Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura
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Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura - Renan Ferreira da Silva
1. AS PALAVRAS ENTRE O SABER E O PODER
Em entrevista concedida a Davide Panagia, para a revista Diacritics , publicação da John Hopkins University ³, volume lançado na virada do século, Jacques Rancière é interrogado por seu interlocutor a responder à seguinte interpelação: seria possível caracterizar o seu empreendimento filosófico e suas pesquisas a respeito do pensamento democrático como uma poética da política
, haja vista o destaque concedido em seus escritos à eficácia política das palavras? (RANCIÈRE e PANAGIA, 2000, p. 113) Por certo, se percorrermos a sua já extensa bibliografia, poderemos traçar essa eficácia em diversos momentos de sua produção teórica: em Les Noms de l’histoire, Essai de poétique du savoir, escrito publicado em 1992, Rancière procura mostrar que aquilo que se encontra na base de todo acontecimento revolucionário, a exemplo da Revolução Francesa ao termo do século XVIII, é o excesso de palavras
entre os indivíduos falantes, excesso que ocorre na forma específica de um deslocamento do dizer: uma apropriação ‘fora da verdade da palavra do outro’ que a faz significar diferentemente
, conflagrando, desse modo, os discursos, confundindo os seus tempos e desviando as palavras de seu caminho nominativo (RANCIÈRE, 2014, p. 46 e 52). E é por meio dessa abundância e dessa confusão que embaralha os discursos e desvia as palavras em relação às coisas que, de acordo com Rancière, existe história, justamente porque não há harmonia entre as palavras e as coisas, entre nomes e propriedades, entre nominações e classificações (RANCIÈRE, 2014, p. 52 e 53).
Em La Mésentente (1995), talvez a sua mais importante obra sobre filosofia política, Rancière destaca a figura da parcela dos sem-parcela
, mediante a qual uma comunidade pode existir enquanto comunidade política, e que expressa o dano
latente, a contagem malfeita entre as partes da comunidade que instaura o universal singular e polêmico da igualdade do logos, o único universal que possibilita a política (RANCIÈRE, 1996, p. 51). Aqui, o excesso de palavras
aparece sob a forma da literaridade
, neologismo criado pelo filósofo para indicar o poder que esse excesso possui de desfazer a relação entre a ordem das palavras e a ordem dos corpos
(RANCIÈRE, 1996, p. 49). Mas, a literaridade
, além disso, refere-se, simultaneamente, ao regime da escrita, à condição de possibilidade da literatura e, paradoxalmente, ao seu limite, aquilo que a torna indiscernível de outras formas de discurso. Na mesma linha, o filósofo franco-argelino principia sua discussão em Aux bords de la politique (1990) com uma viagem ao tema do fim da política, identificado enquanto o fim da promessa – o que ele traz no regresso, senão a identificação entre política e promessa? Uma promessa, sabemos, não é nada menos do que a intenção da palavra, ou a palavra intencionada, o que torna o excesso a essência mesma da promessa.
Esses exemplos servem para ilustrar e destacar uma questão fundamental que se encontra no cerne da filosofia de Rancière: a sua preocupação em torno das palavras, de sua eficácia política e de sua força disruptiva, do poder que seu excesso representa nos campos da política, das artes e dos saberes, bem como de seus efeitos na reconfiguração da ordem do sensível. Tal preocupação não é acidental ou circunstancial, pois ela é proveniente de um locus específico e nuclear do seu pensamento, oriundo dos seus anos de formação intelectual, e que pode ser fixado, como afirma Alain Badiou (2015, p. 178), na relação dialética entre saber e poder, entre saber e