Violências e trabalho profissional: Desafios e perspectivas
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Violências e trabalho profissional - Fabiana Aparecida de Carvalho
PREFÁCIO
Esta coletânea, organizada por Fabiana Aparecida de Carvalho, resulta da contribuição de um grupo de oito profissionais que desenvolveu sob diversos ângulos, uma fértil problematização e análise, sobre o trabalho profissional cotidiano em diferentes eixos do sistema de garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Os capítulos, situados na perversa realidade brasileira das últimas décadas, nos mostram como a questão social, constitutiva da sociedade capitalista, amplia seu fosso de desigualdade e injustiça, assumindo novas configurações e expressões em um mundo globalizado pelo capital financeiro, pelos interesses das grandes corporações, das mídias, do conhecimento planetarizado, saturado, e a serviço de minorias. Como nos lembra Iamamoto (2018, p. 72), a questão social brasileira nos contraditórios tempos presentes, assume novas configurações e expressões que
condensam múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, mobilidades espaciais, formações regionais e disputas ambientais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural – enraizada na produção social contraposta à apropriação privada do trabalho –, a ‘questão social’ atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania, no embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos.
Alguns resultados dessas transformações societárias são visíveis em nosso cotidiano profissional, como a imensa concentração de riqueza e poder ao lado da tragédia da pobreza, da fome, da exclusão (não apenas de bens materiais) expressa, no crescimento das massas descartáveis sobrantes e sem proteção, num mundo desumanizado e marcado pelo individualismo e pela competição. Processos que interferem nas múltiplas dimensões da vida, na esfera da cultura da sociabilidade e da comunicação e que trazem, como demonstram as autoras, inúmeros retrocessos aos direitos conquistados historicamente, e a intensificação da violência e da criminalização do pobre, da mulher, do negro.
No país, chegamos em 2018, a 54.8 milhões de pobres sendo que 14.830 milhões de brasileiros estão em situação de pobreza extrema, com um aumento de 11,2% em relação ao índice de 2016, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), seguindo a linha de corte do Banco Mundial para países de nível médio/alto de desenvolvimento, como os da América Latina, de US$ 1.90. O número de trabalhadores informais superou o conjunto de empregados formais. As ocupações informais de baixa remuneração e ganho instável, ao lado do desemprego permeiam a vida das classes que vivem do trabalho
. No país, trata-se de um tempo de radical privatização da riqueza social, que intensifica a exploração e destrói direitos sociais e trabalhistas, a previdência social, a universidade pública e o meio ambiente, entre outros.
Nesse contexto, o cenário da violência e da criminalização do pobre, da mulher e do negro, se mostra cada vez mais devastador, conforme evidenciam dados apresentados em alguns dos capítulos desta coletânea, como destaca sua organizadora: quanto a feminicídios, foram registrados 126 assassinatos de mulheres, até fevereiro de 2019; em 2016, o Brasil registrou o maior número de violências contra crianças no mundo, entre 1980 e 2014 houve uma aumento de 699,5% na letalidade juvenil, passando de 3.159 jovens mortos para 25.255.
Ainda, é necessário assinalar o crescimento da letalidade por conta da ação policial, que, segundo dados do Anuário da Segurança Pública de 2016, vitimou 4.222 pessoas, sendo a maioria homens (99,3%), negros (76,2%), adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos (81,8%). (p. 12)
De modo geral, os textos que compõem a coletânea, embora percorrendo caminhos diversos, nos mostram as múltiplas faces dessa violência que alcança o cotidiano da população destituída de direitos, bens, serviços, trabalho, poder e informação. Ao mesmo tempo, esses estudos evidenciam o quanto é desafiante construir alternativas e respostas humanizadoras, capazes de articular a vida social que transcorre nesse cotidiano, marcado pela miséria e pela violência, com o mundo público dos direitos e da cidadania.
Eis aqui uma leitura obrigatória, inquietante, pelas incômodas e necessárias abordagens da violência que permitem e que atravessam o cotidiano dessa população, esta coletânea é, sobretudo, um instrumento para subsidiar o debate sobre a questão social brasileira atual, as políticas sociais constituídas para seu enfrentamento e o papel do Serviço Social nesse processo, especialmente para os que atuam no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Maria Carmelita Yazbek, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
1. VIOLÊNCIA, PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO PROFISSIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Fabiana Aparecida de Carvalho
Para iniciar esses breves escritos é importante destacar que este livro foi organizado a partir das sucessivas aproximações das autoras sobre o exercício profissional cotidiano em diferentes eixos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Realizar essa escrita constituiu-se como expressivo desafio, tendo em vista que a cada encontro e síntese que realizávamos, novos entraves se colocavam – reais e históricos, se tratava de novos desmontes das políticas sociais, que levavam a atualizar os textos, os dados e reorganizar as análises.
Que conjuntura é essa que rápida e abruptamente passa a descobrir a população de direitos historicamente conquistados, convencendo boa parte da classe trabalhadora que esse é o melhor caminho para o chamado desenvolvimento? Seria uma aposta insana do desenvolvimento liberal e desenvolvido por etapas? Seria mais um episódio histórico do pacto com o trabalhador
, onde este último entende que abrirá mão de direitos em função de uma necessidade coletiva?
Talvez seja importante um ligeiro resgate histórico, afinal o Brasil nunca gozou de fato do chamado Estado de Bem-Estar Social com políticas universais,¹ essa é uma nação construída sobre as bases de uma colonização de exploração e constitui um lugar determinado no cenário mundial, uma condição histórica a partir disso. O que não significa pouco, pois há um conjunto de determinações políticas, econômicas e sociais que acentuam a exploração de uma classe sobre a outra e apresenta particularidades perversas nas expressões da questão social. No plano político, ocorrem períodos ditatoriais e lapsos de democracia; no plano econômico, uma subordinação ao capital estrangeiro; na perspectiva social, podem ocorrer inúmeros retrocessos aos direitos conquistados historicamente² e a intensificação da violência e da criminalização do pobre, da mulher, do negro.
Em geral, a fúria da violência tem algo a ver com a destruição do ‘outro’, ‘diferente’, ‘estranho’, com o que busca a purificação da sociedade, o exorcismo de dilemas difíceis, a sublimação do absurdo embutido nas formas de sociabilidade e nos jogos das forças sociais [...]. (Ianni, 2004, p. 168)
O cenário da violência no país se mostra cada vez mais estarrecedor, considerando apenas algumas de suas expressões, no sentido de criar um modesto panorama, destaco:
• Feminicídios: foram registrados 126 assassinatos de mulheres em razão de seu gênero e 96 sofreram tentativas de homicídios³ até fevereiro de 2019, no Brasil. Através da Nota Pública 24/19, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos registra a preocupação com o quadro, assinalando a intersecção entre a violência, o machismo e o racismo. A maior parte dos crimes tem sua autoria pelo próprio companheiro ou ex-companheiro, ocorre com armas de fogo e prevalece o número de vítimas negras. Para, além disso, a maioria das vítimas, já havia solicitado proteção ao Estado através das Medidas Protetivas, que não foram capazes de protegerem suas vidas.
Nesse aspecto o Brasil, embora tenha alcançado o necessário avanço de tipificar o feminicídio como crime,⁴ foi chamado à atenção mundialmente para que as medidas protetivas oferecidas pelo Estado sejam eficazes na proteção da vida das mulheres.
• Violência doméstica contra a criança e adolescentes:⁵ em 2016, o Brasil registrou o maior número de violências contra crianças no mundo. O estudo⁶ apontou para a relação direta entre o Produto Interno Bruto (PIB) de cada país pesquisado e seus números de violências e indicou que, quanto menor era a taxa do PIB, maior a violência. Entretanto, mesmo o que o PIB brasileiro não se constituísse no mais baixo, seus índices de violência superaram os demais. Alcançou-se um número de 30.311.950 crianças vítimas de violência doméstica com até 14 anos de idade.⁷
Ademais, as denúncias de violências contra crianças equivaleram a 58% das ligações recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100) em 2016. As maiores violações registradas foram: negligência (37,6%), violência psicológica (23,4%), violência física (22,2%) e violência sexual (10,9%), sendo relevante observar que as três modalidades de violência mais denunciadas são todas formas de violência doméstica.⁸
- Genocídio da população negra: A letalidade por meio de mortes violentas aumenta no país⁹ e essas vítimas têm cor! A maioria negra, jovem – entre 15 a 29 anos¹⁰ e, entre 1980 e 2014, houve um aumento de 699,5% na letalidade juvenil, passando de 3.159 jovens mortos para 25.255. Ainda, é necessário assinalar o crescimento da letalidade por conta da ação policial,¹¹ que, segundo dados do Anuário da Segurança Pública de 2016¹², vitimou 4.222 pessoas, sendo a maioria homens (99,3%), negros (76,2%), adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos (81,8%).
Para além dessas, diversas outras violências ocorrem e cada uma delas atravessada pela questão do poder, materializadas em uma sociedade classista, patriarcal, machista e racista.
É nessa conjuntura da própria violência estrutural, de distribuição de renda extremamente desigual e assim, também, do espinhoso acesso aos direitos, no contexto de exploração da classe que vive do trabalho que se coloca em análise a Proteção Social¹³ do país.
Não se pode dizer que o país tenha um sistema público de proteção social universal, adequado ou efetivo, contudo, mesmo a seguridade social fragmentada é colocada em risco. Risco de não se manter por conta de diversos fatores que modificam a sua proposta original, tendo em vista os ataques neoliberais constantes e há décadas. Mais recentemente, é possível citar: a aprovação da PEC 241/16 ou 55/16 em 13 de dezembro de 2016, que se tornou a Emenda Constitucional n. 95/16 e congelou os gastos públicos por 20 anos; e a Reforma da Previdência que segue para votação no Senado Brasileiro, sem qualquer horizonte de beneficiar a classe trabalhadora, dentre outros.
Nesse sentido, é importante refletir sobre esse chão histórico, pois, se já passamos por outras crises estruturais capitalistas, a que vivemos na atualidade reverbera em escala planetária e com especificidades no Brasil, que já não possuía universalidades em todas as frentes da Proteção Social.¹⁴
As crises estruturais do capitalismo – 1929, 1970 e 2008, essa última iniciada na Europa – reverbera em todos os países, inclusive no Brasil. Na crise de 1970, há uma intensa modificação no cenário mundial, econômico e político, onde a contrarreforma neoliberal do Estado ocorreu pela efetivação de suas medidas e da veiculação de seu ideário, sendo o mercado compreendido como mecanismo de regulação social, tendo o Estado abdicado desse papel.¹⁵
Assim, a globalização e o neoliberalismo passaram a ser respostas do capital para a superação de sua crise. No Brasil, esses efeitos são mais observados a partir da década de 1990, o que significa dizer que na vida dos cidadãos, a partir do discurso da necessidade de eliminar as gorduras do orçamento do Estado
, realizava-se a contrarreforma do Estado, que culminou no ataque à recém-nascida Constituição Federal de 1988¹⁶ e na teimosia dos sujeitos históricos na construção da tal cidadania, mesmo no cenário de contradição que se apresentava.
A redução de direitos ocorria [...] colocando em curso o trinômio do neoliberalismo-privatização, focalização e descentralização (desconcentração e desresponsabilização)
(Behring, 2008, p. 157). Trinômio que se efetivava a partir de programas de combate à pobreza, transferências monetárias para subsidiar o consumo dos pobres, familismo, voluntariado e também terceiro setor, além da construção da figura do cidadão consumidor
associada com aquele que pode consumir, discriminando aquele que não pode.¹⁷
Contudo, os movimentos das esquerdas latino-americanas buscaram construir enfrentamentos no sentido, tanto de superar as ditaduras, quanto de resistir às entranhas do neoliberalismo. Com marco aproximado da década de 2000, alguns setores progressistas chegam ao poder respaldados em posicionamento anti-imperialista e de defesa do desenvolvimento nacional, então entendido como caminho para se efetivar a autonomia dos estados nacionais.
Desse modo, a direção política de governos situados no campo da esquerda ou centro-esquerda, realizam um modelo de desenvolvimento nacional a partir de políticas compensatórias estabelecendo com isso [...] tardiamente um estado social-democrático e de bem-estar na América Latina
(Mota, 2012, p. 162).
Não se pode com isso, afirmar a superação do neoliberalismo, tão pouco do próprio capitalismo, afinal a estrutura social se mantém e (...) o que muda é a criação de meios de enfrentamento da pobreza através de políticas de inclusão, cotas ou de mínimos sociais
(Mota, 2012, p. 163).
Assim, a agenda política do país, especialmente a partir de 1990, é neoliberal, mesmo nos governos neodesenvolvimentistas onde não houve o enfrentamento da estrutura capitalista em si e investiram na proteção social sem romper com a lógica de redução do aparelho do Estado.
Nesse contexto, as políticas sociais se caracterizam pela seletividade, focalização, terceirização, de cunho familista com modelo neofamiliarista, onde se compreende a família como uma unidade econômica e política na resolução de problemas com intervenção emergencial do Estado.¹⁸ Nessa direção, a família possui papel decisivo, sendo responsável pela proteção material e imaterial de seus membros, o bem estar é promovido pelo Terceiro Setor, Família e Mercado, e, em último caso, somente em último caso, o Estado.
Ora, nesse sistema em que a família é requisitada ininterruptamente para cumprir obrigações que seriam do Estado, o braço ideológico é um apoio importante de engodo, inclusive na formação profissional. Pode se incorrer no equívoco, no exercício profissional de culpabilizar a família e/ou o indivíduo e isolá-los de seu contexto social, nesse caso, há a reprodução da discriminação.
A Constituição Federal de 1988 representa sem sombra de dúvida,