Pretérito Perfeito
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Pretérito Perfeito - Associação Cultural Alcides Maya
CONTAR A CIDADE
A história de uma cidade não é feita apenas de datas e nomes de figuras ilustres – e quase abstratas – que devemos decorar para podermos passar de ano na escola. Ela também se faz por seus lugares, suas paisagens e, sobretudo, pela história das pessoas que ali vivem ou viveram.
Histórias pessoais. São estas que tornam viva aquela matéria morta dos manuais escolares, o substrato capaz de dar uma espécie de alma às cidades, e o que permite que elas, as cidades, sejam contadas. Contar uma cidade, portanto, é contar-se em um lugar, contar-se em relação a este lugar.
Reminiscências, da infância ou da maturidade, aquilo que recuperamos quando já estamos noutro momento, o que nos alcança quando pensávamos ter esquecido: a vida que resta daquilo que já foi vivido. Basicamente é disto que são construídas as nossas histórias pessoais, quando as contamos. E elas se assentam invariavelmente sobre um espaço, que é físico e real, mas que se transfigura no momento mesmo em que passamos a contá-las.
Pois este espaço transfigurado é um espaço de afetos, um espaço por onde transitam emoções e sentimentos que nos marcam para sempre: um espaço que nos afeta.
Vivemos uma cidade e somos vividos por ela, cada um dos que ali habitam ou que por ali passaram.
Assim, a história de uma cidade não é uma, mas tantas quantas forem as pessoas que a vivenciaram e que, por um motivo ou outro, decidiram contar esta vivência ou parte dela. E estas histórias de vida, este registro pela via da palavra escrita – não de datas precisas e de nomes de personagens notáveis e seus feitos engrandecidos pela lupa da História com H maiúsculo –, estas histórias só podem vir à tona pela letra minúscula da literatura, quando alguém, movido por uma necessidade difícil de explicar, decide pegar a caneta e uma folha de papel, ou o computador, ou seja lá qual meio para pôr em palavras alguma coisa da sua vivência que exige a expressão, que exige o registro.
Pois a ACAM teve a bela iniciativa de reunir neste livro vinte e cinco autoras e autores gabrielenses que de alguma forma se contam. Para então contarem, cada um a sua maneira, a sua São Gabriel. Neste sentido, Pretérito Perfeito é um livro coletivo e pessoal ao mesmo tempo, mas sobretudo um livro que nos fala ao coração: textos que, ao longo da leitura, vão dando conta de uma espécie de geografia de afetos, de onde surge (e para se impregnar na mente do leitor), ainda que dissimulada, feita de desvios e imprecisões, uma espécie de síntese afetiva de uma cidade em que todos nós, gabrielenses ou não, de alguma forma nos reconhecemos.
Amilcar Bettega Barbosa
novembro/2019
Amilcar Bettega Barbosa nasceu em São Gabriel, em 1964. É autor de O voo da trapezista (Prêmio Açorianos 1995), Deixe o quarto como está (Prêmio Açorianos e Menção especial do Prémio Casa de las Américas 2003, em Cuba), Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom 2005), Barreira (finalista do Prêmio São Paulo 2014) e Prosa pequena. Foi escritor residente do International Writing Program, da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, em 2010. Seus livros e contos estão publicados em países como Portugal, Espanha, Itália, França, EUA, Luxemburgo, Suécia e Bulgária. Também atua como tradutor e professor de Escrita Criativa. Após quinze anos vividos no exterior (França, Portugal e China), retornou a Porto Alegre, onde vive atualmente.
Apresentação
Unir memórias e vivências nem sempre condiz com a construção de um poema.
A poesia precisa da figura, da fantasia, da palavra em tijolos transparentes de voos intimistas e viscerais, com alguma coisa chamada verdade, mas oriunda de significantes menos narrativos e confessionais. Nos versos, a alma do poeta é única, e o coletivo, muitas vezes, só pode ser sentido ou percebido se houver outro(s) poeta(s) a embalar a palavra.
Para contar a história das pessoas na sua cidade, e cá estamos com nossa São Gabriel, terra natal de muitos, terra do coração de outros, optamos pela crônica e relato, não descartando o gênero poético para uma futura tentativa.
Entretanto, iniciamos com uma construção literária na forma de versos, como destaque à pessoa da professora Clair Alves, que descreveu, nas suas estrofes, um retrato completo da Terra dos Marechais, o cenário dessa obra, o espaço escolhido de vivências, impressões, experiências, memórias, amores.
A vida não são fatos marcados. Tudo era. Tudo foi. Passou.
Mas o poema é um herói imortal.
Nossa prosa começa com ele.
Os organizadores
Clair Alves
São Gabriel!
São Gabriel, entre verdes campanhas,
que encantam poetas de terras estranhas!
São Gabriel às margens do rio Vacacaí
tranquilo ou bravio entoando cantigas,
que levam nas águas, os risos e as penas!
São Gabriel das casas pequenas,
das velhas moradas com antigas fachadas,
dos casarões, das conversas na esquina.
Do anjo Gabriel a anunciar a cultura divina!
Cidade cenário de amores, poetas, doutores!
São Gabriel, de Plácido de Castro,
cujo rastro é louvado na voz de teus filhos!
São Gabriel da praça florida, de lua e brilhos
que enfeitam as vidas e a infância brejeira.
Cidade onde a crença é uma força que existe
e a todos assiste da mesma maneira.
Cidade em que a tarde se debruça nos pagos,
o sol no horizonte pinta, em afagos, a alma da gente.
E ainda que ausente teu filho feliz,
neste chão gabrielense mantém a raiz.
São Gabriel, cidade encantada, de aurora bordada.
Cidade Poema que tem revoada
sombreando a fachada da Igreja Matriz.
E a Igreja do Galo teu nome bendiz!
Ana Elizabeth Bina
E agora?
Era carnaval. Minha avó costumava nos levar à praça central de nossa cidade. Lá assistíamos ao desfile dos blocos. Não eram as majestosas escolas de samba de hoje. Mas tinham o encanto da simplicidade e da alegria. Festa. Um dos netos ia sempre mais cedo para marcar lugar. Reservar um banco da praça. Tudo certinho e bem pensado. E lá íamos nós. A corda de segurança separava o povo da estreita passarela improvisada, onde acontecia o desfile. E as pessoas se comprimiam, cada uma procurando o melhor ângulo.
E foi ali, naquele cenário, em frente ao Praça Hotel, que tudo aconteceu. Acabara de ganhar um rolinho de serpentina. Meu coração pulsava ao som do Ô abre alas...
. Segurava o rolo entre os dedos como quem segura um sonho. Antegozava a alegria e me alimentava dela. Antecipava a delícia do momento em que o presente encantado voaria e, ao mesmo tempo, ficaria em minha mão. Magia. Era o príncipe esperando a raposa. Exupéry. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz.
. Era assim. O preço da felicidade. Na imaginação, a coreografia no ar. Aquela fita de papel dando voltas, numa dança espiralada, colorindo a noite, alegrando os olhos. Com a ponta presa aos meus dedos, sua dança seria um elo entre a festa e eu. Apoteose. Chegou o momento. Estavam ali, à minha frente. Música, batucada, colorido, suor. Coração aos pulos, abri caminho – Ô abre alas!
– e lancei meu sonho. E aconteceu. O inesperado. Vi o rolo voar inteirinho por