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A Confidente Do Príncipe
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A Confidente Do Príncipe

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About this ebook

Maria Francisca é uma filha da elite carioca apaixonada por literatura. Aos dez anos, a vida como ela conhecia é virada de ponta cabeça com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, graças ao agravamento das guerras napoleônicas na Europa. Observadora, Maria passa a registrar em seus diários as mudanças experienciadas pelo país, ao mesmo tempo que começa a nutrir uma amizade sincera com o filho do príncipe regente e herdeiro do trono real, d. Pedro de Alcântara. Com o passar dos anos, a menina percebe que a sua relação com o nobre português pode esconder algo além da amizade. Ao mesmo tempo que amadurece e observa o seu país – aparentemente – amadurecer junto, Maria Francisca se dá conta de que, às vezes, a sua própria vida pode ser quase tão interessante quanto um livro de romance proibido.
LanguagePortuguês
Release dateDec 9, 2021
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    A Confidente Do Príncipe - Mel Aranha

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    Copyright © 2022 Mel Aranha.

    Todos os direitos autorais reservados.

    Edição Madu Maia

    Revisão Julia Costa Ribeiro Dantas e Madu Maia Diagramação Madu Maia

    Capa Madu Maia

    Arte de Capa pexels.com/cottonbro

    Arte Maria Eduarda Moura

    Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer meios existentes sem autorização por escrito da Escritora.

    Mel Aranha.

    A Confidente do Príncipe/ Mel Aranha – Primeira Edição – São Paulo.

    ISBN 978-65-00-36087-5

    1.Ficção Histórica 2. Romance.

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    7

    Para meus pais, que me apresentaram o mundo dos livros e acreditaram que um dia eu também podia entrar neles.

    8

    Não quero ter de provar nada, eu só quero viver.

    — Anna Karenina.

    9

    NOTA DA AUTORA

    Com o início da Pandemia do Covid-19, fui descobrindo novos hobbies. A paixão pela história e pela escrita sempre existiu. No entanto, surgiu durante o período de confinamento o gosto pelos livros que contassem relatos do nosso Brasil Império. A pesquisa da época – com livros de Rezzutti e Laurentino Gomes –, tornou-se algo a mais quando eu decidi que também queria narrar um romanceambientado no nascente reino do Brasil. A ideia era fazer com que pessoas que,muitas vezes, sentiam desinteresse pela história tivessem vontade de conhecê-la.É importante ressaltar, no entanto, que esta é uma obra de ficção, ainda que embasada em fatos históricos. Mesmo sendo amante desta matéria, não souhistoriadora e, por isso, peço compreensão com algumas fantasias e romances queserão adicionados nas páginas a seguir. Muitas personagens protagonistas darealidade também aparecem com as personalidades que foram atribuídas a elas pelos seus biógrafos e estudiosos, embora eu ainda tenha que lhes acrescentar traços de ações e gostos para dar um pouco mais de rumo a história.

    Quero também ambientá-los na realidade em que a nossa mocinha principal vive. A história começa em 1808, quando quase toda a Corte Portuguesa cruzou os trópicos para chegar em sua colônia da América, o Brasil. Até aquele ano, o nosso vasto e grandioso território, cheio de riquezas naturais, não passava de uma espécie de banco para a nação lusitana, de onde ela poderia extrair metais preciosos e tirar proveito de iguarias específicas– como a madeira, o açúcar e outras matérias primas.

    Essa realidade, no entanto, mudou quando a comitiva do Príncipe Real navegou pelo Atlântico e desembarcou em Salvador. Nem o Brasil nem Portugal seriam mais os mesmos. O primeiro passaria a depender cada vez menos do segundo até o momento definitivo de separação, em 1822.

    Por fim, preciso avisar ainda quanto ao uso de termos que remetem ao períododa escravidão. Até 1889, o Brasil viveu a terrível realidade – apoiada pela elite – da utilização de mão de obra escrava africana. Optei por fazer com que a minha personagem e sua família expressassem o seu repúdio e indignação com as práticas escravocratas dos demais membros 10

    da aristocracia e, embora tenha tidoque escrever alguns trechos que referenciassem estas ações cruéis, odiei relatar cada um deles. Expresso aqui o meu respeito por todos que sofreram e sofrem com as sequelas desta época horrorosa, e deixo minha admiração aos ativistas que lutam na resistência do movimento negro.

    Este livro foi uma grande montanha-russa de emoções, de descobertas e de aprendizados para mim. Com ele, pude encontrar-me novamente dentro do sonhode escrever – que, graças ao vestibular, tinha ficado engavetado por muito tempo.

    Desenvolver cada uma das personagens tornou-se meu maior objetivo e motivode felicidade, e eu espero que vocês aproveitem esta ida ao passado junto com Maria Francisca.

    Boa leitura!

    Meline Aranha, 01 de Agosto de 2021.

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    PARTE I (JANEIRO DE 1808)

    13

    PRÓLOGO

    Minha família é bastante religiosa e, assim que minha mãe descobriu estar a minha espera, meu pai fez os cálculos e percebeu que minha vinda aconteceria em meados de janeiro.

    Ansioso, ele começou a rezar para a Divina Providência para que eu nascesse no feriado do dia de reis, prometendo que, caso chegasse um filho homem, ele o nomearia de Melquior Gaspar Baltazar. Para azar – ou sorte – de meu pai, não houve nem uma coisa nem outra: nasci no segundo dia do primeiro mês de 1798, três antes do desejado, e como uma saudável menina.

    Minha mãe me deu à luz em nossa propriedade, um vasto casarão que se localizava no centro da capital do Brasil, uma via chamada Rua do Ouvidor. Coração do Rio, ela nem sempre tinha sido assim: à época de minha chegada, eraum pouco mais simples, e acabou se popularizando devido ao furacão de mudanças que assolou a cidade nos anos seguintes. Uma coisa era certa: qualquer artefato que se procurasse, vindo do Velho Mundo, lá seria encontrado. A maior parte da nobreza residia em seus solares, e em suas calçadas desfilavam damas efidalgos, todos exibindo as suas posses de maneira orgulhosa.

    A querida mamãe mal teve tempo de me colocar no colo. O

    parto durou cerca de seis longuíssimas horas e, entre dores e gritos intermináveis, papai achou quetalvez fosse melhor esperar no corredor de seu quarto, local onde eu teimava paranascer.

    Quando finalmente saí, a parteira embrulhou-me num pano, mostrou-mepara minha mãe e dirigiu-se para fora do cômodo, para contar ao meu pai sobre como eu era linda. Posteriormente, quando completei oito anos e comecei a entender o motivo da preferência pelos filhos homens, perguntei a meu papai do coração o que ele havia sentido quando me viu pela primeira vez, percebendo que eu não era um menino. Ele me respondeu:

    – Amei-te assim como te amaria se tivesse vindo como um menino, Maria Francisca. Fui escolhido para ser teu pai, e isso já me é motivo suficiente para serfeliz.

    Felicidade que duraria pouco. Ao voltar para o quarto, o médico encontraria mamãe quase sem vida, agonizando graças a uma 14

    grande perda de sangue e a alguma infecção que eu havia aparentemente causado-lhe. Meu pai entrou em pânico: apesar do casamento arranjado, os dois haviam aprendido a se amar muito cedo.Eu era a realização de algo que eles jamais se imaginariam capazes de construir: uma família. Família essa que, ao mesmo tempo que se formava, desmoronava-se.

    Mamãe faleceu naquele mesmo dia, na calada da noite. A escolha de meu pai de enterrá-la em sua paróquia favorita foi causa de um grande conflito com meu avô materno, que queria que a filha fosse sepultada na igreja da família em São Paulo.

    Papai sabia que ela jamais o perdoaria se assim fizesse, por isso permaneceu firme em sua decisão. Os laços com minha família materna, no entanto, não enfraquecerampor causa desse acontecimento. Desde que nasci, fazemos viagens - a cada alguns anos - para aquela cidade, que mais me parecia, na época, um bairro antiquado doRio de Janeiro. Hoje, quando escrevo, São Paulo já começou a mudar. Pelo que estou a calcular, daqui a alguns anos será maior do que a própria capital do Reinodo Brasil...

    Tive uma infância tranquila, marcada pela ausência de minha mãe, que logo teveo seu divino lugar ocupado por uma moça mais jovem e mais bela. Ana do Carmo,a quem meu querido pai se referia como minha nova mãe, era uma mulher de gênio difícil. Eu não sabia muito bem o que papai via nela: sua personalidade mostrava-se antiquada – ela não gostava do meu hábito de falar pelos cotovelos, estava sempre a me corrigir –, apreciava leituras conservadoras e criticava minhas mudanças de humor. Meu pai assistia às nossas brigas apático, quieto, e deixava que a bruxa interferisse constantemente em minha educação.

    É evidente que os dois logo tiveram filhos. Minha meia-irmã, Estefânia, nasceu em 1804, logo após o aniversário de primeiro ano de matrimônio deles e períodoem que a minha relação com

    Aninha era agradável.

    Passado o espaço de um ano da chegada da primeira, veio o segundo filho, agora um menino, que recebeu o nome de Miguel.

    A cada nova criança que se alojava no ventre de minha madrasta, papai parecia esquecer-se mais de sua doce primogênita, a causa 15

    aparente de tantas desgraças em sua vida.

    No início, é claro que me importei. Afinal, que criança não se sente de alma magoada quando vê o seu querido papai do coração trocá-la por outras, de sangue mais puro? Acostumei-me, apesar de tudo, com a ideia; principalmente depois da chegada de Lotte, minha mentora, e um dos presentes mais sinceros e de bom grado que Aninha já me dera na vida. De costumes metidos a sofisticados, a esposa de meu pai exigiu-lhe que os dois educassem suas moças –inclusive a sua filha não de ventre, mas de alma, como ela insistia em me chamar – com damas europeias mais instruídas. Trazida da Inglaterra quando nem se falava em importar professores do continente das metrópoles, Charlotte era uma jovem moça que gostava de ciência e buscava desbravar os trópicos. O seu plano inicial era ficar somente até 1806, quando eu completaria oito anos, ensinando-me o suficiente para que eu aprendesse o inglês, o francês e um poucode matemática. No entanto, a inglesa afeiçoou-se não só a cidade do Rio de Janeiro como também a mim e aos meus irmãos, e decidiu ficar por muito mais tempo do que esperava.

    Ela sim, verdadeiramente, tornou-se minha segunda mãe. Era para ela que eu contava meus segredos mais íntimos e era a ela que eu recorria quando estava doente. Certa vez, soltei-lhe que, se tivesse vindo ao Brasil um pouco mais cedo, eu mesma teria insistido em fazê-la se casar com meu pai. A inglesa só riu e disse que se não fosse pela minha madrasta, nós duas jamais haveríamos nos conhecido.

    Graças à Charlotte, cresci vivendo no meio das luzes e dos contos europeus. O Brasil não tinha acesso a muitas dessas coisas no início de minha infância, uma vez que se tratava de uma simples colônia. No entanto, minha professora - entusiasta da literatura - teria trazido da Europa em sua mala alguns exemplares de romances espetaculares e de livros que me deixavam mais interessada em poder viver uma grande aventura.

    16

    DIÁRIO DE MARIA FRANCISCA, 3 DE JANEIRO DE 1808.

    Ontem, quando acordei, esperei que papai viesse me desejar as felicitações de um bom aniversário; não as recebi. Sei que ele evita que isso aconteça, porque sempre que lembra da alegria de meu nascimento, vem à sua memória a perda daquerida mamãe e o amor que ele ainda sente por ela dói em seu peito. Não gostode insistir nos cumprimentos, e ele sempre me presenteia com algo que seja de meu agrado. Para mim, por fim, bastam as intenções.

    Aninha foi a primeira a entrar em meu quarto pela manhã, depois de minhas higienes matinais auxiliadas pela babá da família. Ela é uma madrasta exigente, cansativa, mas as suas tentativas de nos fazer criar um laço ao menos simpático me admiram. Sei que pareço uma malcriada quando digo que não quero me aproximar dela, mas o fato de ela ter roubado o espaço que era de minha mãe me deixa muito incomodada.

    – Maria, que belo dia. É o seu aniversário! – exclamou com excitação, ao passo que pisoteava a madeira amontoada em meu rico quarto. A nossa residência na Rua do Ouvidor era uma das poucas que apresentava relativo luxo para a realidade colonial do Rio de Janeiro. As paredes bem pintadas e os quadros importados da Europa eram uma raridade e faziam contraste com as vielas mal cheirosas e não saneadas da nossa capital.

    – Que seja um bom dia para você, Aninha – Cumprimentei-a de volta – Onde está meu pai?

    – O teu pai já saiu para o trabalho, minha querida, mas suponho que ele estará aqui para que assistemos à missa e comemoremos no jantar.

    Ainda tinha a questão de seu trabalho. Meu pai era um rapaz liberal, que gostava da modernidade e de questões políticas.

    Instruído e naturalmente lusitano, ele fez fortuna com o período da mineração no Brasil. Desde então, importava especiarias, roupas de gala e itens de demasiado luxo, vindos de Portugal, para vender a homens de poderio econômico semelhante ao seu aquina colônia, a qual dificilmente conseguia essas coisas de outros países se não da própria metrópole.

    – Ah.

    17

    A minha madrasta deve ter imediatamente percebido o meu desânimo pois, no minuto seguinte, tentou justificar que meu pai só fazia isso porque a dataera extremamente difícil para ele. É

    óbvio que não me ocupei em responder,apenas agradeci-lhe por ter lembrado da comemoração e não a ignorado por completo.

    – A senhora sabe onde está Lotte? – perguntei em seguida, sem lhe dar muitasoportunidades de tonar o nosso diálogo algo mais sentimental. – Ela me prometeu que hoje iríamos passear e ver uns belos cavalos.

    – A senhorita Charlotte está a esperar-te com o café preparado, para auxiliá-lano início do dia.

    Balancei a cabeça para concordar, pedindo,em seguida, licença para retirar-meno cômodo. Ao sair, percebi que estava deixando a minha madrasta levemente contrariada por não ter continuado uma conversa que eu nem queria que tivéssemos começado, em primeiro lugar.

    Na sala de refeições, Lotte me aguardava com um grande sorriso maternal emseu rosto, animada para aquele dia que raiava no Rio. Com as janelas fechadas, mal dava para sentir o cheiro de esgoto que insistia em se alastrar pelas ruas da cidade, somente o odor delicioso de um bolo de fubá recém-saído do forno tomava conta do espaço.

    – Minha querida Maria, feliz aniversário! – exclamou minha professora, com os olhos cheios de lágrima e uma expressão de extrema felicidade. Eu corri para abraçá-la, sabendo que aquele bolo só podia ter sido feito a mando dela, uma vezque esta sabia se tratar do meu sabor favorito – Não posso acreditar que já tens dez anos completos.

    – Também nem acredito – Confessei.

    Como te sentes? Estás mais experiente?

    – Tenho mais fome, mas acho que isso se resume ao fato de que não como desde a ceia da noite passada.

    Charlotte riu de minha simples piada e apressou-se a me ajudar a sentar à mesa que, àquela altura, já estava cheia de outros quitutes de café da manhã, dispostos pelas senhoras que trabalhavam na cozinha.

    18

    – A tua irmã ainda está dormindo. Mas Miguelzinho acordou cedo porque queria tomar café junto com a mana, palavras dele.

    – Então vamos esperá-lo. Ele já deve estar descendo.

    A inglesa concordou e, passados alguns minutos, meu irmão mais novo, Miguelzinho, adentrou a sala com suas roupas de ficar em casa e acompanhado da babá. Sorri para ele, ao passo que o rapazinho veio me desejar feliz aniversário com um grande abraço, pulando em meu colo.

    – Feliz aniversário, Maria Francisca – Disse ele, com sua doce voz infantil e errando as consoantes em algumas palavras, como era de costume para uma criança de quase três anos. – Pedi a mamãe que me acordasse cedo para tomar café contigo.

    – Obrigada, meu principezinho – Eu o chamava assim porque meu irmão era um garotinho bastante exigente, apesar de sua pouca idade, e muito mimado pelas babás e governantas de nossa casa – Agora que estás aqui, podemos provardo bolo que Charlotte mandou que fizessem para a data de hoje. Que achas?

    – Viva! Posso ficar com o primeiro pedaço?

    Pisquei para Lotte, que sabia que era o próprio Miguel quem normalmente levava os primeiros pedaços de meus bolos, e divertia-se com o pedido do mais novo.

    – É claro. Eles sempre são teus mesmo, não é?

    Com a ajuda de sua babá, o meu irmãozinho acomodou-se na cadeira, precisando do auxílio de seus joelhos para ficar à nossa altura na hora de fazer a refeição. Charlotte, então, cortou uma fatia generosa do bolo de fubá, que ainda estava quente, e colocou-o no prato de louça.

    – Dona Iara se superou no bolo – Concluí quando provei o pedaço que me foiservido – Deve ser realmente uma data especial, para vocês fazerem esse alarde todo – Brinquei.

    Charlotte riu-se um pouco e ditou, num sotaque levemente inglês:

    – Claro que é, my darling. Não é todo dia que nós completamos uma década, não é?

    19

    – Certamente não. Sabe, Lotte, tanta coisa se passa pela minha cabeça quando me dou conta de que já estou a fazer esta idade...

    Por exemplo, daqui a umtempo, cinco anos no máximo, é provável que eu já esteja noiva. – Comecei a refletir e era a mais pura verdade. Depois dos dez anos, era só uma questão de tempo paraque a minha primeira visita chegasse e, quando isso acontecesse, o meupai provavelmente se apressaria em arranjar o meu casamento. De acordo com Aninha, teria deser com um nobre europeu, com o qual eu me mudasse para o continente das metrópoles e criasse meus filhos longe do aspecto colonial do Brasil. Ela dizia que era por isso que havia nos arrumado professoras tão caras: para que ficássemos sofisticadas e os homens fizessem filas para casarem-se conosco.

    – Achas mesmo? – Perguntou minha professora.

    – Tenho minhas dúvidas de que papai e minha madrasta me manteriam aqui, solteira, se tivessem a oportunidade de me despachar para a Europa com um marido rico. E eu só preciso ter os requisitos para me casar para arranjar um, istoé...

    Buscando explicar para Charlotte que eu não poderia tratar explicitamente de assuntos de menina perto de Miguel, desviei o meu olhar rapidamente para a cadeira onde estava acomodado o meu irmãozinho. Felizmente, a inglesa captou depressa o recado e continuou a conversa.

    – Não digas isso de teus pais – Reprovou-me ela – No entanto, se o pior acontecer e o teu marido for um velho horrendo, acho que podes fazer como eu e fugir do compromisso arranjado para uma viagem de longos estudos!

    – Tentador estudar literatura em um outro país, mas sabes bem como é a minhamadrasta. Ela jamais deixaria que uma "moça de família saísse por aí querendo dar uma de espertinha e metida a estudiosa!" – Usei uma voz levemente sarcástica para fazer aquela observação, rindo – Eu só torço para encontrar um bom marido, como é papai.

    – Com certeza o teu pai não vai arranjar qualquer moço para ti, Maria. Você é a garotinha dele.

    – Eu queria um príncipe encantado como nos meus livros de contos – Divaguei – Mas tu mesma já me disseste que eles não 20

    existem, então posso contentar-me com um rapaz qualquer, contanto que ele tenha bom coração.

    – Teu noivo será ótimo – Garantiu-me Charlotte. – Mas, por favor, pare de pensar nisso agora, menina! Acabaste de completar dez anos, espero que ainda demore um pouco para que saias, oceano afora, com destino à Europa.

    – Ciça – A voz de meu irmãozinho soou, do canto da mesa, levemente aflita – Se fores embora para a Europa, vais me levar junto, não vais?

    – E desde quando a tua irmã vai para algum lugar sem tua companhia, Miguel? – A professora inglesa respondeu por mim.

    Eu ri, grata por aquele café da manhã de um aniversário simples, pensando noque eu esperaria do ano que estava por vir. Falar de meu futuro parecia uma incógnita em primeiro plano, mas, olhando mais afundo, tratava-se de mais umaoportunidade de construir uma grande aventura para mim mesma. Desde que comecei a crescer em meio aos livros, eu decidi que levaria a minha vida como todas as personagens principais de meus romances: com ânimo e bravura frente ao desconhecido. E era assim que eu queria começar os meus dez anos, pensando não em como eles iriam ser, mas que oportunidade de aventura o nascente ano de 1808 poderia vir a me oferecer.

    A nossa rua, a Rua do Ouvidor, era uma via bastante convidativa a se passear. Nela, ficavam a loja de cacarecos – como eu gostava de chamar – de nossa família e mais umas diversas que se estruturavam no simplório Rio de Janeiro. Se a capital era um privilégio, a Ouvidor era um ainda maior, afinal era lá que se concentrava a nata da elite colonial. Era por aquela estrada que ficávamos sabendo das últimas notícias e acontecimentos e que festejávamos a maioria dos feriados portugueses comemorados no Brasil. Por causa de nossa educação, realizada em casa, nós costumávamos ir para a área externa da região somente quando papai precisava de nós em seu comércio, em fins de semana ou em datasespeciais.

    O meu aniversário foi uma boa desculpa, então, para usufruirmos da pouca modernidade que a via nos oferecia.

    Charlotte nos concedeu a tarde de estudos de folga e, com a 21

    permissão de Aninha, saímos os quatro – eu, ela e meus dois irmãosmenores – para perambular pelo calçamento sem um rumo certo, apenas aproveitando a companhia e nos esforçando para não tropeçar entre as vendedoras de doce que se amontoavam próximas às calçadas.

    No meio do passeio, paramos embaixo da viseira de uma das pouquíssimas lojas do recinto, de modo a pegar sombra – o calor de janeiro na capital não erao dos mais agradáveis.

    Enquanto aguardávamos a chegada de um clima mais ameno para voltarmos para a nossa casa, Miguel no meu colo e Estefânia segurando na mão de Charlotte, enxerguei um senhor ao longe, a arrumar tabloidesde madeira e subir neles, com o objetivo de ficar mais alto.

    O cômico homem ajustou o seu falso colarinho e, com um sorriso de bom humor e excitação, retirou um papel do bolso de suas calças. Ele respirou fundo pude perceber pelo movimento que fez com os ombros – antes de começar a falar e pôs-se, enfim, a discursar:

    – Cidadãos do Rio de Janeiro! É com prazer e devoção que vos digo, nesta tarde honrosa do dia 3 do primeiro mês de 1808...

    – O que ele está dizendo, Cici? – Perguntou Estefânia, confusa.

    – Vamos ouvir, minha querida. – Comentei, fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador para a minha irmãzinha e voltando os meus olhos para o velho nos tabloides.

    –...que a chegada de Vossa Alteza Real, o Príncipe Regente Dom João VI; de sua augusta esposa e Princesa deste tropical território, D. Carlota Joaquina; de seus belos filhos; de sua mãe, Vossa Majestade, a Rainha Dona Maria I; e do restante da corte lusitana na capital do Brasil já deve estar muito próxima! Tendo em vista...

    – O que ele disse, Lotte? O que ele disse? – Agora era a vez de Miguel questionar, incansavelmente, em meu colo.

    – Que o príncipe está vindo – Suspirei, encarando Charlotte com uma expressão levemente intrigada.

    De acordo com alguns boatos oriundos da Europa, boa parte da nobreza de Portugal estaria vindo nos fazer uma espécie de 22

    visita especial. O que havia acontecido, na verdade, era aquilo que vinha sendo ensaiado hábastante tempo no Velho Continente. Ao ouvir o homem recitar sobre a chegada de Dom João e do restante de sua família, viajei de volta para a aula de atualidades que Charlotte, sempre muito bem informada dos acontecimentos desua pátria de nascença, havia lecionado em uma certa tarde.

    No último ano da Revolução Francesa, isto é, 1799, o Estado recém-assolado por um período sanguinário do movimento temia uma nova fase violenta e, por isso, estabeleceu uma forma de governo denominada ‘Diretório’. O Diretório nadamais era do que a retomada do controle político pela alta burguesia, aquela classe social mais bem abastada, mas que não chegava ao patamar da nobreza. Assim, as camadas populares, que tão fortemente lutaram na Revolução, foram afastadasmais uma vez do poder que havia os seduzido a ponto de promover um banho de sangue, com o auxílio da guilhotina.

    "Apesar dessa mudança, que, aparentemente, viria para acalmar os ares do movimento, os monarcas absolutistas da Europa não se conformavam em perderem suas soberanias e, principalmente, o que os mantinha em seus respectivos tronos.

    A teoria do Direito Divino dos Reis, idealizada por Jacques Bossuet naquele mesmo país que agora a renegava, propunha que um Rei governava graças à escolha divina. Com a Revolução Francesa, no entanto, as coisas não funcionavam mais assim. O povo falava em liberdade, no fim do poder absoluto e soberano dosmonarcas e, em tom mais radical ainda: na legitimação dos direitos dos cidadãos comuns."

    Diante disso, os chefes tradicionais dos tronos europeus não iriam aguentar calados. Vieram, diversas vezes, tentativas de contrarrevolução, contra as quais o exército francês se posicionou firmemente, optando por resistir. Nessa luta em defesa dos ideais revolucionários, as classes militares e os generais vinham ascendendo gradualmente no cenário político da França. Um desses generais eraNapoleão Bonaparte.

    Estrategista e ambicioso, Napoleão logo seria inserido no poder através de umgolpe de Estado denominado 18 de Brumário", articulado por membros do diretório que acreditavam que 23

    somente o general de baixa estatura seria capaz dedar à França uma relativa estabilidade política. Graças ao êxito de Bonaparte empromover a paz religiosa, a recuperação econômica e reformas nos setores administrativos e educacionais do país, ele logo conseguiu o título de cônsul vitalício na política nacional.

    No entanto, em 1804, Ciça, - quando você tinha seis anos - ele deu um passo muito maior em suas realizações: autocoroou-se Imperador Liberal."

    Além de um grande choque, a autocoroação de Napoleão provocou um graverompimento da relação do Imperador com a Igreja. Agora, o corso mostrava quenão precisava mais da ajuda divina para ocupar um trono. Pelo contrário, ocupava-o por seu próprio mérito e, assim, não deveria se apresentar subordinado a ninguém.

    Como já lhe disse, minha querida, o Diabo – como era provocativamente apelidado pelos líderes absolutistas, que não suportavam ver um militar como imperador – era ávido pelo sucesso e por mais e mais poder. Napoleão tinha umavisão de um grandioso futuro para a França: o poderio e a organização militar do país eram suficientes para consolidar uma grande expansão territorial. Ademais, era do desejo do Imperador a inserção de um projeto de industrialização para osmercados franceses. No entanto, quanto a isso, havia um empecilho um tanto irritante com o qual se lidar: a minha Inglaterra.

    Pioneira das Revoluções Industriais, a poderosa e divina Inglaterra, além de comandar e dominar os mercados consumidores, as matérias primas e tantos outros setores econômicos não somente das diversas colônias espalhadas pelo mapa, como também das suas grandes metrópoles, tinha uma marinha de elevadíssima competência. Era impossível, para a França, conseguir sucesso e monopólio econômico com o nosso povo na jogada. Apesar da grandiosidade do exército do corso, este sabia que lutar contra a Senhora dos Mares seria praticamente suicídio, por isso, há dois anos, em 1806, decidiu por uma estratégia melhor: o Bloqueio Continental.

    "O Bloqueio Continental era, portanto, uma tentativa de isolamento comercialcontra a Inglaterra. De acordo com esse tratado, os outros países europeus estavam proibidos de 24

    comercializar com o sistema inglês. Caso tal ordem fosse descumprida, o país que assim fizesse corria o forte risco de uma invasão militarnapoleônica – a mais temida da época."

    A assinatura e revogação do Bloqueio Continental deixava o teu príncipe, Dom João VI, em uma saia justa. Isso porque Portugal, metrópole em que este e toda a família real residiam, era uma parceira econômica de longas datas da inimiga mortal dos franceses. Sendo assim, ele poderia escolher entre permanecer ao lado de sua fiel aliada e lutar contra as tropas de Napoleão ou traí-la, cedendo às exigências da França e, assim, correndo o risco de sofrer uma invasão inglesa.

    Foi quando Dom João se viu perdido que o seu, ou melhor, o agora nosso Brasil entrou na jogada. Foi sugerido ao príncipe por alguns ministros e conselheiros de Estado que Vossa Alteza, para que não perdesse o trono e assegurasse a sua forte linha de sucessão, fugisse para o vasto território das Américas. Vindo para cá, o Príncipe poderia se hospedar na capital e governar ambas metrópole e colônia, voltando quando tudo estivesse apaziguado. A Corte contaria, assim, com a ajuda da Inglaterra para fugir.

    Lembrando-me da aula de Charlotte, recordei-me também que ela me dissera aquilo que seu querido papai havia contado: que a

    fuga dos de sangue real – ocorridano final de 1807 – havia sido um espetáculo triste de se assistir. A começar pela Rainha que, com suas faculdades mentais instáveis, recusara-se a entrar, de início, na nau que a levaria. Em segundo lugar, instalou-se na sagrada um sentimento de desengano: sendo deixados literalmente para trás na cova dosleões, os cidadãos lusitanos ficaram revoltados por verem o seu tão adorado líder abandoná-los em uma situação de perigo. A Corte decidiu refugiar-se aqui no Brasil; outros moradores viajaram para as regiões da Inglaterra e da própria Espanha, que já estava sob ameaça do corso. Na bela Portugal só restaram, por fim, aqueles que não tinham condições de sair, de maneira alguma, para uma nova pátria de adoção.

    Meu grande devaneio foi interrompido pela voz de minha irmã.

    Animada com a possibilidade de ver a família real, a pequena criança mostrava-se, agora, extremamente ansiosa pelo 25

    desembarque dos navios vindos de Portugal.

    – O que isso significa, Lotte?

    – Significa, minha querida... que agora os destinos de Portugal e do Brasil estarão entrelaçados para sempre.

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    3 DE JANEIRO DE 1808, NAU PRÍNCIPE REAL.

    Caso se tirasse alguns minutos de um tedioso dia de viagem para relaxar no cais da nau Príncipe Real, seria possível ouvir, além de eventuais conversas de marinheiros veteranos, ordens e frequentes indagações vindas do príncipe herdeiro, Dom Pedro de Alcântara. Inquieto e de espírito aventureiro, ele lidou com a fuga ao Brasil de uma maneira bem diferente: enxergou-a como mais umade suas explorações – que, até então, limitavam-se às paredes e corredores do local onde havia crescido, o Palácio de Queluz.

    O pequeno Pedro, que ainda não tinha completado seus dez anos, gostava deassuntos de cunho militar e divertia-se com livros que narravam eventos épicos.Um deles, de nome

    Eneida, continha o relato de um sobrevivente da famosa Guerra de Tróia, Eneias, e era o seu companheiro fiel de viagem. Durante todosos dias do percurso de Portugal até o Brasil, o príncipe caminhou com a obraembaixo do braço, como se a julgasse desprotegida em meio a todo aquele oceano.

    Viajando relativamente sozinho, em companhia somente de seu mano Miguel, de apenas cinco anos, da avó enlouquecida e do pai – que não lhe dava a atenção necessária ao filho preferido que ele deveria ser, já que se tratava do herdeiro do trono-, Pedrinho encontrou nas narrativas heroicas um escape para o futuro incerto que lheaguardava no Brasil. Observando os marinheiros e soldados trabalharem naembarcação, ele tinha certeza de que nascera para cometer um enorme ato de heroísmo tal qual, se não maior, do que o do próprio Eneias.

    Em um de seus minutos retirados para a plena reflexão, o jovem príncipe sentou-se sobre a beira do cais e pôs-se a observar o horizonte. O livro estava no braço, como de costume, mas o menino não sentia vontade de explorá-lo agora. Perdido em seus monólogos interiores, não notou quando um amigo que fizera na viagem, Lobato, sentou-se ao seu lado.

    Já adulto, o mariinheiro ajudava nas funções mais simples do navio, mas - por saber sobre navegações e rotas marítimas -

    acabou chamando a atenção de Pedro. O menino havia ficado 27

    impressionado com a experiência de Lobato e vivia pedindo-lhe que contasse sobre os causos e histórias de viagens que fizera pelo mundo.

    – Agora é oficial, alteza. Estamos quase chegando, só mais uns poucos dias – Disse o moço, que encarava fixamente o horizonte.

    – Tu me dizes isso todos os dias – Respondeu o segundo, em um murmúrio desanimado.

    – E não minto em nenhum. Cada dia no mar é um dia a menos no mar.

    Pedro esboçou um sorriso, mas não tirou os olhos do horizonte, tão belo graças ao sol que o refletia.

    – O que tem para lá? – Perguntou, depois de um longo período de silêncio, apontando para o espaço que antes observava.

    – O que o senhor quiser, meu amiguinho – Lobato bagunçou os cabelos do menino – Para mim, por exemplo, tem uma casa colonial mal feita, onde uma moça de cabelos negros espera por mim com nosso belo filho em seu colo. Ela sabe queestou perto de voltar porque conta na parede de nossa sala, com riscos na madeira gasta, meu período de viagem.

    – Tu a conheceste no Brasil?

    – Em uma viagem que fiz para lá, há poucos anos. O pai não queria que nos casássemos, por eu ser somente um marinheiro, mas insistimos.

    Pedro não prolongou, de maneira alguma, o assunto

    casamento. Sabia que o seu destino de casar-se com uma nobre de alguma casa europeia já estava traçado. Afinal, ele era o príncipe herdeiro da dinastia dos Bragança, e escolher o amor verdadeiro e com quem ele gostaria de passar o resto de seus dias não era um luxo que ele podia se dar. Ao invés disso, o menino se interessava pelo soberano que seria, pelo jeito que governaria e por como o seus súditos o amariam por ser umrei justo.

    – Ainda está aí, alteza? – Indagou novamente Lobato e, só assim, o de sangue real percebeu que havia passado muito tempo sozinho em sua cabeça, pensando.

    – Só pensando. Em tudo e em todas as coisas.

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    – Então, não irei incomodá-lo – O marinheiro tocou o ombro do príncipe, em um sinal de cumprimento e, assim, levantou-se do cais e decidiu que deveria tomar o seu rumo para os afazeres diários. – Mas não se esqueça, meu jovem: atrás desse divino horizonte que o senhor enxerga... pode estar tudo aquilo que desejar, basta buscar.

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    DIÁRIO DE MARIA FRANCISCA, 4 DE JANEIRO DE 1808.

    Desde que eu era uma criancinha, gostava de ler e de contar histórias. Com a pouca idade, é claro que ainda não tinha conhecimento de todas as palavras e deseus significados, mas Charlotte me auxiliava particularmente bem na transmissão delas. Em minhas tardes livres, depois de ensinar-me a ler, a professora inglesa deixava que eu narrasse minhas próprias aventuras literárias,ao passo que ela mesma as passava para uma folha de papel, com ajuda de uma pluma. Com o tempo, comecei a redigir, de meu próprio punho, tudo o que vinhaàminha mente, abrindo, assim, espaço para que o papel e os diários conhecessem meus devaneios, viagens e desejos.

    O meu verdadeiro sonho era ser uma grande escritora, com livros de sucesso que rodeassem o mundo todo. Eu queria que as pessoas – do Novo e do Velho Mundo – pudessem ter acesso à leitura e conseguissem decifrar cada detalhe de minhas histórias e de meus personagens. Um dos meus maiores desejos, pelo qual eu pedia todas as noites com meu coração aberto, era o de ter uma escola onde

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