Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia - Volume 2 - Crônicas
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Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia - Volume 2 - Crônicas - Robson Felix De Almeida
CRÔNICAS
Quarentena
Nunca conheci ninguém que estivesse entediado nesta quarentena.
Em minha timeline só aparecem pessoas felizes, com fôlego suficiente para pagarem
séries infinitas de exercícios físicos caseiros, transmitidos ao vivo para o mundo todo.
Lives e mais lives de tudo quanto é assunto desinteressante pululam na minha tela.
De yoga a lutas marciais, passando por tutoriais de alcoolismo (como se alguém precisasse aprender como se embriagar) e de pães caseiros.
Merchandisings disfarçados de ações humanitárias, caridades oferecidas aos desvalidos com a mão esquerda e filmadas com a direita, impulsionadas para além dos insensíveis algoritmos como marketing pessoal.
Multidões de alegres banham-se em álcool em gel, lavam as mãos até ficarem em carne viva, trocam de roupa a cada pão comprado, entram descalças em casa, lavam sacos de feijão e se exibem com papel higiênico como se fosse um troféu.
Enquanto eu?
Mal tenho forças para lavar a minha boca, pela manhã.
Minha geladeira parece uma paisagem gélida da Sibéria.
E uma vez a cada quatro dias (quando muito) consigo reunir forças para trocar de roupa e/ou tomar banho.
Eu?
Mal possuo energia para elencar motivos para continuar a viver em um mundo que agora me parece um eterno carnaval em Veneza, com máscaras de todos os tipos e modelos.
Eu que me deito do mesmo jeito que acordo, que não tenho mais motivos para sair de casa, que não consigo tomar banho, que não quero mais falar com quem quer que seja mesmo antes do distanciamento social virar uma tendência do novo normal.
E eu?
Que não penso em outra coisa a não ser fugir de um planeta onde o ar pode estar contaminado por uma doença real que é o egoísmo humano.
Enquanto o mundo toma água com limão em jejum, continuo sorvendo meu drink de água suja, patrocinado por uma CEDAE recém-vendida, rezando para que nenhum mosquito se interesse por meu sangue aguado.
Enquanto a polarização política ainda nos interessar mais do que a vida, estaremos todos fadados à morte por inanição emocional.
Mas, tudo bem.
Amanhã teremos uma live do Parati Patatá para amenizar a derradeira hora.
E o meme do caixão
estará sempre entre nós para aliviar essa dor de tantas vidas perdidas.
Ah, e antes que eu me esqueça: #fiqueemcasa
Se puder.
Chegadas e partidas
Quase quatro anos longe daquele lugar.
E parece que tinha sido ontem.
Tudo igual, embora diferente.
Ela me recebeu no portão.
Entrei tentando não criar expectativas com relação às mudanças físicas daquele lar por longos anos também foi meu.
– Por que você partiu?
Eu apenas sorri, embora soubesse a resposta para aquela triste pergunta.
A verdade é que eu parti quando senti que já não me encaixava mais naquela vida.
Apenas isso.
Sem dramas.
Sem maiores elucubrações.
Talvez eu só tenha voltado para constatar que tomei a melhor decisão da minha vida.
Não dava mais.
Tudo ali me queria fora.
O sofá velho, rasgado por mim, enquanto procurávamos pelo anel caríssimo que Nádia perdera por entre as almofadas de couro falso.
O fogão enferrujado, cujo forno nunca funcionou direito.
O chuveiro elétrico que dava choque em quem ousasse um banho tépido.
Eu precisava respirar o novo.
Por isso precisei partir, entende?
Eu precisava sobreviver.
Mas, hoje eu ao voltar ali havia entendido o porquê de eu ter sofrido tanto na despedida.
Ao voltar àquele lugar, me bateu certa nostalgia de quem eu era enquanto ainda morava ali.
Senti saudades da inocência que eu ainda podia me dar ao luxo de ostentar.
Da minha astúcia ao separar a briga dos vizinhos.
Do medo que eu sentia em ficar sozinho.
Tudo ali me puxava para trás.
Fiquei tonto ao me lembrar de tudo isso.
Foi quando senti que eu deveria partir.
Outra vez...
Pesadelo
Os dias transbordavam com impressionante liquidez.
Gota a gota.
Pingo a pingo.
Lentamente os dias se arrastavam aumentando a melancolia do mundo atual.
Tempos de tristeza, solidão e dor.
Não só pela paralisia das horas, mas principalmente pelos que se foram sem ver a luz no fim da quarentena.
As incertezas são muitas.
Não sabemos se (e quando) a luz voltará.
O medo nos torna (ainda) mais egoístas.
Ao mesmo tempo em que ficamos mais solidários com a dor de outrem, até que ela bata em nossa porta.
Solidão a dois, a três, a quatro...
Solidão global.
Total.
Grupal.
Tudo o que a vida tinha de sentido, nos abandonou.
Restou pouca coisa de nós mesmos.
Restou apenas fé e a esperança de que tudo isso possa ser apenas um pesadelo.
Um insistente pesadelo, que só vai nos deixar quando a humanidade, que dorme dentro de nós, finalmente acordar.
Vai ficar tudo bem
Então...
Deixa eu te falar uma coisa.
Se você não está conseguindo ficar bem durante esta longa quarentena...
Tudo bem.
É normal.
Bem normal até nos dias de hoje, eu diria.
Se você está bebendo demais, comendo demais, tomando banho a toda hora, lavando sacos de arroz quando chega do supermercado... está tudo bem.
Isso tudo é normal.
Ou quase.
Se você está quase tirando o couro das mãos de tanto passar álcool em gel, se está trocando de roupa a toda hora, se cortou demais seus próprios cabelos ou a franja diante da câmera do celular...
Tudo bem!
Normal.
Ou quase.
Se você está dormindo só depois do sol nascer, se já baixou o Zé Delivery, se já usou o filtro que te envelhece ou liberta o monstro que