Por um Cuidado Integral em Saúde das Mulheres Negras: As Narrativas das Mulheres Negras que o Método Clínico Centrado na Pessoa Não (dá) Conta
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Por um Cuidado Integral em Saúde das Mulheres Negras - Gabriela Pereira Barreira
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
Às mulheres negras que falam e não são ouvidas.
AGRADECIMENTOS
Às minhas ancestrais amefricanas diaspóricas, que abriram caminhos, lutaram, resistiram e construíram as possibilidades de escrita desta obra.
A todas as heroínas negras do passado e do presente, algumas esquecidas pela História, outras encontram-se aqui reencarnadas em mulheres guerreiras, anônimas e de grande prestígio político e simbólico. As Creuzas, Zeferinas, Marias, Dandaras, Acotirenes, Nzingas, Rosas, Anas, Terezas, Carmosinas, Mahins, Luizas, Conceições, Suelis, Juremas... Axé! Somos herdeiras de rainhas, guerreiras, sacerdotisas, este livro é em honra delas, que vivem em nós. Nunca estive sozinha, as minhas sempre estiveram comigo.
Às mulheres negras que adentraram dia após dia o meu consultório e ensinaram-me tanto, dividiram comigo suas experiências e tornaram-me médica de família e comunidade.
Aos meus pais, Andiara e Clarismundo, que sempre foram exemplo de luta e resistência, por seu amor e apoio quase incondicionais, mesmo nas minhas decisões mais insanas.
Ao meu companheiro de vida e porto seguro nas horas de medo, Rogério Logrado, que nunca me deixa só. Seu apoio, cafuné e risadas são meu acalanto mesmo nos dias mais sombrios. Obrigada por dividir a vida comigo e pelas infinitas discussões sobre o tema.
Ao meu irmão, Matheus, pela sabedoria de um irmão mais novo e pelos conselhos, por me apoiar e não me deixar desistir ou olhar para trás. Obrigada pelas conversas até altas horas, que foram parte das minhas reflexões para construção desta obra.
Agradeço imensamente à Rita Helena, minha orientadora, pela orientação, pelas longas conversas, pela maneira como me acolheu, pela paciência, pelas considerações. Sou grata por ser uma mulher negra do seu entorno, fortalecida pelo seu trabalho.
Às mulheres que me cercam e me fortalecem, obrigada pelo apoio, afeto e troca de saberes.
À revelia do mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui, onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das brechas. Aqui, onde a noite infinita já não nos assusta, porque nossos olhares comungam com o escuro e com a indefinição das formas. Aqui, onde apenas morremos quando precisamos recriar nossos corpos e vidas. Aqui, onde os cálculos da política falham em atualizar suas totalizações. Aqui, onde não somos a promessa, mas o milagre. Aqui, onde não nos cabe salvar o mundo, o Brasil ou o que quer que seja. Onde nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras e manifestam, com sua dissonância, dimensões e modalidades de mundo que nos recusamos a entregar ao poder. Aqui. Aqui ainda.
(Jota Mombaça)
APRESENTAÇÃO
Ser negra. Ser mulher. Ser médica. Ter me formado médica de família e comunidade negra em uma comunidade periférica do Rio de Janeiro. É dessa forma que a escolha desse tema implica na minha trajetória. Escolha essa que está enraizada na minha história pessoal, na história de outras médicas negras de origem nas classes média e baixa. Escolha enraizada na história, no sofrimento, no adoecimento das mulheres negras e periféricas que atendo todos os dias. Nas histórias que, quando recontadas por mim, são recebidas pela ouvinte com um você já me contou essa história antes…
e respondidas com "mas é a primeira vez que ela [a paciente] me conta essa história… eu nunca a vi antes!... ela disse que nunca falou disso pra ninguém...". São narrativas que se repetem, mas que são únicas e, ainda assim, fizeram-me questionar: por que elas se repetem? O que mais mulheres negras periféricas têm a contar que ninguém escuta? Por que médicas de família e comunidade formadas e em formação nunca ouviram essas histórias, se já as atenderam dezenas de vezes?
Mulheres negras são maioria no país. É dessa existência social no Brasil que eu estou falando. Existência essa que é a maioria das pessoas em termo de raça e gênero, mas que são silenciadas em nosso país por causa do racismo estrutural. Estou falando de mulheres negras porque elas existem e sofrem. O processo de adoecimento das mulheres negras periféricas tem suas especificidades é atravessado pelo racismo, pelo machismo e pela pobreza, sendo o racismo o principal determinante.
Passei boa parte da minha vida adulta no vasto mundo da Medicina, um espaço elitizado, predominantemente masculino e branco. Já se foram seis anos de faculdade e seis anos de prática médica, cinco desses na Atenção Primária à Saúde, mas já se somam quase três décadas de ser mulher negra. Ser minoria da minoria da minoria. Essa é a realidade de ser médica de família e comunidade negra no Brasil. E é desse lugar marginalizado que escrevo.
Patricia Hill Collins¹ consagrou o termo outsider within, algo como forasteiras de dentro
ou estrangeiras de dentro
para falar sobre esse status de marginalização de mulheres negras nos espaços acadêmicos e de como essas posições marginais são usadas para produzir um pensamento feminista negro capaz de refletir a nossa forma particular de ver a realidade. Para bell hooks², olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora... compreendíamos ambos.
³. E como ressalta Audre Lorde, é evidente que se nós mesmas não nos definirmos por conta própria, outros nos definirão – para uso deles e em detrimento nosso.
.⁴
Falar sobre o Método Clínico Centrado na Pessoa, uma das ferramentas mais conhecidas e ensinadas pelas médicas de família e comunidade, não foi uma escolha aleatória. Profere-se tanto sobre centrar o cuidado na pessoa e, ao mesmo tempo, pouco ou nada se vê sobre centrar o cuidado nas narrativas das mulheres negras que atendemos todos os dias. Se não conseguimos centrar o cuidado de uma mulher negra e, em especial, periférica, levando em consideração suas narrativas, trajetórias, sofrimentos, histórias e adoecimentos, como podemos dizer que prestamos um cuidado integral, equânime e continuado dessas mulheres, como nos propõem os princípios da Medicina de Família e Comunidade? Como podemos dizer que aplicamos o Método Clínico Centrado na Pessoa se não conseguimos acessar os sentimentos dessas mulheres negras periféricas a respeito de seus problemas, suas ideias sobre o que está errado, os efeitos da doença no seu funcionamento, suas expectativas para esse encontro clínico? Por que continuamos ensinando e aprendendo um método clínico falho em abordar a narrativa das mulheres negras e periféricas que atendemos diariamente?
É por meio desta obra que busco refletir essa prática e instigar médicas de família e comunidade a terem um olhar racializado sobre sua prática clínica e a buscarem engajamento na luta antirracista, pois só assim seremos capazes de alcançar com integralidade uma prática orientada à comunidade e seremos, então, capazes de entender a narrativa das mulheres negras, pobres e periféricas que atendemos.
A autora.
PREFÁCIO
Jurema Werneck sempre nos lembra de que, enquanto mulheres negras, nossos passos vêm de longe
⁵, e me permito dizer que este livro é resultado concreto da ação de muitas mulheres negras em movimentos de resistência à negação de nossa intelectualidade, afetividade e memória. A voz e a escrita de Gabriela aqui refletem anos de lutas e conquistas passadas, bem como caminhos para tantas lutas que ainda estão por vir.
A autora deste livro, Gabriela Barreira, é médica especializada em Medicina de Família e Comunidade (MFC), acolhida e aquilombada no coletivo Negrex de negras e negros na Medicina. O coletivo, fundado em 2015, é fruto do incômodo com a pequena quantidade de pessoas negras entre estudantes de Medicina e com o racismo cotidianamente experienciado por essas pessoas nos ambientes de formação em Medicina. Tem como objetivos principais ser espaço de acolhimento de estudantes e mediques negres⁶, tornando menos traumática, e por vezes possível, a permanência estudantil e a formação em Medicina, e também, ser espaço de produção de ações de combate ao racismo institucional na saúde e na Medicina.
Reconhecendo-se e tornando-se negra, como nos diz Neusa Santos Souza⁷, Gabriela entra em contato com a vasta produção intelectual de mulheres negras que, num movimento ativo de resistência à negação da intelectualidade negra, vêm produzindo conhecimento a partir das experiências locais de marginalização racial. Intelectuais negras, em África e em diáspora, oferecem reflexões essenciais para a compreensão dos processos de subjetivação, socialização e de saúde e adoecimento de mulheres negras. Conceitos como o de imagens de controle e outsider within, de Patricia Hill Collins, o trauma colonial resgatado e explorado por Grada Kilomba ou de interseccionalidade, produzido a muitas mãos dentro do feminismo negro estadunidense e fundamental para se pensar em equidade e justiça social, são necessários para romper com a perspectiva moderna ocidental hegemônica de objetificação e desumanização dos corpos de mulheres negras.
Foi percorrendo as ofertas de literatura supracitadas, entre outras, que a autora deste livro chegou na especialização em MFC. Atuando em uma unidade básica de saúde em Manguinhos, complexo de favelas situado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, a autora se deparou com o desafio de aprender a produzir cuidado integral em saúde para uma população majoritariamente composta por mulheres negras, ativamente marginalizadas por um Estado e sociedade que operam e naturalizam a necropolítica, a descartabilidade de corpos compreendidos como matáveis, como nos ensina Achille Mbembe⁸.
Ao contrário de um pensamento biomédico, fragmentado e universalizante, a MFC, especialidade médica voltada para a Atenção Primária à Saúde (APS), propõe-se a produzir cuidado integral em saúde, considerando as pessoas e seus contextos familiares, comunitários e sociais. A ruptura com o paradigma biomédico exige a aprendizagem de novas tecnologias de cuidado e o desenvolvimento de um olhar atento para como os processos de saúde e adoecimento são atravessados por determinantes sociais em saúde e relações de socialização. O Método Clínico Centrado na Pessoa é, talvez, uma das principais ferramentas ensinadas nos programas de residência médica em MFC com o objetivo de produzir cuidado integral em saúde.
Ouvindo as histórias e tentando produzir cuidado junto às mulheres negras que atendia cotidianamente, Gabriela se incomodou com um aparente paradoxo: apesar de objetivar o cuidado integral, as ferramentas de produção de cuidado em saúde ensinadas na residência não traziam o racismo e as relações étnico-raciais para a centralidade dos processos de saúde, adoecimento e cuidado. É um fato: o mito da democracia racial, vigente e organizador da sociedade brasileira, opera o apagamento do racismo como um determinante social em saúde e alimenta o racismo institucional, inclusive no campo da APS e da MFC.
Seria possível produzir cuidado integral atento ao racismo como um determinante social em saúde? Como considerar a interseccionalidade do racismo e sexismo na experiência de vida das mulheres negras? Se o encontro clínico é um encontro intersubjetivo, como o racismo se expressa nesse encontro? Essas são algumas das perguntas que a autora se fez no processo de construção deste trabalho. Em íntimo contato com a produção de conhecimentos de mulheres negras, fosse nos diálogos com outras mulheres negras na MFC, com ouvidos atentos para as demandas e percepções de cuidado das mulheres negras que acompanhava na clínica ou na leitura da produção acadêmica destas que a autora se aventurou em tentar responder algumas dessas inquietações.
Gabriela considera que o mito da democracia racial produz epistemicídio e silenciamentos que estimulam a estereotipificação da vida e das narrativas de mulheres negras. Nesse sentido, com Lelia Gonzalez, Neusa Santos Souza, Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento e outras referências, ao longo do livro, ela, uma mulher negra, generosamente oferece subsídios teóricos e analíticos para que o plural e diverso universo de mulheres negras seja conhecido, a partir de nossos olhares e nossas perspectivas.
Como observadora participante, orientadora e grande interessada no resultado desse projeto, considero-me privilegiada por ter acompanhado as angústias, reflexões e conexões da autora e por ter tido o prazer de aprender com ela ao longo do processo. Enquanto mulher negra e médica de família e comunidade, acredito que este trabalho seja essencial para que a MFC avance para uma prática de cuidado em saúde capaz de compreender o racismo como determinante social em saúde e ativamente combatê-lo, buscando um cuidado integral que seja também emancipatório, equânime e socialmente justo para mulheres negras. É Angela Davis quem nos ensina que Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela
. Então, movimentemo-nos e avancemos, pois o caminho para desmantelar o mito da democracia racial na saúde é longo e desafiador, mas não andamos sós.
Rita Helena do Espírito Santo Borret
Médica de Família e Comunidade e mestra em Saúde Coletiva