Porco-espinho
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Porco-espinho - Lizette Rodrigues
Trans/plante
– Sabes o que pensei?
– Quando?
– Ora, ontem à noite.
– Onde?
– Mas como! Já esqueceste? Acho que tu não estava bem!
– Claro que eu não estava bem. Estava cheio de droga.
– Pois é, sabes aquele papo nosso, lá no canto do barzinho do Centro?
– Ah! Não lembro. Mas o que tu pensaste?
– Eu pensei em retirar teu cérebro.
– Meu cérebro! Tu estás brincando ou louca?
– Não. Eu não estou brincando nem louca, pois nunca me droguei.
– Mas, afinal, por que retirar meu cérebro? Eu ficaria com o crânio oco. E depois eu seria apenas um animal. Como eu ficaria?
– Ora, João Miguel, tu ficarias muito bem. Ficaria vazio. Vazio é melhor que drogado.
Sabes... João Miguel, eu sonho em ter teu cérebro em minhas mãos e segurá-lo, firmemente, e nele enrolar, enrolar muita linha de carretel. Sabes aquela linha nº 16, que é bem forte. Gastaria vários carretéis.
– E, depois Martha?
– Bem... Depois dele todo, firmemente amarrado, te jogaria no mar. Ainda amarrado com uma pedra bem pesada, para ir bem ao fundo do mar.
– Não, Martha. Categoricamente, não! No fundo do mar, não. Os peixes iriam devorá-lo e ficariam contaminados, viciados... Sei lá. E, um belo dia um pescador iria pescar todos estes peixes viciados e drogados e vendê-los no mercado. Crianças e os adolescentes que iriam comer esses peixes ficariam sensibilizados para usar a mesma droga. Por mais que a dona de casa limpasse os peixes eles continuariam contaminados com a droga. É uma substância viciante, querida Martha!
– Ah! Então é assim, Martha. Tu me prometeste ajuda e queres me deixar inútil. Isto é, sem cérebro.
– Não! Não, João Miguel, tu não entendeste nada. Eu te amo e como te deixaria inútil? É claro que não. Eu transplantaria outro cérebro em ti. Um cérebro sadio, límpido e sem vícios. Eu transplantaria em ti, outro cérebro, vindo de outro Planeta não poluído. Acredite, eu mandarei buscar. Mesmo que isto me custe a vida. Imagine, eu terei que atravessar o Universo para chegar até outro Planeta.
– Mas tu farias isto por mim, Martha?
– Claro que sim. Eu te amo!
– Já que a ideia de jogar meu cérebro no mar não seria a ideal, o que faremos então, Martha? O cérebro que tenho agora não serve para nada. Às vezes ele mesmo reconhece que só bebe, só joga, só se droga e só quer prazeres.
– Sabes, João Miguel, eu acho que o queimaria. E colocaria as cinzas numa caixa, ermeticamente fechada e guardaria em meu quarto. Escondido em meu quarto porque se meus pais descobrem que tenho cinzas de um cérebro viciado em drogas dentro de casa, eles, no mínimo, me colocariam pra fora de casa. E não me aceitariam como filha, nunca mais.
– Mas, Martha, tu terias a mim!
– Sim, eu sei que eu teria a ti. Mas como estás, NÃO! Categoricamente, NÃO. Não posso te aceitar, neste momento como pai de meus filhos. Um espermatozoide teu que fecundaria um óvulo meu, poderia estar drogado. Então, teríamos filhos sensibilizados às drogas. Não. Não posso te aceitar assim!
– Então... Aceito o transplante, Martha.
– Por que aceita o transplante, João Miguel?
– POR QUÊ?
– Ora, Martha. Muito simples, porque também te amo. E porque quero ser o pai de teus filhos.
– Olhe, João Miguel, confie em mim. O transplante não irá doer nada, apenas exigira muita força de vontade, cooperação e disciplina. Juntos, faremos o transplante. E em poucos meses tu terás um cérebro novo, límpido e cheio de saúde. Assim, tu poderás ajudar outros e teremos muitos, muitos filhos.
– Mas, Martha, tu bem sabes que não é somente meu cérebro que está viciado. Como o meu, existem milhares na face da Terra. E, uma das causas é a poluição, industrialização, a maquinaria estressante, o capitalismo selvagem e a falta de amor e afeto. Não sei, acho que são poucas as pessoas que desejam ajudar em transplantes. Estão todos correndo atrás, nem sei de quê. Assim, foi lá em casa. Bem lembras, passavam semanas que eu não via meu pai, nem minha mãe.
– João Miguel, neste momento esquece um pouco dos outros. Depois tu ajudarás. Agora temos que nos preocupar contigo. Depois multiplicaremos as boas ações.
– Mas por que assim, Martha?
– Porque João Miguel, nós nos amamos e queremos nos casar. Depois de teu transplante, acharemos uma solução através das indicações de Deus. Talvez uma canção de mensagem. Uma canção contando nossa história.
– Martha! Que ótima ideia. Vamos fazer a canção agora.
– Não. Não e não, João Miguel! Primeiro o transplante depois a canção. Se eu ficasse contigo, neste momento e a sós, terminaríamos fazendo amor e não seria o certo porque o filho não foi planejado. E sabes o que aconteceria?
– Não, o que aconteceria?
– João Miguel, não vês que nasceria uma criança não planejada, nem desejada para este período. Teu cérebro ainda é o mesmo viciado. E seria mais uma criança no somatório dos filhos não desejados.
– Concordo contigo, Martha, tens razão. Não é o momento certo.
– Então... Boa noite. Nunca esqueças que te amo e vamos fazer teu transplante. Depois, juntos, acharemos uma solução para todos os jovens viciados. Faremos uma canção de amor e depois plantaremos flores. Jardins e Jardins de flores. Substituiremos as ervas tóxicas por flores, muitas flores.
– Boa noite, Martha. Amo-te.
Assim, despeço-me de João Miguel, com o coração apertado, porque será uma difícil tarefa; ficaremos afastados por algum tempo, depois do transplante para a recuperação. Terei que enfrentar o reclame
de meus familiares por estar amando um viciado e drogado. Mas eu o amo e tenho confiança no Senhor, nos profissionais e em mim. Aos poucos vou relaxando, relaxando e um sono tranquilo vem chegando, invadindo meu corpo. Vou adormecendo e solicitando ajuda a Deus.
Durmo um sono profundo. Será que realmente estou dormindo? Um vento suave invade meu quarto e eu acordo, ou não? Jesus está ao lado de minha cama, enorme. Muito grande mesmo, com as mãos enormes e aveludadas, entre elas está o Globo Terrestre. Olhando-me firmemente, Ele fala-me:
– Filha, traga-me muitos, mas muitos carretéis de li-nha n.º 16. O que tu conseguires. Todos os que existirem no mundo.
Contemplo Jesus, com muita calma, mas ansiosa. Acho que já esperava Sua visita. Então Lhe pergunto:
– Para quê, Senhor?
– Para enrolar o Planeta Terra. Bem enrolado e amarrado. Toda a humanidade bem segura junto ao Globo Terrestre, assim não haverão guerras.
– Mas, e depois, Senhor?
– Irei jogá-lo no espaço.
– Mas, Senhor o homem que eu amo está lá e minha família, também. Senhor, isto é um castigo?
– Não. Não é um castigo. Meu Pai ensinou que castigo não é educação. Educação são caminhos orientados e guiados por Ele com amor e fé. Não fiques com temor e tenhas confiança. Será uma viagem muito suave. Eu levarei o Planeta Terra para outro espaço e tudo e todos sofrerão transplantes. Depois trarei o Planeta de volta. Um Planeta Terra renovado, cheio de campos coloridos, sem guerras, sem vícios, sem fome, sem injustiças e ganâncias.
– Senhor, senhor... Não se vá! Responda, ainda: Por quê os bons irão juntos?
– Muito simples, filha. Porque o aprendizado deverá ser em conjunto. Depois do retorno do Planeta Terra, vocês se casarão perante Deus e terão muitos filhos, num mundo melhor.
– Jesus vai sumindo... Sumindo num horizonte escuro levando nas mãos o Globo Terrestre, todo enrolado com linha de carretel n.º 16 e a humanidade se debatendo, se rebelando. Eu vou junto, muito serena. Pena! Não posso falar nada da verdade. Ainda não. Nem para João Miguel.
– Não sei que tempo se passou. Uma mão enorme me sacode muito.
– Martha! Martha! Acorde, filha, já são 6h45min, vais se atrasar para as tuas atividades.
– Nossa! Minha mãe me acorda freneticamente. Mas minha mãe não tem mãos tão grandes. Nossa... Que sono profundo. Também, depois daquela segunda-feira toda errada e cheia de contratempos. Começo uma terça-feira como se uma patrola estivesse por cima de meu corpo.
Sonho em 1976
Coisas de Brasil
Saio do trabalho mais cedo. Coisa que raramente acontece. Sabem para quê?
Para assistir a um filme em plena meio tarde de um verão quente. Enforco o trabalho. Mato o serviço. Engaveto as folhas. As folhas são engavetadas e saio. Não aguentava mais aquela sala cheia de papéis. Uma porta, dois janelões e vinte e dois andares abaixo de meus pés. Altura para mais de metro e não é nada seguro. Fecho a porta, me encaminho para o cinema, decidida. É hoje! Que vou para rua do trabalho e/ou arrumo um marido.
O filme? Qual?
Ora! Não poderia ser outro! Dona flor e seus dois maridos, que estava passando no Cine Imperial. Enfrento uma fila quilométrica até o guichê do cinema. O sol é refletido do concreto porto-alegrense sobre as pessoas. Em minha frente um casal de velhinhos (nas décadas de 70 e 80, a