Nós e os outros
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Maria Luísa Lima
Maria Luísa Lima nasceu em Ovar em 1959, licenciou-se em Psicologia na Universidade de Lisboa e desde 1982 desenvolveu a sua carreira académica no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (onde se doutorou em 1994 e agregou em 2004) e de investigação no Centro de Investigação e de Intervenção Social do ISCTE-IUL. Centra os seus interesses de investigação nas questões associadas à percepção de riscos, incluindo as suas consequências para a participação do público em processos de tomada de decisão. Foi presidente da Associação Portuguesa de Psicologia (2006-2010), membro do Conselho Científico de Ciências Sociais e Humanidades da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010-2012) e Membro do Standing Commitee for Social Sciences da European Science Foundation (2007-2011 ). É membro dos painéis de avaliação da A3ES (Psicologia, desde 2011), do European Research Council (CSH4 - The Complexity of Human Mind, desde 2009), das bolsas pos-doc da AXA (desde 2014) e do Danish Research Council (2014-2015).
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Nós e os outros - Maria Luísa Lima
1. Os laços com os outros na construção de quem somos
Desde muito cedo temos consciência de nós próprios através do nosso corpo, das nossas emoções, dos nossos pensamentos. Todos os dias falamos de nós, do que gostamos, do que nos aconteceu, do que queremos fazer, de como éramos em crianças. Escolhemos alimentos, roupas, viagens, afastamo-nos ou aproximamo-nos de pessoas em função de quem somos. Deveríamos, por isso, ser os maiores especialistas sobre nós próprios e ter uma ideia muito clara do nosso eu
. No entanto, se há tema complexo e sobre o qual temos muitas dúvidas, é exatamente este: quem somos. Fascinam-nos as conversas sobre o que os outros acham de nós e das nossas capacidades, ou de como interpretam as nossas ações. Muitos jornais ou revistas têm uma secção de horóscopos ou de quizzes onde nos explicam como somos. E muitos percursos filosóficos ou religiosos convidam à reflexão sobre quem somos. Até o oráculo no filme Matrix usou a máxima da Antiguidade clássica Conhece-te a ti mesmo
.
É verdade que construímos ideias sobre nós próprios. Mas até que ponto essas ideias correspondem à realidade? Até que ponto essas ideias são mesmo fruto da nossa vivência ou resultam do que os outros esperam de nós?
Este tema tem fascinado a psicologia, porque há muita comprovação empírica de que frequentemente nos enganamos a nós próprios sobre as nossas capacidades e atributos. As abordagens psicanalíticas, duvidando da acuidade da informação a que temos acesso consciente, sempre salientaram que ignoramos as verdadeiras motivações do nosso comportamento. E a investigação em psicologia tem mostrado que a introspeção, apesar de ser uma fonte privilegiada de informação sobre nós próprios, nem sempre nos fornece uma descrição objetiva das nossas ações¹. Assim, se nos perguntam porque escolhemos determinado produto num supermercado, somos capazes de elaborar muitas justificações, mas ignoramos sistematicamente os fatores situacionais que estão subjacentes à maioria das escolhas (por exemplo, a prateleira em que se situa o produto que escolhemos estar à altura dos nossos olhos). Ou se nos pedem para fazermos uma previsão quanto à concretização de um projeto pessoal durante o próximo mês (por exemplo, fazer uma reparação na casa, arrumar a secretária ou dar sangue) tendemos a desvalorizar os obstáculos e as solicitações e, por isso, o comportamento observado corresponde apenas em parte às nossas (boas) intenções iniciais². Ou quando nos dão feedback sobre o nosso desempenho tendemos a recordar preferencialmente a informação positiva e a esquecer a informação negativa (mas somos bastante mais precisos quando a informação é sobre outra pessoa que não conhecemos)³. Por isso, temos uma visão das nossas capacidades que está ligada à realidade, mas apenas em parte. Um resumo de vários milhares de estudos realizados sobre a correspondência entre autoavaliação e desempenho objetivo mostra uma correspondência da ordem dos 30%, o que, mantendo a relação com a realidade, nos dá um largo espaço de manobra para a construção de uma imagem idealizada de nós mesmos.⁴ Assim, apesar de estarmos permanentemente confrontados com o que sentimos e pensamos, conseguimos construir autorrepresentações que são, em grande parte, ilusórias.
Manter ilusões acerca de quem somos e das nossas capacidades, pode parecer estranho, mas será necessariamente mau? Shelley Taylor, uma conhecida psicóloga americana da área da saúde, defende a importância das ilusões para a saúde mental. No início da sua vida profissional fez um estágio num hospital oncológico⁵. Sabia que ia entrevistar mulheres que estavam a viver momentos muito difíceis da sua vida e, por isso, preparou-se para encontrar pessoas tristes e deprimidas. No entanto, não foi o que aconteceu. Estas mulheres reconheciam a gravidade da sua situação e sabiam claramente que existia a possibilidade de um desfecho dramático. No entanto, a maioria não estava deprimida e encontrava formas positivas de pensar sobre a sua doença. Havia pessoas que comparavam a sua situação com a de outras pessoas que estavam em situação pior – por exemplo, eu já tenho os meus filhos criados, agora aquela senhora ali tem dois meninos com menos de 5 anos
ou a mim só me atingiu os ovários, enquanto que aquela senhora tem metástases por muitos lados
. Havia pessoas que acreditavam que podiam controlar a evolução da doença com mudanças no seu estilo de vida – esta doença fez-me perceber que tenho tido uma alimentação muito errada. Sinto-me muito melhor desde que cortei com a carne. Neste momento, praticamente, só como vegetais
. E havia outras que valorizavam algumas caraterísticas suas que podiam ser armas contra a doença – Eu sempre fiz exercício físico e sou uma pessoa muito disciplinada. Tenho a certeza de que o meu corpo, a não ser esta doença, está em muito boa forma e isso é muito importante para aguentar a quimioterapia e lutar contra o cancro
. Qualquer destas estratégias (a comparação com outros em situações piores, a ideia de que se pode controlar a doença ou a saliência dos recursos pessoais) são formas positivas de dar sentido à experiência da doença. Contudo, estas ideias são, em grande parte, ilusórias⁶. Isto é, a doente escolhe comparar-se com pessoas em pior situação, mas isso é uma opção, porque há certamente pessoas em situação melhor. A mudança para uma alimentação mais saudável é certamente positiva, mas é difícil associá-la a resultados efetivos porque os efeitos na saúde desta alteração dificilmente se notarão a curto prazo. Trata-se, por isso, de estratégias que, em grande parte, são ilusórias. Mas os estudos que Shelley Taylor iniciou nessa altura mostraram uma coisa muito importante. É que estas ilusões representam uma forma de adaptação à ameaça e que as pessoas que recorrem a elas sentem-se mais felizes e vivem a doença com mais qualidade de vida. Em estudos que realizámos em Portugal com pessoas que viviam outras situações de ameaça, como a exposição a desastres naturais (cheias, tremores de terra) ou tecnológicos, encontrámos o mesmo padrão de resultados⁷. As pessoas que vivem em locais mais expostos à possibilidade de verem a sua casa danificada por um sismo ou pela erosão da costa, têm consciência que vivem em risco, mas não são mais infelizes do que as que vivem em locais mais seguros. A diferença está nas ideias ilusórias que desenvolvem as pessoas que vivem em risco e que lhes permitem adaptar-se à sua situação e minimizar a ameaça: acham que a sua casa está construída de forma mais segura do que outras, que as autoridades têm a situação bem controlada ou que já lidaram com desastres naturais no passado e, por isso, estão