Hábitos alimentares dos Portugueses
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Monica Truninger
Mónica Truninger é socióloga no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Tem-se dedicado à investigação, ensino e comunicação das práticas sociais alimentares através de pesquisas sobre pobreza alimentar, consumo alimentar sustentável e hábitos alimentares de famílias com crianças. Tem vários títulos publicados alusivos a estas temáticas em editoras portuguesas e internacionais.
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Hábitos alimentares dos Portugueses - Monica Truninger
Introdução
No decurso das várias actividades diárias que fazemos, a alimentação é uma das mais incontornáveis e obrigatórias. Qualquer que seja a circunstância, sentados à mesa, num balcão de pastelaria, em movimento dentro de um automóvel, comboio ou avião, num refeitório escolar ou na rua, a alimentação é um requisito fundamental para vivermos e sobrevivermos. Sem acesso adequado aos bens alimentares, corremos diversos riscos e ameaças, desde a fome e má nutrição até à contracção de doenças provocadas pela ingestão inadequada de alimentos em qualidade ou quantidade, por excesso ou escassez, podendo agravar outras condições do foro emocional e mental.
A alimentação é mais do que uma necessidade biológica, já que o que comemos, quando, com quem, onde e porquê a colocam no centro de interesse político, social, cultural, económico, ambiental, gastronómico, de lazer e mediático. Os nossos hábitos alimentares norteiam identidades sociais e culturais, marcando a pertença a uma comunidade concreta e, como tal, expressando ao mesmo tempo demarcações várias de outros grupos. Por isso mesmo, a alimentação é foco constante de escrutínio e apreciação, não só na esfera pública como cada vez mais na esfera privada. Por um lado, esta vigilância informal permite ajustar e definir o que é ou não adequado comer, mas, por outro lado, gera efeitos perversos, como os juízos de valor e a crítica de conduta moral em relação ao que se come e ao que se dá de comer ao outro. Quantas vezes mães com dificuldades económicas e de minorias étnicas são julgadas em praça pública por levarem as crianças a restaurantes de comida rápida (fast food) ou por prepararem lancheiras com a designada «comida-lixo» (junk food) para os filhos levarem para a escola? Mesmo que haja outros grupos com mais recursos que possam incorrer na mesma conduta, os estereótipos e os juízos de valor acabam por atingir sobretudo as populações com menos recursos e socialmente excluídas. É certo que, do ponto de vista nutricional e de saúde pública, estes comportamentos são desajustados, sobretudo se forem frequentes, tendo consequências graves para a saúde. Porém, antes de julgar e estereotipar, é necessário compreender com que regularidade são adoptados, por que razão isso acontece, e que «boas» razões existem que levam aos «maus» hábitos alimentares. Esta é uma área altamente moralizada na nossa sociedade, e coloca uma enorme pressão nas pessoas que preparam diariamente as refeições para as suas famílias, normalmente as mulheres. Essas pressões podem acentuar episódios de crescente ansiedade e culpa entre as cuidadoras, por não corresponderem às expectativas sociais do que é comer «bem». A intensidade do escrutínio alimentar está assim muito associada a uma averiguação moral constante do desempenho dos cuidados parentais, que no caso da alimentação na sociedade portuguesa, apesar de já haver sinais importantes de mudança na divisão doméstica das tarefas de cozinha (sobretudo entre os casais jovens e mais escolarizados), ainda permanecem largamente sob a responsabilidade das mulheres.
Por tudo o que se disse, não é de estranhar que nas últimas décadas o interesse público pela alimentação tenha disparado, e a importância dada a esta matéria não está desligada das profundas mudanças sociais e económicas que marcaram a Europa após a Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Essas mudanças tiveram repercussões globais a que Portugal não foi alheio, afectando a produção, o processamento, a distribuição, o consumo e o desperdício alimentar. Desde os desenvolvimentos tecnológicos aplicados à agricultura que tornaram possível o crescimento exponencial da produção agro-alimentar, passando pelo desenvolvimento económico, até ao transporte internacional e à formação de grandes empresas multinacionais ligadas não só à transformação alimentar como ao grande retalho e à restauração, tudo isto contribuiu para acelerar mudanças profundas nos hábitos alimentares das sociedades ocidentalizadas, nomeadamente a portuguesa.
A crescente globalização alimentar de bens relativamente baratos, disponíveis no mercado mundial e transportados dos quatro cantos do mundo, tornou as ligações entre produtores e consumidores cada vez mais distantes e intermediadas por diversos agentes, sistemas de controlo e monitorização da segurança alimentar, assim como implementou padrões de qualidade expressos em certificados e rotulagens várias (por exemplo, o certificado de agricultura biológica, as listas de ingredientes, a identificação de produtos que possam provocar alergias, ou daqueles que trazem benefícios para a saúde, como os enriquecidos com ómega 3 ou cálcio, designados como «alimentos funcionais»).
Acompanhando as transformações da produção e do consumo alimentares a partir da segunda metade do século passado, estão implicadas também mudanças na regulação e coordenação dos sistemas de produção, distribuição e consumo. No pós-guerra, surgiram várias organizações internacionais ligadas ao sector, nomeadamente a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que foi fundada em 1945 e cuja missão tem vindo a ser reconfigurada com a transformação alimentar das últimas décadas. Desde objectivos iniciais muito focados na recuperação do bem-estar das populações no pós-guerra, promovendo a produção intensiva de alimentos a grande escala, o abastecimento de bens a preços acessíveis, o combate à fome e à insegurança alimentar, até às preocupações mais recentes com as alterações climáticas e a soberania alimentar. Estas preocupações já não se prendem apenas com o designado Sul Global (África, Ásia, América do Sul), mas repercutem-se no Norte Global e na Oceânia (Estados Unidos, Europa, Austrália e Nova Zelândia). Os impactos das várias crises — climática, económica e sanitária — têm obrigado a equacionar uma transformação estrutural dos hábitos alimentares das populações. Neste sentido, a pandemia da Covid-19 no ano 2020 provocou uma transformação de hábitos de produção e consumo a nível global e nacional, bem como acelerou algumas tendências alimentares que já estavam em curso antes da eclosão da