Proteção Social no Portugal Democrático, Trajetórias de reforma
By Rui Branco
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Rui Branco
Rui Branco é doutorado pelo Instituto Universitário Europeu (Florença), é professor associado com agregação na Universidade Nova de Lisboa, onde ensina no Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. A sua investigação tem incidido sobre as políticas de proteção social e mercado de trabalho.
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Proteção Social no Portugal Democrático, Trajetórias de reforma - Rui Branco
Introdução
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação saúde, educação
SÉRGIO GODINHO, «Liberdade» in À Queima-Roupa (1974)
Proteção social como liberdade
Sérgio Godinho sobrevoou o Atlântico para se juntar ao pai na ocasião dos seus sessenta anos. Vinha do Canadá, para onde tinha ido viver em 1972 após estadias na Holanda e em França, em fuga da incorporação militar. Por temer ser preso à entrada em Portugal, aterrou antes em Paris a 1 de Maio de 1974. Entretanto, deu-se o 25 de Abril. Como tantos portugueses na capital francesa, voltou logo que pôde. Trazia consigo canções que andava a preparar para o novo disco, a que juntou outras escritas nas semanas febris que se seguiram. O resultado foi o álbum À Queima-Roupa.¹ O verso em epígrafe capta a fórmula que distingue o regime democrático: democracia é liberdade, e liberdade pressupõe proteção social. Sem «pão, habitação, saúde, educação», será possível agir em liberdade com autonomia?
A questão não é nova, e a resposta é controversa. Podemos pensar sobre o conceito de liberdade a partir da tensão entre duas perspetivas. De um lado, a «liberdade negativa» para agir sem obstáculos, constrangimentos ou interferências de terceiros (freedom from). Do outro, a «liberdade positiva» enquanto possibilidade de agir no mundo de forma autodeterminada e orientada para a realização própria (freedom to).
Ao longo das últimas décadas tem-se disseminado uma certa conceção do liberalismo político que opta pela definição negativa, segundo a qual a liberdade individual é mais bem protegida através de fortes limitações à ação do Estado, da regulação dos mercados à proteção social. Ao invés, uma outra tradição política liberal argumenta que a prossecução da liberdade considerada como autodeterminação, quer do indivíduo, quer do coletivo, requer a intervenção estatal ou pública. Nesta perspetiva, a proteção em relação à doença é liberdade, porque não se é livre para iniciar um negócio quando deixar o emprego anterior significa perder a proteção na saúde. A existência de políticas de família é liberdade, porque a mulher (ou o homem) não é livre para participar no mercado de trabalho e constituir família se não conseguir conciliar as duas coisas, através de licenças de parentalidade ou serviços de apoio à infância. Educação é liberdade, porque sem qualificações escolares não se é livre para garantir segurança material através do emprego na economia de hoje.
A ideia de que a proteção social é a arena onde se negoceia a tensão entre liberdade e igualdade, o resultado compromissório de uma espécie de «luta de classes democrática», a forma pacífica de partilhar a prosperidade (ou os custos de uma crise), é o ponto-base do Relatório Beveridge de 1942. Para William Beveridge, insuspeito de «socialismo»², a derrota dos «cinco gigantes» (necessidade, doença, ignorância, pobreza e desemprego) no caminho da reconstrução social e económica passava pela assunção pública das políticas de saúde e pensões, retirando essa responsabilidade do domínio privado, designadamente deixando de depender da relação laboral entre empregador e trabalhador. Esta seria a maneira de combinar competitividade económica com distribuição equitativa de rendimento, promovendo o consumo e garantindo qualidade de vida. Tal ideia do Estado-Providência foi em geral apoiada por um amplo compromisso de classes, sustentado por sociais-democratas e democratas-cristãos na Europa Ocidental enquanto duraram os «30 Anos Gloriosos» de crescimento económico e pleno emprego, o sistema de regulação de Bretton-Woods e a Guerra Fria. Tudo começou a mudar com os choques petrolíferos e a estagflação na década de 1970, e o que parecia incontroverso passou a ser um dos principais temas do debate democrático.
Foi por esta altura, num quadro envolvente adverso, que Portugal iniciou a transição para a democracia. O Estado Novo foi marcado pela ausência de liberdade ou verdadeiros direitos (civis, políticos e sociais) e pela elevada desigualdade. Se algo distingue o regime democrático de Abril é, a par de direitos de cidadania civis e políticos, a criação de uma relação nova entre Governo e cidadãos através da proteção social, saúde e educação. As questões essenciais que conduzem as políticas públicas tendem então a ser: quem garante a prestação do benefício ou serviço? Como se financia? Quem beneficia? Quem merece? As escolhas feitas em resposta a estas perguntas, da Revolução de Abril à Grande Recessão e à pandemia de Covid-19, são o tema deste livro.
O Estado social português desenvolveu com o tempo uma arquitetura híbrida. A raiz ocupacional corporativa foi transformada pela revolução social e ímpeto constituinte de expansão da cidadania social, e depois continuamente reformada durante décadas de democracia, de integração europeia e de globalização, pontuadas por várias crises. O objetivo deste livro é delinear os caminhos de reforma desde a transição democrática até ao final de 2021. Para tal, olharemos para os pilares tradicionais do Estado social, como as pensões, o mercado de trabalho e a proteção no desemprego, mas também para áreas historicamente subdesenvolvidas, como a rede de mínimos sociais³, as políticas de proteção na infância e de conciliação entre trabalho e família, e ainda para a maior rutura com o passado na proteção social, o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O que é o Estado-Providência?
No dia-a-dia é fácil perder de vista o Estado-Providência, apesar de nos acompanhar «do berço à campa», de beneficiarmos de prestações ou serviços e de para ele contribuirmos com impostos e contribuições sociais. Talvez esta familiaridade ajude a ocultar a sua natureza, que permanece esquiva. Com frequência, ainda, o nosso conhecimento é limitado por mitos e narrativas sobre o que fazem as suas instituições ou sobre os seus efeitos, ou ainda pelo desconhecimento da sua história e suas diferentes formas.⁴
Muito embora possamos ancorar a origem moderna das políticas sociais no final de Oitocentos, no Império Germânico do Chanceler Otto von Bismarck (1871–1890), o alívio da pobreza na sua dimensão social foi o objeto no Reino Unido da primeira Lei dos Pobres em 1601. Porém, as políticas concretizadas por Bismarck a partir da década de 1880 envolveram definitivamente o Estado na função da proteção social contra os riscos que impedem o trabalhador assalariado de participar no mercado de trabalho (velhice, doença, acidente e invalidez). Do final do século XIX ao período entre as guerras mundiais no século XX, as medidas públicas de proteção social foram estendidas e consolidadas, caminhando a proteção social, nuns casos a par da cidadania política democrática (como no Reino Unido de Lloyd George ou na III República francesa), noutros, seguindo o caminho de incorporação nacionalista e autoritária de Bismarck ou von Taffe na Áustria-Hungria (1879–1893). A política social após o final da II Guerra Mundial na Europa Ocidental é com frequência dividida em duas fases distintas. Antes de mais, um período de expansão, os chamados «Trinta Gloriosos» (1945–1975), com crescimento económico sustentado e pleno emprego masculino, em que a proteção se focava principalmente na compensação monetária dos riscos sociais da economia industrial, como o desemprego, acidentes, a velhice, a doença ou a maternidade. A partir da crise petrolífera de 1973 segue-se uma fase de recuo ou retração que, para alguns autores, se prolonga até à atualidade. Num quadro de austeridade financeira (ou deflacionário) prolongado, os Estados-Providência teriam trilhado um caminho de recomposição ou recalibração, em que a contenção nas tradicionais áreas sociais da era industrial foi pontuada por instâncias de expansão em áreas não tradicionais, os designados «novos riscos sociais» típicos das economias