida. É isso.

    Sei que é urgente sair deste... inferno. Vou morrer... morrer. Penso, falo, relembro significados que o meu eu interno diz que já conhece. Morrer, este é o risco máximo. Passei perto dele, estava dormindo neste lugar, sabe-se lá há quanto tempo...

    Ponho-me em movimento, em direção a qualquer lugar. A paisagem é uniforme, não há referências. Penso que qualquer caminho é caminho, dará em algum lugar com alguéns pra me ajudar.

    Penso para eu mesmo ouvir, e quem sabe um outro. Isto é... falar, é, é isso. Falo o que penso, recordo o que sei, mas não sei que sei.

    Confundo-me, e canso-me. Física e mentalmente. (Mentalmente, é claro!). Novas palavras, velhas ideias. O meu mental não vai bem, este é o problema. Mas, a minha sobrevivência está em jogo. Para salvar a minha mente, preciso conservar viva a minha porção material.

    Uma frase inteira com nexo. Não sei, acho que estou agindo por algum tipo de voz, algo que me diz sem que eu pense aqui dentro. Há uma palavra para definir isto?

    Alguém me ajuda, alguém me ajuda... volto a chorar, a gritar, sinto as forças indo embora. As internas e as externas.

    Corro, valho-me das minhas últimas energias. Não é possível eu ser o único ser nesta paisagem horrorosa, medonha... ninguém pode viver desta forma, sozinho, em um lugar... hostil.

    Paro. O calor começa a vencer-me. Olho à frente, vejo o horizonte... horizonte, mais uma... o número de palavras relembradas já não é o mesmo...

    Horizonte. É alguma coisa brilhante, esfuziante. O que será aquilo? Consigo chegar até lá? Sinto alguma coisa estranha, uma necessidade física. Estou molhado... suado... é isso... e quanto mais me movimento, pior eu me sinto. Será que eu preciso repor esta água?

    Água... se estou molhado, é porque existe água fazendo-me ficar molhado. É água no horizonte, o chão treme, distorcido. Estranho que, à medida em que vou andando, buscando o horizonte, a distância entre ele e mim parece ser a mesma.

    Olho ao meu lado: mais próximo, parece mais verdade... água... preciso urgentemente dela, vou morrer... corro, dou um último arranque. Mergulho nessa maravilha refrescante, empanturro-me do molhado. Agora sim, molhado, mas molhado de um jeito muito mais confortável. Sai do lago... lago... e deitei-me novamente. Meus olhos ardem, minha cabeça emite uma série de símbolos esquisitos...

    O cansaço venceu-me...

    II                      2

    O ONTEM DE AGORA

    2       II

    21/maio/2015_14:27’35

    ONISCIENTE

    Aquela tarde nunca foi encarada como o início da mudança da ordem mundial de cinquenta anos depois.

    - Estamos prontos para a nossa evolução – o laboratório fervia naquele dia. O cientista principal anunciou aos funcionários e curiosos. Lá dentro, era algo aberto, mas para a sociedade, o que estava prestes a ser desenvolvido ainda era sigiloso... e subversivo.

    - Cada um aos seus postos, e todos dando tudo de si – um outro influente cientista bradou. Espalhava-se a participação coletiva, mas pregava-se o reconhecimento de poucos (ou a palavra seria apedrejamento?).

    - Vamos, Dr. Carlos – o primeiro comandou, aos cochichos. O segundo, submetido, mas importante no processo, obedeceu.

    - Quando vamos receber? O que me importa é isso, vamos dar a nossa cara para bater, Santini.

    - A começar aqui dentro, meu caro – Santini, o mais influente, concordou.

    O processo de pesquisa havia sido árduo, difícil. Custou muitos anos de estudo, muitos aborrecimentos, e acima de tudo, muita discrição. Enquetes sutis foram realizadas, o assunto foi intensa, mas delicadamente, debatido. Tudo num ambiente de brincadeira e improbabilidade. E pensar que a discussão começara há tanto tempo antes, antes mesmo da virada do milênio...

    Ainda não há um consenso. Não houve evolução intelectual, no que se refere ao tema. As opiniões pouco diferem, talvez o número de adeptos da ideia é que tenha aumentado. Porém, não na proporção suficiente ou aceitável.

    - Todas as saídas cromossômicas devem ser liberadas, todas as entradas devem ser desimpedidas. Todos esses anos de pesquisa nascem ou morrem aqui, hoje. Pioneirismo e ousadia, é o lema a ser recitado e disseminado. Isso tem que nos dar evidência social – Santini expunha o que ele considerava como seus preceitos comunitários.

    As sirenes tocaram dentro do complexo científico-genético. Fora dele, nos departamentos mais inferiores da hierarquia, nada podia ser ouvido, ou até mesmo compreendido. Todos acham saber tudo, mas se negam a entender que nada conhecem. Sabem apenas aquilo que a cúpula deseja passar e informar.

    As portas automáticas computadorizadas foram lacradas. Apenas números podem abri-las novamente. Números e informações genéticas. A violência dera lugar à inteligência. Mas, apenas na tecnologia. Na mente humana, a evolução havia cessado há muito tempo.

    O ato, controverso, polêmico, benéfico, porém maléfico, do modo que se iria apresentar ao mundo, teve o seu início.

    III            3

    ANDARILHO

    3            III

    EU

    Acordei. Mais uma vez. A água cobre os meus pés, sinto-me melhor das vertigens. Água, vida. Espere. Tenho que caminhar, e pelo jeito, bastante. Não há viva alma por aqui, e a paisagem parece ser a mesma por muitos quilômetros... tenho noção de espaço e distância... quilômetros... preciso levar esta água, não sei quanto tempo farei de caminhada, mas ela promete ser bastante longa.

    Onde armazenarei água? Estou um tanto longe de onde despertei pela primeira vez. Será que havia algum pertence comigo lá?

    Não posso voltar, perderei tempo e energia. Talvez, se encontrar algum recipiente por aqui mesmo, perto da água... no lago, com certeza. As pessoas... pessoas, claro. Elas realmente existem, elas realmente existem, eu conheço a palavra!

    As pessoas costumam jogar o que não querem ou não tem mais serventia em qualquer lugar.

    Mais um mergulho naquela água surpreendentemente gelada, mas mais profundo. O fundo interessa a mim.

    Não posso respirar quando estou aqui embaixo, a água é vida, mas pode causar a morte... começo a ter noção de limites. Estou recuperando gradativamente as lembranças dos conceitos... memória, é isso! Estou sem memória, claro. É por isso que estou tão confuso, atordoado...

    Enfim, algo que serve para guardar água. Um monte deles. Como se chamam? Será que qualquer coisa que possa conter algo é chamado de recipiente?

    Volto à tona, o tempo parece estar mudando. Não sinto tanto calor, mesmo quando estava seco, fora da água. Lembrei: estou num deserto. Não há água, não há vida, não há ninguém... a não ser o calor, o sol, a areia... e este oásis... oásis, como é bom recordar as coisas.

    Encho de água quantos daqueles recipientes conseguirei carregar. Não sei qual o tamanho da andança, por isso, é bom estar prevenido.

    Começo a andar. Perguntas brotam na minha cabeça. Algo que me parece bastante natural, mas extremamente perturbador: quem sou, tudo bem, já perguntei alguma vez. Mas, como vim parar aqui? Quem ou o que me trouxe a um lugar como este? E para quê?

    Meus pensamentos voltam a me atormentar. Se alguém traz outro para um deserto, sem nada ou ninguém que possibilite alguma sobrevivência, significa que a pessoa trazida não é desejada junto aos outros. Ou seja, não estou aqui por acaso. Não me querem junto aos demais. Mas, o que eu posso ter feito para tamanho castigo?

    Lágrimas, de novo não. Não me lembro de nada, não recordo de pessoas, de lugares, do meu passado... passado, este é o problema. Ele simplesmente não existe na minha cabeça, nem o meu... nem o das outras pessoas.

    Prossigo na caminhada, minha cabeça lateja de cansaço, de perguntas inquietantes sem respostas... e o céu tornando-se escuro, o clima mais frio, o vento mais forte.

    Noite. É claro, noite. Está anoitecendo. A situação se complica, noite, num deserto, sozinho, sem comida ou bebida. A água não durará para sempre, e não posso voltar atrás. A distância impede. Parece que nunca há um caminho de volta... aliás, talvez por isso eu tenha parado aqui.

    Não estou mais com calor. Não existe mais calor. Está frio, estou resfriando. Que deserto é este, onde está toda aquela fervura? E este vento ameaça carregar-me. Preciso de um abrigo, vou ser engolido pela tempestade, ou congelar com este frio absurdo e repentino.

    Uma caverna... estranho, desejei água, e vi. Desejo um abrigo, e ele aparece... estou com sorte... e com azar, ao mesmo tempo.

    Não consigo pensar em mais nada, desmaio dentro da caverna, a tempo de ver a tempestade aumentar lá fora.

    IV                        4

    TRANSPORTE MENTAL

    4                     IV

    EU

    As sombras tinham cores esquisitas, o chão era disforme. Tudo indica que esta realidade não é real de verdade.

    Caminhava sem rumo nem objetivo por aquele ambiente estranho. As árvores formavam as ditas sombras, mas o contorno delas nada tinha a ver com as figuras resultantes no chão.

    Comecei a correr. Não sei porque, mas preciso correr. Sinto algo esquisito, estou esquisito desde que tudo isso começou.

    Cheguei em um lugar totalmente diferente daquele onde estava antes, no início. Algo que a minha memória disse que já conhecia, e de longa data.

    Não reconheci, entretanto. Pessoas circulavam freneticamente, todas de um modo robótico, vestidas de um modo robótico. O ritmo é hipnótico, o comportamento é metódico, o objetivo é ilógico.

    Objetivo: isto. O que quero aqui? Como vim parar aqui?

    Entrei, já que estava dentro mesmo. A sensação de vertigem e as sombras roxas insistiam em dominar o ambiente, outrora escuro, sombrio e gelado. Agora, reina uma claridade metálica, ordenada. Em meio às sombras...

    Gente correndo. Pessoas jovens, ferindo todas as sensações captadas. Gente jovem... lembram... lembram a minha pessoa. Eu. Jovem... cores, postura, conversa e ação. Tudo destoante. Corriam desenfreadamente, não olhavam para trás.

    Às costas deles, mais gente correndo. Defensores da ordem, da robotização. Pessoas trajadas da claridade metálica, impregnadas por ela. Até no movimento fora do contexto do lugar era organizado demais.

    Mudança de ambiente, mais uma. Sinto como se estivesse atingindo o ápice. Passei de um desbravador, desvendando mistérios e atitudes, para um mero espectador assustado. As perguntas óbvias rodopiavam na minha mente. E sei que as respostas estão dentro dela, de mãos dadas com as questões.

    Uma explosão.

    V                                  5

    RUMO AO ESPERADO SURPREENDENTE

    5                               V

    EU

    Abri depressa os olhos, sobressaltado, puxando ar de todos os lados. Minha cabeça gira. As imagens ainda dançam na minha cabeça, pedem para dançar continuamente. Lembro de cada detalhe disso... o que foi isso?

    O barulho distante de alguma coisa rangendo interrompeu minha linha de raciocínio. Olho em volta e reparo que a paisagem é a mesma daquela que vi antes de dormir. A caverna... o deserto... o que são essas paisagens esquisitas na minha mente?

    O ruído prossegue, mais alto e seco. A tempestade cessou, o clima morno. Predomina a escuridão, mas alguns fios de luz anunciam o amanhecer. Tenho consciência do ciclo de dias e noites, pelo menos.

    Agora, o barulho é bastante alto. E próximo.

    As dunas parecem não ser as mesmas de antes. O formato delas, a distribuição pela paisagem. Divergem da imagem que tive antes de adormecer.

    Pouco a pouco, uma miragem torna-se nítida, ao longe. Um andarilho, talvez. Assim como eu. Mas, quando os meus olhos realmente começaram a enxergar o dono do barulho, meu coração disparou. Alegria, finalmente. Minha salvação. Alguém semelhante a mim, com braços, pernas e cabeça. Uma pessoa.

    Preciso abordá-la. Pedir ajuda, socorro. Estou cansado, sedento, faminto. Necessidades físicas, somente as quais sei descrever. Ainda existem as mentais. As que não sei nem como se chamam.

    Faço um sinal, o efeito é nenhum. Minha mente pensa rápido: se estou neste lugar porque fiz uma coisa errada, com certeza é porque não virão buscar-me depois. Não terei ajuda aqui. Mais uma vez só. À mercê do tempo.

    Não posso desistir. Se não voltar ao mundo das pessoas por ajuda espontânea deste andarilho, terei que agir de forma mais firme. Luta? Será que foi por isso que fui expulso? Um sentimento de culpa invade minha mente. Novamente, a confusão. Mais uma vez, a insegurança. Preciso de ajuda, urgentemente.

    O andarilho cessa sua marcha. Interrompe o movimento daquele instrumento grande e estranho. Transporta coisas. Porém, pessoas podem ser levadas a qualquer lugar por meio daquilo. Quero evitar a luta. Aproximo-me, como uma cobra prestes ao bote. O andarilho some, momentaneamente. Não o tenho em minha vista.

    Mais uma vez o remorso. A culpa. A mente sente-se criminosa. Isto tem um nome, mas qual será?

    Aproximo-me rapidamente. O andarilho volta a estrelar no meu campo de visão. Está longe, mas está perto. Aquele instrumento é grande, e está cheio de objetos. Todos cobertos com uma grande lona. Não há mais tempo. Entro ali e cubro-me com a manta.

    Mais algum tempo na escuridão, e sinto movimento. O instrumento está locomovendo-se, e bem rápido. No mesmo sentido para o qual eu caminhava. Estava certo.

    Estou esgotado. Encontro água e alguns alimentos. Aproprio-me novamente do que não é meu. Para a minha sobrevivência. Minha mente desaprova, mas meu corpo não. Ainda assim, tenho necessidades. Físicas. Estou debilitado há muito tempo. Decido repousar. A viagem deve ser longa. Fui castigado e por isso jogaram-me no mais longínquo lugar do mundo. Sinto sono. Decido dormir.

    VI                  6

    AGITAÇÃO

    6               VI

    25/AGOSTO/2021_12:18’40

    - Então, querida, sabe que eu não consegui achar aquela...

    - Olha o seu filho lá, do outro lado da via.

    - Ora, imagina, eu disse a ele que ficaria no centro o dia inteiro...

    - Então, olha lá – as duas voltaram-se para a esquerda e reconheceram a fisionomia do menino ruivo, que brincava ao lado de uma estranha.

    - Mas, que moleque safado... ei, quem é aquela ali? Ele não escapou do centro educacional, ele foi raptado – atravessaram a via sem titubear pelas câmaras subterrâneas.

    - Quem é essa mulher, filho?

    - Mãe, quem são elas?

    - Eu é que faço essa pergunta, você está com o meu filho e, pelo que eu me lembre, não a conheço e nunca a vi no Centro Educacional.

    - Vocês estão malucas? Este é o meu filho.

    - Elas estão bêbadas, mamãe?

    - Respeito, Liev, mesmo com pessoas... assim.

    - Ora, cale a boca, vou levá-lo daqui agora mesmo.

    - Eu vou chamar a preventiva se fizer isto!

    - Isto é uma ameaça?

    - Calma, amiga, as pessoas estão olhando. Já há até uma rodinha...

    - Calma nada, é porque não é o seu filho...

    - Veja, aqui tenho a identidade dele, sua desnorteada.

    - Liev Muniz Kerr...

    - Oriente-se, sua drogada!

    - Lúcia, contata a escola.

    - Já arranjei tudo.

    - Quero falar com meu filho.

    - Ele está em uma atividade pedagógica.

    - É urgente – alguns minutos depois, a coordenadora educacional voltava com um garoto ruivo, com mais ou menos seis anos.

    - O que foi, mãe? – ele diz, assustado, na outra ponta do TVfone.

    - Você... está aí?

    - Como assim?

    - Você está mesmo aí, realmente aí?

    - Mãe, você tá bem?

    - Pode voltar para a sua atividade, filho. Até mais...

    - Como se explica isso?

    - Dois meninos com o mesmo rosto...

    - Dois garotos iguais! Esta é que é a verdade.

    - Será que alguma coisa aconteceu na clínica?

    - Foi há seis anos...

    - Exatamente por isso. Vou tirar já essa história a limpo.

    VII                              7

    LEMBRANÇAS DA GUERRA

    7                           VII

    O sol nascia avermelhado no céu multicolorido. Os raios clareavam corpos vivos e mortos servindo de abrigos contra as chuvas de ogivas e cápsulas.

    As cápsulas descem mais rápido que as ogivas. Estranho.

    O céu não termina de amanhecer. O dia não se faz completo. A penumbra reina, os soldados... as pessoas... seja lá o que for, a luta é às cegas. Nada, ninguém enxerga nada nem ninguém.

    Cápsulas teleguiadas. Ogivas computadorizadas, explodem quando querem. Seguem programações.

    A luz vai e volta. Ilumina do pescoço ao chão. Rostos são obscuros, não há fisionomias. E a luz mostrou, nua e crua, a verdade da guerra. As pessoas... ou melhor, as criaturas agiam como as ogivas, lutavam contra as cápsulas. Programadas. Movimentos mecânicos. Como são humanos, o cansaço dita a lentidão das ações.

    Água. Água? Chove, chove muito. O céu não altera a sua tonalidade. Não se distinguem nuvens. O calor é infernal, e a chuva parece não diluir a temperatura. As pessoas reclamam, gritam, urram de dor. A chuva os machuca.

    Água. Rios de água. A guerra prossegue, não querem parar. E o solo, seco, é tomado por toda aquela água. Água da chuva. As criaturas desintegram-se. E a guerra prossegue. E o chão continua seco. Água e solo quebrado, lado a lado, um dentro do outro. Pode-se ver os dois no mesmo lugar, um sobreposto ao outro.

    Uma porta. Na divisa do impossível, entre as pedras e a água. Abre-se sozinha. Um mergulho, pela água, pela terra, pela porta. Escuridão roxa. Lá, somente uma figura: uma grande esfera em laranja, vermelho e cinza, circundada de negro por todos os lados. O voo prossegue, em direção a esfera. O que pode ser? Passa-se por ela, como se não houvesse um corpo. Quem está voando?

    Depois da esfera, acima de quem voa, rostos. Rostos não, retratos de seres com olhos, nariz e boca. Alguns, nem isso. O que representam?

    VIII                  8

    CIVILIZAÇÃO?

    8                  VIII

    EU

    Sinto aquele veículo esquisito guinchar de modo abrupto. Foi o que me acordou. E imagens fazem festa na minha cabeça. Cada vez que desperto, isto acontece.

    Coloco minha cabeça para fora, esperando a rotina. Não. O que vejo é... é o que eu quero ver! Organizações sociais, abrigos, reunião de pessoas. Finalmente, alguém que pode me ajudar.

    Resolvo correr dali. Minha mente, desnorteada, volta a emitir pontadas. Estou no meio em que desejo, mas meu primeiro contato não foi dos melhores. E, até aqui, nada diferente, continuo precisando de auxílio externo.

    Penetro nas confusas e metalizadas vias da cidade a qual se ergue à minha frente. Ao longe, pessoas e muitos animais também. Animais, aliás, de todos os tipos, e, curiosamente, convivendo pacificamente com o homem. Estranho que alguns deles parecem um tanto aumentados...

    Vi mais semelhantes ao condutor. Mas, meu estado de assombro aumentou ainda mais quando comecei a ver de perto as criaturas: animais? Não. Homens? Também não...

    A cidade é uma desorganização, minha mente também. Não consigo me ater a um assunto somente. Meus olhos estão enganando-me ou...

    Animais que falam. Comportam-se como gente. Gente, convivendo com eles. E os homens-máquina. E este barulho ensurdecedor... ao contrário do deserto. Esta desordem, esta paisagem extrema, bagunçada...

    IX                          9

    SOCIEDADE HUMANA

    9                          IX

    25/AGOSTO/2021_13:24’45

    X                    10

    PRIMEIRO LAPSO

    10                    X

    EU

    Eu falo sozinho, em voz alta, esperando que o som da minha voz possa me trazer algo familiar. Mas, quanto mais eu penso a respeito, mas confuso eu fico.

    Como vim parar aqui? Quem me trouxe aqui? O que fizeram comigo? Quem é o responsável pela minha falta de memória? Como vou viver deste modo, em um lugar hostil e estranho? O que eu posso ter feito pra merecer tamanho castigo?

    As questões brotavam como lava em erupção vulcânica.

    O meu pensamento atrasa-me. Ponho-me a correr, mas a desvantagem é gigantesca. São meio-humanos misturados com robôs e animais atrás de mim.

    À minha frente, nuvens e céu arroxeados, um entulho de contêineres e algumas barras metálicas. Esqueci-me de tudo, minhas lembranças voltaram ao zero.

    ONISCIENTE

    Ele não estava em consciência. Sua mente assumira o seu corpo, literalmente. Agia conforme ordens do seu interior inquieto. As imagens, antes lembranças sem referência, agora eram a realidade do jovem.

    O jovem via um horizonte claro, mas uma série de barreiras à sua frente. E alguma coisa dizia para ele seguir na direção da luz. Mas a escuridão roxa retinha-o no mesmo lugar.

    Ao seu lado, céu e chão sólidos, mas compostos por água. Ao mesmo tempo, ambos possuíam forma e aparência normal à realidade comum a todos.

    Os obstáculos eram lembranças. Imagens que o cérebro dele já conhecia, reconheceu-os, mas não lembrava.

    XI                            11

    HUMANOS X HUMANOS

    11                            XI

    31/AGOSTO/2021_18:36’36

    - Está confirmado: existem clones humanos vivendo entre nós – uma imagem foi mostrada nos telões digitais-contráteis da cidade. Várias crianças exibidas. Todas ruivas, curiosamente. Todas... com o mesmo rosto. Clones! – Este é o maior exemplo da inconsequência humana nos últimos tempos. Uma experiência deste tipo, sem consulta à sociedade, ferindo pessoas e prejudicando as vidas de cada uma dessas crianças. E este caso, comprovadamente, foi o primeiro deles. Tudo começou com a criança ruiva original, que ninguém tem certeza de qual delas seja. Mas, se isto teve início há seis anos, com estas crianças, sabe-se lá quantos casos iguais a este não devam existir pelo resto do mundo – as pessoas olhavam os telões de forma atônita. Bocas abertas, caras de medo e assombro, perplexidade. Em seguida, discussões fervorosas, preconceitos pouco pensados antes afloravam.

    - Como vamos saber se não podem nos ameaçar?

    - São uma ameaça à sociedade humana normal, são seres copiados da gente, podem fazer ou interferir em tudo que os seres humanos originais fizerem, já que são cópias...

    - Vamos protestar! Os clones têm que ser isolados da nossa sociedade – alguém bradou.

    - As pessoas não entenderam bem o que fizemos – a mãe do suposto original ruivo que deu origem ao problema disse ao seu amigo.

    - Não imaginava que, naquele dia que escapamos do laboratório, as coisas caminhariam para este rumo – ambos se afastaram da multidão enraivecida. Precisavam elaborar planos que iam de encontro aos da maioria.

    - Precisamos reunir gente que pensem ao contrário do resto. Tem que haver manifestações que defendam os clones, eles não têm culpa de terem nascido!

    - Sabe que isto nos põe em posição de risco, pois precisamos ser sutis para agrupar pessoas assim. Não podemos sair por aí, perguntando a todos abertamente se toleram os clones, pois a tendência é justamente a contrária.

    - Mas algo precisa ser feito, nossos filhos correm riscos inimagináveis... agora é que eu pensei nisso: meu filho. É um clone até que se prove o contrário. A onda de preconceitos contra ele, e contra os outros, será absurda. E hoje, com as identificações via DNA, vai ser muito fácil descobrirem outras cópias.

    - Por isso nesses últimos anos, muitas pessoas reclamaram que foram identificadas em locais públicos com nomes de outras pessoas – o amigo recordou-se.

    - Ou até com dois nomes, e acharam que a culpa era do sistema de identificação. Está aí... seis anos de confusões, e tudo foi abafado...

    - Exatamente, cada caso parecido com este era divulgado e estranhamente esquecido. Ninguém tocava no assunto no dia seguinte. E nós pensando que tudo estava na mais absoluta normalidade...

    XII                            12

    O MUNDO INCONSCIENTE

    12                            XII

    EU

    Abro minhas pálpebras de modo lento. Estou deitado, não sei como. Não me recordo de ter me recolhido para dormir. Enfim, termino de abrir os olhos: um ambiente quente, aconchegante, porém esdrúxulo, à minha volta.

    - O que pretende fazer comigo? – perguntei, com certa raiva na voz. A aparência intuía o meu medo. A intuição em si, a qual me guia até aqui, diz o contrário.

    - Não tenha medo, estou aqui para ajudá-lo... mesmo que não seja autorizado ou condizente com os meus preceitos...

    - O que quer dizer? – sigo desconfiado.

    - Nada... nada... você, ao contrário, deve muitas explicações. Não só as históricas – a criatura seguia com o seu papo estranho, com voz cadenciada. Explicações históricas... talvez, tenha a ver com o que fiz... as respostas às minhas perguntas! Como vim parar aqui, etc.... ei, mas espere um pouco.

    - Espere, eu tenho que dar respostas? São justamente as coisas que não tenho. Não sei do que está falando...

    - Não consigo compreender tudo isto - a criatura parece ter dado pouca atenção ao que eu disse. Pensa consigo mesmo, em voz alta, enquanto prepara qualquer coisa mais ao fundo do aposento.

    - O que é você? – perco o meu medo e parto para o inquérito. Esses fatos absurdos precisam ser esclarecidos.

    - Uma espécie de líder aqui. Alguém que zela pelos outros iguais a mim. Alguém que tem muito trabalho para domar sentimentos vingativos, os quais são perfeitamente justificáveis – e ele olhou de uma forma inquisidora para mim, como se eu tivesse alguma culpa. Agora, do quê, eu não faço ideia.

    - Continuo sem entender – minha vez de divagar em pensamentos. – Não sei nada sobre coisa alguma ou alguém, inclusive eu. Não sei o que representa tudo e todos neste espaço ilusionista...

    - Você é, realmente, bem estranho. Está justificando a cena que fez lá fora pela manhã. Os comentários dos uglios são todos referentes a você. Das questões óbvias às mais intrigantes. Você conseguiu passar a eles que pode ser perfeitamente um de nós – isto não é uma conversa. Será que o meu grau de perda de memória é tão alto assim? Não compreendo o que este ser me fala. Não consigo captar o seu universo de diálogo. É como se ele estivesse falando do deserto e eu do lugar de onde penso que vim.

    - Tudo isto é uma incógnita pra mim. Inclusive você. Não sei por onde seguir...

    - Comece por você mesmo. Afinal, você é quem provocou toda esta onda de agitação. É o centro das atenções. Vamos, diga, qual é o seu nome?

    - Nome? Gozado, pensei nisso há algum pouco tempo atrás... não sabia nem o que isto significava...

    - Quem não está entendendo agora sou eu – a criatura interrompeu. – Não é uma pergunta tão complicada. Eu, por exemplo, chamo-me Laokin, e você?

    - Sei o significado do termo nome, mas não sei se tenho um – aos poucos, estou perdendo o meu receio inicial em relação a ele.

    - Como assim? Todos têm um nome. Todos têm um vocativo pessoal perante a sociedade. É impossível existir sem um nome.

    - Pois é, sei bem o que é isto. É impossível existir sem um nome e sem um passado. Sou alguém nascido há dois dias atrás...

    - Como assim? Será mais algum tipo de experiência humana? Um ser geneticamente dotado de características de etapas mais finais do desenvolvimento? Se isto for verdade, podemos estar diante de uma ameaça ainda maior! – Laokin mudou um pouco o seu tom de voz. E a conversa voltou, novamente, ao não entendimento.

    - Eu estou em situação delicada, mas você é quem está complicando-a. Tenho a perfeita consciência de que já tive um passado, mas agora, ele me falta à memória.

    - Isto explicaria diversas coisas... – Laokin tranquilizou-se. – Bem, demoramos um bocado para descobrirmos que você não possui memória. Mas, você está com sérios problemas, dos quais, tenho quase certeza, você ainda nem se deu conta. Sua memória é só um lado da questão, o que ocorreu hoje de manhã mostrou-me muito. Eu entendo dos males humanos, estudei-os muito para fins ilícitos. Mas, por ora, acho que o melhor é termos calma, pois o mundo lá fora é hostil, por culpa dos seus... e dos nossos também – ele sentiu pesar ao falar a última frase. Mais uma que não compreendi.

    - O que vem agora?

    - Uma refeição. Aceita?

    - Bem, começo a acreditar que, finalmente, encontrei alguém que possa me ajudar, como eu desejava. Vamos lá.

    - Mas, aviso, tenho responsabilidades aqui, e você é, por natureza, um ponto de discórdia. Preciso, e você, mais do que qualquer um, necessita saber lidar com esta situação. A sua... ou nossa existência depende disto. Principalmente o Pheriph, o eternamente revoltado com o mundo.

    XIII                        13

    NEW POPULATION

    13                        XIII

    31/OUTUBRO/2021_19:33’33

    Muitos dos considerados clones estavam encurralados por grupos de repressão e ação contra cópias. Mas, do outro lado da cidade, manifestações pró-clones aconteciam, concomitantemente. Multidões iam às ruas manifestar-se, contra ou a favor. E o encontro das passeatas era inevitável... e quase sempre, violento e pouco amistoso.

    - Pressinto que ainda assistiremos a coisa pior. Já falei a você o que é, não?

    - É, disse sim. Seu filho foi o começo de tudo, tanto para a clonagem quanto para... aquilo que você descreveu.

    - E isso vazou. Eu, depois do que aconteceu com o anúncio dos clones, decidi não mais interferir, mesmo que o maior prejudicado seja o meu filho. Por isso, não falei nada a ninguém sobre aquilo que vi no centro genético naquele maldito dia. Mas, soube por pessoas de lá que a informação, desta vez, vazou para os funcionários de ordem mais inferior. E aí, já sabe.

    - Mas, quem é que vai levar a sério um bando de trabalhadores braçais? – o tempo passa, alguns preceitos não mudam.

    - Não é bem assim. São pessoas de uma certa qualificação que trabalham lá. E depois, são organizados... e conservadores, para nossa infelicidade. Odiaram saber para quem e o que estavam trabalhando. Rebelaram-se e organizaram-se em torno de algumas pessoas com mais influência e oratória...

    - Está muito bem informada, não?

    - Tive conhecimento de tudo isso há mais de uma semana. Deve estar para estourar.

    - E, como você, sinto que o que vai estourar daqui pra frente não vai ser só uma onda de protestos.

    - Também tenho este pressentimento.

    A marcha prosseguia, e os embates também. Os dois protagonistas do momento desgarraram-se do caos humano e refugiaram-se em um local escuro, protegido pelas sombras noturnas. Mas, tinham visão de todo o palco de acontecimentos: a praça, tomada por pessoas de todas as classes, credos e cores, defendendo aquilo que acreditavam. E duelando por isso, até ali, um duelo mais verbal e corporal, ou seja, no campo das ideias e dos punhos. Armas, até ali, só em casos isolados. Ainda era uma batalha de âmbito social. Mas, o grande telão público veio jogar toda aquela euforia por baixo da terra. O que era um conflito ideológico tornar-se-ia uma grande batalha:

    - Acaba de ser anunciada a mais nova experiência dos Laboratórios Populi Genetic, os mesmos os quais trouxeram os clones à esfera pública, há dois meses. Agora, trabalhadores da própria companhia revelaram que alguns clones do menino originário da clonagem humana foram geneticamente alterados, ganhando novas habilidades e características físicas. Eis então, mutantes, para juntarem-se aos clones e aos humanos puros – um pandemônio silencioso abateu-se sobre a multidão que brigava na praça. As pessoas perderam a ação. Para todos ali, aquele conflito perdeu o sentido. O que eram os clones perto dos humanos mutantes, que podem inclusive, rebelar-se conta os próprios criadores?

    - Abaixo os mutantes – um gritou alto, no meio do mar de gente silencioso.

    - MORTE aos mutantes – pronto, o serviço havia sido feito, o rumo havia descambado.

    Bandeiras, estandartes, faixas, cartazes, entusiasmo... enfim, tudo referente à questão do clone foi abandonado, jogado de lado, literalmente, no chão. A luta, agora, seria contra os dois, ou no mínimo, contra os mutantes, mesmo que ainda não fosse comprovada a existência deles no seio social. Entretanto, a certeza do fato estava sendo consumada, pelas imagens conseguidas pelos trabalhadores da empresa genética, exibidas sem cortes pelo telão digital público.

    - Agora sim, o mundo vai ser dividido em trincheiras.

    - Será que já existem mutantes adultos para batalharem contra humanos... e clones?

    - A pergunta não é essa, minha amiga. A questão que não cala, que dá origem a tudo, é justamente sobre o começo de tudo isso: qual a finalidade desses monstros, ao darem vida a seres clonados e modificados? Por que provocar de forma tão brutal a sociedade, por que fazer sofrer humanos e seus... derivados? Será que não previram as consequências, ou têm alguma outra coisa em mente?

    XIV                              14

    CONFRONTO DO PRESENTE

    14                              XIV

    EU

    Saio encapuzado, com as lonas que os uglios – nome pelo qual Laokin chama seus comandados – costumam vestir para se protegerem ou esconderem. Não quero me expor a este povo, ele não me inspira confiança. Pelo menos, ainda não.

    Além disso, corro sérios riscos exibindo a minha condição, digamos, diferente. Até porque, eu sou o assunto atual de cem por cento das pessoas desta região. Ainda não conversei com Laokin a respeito, mas sei que aqui não é o meu lugar e que não posso permanecer aqui por muito tempo. Exatamente por isso, estou estranhando a atitude dele: não seria mais fácil indicar ou encaminhar-me a alguém que possa realmente me ajudar? Pouparia trabalho pra mim, pros outros e pra ele. Afinal, será um desafio viver em uma comunidade que não me aceita. Talvez, pelo algo de errado que eu possa ter feito em um passado não muito distante, mas totalmente misterioso e obscuro pra mim.

    Saio por entre os morros e dunas que o terreno irregular desenha nas áreas que circundam a rua. Aliás, até esta paisagem é esquisita pra mim. A minha voz interior não reconhece e não tolera este visual. É algo estranho às minhas entranhas...

    Mais uma vez, fujo do assunto principal, desvios de pensamento. Minha falta de memória me dá um poder inesgotável de imaginação e pensamento, mas ao mesmo tempo os descoordena.

    Laokin vai sozinho. Eu também. Mesmo conhecendo o risco de tal ato, é o mais seguro (ou menos inseguro). Preciso ver e ouvir o que vai ser debatido e decidido, mas não como um deles, não posso fazê-lo, não posso me passar por nenhum deles. E não sei por quê, pois só se diferem de mim na aparência, mesmo tendo um comportamento um tanto que incompatível ao que minha intuição prega.

    Espera. O Laokin disse que conhece as patologias humanas. Será que este adivinhômetro é um mal? Será que é por isso que me isolaram no deserto, e agora me repudiam? Será que ele sabe o que pode estar acontecendo dentro de mim?

    A reunião estava pronta. Reconheci alguns rostos, reparei, novamente, naquela correria desabalada de alguns, atrás de outros e de nada. Aparência, decididamente, é o que não tem nenhuma importância por aqui. O ambiente é, às vezes, colorido demais. Outras, muito uniforme, monocromático. As linhas, a organização, a distribuição de casas, estabelecimentos, ruas... e tudo, combinado com o vento e com a areia carregada do deserto, que insiste em ditar normas por aqui.

    Algumas pessoas são o reflexo desta falta de apresentação: pessoas vestidas aos trapos, sujas de terra e de outras coisas... umas trazem até as heranças dos animais que as compõem, como porcos na lama, por exemplo.

    Laokin fez o povo calar-se. Impressionante o seu poder de liderança, mesmo diante de um dilema tão delicado.

    - Não tente defender aquela aberração! Ela é a culpada por nós! – alguém tenta incitar a multidão contra mim, e consequentemente, contra Laokin. Mas ele soube como contornar a situação:

    - Estes uglios nunca aceitariam você como um mentor exatamente por isso. Pela sua radicalidade, irracionalidade e intempestividade. Eles têm medo disso. Age como eles. Vocês querem ser como ele, querem isto? – problema superado, a multidão ainda tem Laokin como seu legítimo conselheiro. Quer dizer que esta besta-humana, literalmente falando, é o tal de Pheriph... aquele que quase acaba comigo em um momento do qual não me lembro. Aliás, Laokin pode saber o que realmente se passou naquele incidente, do qual tenho as imagens, mas não sei o que são, de onde vêm e nem o que representam. – Ele não é um deles. Pelo menos, não oferece o risco que os senhores, e principalmente você, Pheriph, enxerga. É alguém que precisa ser ajudado, para que saibamos o que quer e/ou o que houve com ele. É alguém que não pode se esbarrar com as nossas costas, porque aí sim, ele pode voltar-se contra nós. É alguém que temos obrigação de acompanhar, porque foi deste modo que tudo começou, foi desta forma que terminamos aqui, e aqui estamos agora, conversando sobre um assunto morto que nunca morre – bem, o cara está lançando uma série de frases e palavras bem desenhadas, e até pode fazer sentido a este povo tão pitoresco, mas a mim, nada tem significado aparente. Talvez, efeito da minha falta de memória; talvez, adequação ao grau de... sei lá, estranheza desta população.

    - O que ele tem, afinal de contas? – alguém urrou, desnecessariamente alto.

    - E onde ele está neste momento?

    - Bem, ele está por aqui mesmo, em algum lugar, vendo e ouvindo tudo o que diz respeito ao seu futuro em Villing. Agora, quanto ao mal que ele sofre, pode-se dizer que é um misto da ira dos seus com a sua própria ira interna.

    - E o que significa isso?

    - Ele tem problemas aqui – Laokin apontou para a sua cabeça. – Mas que podem ter sido provocados por fatores externos... e estes, agora, o perturbam, dando vazão a cenas como as que alguns de vocês assistiram hoje pela manhã. Algo que está totalmente fora da compreensão de muitos de vocês, mesmo que vocês possam manifestar as mesmas reações. Mas, ele é original, é humano, é a matéria-prima, a fonte. Assim como tudo pode perturbá-lo mais, ele tem mais capacidade de uma plena recuperação.

    - Bem, Laokin, e com tudo isto, aonde você pretende chegar? – Pheriph, demostrando insatisfação.

    - Ao óbvio e já dito: vou ajudá-lo, e quero... ou melhor, exijo colaboração. Não posso pedir, até pela história, que vocês estabeleçam amizades com ele, ou com os seus, mas a tolerância, como o firmado entre todos os povos, eu vou cobrar e faço questão. Estarei de olho em tentativas furtivas e nocivas contra ele, e haverá punições, se for necessário.

    - Quer dizer que vai punir seus irmãos de sofrimento e raça em nome daquele que nos fez isto?! – Pheriph voltou a se irritar. E com ele, mais alguns, com certeza, um grupo submisso ao desertor.

    - Este tipo de sentimento motivou-os a fazer o que fizeram. Farão o mesmo se continuarem a pensar desta forma. Como eu já disse, se se considera tão superior a eles, por que não tenta outras vias de resolver o problema? E depois, ele, em si, que nem sabe seu nome, não é o responsável direto por... nós. Não se pode condenar uma raça inteira pelos erros de um pequeno grupo. É preconceito, é ignorância, é o maior motivo de guerras. E vimos o que todos conseguiram com uma...

    - E ele, o que veio fazer aqui?

    - Não sei, mas só posso saber se ajudá-lo a superar seus problemas. Aliás, retomando o que eu dizia quanto a deveres e direitos dos senhores, além de haver a punição, há o próprio lado dele também. Ele pode

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