O Mundo dos Orixás
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O Mundo dos Orixás - Aricel Arce Burguera
Dados dos autores e a tradutora
ARISEL ARCE BURGUERA (Santa Clara, 1960). Licenciada em Ciências de Comunicação Social. Editora. Especialista em Informação. Pesquisadora das religiões de origem africano por mais de duas décadas. Há dado conferencias sobre religiões afro cubanas em universidades de Cuba, Venezuela e Guatemala. Tem participado em eventos nacionais e internacionais sobre as religiões afro cubanas.
ARMANDO FERRER CASTRO (Cidade da Havana, 1942-2012). Licenciado em Filosofia. Durante mais de vinte anos realizou investigações sobre as religiões de origem africano. Autor de Conexão em Cuba (testemunha e poesia), e Ochatowá (lendas afro cubanas). Deu conferencias sobre religião em Cuba e Venezuela. Participou em vários eventos nacionais e internacionais sobre religiões afro cubanas.
BERTHA HERNÁNDEZ LÓPEZ (Cidade da Havana, 1955). Licenciada em Filología. Editora e tradutora. Tem publicado, entre outros: Miscelánea, de Manuel Bandeira (coletânea de poesía); Las palabras vuelan, de Cecilia Meireles (coletânea de poesía); Sábanas y sueños, de Orlando Senna (novela); Temas de la vida angolana y sus incidencias, de Oscar Ribas; Antología de textos dramáticos de Angola, de Fragata de Morais; Balada de los hombres que sueñan (antología de contos angolanos), de Antonio Quino. Así como resenhas y críticas em varias publicações nacionais. É coautora de Los meyis: leyendas y refranes.
Primera edición: Ediciones Unión, 1999
Edición y corrección: Ángel Carballo Camino
Diseño de cubierta: Suney Noriega Ruíz
Diseño interior y realización digital: Ricardo Quiza Suárez
© Arisel y herederos de Armando Ferrer, 2017
© Sobre la presente edición:
Ediciones Cubanas, Artex, 2017
ISBN 978-959-7245-47-6
Sin la autorización de la editorial Ediciones
Cubanas queda prohibido todo tipo de
reproducción o distribución de contenido.
Ediciones Cubanas
5ta Ave. No. 9210. Esquina a 94. Miramar. Playa
e-mail: editorialec@edicuba.artex.cu
Este livro é fruto da memória coletiva, o que faz imprescindível agradecer a nossos ancestres esse legado. Impõem-se lembrar a Fernando Ortiz, Rômulo Lachatañeré, Lydia Cabrera e Teodoro Diaz Fabelo, pioneiros nesta disciplina.
A nossos padrinhos, que hoje ficam em nossa memória: José Pérez, Iroso Wori; Orlando Diaz, Oxum Yemi; Petronila Baró, Omí Kolé; Roberto Molina, Obá Bí.
A meu padrinho Saúl Fernández, Baba Nigbeleké, quem guia meus passos desde há vinte anos; a meu padrinho Yuri Domínguez, Baba Eyiogbe, que me ensina alguma coisa nova cada dia; a minha oyugbona Daniela Cárdenas, Oxum Miwá. A Israel, Michel, e tantas obas, ialorixás e babalorixás, que a diário nos enriquecem com suas historias.
E, sobretudo a Armando, quem percorreu junto a mim cada historia cada palavra, cada imagem com a que construíramos este livro, que vai continuar sendo tão filho nosso como o são Armandito e Luis.
Prólogo
Por muito que se saiba,
Sempre algum conhecimento nos vai faltar.
(Odu de Ifá, Eyioko tonti Eyeúnle)
Para entrar nas páginas deste livro se tem que ficar nu. A nudez não é sempre ficar sem vestimenta, porque a roupa é um conjunto de objetos e sustâncias efêmeras que se põem e se tiram fora, se untam e se lavam, num cotidiano ritual teatralizado de como achamos sermos e como queremos que os demais nos vejam. A nudez é também, e sobre tudo, uma marca indelével da pureza, da capacidade humana para
submeter à crítica os prejuízos e impormos um juiz razoado depois de conhecer y avaliar em todos os detalhes este rico caudal da sabedoria que abrange as narrações da tradição oral cubana.
A sabedoria é, precisamente, uma das virtudes que a
humanidade tem cultivado desde que tem consciência de si. No caso destes textos, extraídos da oralidade popular, os orixás —cubanizados já durante gerações— são portadores e transmissores dessa virtude; junto com outros personagens protagonistas que adquirem o dom da fala, si não são animais ou plantas que cobram vida, são objetos animados. Embora a sabedoria se associe simbolicamente aos velhinhos, como representantes da experiência, como testemunho
do passado, os personagens que intervêm nestas histórias são portadores dum presente que permanece na memória do
ouvinte —agora leitor— como regulador da conduta, como conselheiro habitual.
Estas narrações, selecionadas com muito cuidado por Arisel Arce Burguera e Armando Ferrer Castro, só representam uma das tantas versões que assume a tradição oral quando é contada de boca em boca. No entanto em nosso contexto cultural apareceram desde as primeiras dezenas do século XX
as livretas
, leiam-se livros de livreiros foliados, livretas com certeza ditas de folhas raiadas e acoitadas num volumem, resultado de crentes alfabetizados que tentasse retinir mediante a palavra escrita, independentemente do conhecimento adquirido sobre a gramática, tudo o que de interesse disseram seus maiores acerca da vida dos orixás. É uma espécie de hagiografia tropical como a Legenda áurea, escrita no século XIII pelo italiano Jacobo de La Vorágine, e a grega Synaxarion de Simeon de Metafrasto, senão com o critério adequado á pressente compilação. Estas narrações muitas vezes ficam remitidas a conceitos espaciais de origem e muitas se encontram recontextualizadas no espaço que lhes tocou viver a seus narradores, rodeados de plantas, animais e objetos da realidade cubana. O complexo processo de transculturação condicionou câmbios nas mentalidades e a floresta se converteu em mata com sua flora e sua fauna próprias.
Com a tradição oral, entanto produto cultural acontece algo análogo ao que acontece com os instrumentos da música folclórica cubana e outros elementos plásticos que aprofundam suas raízes na África. Uns se encontram mais apegados a suas formas de procedência, mas o mesmo processo de transmissão também os há transformado, e outros tem sido recreado (renovados) pela necessidade de argumentar ou de explicar os caminhos de um e de outro orixá deste lado do Atlântico.
Todo isto acarreia interpretações múltiplas que se encontram em dependência de concepções mais ou menos estáticas ou doutras profundamente dinâmicas sob realidades e seus câmbios.
Estas tradições puderam interpretasse como reminiscência da tradição oral subnigeriana nos cultos afro-cubanos
e reduzir a discriminatória classificação de contos pretos
ou historias sagradas dos orixás em Cuba, como algo alheio a identidade nacional, que longe de se olhar com o microscópio é preferível olhá-lo com o telescópio. Esta visão reducionista e estática dissolve todo o conjunto de valores éticos e estéticos universais que as narrações abrangem e as identificam com um segmento social fechado aos crentes e suas correspondentes condutas, também as limitam a pessoas que possuem determinada quantidade de melanina na pele.
O valor desta obra também pode ser interpretado como parte do patrimônio nacional cubano, caribenho e latino-americano, como parte da capacidade multiplicativa da tradição oral africana que transcendeu suas línguas originais e tem sido transmitida —neste caso—a través da variante cubana do espanhol. Estas narrações transcendem também qualquer concepção racista numa ou outra direção e abrangem, pelos valores literários, á povoação crente e não crente em toda sua mestiçagem plural, pois os valores que transmitem são para toda a espécie humana, independentemente dos acidentes genéticos. A presente obra também transcende o tal mal interpretado sincretismo religioso, que comumente se constringe ao plano mágico-ritual e abrange o sincretismo cultural em sua ampla acepção, pois as versões recolhidas são o resultado acumulativo-seletivo de inomináveis narrações precedentes, de pessoas que em um fervente ato coletivo de resistência lograram que uma parte significativa da sua memória histórica não se transformara no esquecimento.
No ocaso do século XX já o nosso vinho, por ser nosso, não é acre, porque temos aprendido a cultiválo com a qualidade dum rum ou outra bebida espirituosa. Isto desintegra todo fatalismo que atente contra a autoestima nacional; mas o legado da África é tão nosso como é da Grécia, a través da Espanha, pois ambos sãos necessários para nós. Nossa condição etnogenia do povo novo no contexto da América, refletido também na cultura de tradição oral mediante os patakíes (lendas), nós convertemos em crisol de influencias múltiplo, em fonte inesgotável de criação, em célula do que vai acontecer no futuro remoto da humanidade.
Novamente acudimos a sabedoria do diloggún quem a través do odu Ogundá tonti Marunlá advertenos com o refrão da essência mesma da presente obra: Quem não ouve conselho, não chega a velho
.
Jesús guanche
Introdução
As histórias que aqui se contam ficam vivas. Neste mesmo momento são recreadas por pessoas de distintas idades, sexo, raça e nacionalidade. Estas histórias chegaram a nossas terras há mais dum século e sofreram, junto a seus portadores, os rigores da escravidão, a discriminação, a persecução e o desprezo. Além disso, ficam aqui, vivem entre nós, nos deleitam, nos alertam, nos aconselham, ajudam a resolver problemas da vida cotidiana e nos fazem reflexionar. Mas agora não são as mesmas, toco-lhes ser as mais afeitadas no processo de adaptação e assimilação de duas culturas, uma dominante e outra dominada.
Enquanto a música e as orações puderam conservar sua língua original em Cuba, as legendas —ás que pudéramos chamar fábulas sem temor a errar, correram uma sorte distinta, se viram obrigadas a adotar a língua dos colonizadores para lograr transmitir sua mensagem, que foi norteado a um público maior que não sempre entendia o ioruba.
Começou então um longo processo de adaptação, o que foi poesia se converteu em prosa; o que se declamava integramente como resultado dum ensino paciente e severo, perde o apoio dos recursos mnemotécnicas que ofereciam a métrica, a rima e o ritmo, e agora devia confiar em numerosas memórias e múltiplas versões. As perdas sofridas foram recompensadas com a riqueza da imaginação do povo que herdou e fiz suas estas histórias.
A adaptação ao castelhano iniciava um novo caminho, as novas versões foram trasladadas a papeis e livretas como um recurso para conservar a memória, se abriam grandes perspectivas que as levariam do manuscrito à imprensa, também ao teatro, ao cinema, o rádio, a televisão e todos os médios modernos de comunicação.
Nunca vamos a ficar o suficientemente agradecido ás gerações que conservaram para nós tão importante legado cultural. Nem podemos esquecer a aqueles que como Fernando Ortiz, Lydia Cabrera e Rómulo Lachatañeré, deram os primeiros passos no resgate de tão prezadas tradições.
Por estas lendas transitam os orixás, mas também os seres humanos, as plantas, os animais, e até objetos inanimados, que cobram vida para se converter em personagens.
Em ocasiões, os espaços onde se desenvolve a trama são míticos, mas geralmente são reais: uma casa, um caminho, a palmeira, o mercado, o rio, o mar, os quatro cantos, a floresta e a lombada, entre outros.
A diferença dos deuses de outras culturas, os orixás
vivem com os humanos em seus povos e cidades, a única diferença com os homens fica em seu poder, que em majoritária vem conferido pelo uso da inteligência e pela obediência aos desígnios do oráculo de que o possuidor é o sábio Orula. Assim, encontramos que os orixás padecem e desfrutam o mesmo que o mais comum dos mortais, tem fome
, não tem dinheiro
, fazem vida marital
, não tem casa ou trabalho
, são escravos e logram sua liberdade
, encontram um tesouro
, sofrem prisão
. Tampouco acontece que da relação dum orixá com um humano, surge um semideus, como o Aquiles do poema homérico. Quando os orixás exercem seu poder sobre os homens não o fazem pelo capricho ou pelas preferências banais, eles impõem suas sanções com um alto conceito dos valores éticos, morais e de convivência social. Vai-se castigar ao mentiroso, ao charlatão, ao soberbo, ao orgulhoso, ao iracundo, ao ladrão, ao glutão, ao indisciplinado, ao esquecidiço, ao avaro, ao traidor, ao malversador, ao insultuoso e ao irresponsável, igualmente premiam-se as virtudes.
Os animais que desfilam pelos contos muitas vezes são emblemáticos das divindades: o ratão de Elegguá, o cão de Oggún, o veado de Oxóssi, o peru de Oxum, o galo e o carneiro de Xangó, o pato de Iemanjá, a babosa