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O Cristo Redentor Universal
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O Cristo Redentor Universal

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Temos a alegria de comemorar noventa anos de inauguração da estátua do Cristo Redentor, trazendo para você, querido leitor, este livro, intitulado O Cristo Redentor Universal, para contemplar o monumento a partir da mensagem simbólica que ele nos sugere. Concebido originalmente no século XIX, o propósito da ereção da estátua do Cristo Redentor era comunicar a mensagem cristã numa linguagem universal, sem fugir dos aspectos essenciais. Após a sua inauguração, em outubro de 1931, o monumento transcendeu o âmbito religioso, representando também a cultura brasileira para o mundo. Em outubro de 2006, o platô do monte Corcovado foi reconhecido como santuário católico, um lugar de oração e de encontro, em que as pessoas podem buscar a paz com Deus, com a natureza e com o próximo. A estátua do Cristo Redentor possui, em sua história, em seu simbolismo e em sua localização, elementos que ainda não tinham sido abordados pela teologia em caráter sistemático.
LanguagePortuguês
Release dateSep 20, 2022
ISBN9786555627138
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    Book preview

    O Cristo Redentor Universal - Alexandre Carvalho Lima Pinheiro

    Apresentação

    Renovam-se em nossos corações os sentimentos de gratidão e ação de graças pelo nonagésimo aniversário do Cristo Redentor. Além das festividades e celebrações, dispusemo-nos a refletir também sobre o verdadeiro significado do monumento que marca o Rio de Janeiro e o Brasil. Para isso, uma série de livros está sendo lançada para contar a verdadeira história, para evidenciar o aspecto religioso e cultural e fomentar a devoção cristã.

    O Cristo Redentor Universal presta um importante serviço para a Igreja Católica e para o país. Tenho a alegria de apresentar este livro, organizado por dois amigos meus, padre André Rodrigues e Alexandre Pinheiro, que desenvolveram juntos esta obra. Faço votos de que este livro, com reflexões de grandes teólogos, possa nos ajudar a aprofundar temas sobre a importância e o significado da imagem do Cristo Redentor para o mundo.

    O monumento ao Cristo Redentor é um dos símbolos cristãos mais reconhecidos da humanidade. Em 1921, o Círculo Católico apresentou a ideia da construção do monumento, para a comemoração do centenário da Independência do Brasil. O projeto escolhido foi o do engenheiro carioca Heitor da Silva Costa: uma imagem de Jesus sobre um pedestal, segurando uma grande cruz com a mão esquerda, e o globo com a mão direita.

    Mais tarde, dom Sebastião Leme solicitou a Heitor da Silva Costa um novo projeto, com maior significado religioso, que pudesse ser observado a grandes distâncias: a própria estátua seria uma cruz, com o tronco ereto e os braços abertos, e o monte Corcovado, um enorme pedestal. A pintura da ideia coube ao brasileiro Carlos Oswald. O escultor francês Paul Landowski foi escolhido para completar o projeto. Dom Sebastião Leme lançou uma grande campanha de arrecadação para a construção, e o monumento ao Cristo Redentor foi inaugurado no dia 12 de outubro de 1931.

    Em 2006, no 75° aniversário de inauguração do monumento, o cardeal Eusébio Oscar Scheidt criou, através de decreto, o Santuário Arquidiocesano do Cristo Redentor do Corcovado. Era o primeiro santuário a céu aberto do mundo.

    O santuário Cristo Redentor é um púlpito do qual a Igreja pode anunciar o Evangelho a todas as nações e também um altar onde são celebradas missas, casamentos, batizados e demais sacramentos, além de um grande centro cultural e turístico da cidade do Rio de Janeiro, recebendo milhares de visitantes todos os anos.

    Que O Cristo Redentor Universal nos conduza a uma experiência que seja digna dos 90 anos do monumento símbolo do nosso país. Peçamos ao Cristo que inspire a todos que o visitam e veem, a fim de que tenham sempre a certeza de que seus braços abertos, em sinal de acolhida e de paz, são uma realidade em nosso mundo.

    Padre Omar Raposo de Souza

    Reitor do santuário Cristo Redentor

    Introdução

    O Rio de Janeiro é uma cidade na qual a arquitetura humana e a arquitetura divina convivem lado a lado. Essa realidade se torna mais evidente no alto do monte Corcovado, onde a natureza, criação de Deus, e a estátua do Cristo Redentor, símbolo da redenção, aparecem de maneira tão harmoniosa, que nos fazem projetar para diante da cena, como se o monumento pudesse ser compreendido quase como uma extensão da montanha.

    Concebido originalmente no século XIX, o propósito da ereção do monumento era comunicar o cerne da mensagem cristã numa linguagem universal. Após a sua inauguração, em outubro de 1931, o monumento transcendeu o âmbito religioso, representando também a cultura brasileira para o mundo. Em outubro de 2006, o platô do monte Corcovado foi reconhecido como santuário católico, um lugar de oração e de encontro, em que as pessoas podem buscar a paz com Deus, com a natureza e com o próximo.

    A estátua do Cristo Redentor possui, em sua história, em seu simbolismo e em sua localização, elementos que ainda não tinham sido abordados pela teologia em caráter sistemático. O santuário Cristo Redentor é uma realidade relativamente recente, ainda carecendo de uma reflexão teológica mais sistemática. Em seus 90 anos de existência, houve reflexões históricas, políticas, arquitetônicas, urbanísticas e musicais sobre a estátua do Cristo Redentor, mas nunca um estudo teológico aprofundado sobre o monumento. A primeira iniciativa que conhecemos é um pequeno opúsculo catequético do padre e historiador Mons. Maurílio Cesar de Lima, sob o título de Cristo Redentor do Corcovado: mensagem religiosa e história, publicado em março de 2006.

    Nós dois tivemos a oportunidade de passar um período fora do Brasil para aprofundar e investir em nossos estudos. De algum modo, estando um na Itália e o outro nos Estados Unidos, experimentamos o significado do que é ser estrangeiros que precisavam se adaptar e reconhecer os contrastes naturais que há entre as diversas nacionalidades, na riqueza de suas próprias culturas. O fato de sermos cristãos, católicos, brasileiros, patriotas e cariocas contribuiu para que, desde a nossa mais tenra infância, nutríssemos um sentimento bonito de reverência que se traduz em respeito e carinho pelo Cristo Redentor. Aos poucos, aprendemos que tal valor só se expressa, em toda a sua grandeza, quando nos colocamos ao lado de todas as pessoas de bem que, independentemente da origem, da religião ou da visão de mundo que defendem, têm se encontrado ali sob os braços do Cristo Redentor para suplicar pela paz e pelo bem de todos. Temos o privilégio de exportar um pouquinho do jeito carioca de vencer os desafios da violência, sem perder de vista a esperança a que o Cristo Redentor nos inspira. A essência de viver mais perto do Cristo Redentor se manifesta na certeza de que, embora os desafios sejam grandes, nunca vão nos convencer de que estão esgotadas as chances de continuar a percorrer o caminho em busca da salvação.

    Na letra e na melodia do Samba do Avião, colocadas virtualmente diante da estátua do Cristo Redentor, sentimos, com o artista, o pulsar de uma alma que canta com a natureza da nossa cidade, em busca do transcendente. Aos poucos, percebemos que estávamos diante de uma experiência cultural e religiosa que também adquiria importância com a crise socioambiental, sobretudo por causa do magistério do papa Francisco. Tudo isso procuramos expressar na investigação que culminou na tese de doutorado A ecoteologia do santuário Cristo Redentor, à luz da encíclica Laudato Si’, apresentada e defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio. Apesar de o resultado se tornar uma obra pioneira quanto à iniciativa teológica e à possibilidade de encontrar referências mais sistemáticas sobre a simbologia do santuário Cristo Redentor, ainda assim permanecia uma voz isolada diante da vastidão do que ainda poderia ser tratado.

    Por isso, em virtude das celebrações dos 90 anos de inauguração do Cristo Redentor, convidamos os autores deste livro, que generosamente aceitaram nosso convite, para promover uma reflexão mais ampla e inédita. Pelos autores deste livro, estão representados os Programas de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio, da PUC-SP e da Unicap, contando com a colaboração de homens e de mulheres, de sacerdotes e de leigos, de especialistas das áreas de Bíblia, de teologia sistemática e de teologia pastoral.

    O título O Cristo Redentor Universal compreende eficazmente o objetivo de representar a riqueza multidisciplinar de capítulos inspirados nos textos do Antigo e do Novo Testamento, na História, na cristologia, na patrística, na espiritualidade, na escatologia, na ecoteologia, na estética, na arte e, conclusivamente, em Maria, com o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

    André Luiz Rodrigues da Silva

    Alexandre Carvalho Lima Pinheiro

    Organizadores

    Eu sei que o meu redentor está vivo: análise de Jó 19,25

    Leonardo Agostini Fernandes¹

    Introdução

    A presente reflexão segue uma tríplice dimensão: exegética, teológica e pastoral. Para cada uma, a seu modo, se fez uso de uma metodologia específica. Na primeira, subdividida em dois tópicos, analisa-se a terminologia, a partir de exemplos bíblicos, a fim de se elucidar e compreender o sentido das possíveis aplicações do particípio gōʼēl presente em Jó 19,25. Na segunda, tendo como ponto de partida duas afirmações, contidas na Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Divina Revelação, busca-se, também através de dois tópicos, mostrar as razões que levaram alguns Padres da Igreja a ler Jó 19,25 em chave cristológica. Enfim, na terceira, a reflexão resulta de um amálgama decorrente das duas precedentes. O foco recai sobre Jesus de Nazaré, sobre a ação pastoral da Igreja, como a imagem do Cristo Redentor testemunha tal ação e como esta evoca o sentido de justiça latente no ser humano.

    Dimensão exegética

    Análise bíblica do gōʼēl

    Há muito a dizer sobre a figura do gōʼēl que, geralmente, se traduz por resgatador, redentor, libertador, vingador, e tem a ver com o responsável pela ação legal, antes (como função ou dever), durante o ato ou depois. Implica parentesco ou responsabilidade, solidariedade (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 126). Sobre tal noção, um fato chama muito a atenção: a figura do gōʼēl, praticamente, é exclusiva do patrimônio bíblico. A única exceção consiste em um nome de pessoa em amorreu: Gā’ilālum (RINGGREN, 1988. col. 1804).²

    O substantivo gōʼēl é um particípio do verbo gāʼal, que ocorre nas três partes da Bíblia hebraica,³ dando a entender a força e a importância da ações: resgatar, redimir, libertar, vingar, reclamar um direito etc. (JASTROW, 2004, p. 202). Nesses significados, nota-se a índole de uma terminologia legal técnica da lei da família israelita (HUBBARD, 2011, p. 765; RAVASI, 2005, p. 512-513), como uso profano nos âmbitos jurídico-sociais e como uso religioso em relação à tarefa redentora da parte de Deus (RINGGREN, 1988, col. 1805-1806).

    Alguns exemplos bíblicos podem ajudar na compreensão da figura e ação do gōʼēl.

    Quando Abraão soube que Ló e seus bens, o que incluiu a família, caíram nas mãos dos reis que se uniram e subjugaram Sodoma e Gomorra, o patriarca reuniu aliados e foi libertar o seu sobrinho. Abraão, então, aparece como um líder bélico e a sua ação a favor de Ló foi um resgate (Gn 14,12-16). Embora a terminologia não seja empregada nesse episódio, a ação de Abraão o qualificaria, perfeitamente, como o gōʼēl de Ló, de seus familiares e bens. De fato, Gn 14,16 afirma: Trouxe de volta, pois, toda a propriedade e também Ló, seu sobrinho, e sua propriedade, bem como as mulheres e o povo. Gn 48,16 endossa a ação de Abraão como gōʼēl, pois, no momento em que Jacó abençoou Efraim e Manassés (Sl 77,16), os filhos de José, disse: "O anjo, o que me libertou (hagōʼēl) de todo mal, abençoe os jovens", e, por duas vezes, se refere aos seus antepassados: Abraão e Isaac. O desejo de Jacó era que esse mesmo protetor cuidasse e livrasse dos males os filhos de José, isto é, fosse para eles gōʼēl.

    A narrativa de libertação dos filhos de Israel do Egito pela ação de Moisés, a mando do Senhor (Ex 3,1-4,18), enquadra-se, perfeitamente, na lógica que impregna de sentido a pessoa e a ação do gōʼēl. Ex 6,6 contém o anúncio de libertação e o Senhor afirma que resgatará (gāʼal) os filhos de Israel com braço estendido. Essa ação salvífica tornou-se matéria do canto entoado pelos libertos e, em Ex 15,13, se diz: "Guiaste com teu favor benevolente a este povo que redimistes (gāʼal); o conduziste com teu poder até a tua santa morada". Assim, o povo é libertado da opressão e de uma servidão estrangeira para se tornar a propriedade do Senhor (Ex 19,5-6), que o libertou e resgatou (RINGGREN, 1988, col. 1812-1813).

    Pode-se compreender, pelos exemplos acima, os motivos que levaram o antigo Israel a ter leis específicas sobre o resgate de propriedades e de pessoas, em particular porque estão em dificuldades (Lv 25), ou porque quer resgatar uma oferta consagrada ao Senhor (Lv 27). Uma legislação que se estendeu, inclusive pela lógica da lei do talião (Ex 21,23-24; Lv 24,19-20; Dt 19,21), à proteção de pessoas que cometiam um homicídio e que podiam se refugiar em cidades que serviam de asilo (Nm 35,9-34; Dt 19,1-13; Js 20,1-9), a fim de salvar a vida da ação do vingador de sangue (gōʼēl haddām).

    Para compreender bem essa dinâmica, sobre a figura do gōʼēl, bastaria evocar o livro de Rute, a viúva estrangeira, que foi favorecida, em todos os sentidos, por Booz, o parente próximo de Noemi, que declarou que ele era gōʼēl para elas.⁵ Booz encarna as melhores prerrogativas dessa figura, pois demonstra atenção, cuidado e interesse pelo bem-estar de suas parentes em necessidade. Como belemita piedoso, Booz cumpre, sem hesitar, o prescrito em Lv 19,9-10; Dt 24,19-22. Com o nascimento de Obed sobre o colo de Noemi (Rt 4,16-17), filho da união matrimonial de Booz com Rute, as propriedades resgatadas não só ficaram em família, mas também se tornaram a herança do filho que deles nasceu (FERNANDES, 2012, p. 75-77).⁶

    No Saltério, encontram-se numerosas citações em que o orante evoca o Senhor como o seu gōʼēl diante das mais diferentes situações de perigo, de perseguição e de risco de morte.⁷ O Senhor é invocado como quem defende a causa do justo contra o ímpio, que resgata, liberta de toda sorte de violência e faz viver. Além disso, para se evitarem problemas com o gōʼēl, é preciso respeitar os limites de propriedade e não invadir o campo dos órfãos (Pr 23,10-11), uma vez que o Senhor se declarou pai e protetor do órfão, da viúva e do estrangeiro (Ex 22,21; Dt 10,18; 24,17; Pr 23,11).

    A mesma perspectiva, que atribuiu ao Senhor a figura e a ação do gōʼēl, se encontra nos profetas. De modo particular, textos isaianos, contextualizados durante e depois do exílio na Babilônia, afirmam que o Senhor é gōʼēl e fomentam a esperança no povo que, porém, não foi resgatado sem passar por um processo de conversão, uma mudança no coração operada pelo próprio Senhor, pela honra do seu santo nome (Jr 31,31-34; Ez 36,16-38).⁸ Então, os filhos de Israel, desterrados de Canaã, experimentaram a libertação como o resgate operado pelo Senhor, seu verdadeiro gōʼēl, nos moldes do êxodo do Egito (Is 52,3). O retorno a Canaã pode ser considerado um ato redentor do Senhor a favor do seu povo (Jr 31,11; 50,34; Mq 4,10).⁹

    Análise de Jó 19,25

    Uma tradução literal de Jó 19,25 poderia ser: "Mas eu sei: meu redentor (gōʼēl) está vivo e último sobre o pó se erguerá". A exegese desse versículo depende totalmente do seu contexto (Jó 19,11-29): uma fala de Jó que parece ser uma réplica a Baldad de Suás (Jó 18), mas que, pela sua dinâmica interna, vai muito além (GRUBER, 2004, p. 1528-1530).

    Jó, ao retomar a palavra, se lamentou pelo que estava vivendo (Jó 19,2-12). Um dado singular está no v. 6: Sabei, pois, que Deus me transtornou. Essa afirmação coaduna com a permissão que Deus dera a Satã, para causar as aflições descritas em Jó 1,6-2,8, a fim de pôr à prova a fidelidade de Jó. Em Jó 19,25, parece que se encontra um desdobramento de Deus, semelhante ao proposto... sobre Satã. Como se buscasse um Deus para além do conhecido, familiar e catalogado (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, 1983, p. 294).

    Da lamentação, Jó descreveu o desprezo que passou a receber dentro de sua própria casa e ao redor dela. Citou irmãos, parentes, vizinhos, conhecidos, servos e servas, a esposa e até as crianças; quis dizer que todos, íntimos e amigos, se voltaram contra ele (Jó 19,13-20). É um atestado contra tudo o que Jó sempre acreditou e praticou, pois a noção de gōʼēl, assumida por Jó, permitiria dizer que ele fazia parte do grupo dos camponeses que praticavam esses costumes (TERNAY, 2001, p. 127). De fato, em dado momento, Jó lembrou-se do passado e evocou os auxílios que nunca deixou de realizar a favor dos necessitados (Jó 29,12-17).

    Jó se dirigiu aos que chamou meus amigos, e suplicou por piedade (Jó 19,21a), alusão provável a Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat (Jó 2,11). Os três já haviam falado (Jó 4,1; 15,1; 8,1; 18,1; 11,1), e de novo Jó disse que a mão de Deus o afligiu (Jó 19,21b). Nesse sentido, o peso das palavras dos amigos, contra Jó, foi comparado ao peso da mão de Deus sobre ele (Jó 19,22). No fundo, porém, Jó acredita que, para além de toda a trajetória humana, existe uma justiça divina (MAZZAROLO, 2002, p. 169).

    Então, a partir dessas considerações sofridas em amplo sentido, é que Jó, pela narrativa, pareceu mudar o tom e vislumbrou o que, de certa forma, aponta para a esperança. Por isso, desejou que a sua experiência não fosse esquecida, mas inscrita sobre a rocha, isto é, que o registro se eternizasse. Algo que lembra o Decálogo, pois foi escrito sobre placas de pedra.¹⁰

    É dentro dessa última fala de Jó, indicadora de esperança, que se encontra a afirmação: "Mas eu sei: meu gōʼēl está vivo e que, no final, sobre o pó se erguerá. Nota-se que é possível, a partir dos verbos, subdividir o versículo em três segmentos: Mas eu sei (v. 25a); meu gōʼēl está vivo (v. 25b); e que, no final, sobre o pó se erguerá" (v. 25c).

    O primeiro segmento, em hebraico, é aberto pela conjunção (waw), unida ao pronome pessoal, eu (ʼănî), sujeito do verbo yāda, que possui vários significados: notar, saber, conhecer, descobrir (HUBBARD, 2011, p. 765).¹¹ A conjunção pode ter valor aditivo ou adversativo. Considerando o que foi dito em Jó 19,23-24, parece que o sentido adversativo seria a melhor opção (TERRIEN, 1994, p. 170), pois se, porventura, o desejo expresso não fosse alcançado, Jó teria lançado mão de uma certeza de fé e, por isso, falou de forma enfática, marcada pelo uso do pronome pessoal (eu). Jó, então, revelou ter um claro conhecimento, sem, contudo, indicar a fonte. Acaso seria fruto das suas pessoais reflexões?

    Se, por um lado, é difícil dar uma resposta para essa questão, por outro lado, o segundo segmento indica o conteúdo desse conhecimento: "meu gōʼēl está vivo" (Jó 19,25b). Por meio dessa afirmação, Jó contrapôs a tudo e a todos, que lhe causam sofrimento, a figura do goʼel, associando-a ao pronome possessivo (meu), figura essa que possui um forte predicado: está vivo. Não parece que Jó estivesse declarando Deus como seu gōʼēl. É provável que se referisse a um ser humano,¹² um parente próximo que surgiria e o redimiria diante de Deus, como tantas vezes procurou fazer pelos seus filhos, após cada banquete (Jó 1,4-5), e como, no final, sob a ordem de Deus, fez a favor dos seus amigos, a fim de que não fossem castigados (Jó 42,7-9).

    Enfim, no terceiro segmento, e que, no final, sobre o pó se erguerá (Jó 19,25c), três realidades são colocadas em relação. O sujeito do verbo, erguerá (yāqûm), que diz respeito ao gōʼēl do v. 25b; a sua ação, em hebraico, caracterizada pelo adjetivo (’ahărôn) que, na tradução, dá uma ideia temporal, isto é, indicando quando essa ação acontecerá; e o objeto verbal: sobre o pó. Na verdade, Jó, por essa fala, não abre mão da esperança de que a sua aflição terminará. A ação, se erguerá, é um apelo forense ou indica a prontidão para que alguém intervenha no caso (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, 1983, p. 294).

    O substantivo masculino ‘āpār indica a terra fina e seca, daí a noção de pó. Gn 2,7 afirma que o Senhor plasmou Adão do pó da há’ădāmâ, isto é, da matéria sutil, ou da argila devidamente peneirada e livre de toda e qualquer forma de impureza. Esse procedimento cuidadoso era típico do oleiro (uma das imagens pelas quais o Senhor Criador é apresentado em Gn 2,4b-25), a fim de evitar que a obra saída de suas mãos trincasse, quando

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