Sobrevida
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Sobrevida - Márcio Paes Leme
SOBREVIDA
Márcio Paes Leme
INTRODUÇÃO 5
CAPÍTULO 1 9
CAPÍTULO 2 14
CAPÍTULO 3 17
CAPÍTULO 4 40
CAPÍTULO 5 55
CAPÍTULO 6 77
CAPÍTULO 7 80
CAPÍTULO 8 86
CAPÍTULO 9 96
CAPÍTULO 10 100
CAPÍTULO 11 124
CAPÍTULO 12 131
CAPÍTULO 13 141
CAPÍTULO 14 155
CAPÍTULO 15 163
CAPÍTULO 16 170
CAPÍTULO 17 175
CAPÍTULO 18 177
CAPÍTULO 19 187
EPÍLOGO 192
INTRODUÇÃO
O mar lascivo, esparramando-se e intumescendo o areal da orla, ressonando em murmúrios monótonos, parece segredar mistérios e anseios milenares, indiferente ao vento que lhe arranha o dorso e carrega a evaporação das suas espumas, levando o perfume da maresia até onde sua presença não se faz sentir. O vai e vem, ao ritmo dos seus próprios monólogos, é pachorrento, lastimoso, irritante até.
A vegetação ribeirinha, rala, a grama enfezada, teimosa, atapetando o limiar da praia, como a espiar o mar que não lhe chega aos pés, por vezes agrupa mais alta ao redor de aroeiras e ramas peculiares que formam macegas, mas que se interrompem à proximidade de coqueiros esguios. À luz da lua esses coqueiros esquálidos, erguidos como braços ossudos implorando aos céus qualquer coisa em preces mudas, chegam a pintar cores fantasmagóricas na tela da paisagem tranquila, e então chegam a parecer coisas mortas, como as copas agitadas ao sopro de ventos saídos das lonjuras do mar, assemelhadas, as folhagens dos seus altos, a milhões de sanguessugas a chupar as últimas energias daqueles vultos magros.
O orvalho frio que umedece a terra, formando gotículas de prata pela vegetação, não resiste aos primeiros olhares do sol dos trópicos. As pedras esparramam-se desordenadas, escuras, limosas, onde o mar atira o marisco indefeso. Constante é o vento. Às vezes brando, outras, porém, parece-se a um cão maluco na ânsia de morder a própria calda, enrolado nas suas dobras, agitando a folhagem, batendo-se pelas quebradas, mordendo as pedras de um pequeno promontório que fisga o mar aureolado de espuma.
Um morro pelado, cinzento, pedregoso, ergue-se taciturno em posição frontal a outro, menos alto, bastante mais longo, coberto de mata cerrada, de árvores fortes, e aguadas ricas que escorem-lhes pelas encostas em busca de uma florida campina, que separa esses dois acidentes geográficos. Nessa campina florescem as margaridas e as flores mais gentis e delicadas que a natureza laboriosa criou em suas estufas imaginárias. Um fio d’água serpenteia por entre as flores cantando hinos de paz e tranquilidade, até altos muros surgirem-lhe à frente, fazendo-o correr num desvio abrupto para outra direção que não a original.
É uma ilha. Pontas alcantiladas de terras submersas, afloradas na imensidão das águas densas do mar.
O vulto maligno, refúgio carcerário erguido pela poderosa mão da sociedade, alimentado e mantido pela justiça cega, é algo anacrônico na paisagem daquela ilha, e algo pavoroso na história da civilização do homem.
Tão longe e oculto ergueram-lhe as pilastras, que ao vê-lo, refeito da surpresa, a certeza de que as próprias leis que o construíram, dele se envergonham, avassalam-nos. Nem a lua no céu consegue ignorá-lo, pois sua luz leitosa parece enojada em ter que incidir em seu vulto tenebroso. A própria natureza ao redor parece repeli-lo, visto que as flores correm a florir distante.
O vulto do presídio, figura monstruosa, parece possuir todas as características de um lamento, de uma súplica que os céus não ouvem. É como um grito surdo berrado a cada instante, dirigido ao sol que lhe aquece, que lhe estorrica com o calor dos trópicos; dirigido ao mar, indiferente, que somente se interessa pela praia branca; dirigida ao tempo, que pouco a pouco, sinistramente paciente, alimenta a erosão que lhe escalavra os muros, que lhe escurece as paredes, que lhe enferruja as grades, e põe em tudo um cheiro nauseante de mofo impregnado de maldade.
O vento, que agita as ramas, que refresca as têmporas, é que corre livre pelos corredores do presídio, sem, contudo, deter-se em suas dependências alucinantes. Então, para maior espanto, para maior descrença, a história revela que ali, onde agora se encarceravam os criminosos nas mais monstruosas das opressões, fora um antigo lazareto.
A prece que sobe aos céus, após haver queimado os lábios, e chega aos ouvidos de Deus, tanto pode vir de uma criança quanto de um marginal.
CAPÍTULO 1
A noite é calma. No ar corre uma brisa, que agita os odores. Já não é bem noite, pois a madrugada, resto da noite envelhecida, clareia as penumbras cansadas. Cinco horas da manhã. O vento que há pouco agitava as margaridas da campina situada a Noroeste, penetrou irreverente pelos corredores escuros e sujos do antigo lazareto. Nas celas ainda há noite, escura, quente, impregnada do cheiro forte de suor pegajoso, que inunda o ar, tornando-o pesado e insuportável.
Estirado ao comprido em seu catre, trajando apenas um calção velho e sujo, as mãos cruzadas atrás da nuca, os olhos cravados no teto encardido, um condenado pensa em coisas passadas ou em projetos futuros. Sua expressão, embora fitando o teto, é a de quem houvesse atirado longe os pensamentos. Os olhos são negros, terrivelmente negros, como se para conseguir tal negritude, houvesse sido preciso fundir todos os pecados do mundo. Os cabelos também são negros, lisos, estão sujos, embaçados. Os traços do rosto são duros, como cinzelados em pedra. A boca, de lábios finos, parece eternamente contraída pela mescla de dores e ironias. Nariz de linhas gregas. Testa larga. Sobrancelhas largas. Fisicamente é forte. O tórax largo fala de uma força enorme. No rosto, a barba de três dias, negra, suada, brilhosa à luz mortiça da lâmpada piloto, pregada no teto, lutando contra a penumbra que a tudo envolve.
Ao lado do homem que fita o teto, outro prisioneiro em igual posição. Os olhos negros amarelados, rajados de sangue, são poços de maldade. É um condenado enorme, fortíssimo, negro como as covas do inferno. Como o primeiro, traja somente um calção, igualmente velho e sujo. Seu corpanzil suado, rebrilha dentro da penumbra da cela. Tem o rosto grande, gordo, redondo, coberto por uma barba espinhosa, negra, embaçada. Nariz largo, achatado, boca igualmente larga, de lábio grossos. Os cabelos são eriçados como milhões de molas de isqueiros.
A cela é ocupada por oito presos. O restante dorme, ou assim parece.
Aqueles dois cérebros despertos, pelas feições dos rostos deviam trabalhar. Em suas usinas, em suas bigornas, em suas fornalhas, deveriam estar sendo fundidos pensamentos e planos sinistros, refletidos no brilhar maquiavélico dos dois pares de olhos, tão firmemente cravados no teto imundo da cela. E os cérebros, no trabalho incessante, liberando energias, enchiam o ar de eletricidade, tornando o espaço mais exíguo, a atmosfera mais tensa e mais dramática, arrancando mais suor dos corpos, terminando por transbordar pelas grades, inundando os corredores, fundindo-se à maldade que constantemente rondava os desvãos sombrios, agitando os fantasmas que naqueles lugares se ocultavam, obrigando-os ao mister de horripilar as almas mais fracas dos encarcerados, ali oprimidos, impotentes pela fraqueza, atirados àquele maldito presídio, após terem deixado lá fora, às margens dos caminhos trilhados que os conduziram até aquela situação, os cadáveres da esperança, do sonho, da ambição, do carinho, do amor e da liberdade.
E os corredores de paredes grossas, úmidas, tristíssimos, parecem habitadas ainda pelos gemidos e gritos das dores inimagináveis dos seus antigos ocupantes, ali segregados para que os germes da peste horrível lhes roessem os corpos em vida, longe das vistas repugnadas dos seus semelhantes sãos. Aquelas paredes úmidas parecem ainda impregnadas de vermes, ou ainda, parecem haver contraído o próprio mal, visto seu aspecto, esfoladas, carcomidas como que marcada pelo trabalho do mal de Hansen.
As celas são catacumbas destinadas a encerrarem seres vivos, e a vê-los, pouco a pouco, pelos desesperos, pela angústia do encarceramento, pela maldade com que são tratados, por todos os mil maus tratos e sofrimentos que lhes são reservados naquelas solidões imensas, rirem-se na loucura, ou encaminharem-se ao fim, à morte que lhes saudará com o descanso eterno, que lhes afagará as frontes como a virgem prometida dos malditos.
O pátio interno, àquela hora vazio de presos, iluminado pela lua, a eterna vagabunda dos céus, onde corre leve brisa, aguarda o alvorecer, o sol, o calor, que obrigará os presos a desentocarem-se dos seus refúgios fétidos e ali ficarem. Mas, àquela hora, o pátio parece espichado em toda a sua extensão, dormir o sono tranquilo dos intocáveis, o sono da perfídia, o sono bruto dos infames, embalado pelo bafo malcheiroso que corre do interior do prédio.
Os muros altos enegrecidos pelo tempo, limosos, como serpentes asquerosas, dessas que habitam os pesadelos, rodeiam segregadores, as construções internas, como a lembrar aos que lhes veem as formas, que eles, os muros, ali estão no cumprimento vil do seu destino de encarcerar as feras humanas. Visto à noite, parece num esgar, sorrir ao observador, como a segredar-lhe a ameaça de a qualquer momento, quando a noite for mais negra, dessas noites pretas que antecedem as tragédias, eles tombarão, fragorosamente, deixando em liberdade os demônios que encurralam.
E o vulto espectral do presídio, imponente na sua forma monástica, terrível sombra erguida naquela campina, como que arrancada das páginas da Idade Média, habitação tipo castelo de bruxas, parece fitar, impassível, a paisagem e a vegetação que se lhe estende aos pés. Visto à noite é ainda mais impressionante, banhado pela luz da lua, tendo um vento quente a correr-lhe pelas entranhas, afogueando-lhe o intestino povoado de víboras, bufando o hálito fedorento dos monstros.
Erguido naquele ponto, prepotente e senhoril, espantando a vegetação ao seu redor, atraindo as larvas e lesmas que se lhe grudam aos muros, dorme o sono dos maus, batido por pesadelos.
O presídio dorme, perdido naquelas solidões. Monstro encapuzado. Tumor pestilento que vez por outra explode nas revoltas dos encarcerados, trazendo à tona toda a traumatizante perversidade contida entre seus muros.
CAPÍTULO 2
- Sei que a terra há de comer estes olhos que já viram muitas coisas. Até hoje ainda não vi o Diabo. Nem Deus. Nasci vendo coisas feitas não sei por quem. Uma vez cheguei a parar o burro na beira da estrada para ver a luta do marimbondo com a aranha. Só bati na orelha do animal quando a aranha estava morta e o marimbondo rodeava por cima do cadáver- Todos atentos. A noite lá fora empretecendo tudo. Agora era o tempo voltando. Roda que gira e que gira. O tempo voltando. Uma velha escrevendo a história do mundo.
A velha contou tanta coisa. Contou tanto horror. Tinha a voz mais trêmula que carne de rã cozinhando. Dava