Criminalidade e segurança
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Manuela Ivone Cunha
Manuela Ivone Cunha é investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), docente na Universidade do Minho e diretora da revista Etnográfica. Doutorada em Antropologia, com agregação em Sociologia, foi contemplada com o Prémio Sedas Nunes para as Ciências Sociais pela sua investigação sobre prisões, punitividade e economia da droga. Tem ainda estudado as relações entre justiça criminal, desigualdades sociais e diferenças culturais.
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Criminalidade e segurança - Manuela Ivone Cunha
Introdução
De que falamos quando falamos de crime, de segurança ou de insegurança? Que factos, significados e imagens estão associados a estes termos? Existirão no mundo exterior como as coisas que podem ser medidas e contadas independentemente de quem o faz e nomeia como tais? E existem em todas as épocas, circunstâncias e lugares tal como falamos deles hoje? Ninguém duvida de que estão em causa fenómenos bem reais nos seus efeitos, nas preocupações que suscitam ou nas intervenções que desencadeiam. Revelam-se, todavia, universos de contornos muito mais imprecisos quando examinados de perto e quando consideramos em si mesmas as noções que utilizamos para nos referirmos a eles. Sem risco de exagero pode dizer-se que nesse olhar mais atento tornam-se então realidades extraordinariamente fugidias, ao ponto de vários especialistas não reconhecerem sequer como válidos alguns dos conceitos que se lhes referem ou continuarem ainda hoje a debater o seu sentido.
É, pois, inevitável que este ensaio comece por procurar esclarecer os sentidos recobertos pela noção de crime. Em vez de uma árida coleção de definições, optou-se por tentar discernir os seus contornos examinando-a lado a lado com noções vizinhas com que se cruza, confunde, ou entre as quais os usos comuns deslizam com uma desconcertante ambiguidade. Nada melhor do que uma abordagem por comparação e contraste para fazer aparecer os seus ingredientes distintivos, aquilo que lhe é específico em relação a outras, ou, pelo contrário, o que tem de semelhante e partilha com elas. E porque são significados que não estão fechados, nem são estabelecidos por decreto para todo o sempre, mas vivem, morrem e alimentam-se de uma variedade de imagens e narrativas em circulação, das jurídicas às dos media, das de especialistas às de leigos, incluiu-se nesse percurso a pluralidade de entendimentos de que se rodeia, tanto mais que são entendimentos que comunicam e reagem entre si.
O mesmo se procurou fazer com as noções de (in)segurança e na sua órbita, e com os sentidos que se acolhem nelas. Porque são vastíssimos os âmbitos possíveis da segurança (militar, civil, alimentar, entre muitos outros) e o espírito deste ensaio não é o de um compêndio, impuseram-se desde logo duas restrições óbvias. Dos domínios que tendem a constar da sua definição formal, ficarão de fora as estruturas e os dispositivos de segurança, bem como os âmbitos que não dizem respeito ao crime tal como é convencionalmente entendido. Falar-se-á assim de insegurança enquanto medo do crime e da relação complexa que tem com os factos da vitimação. Se é o crime que se teme ou o que se diz temer neste âmbito da insegurança, não parece à partida descabido interrogar até que ponto as realidades do medo estão sintonizadas com as realidades da criminalidade, ou esperar que um aumento ou diminuição do medo corresponda a um aumento ou diminuição do crime. Far-se-á também aqui o percurso a que essa pergunta obriga, para depois, em vez de concluir que as pessoas são injustificadamente temerosas, ou, pelo contrário, irracionalmente temerárias quando tal sintonia não se verifica, perceber que é a própria pergunta que afinal talvez esteja mal formulada, ou não tenha sequer razão de ser quando feita nesses termos. O sentimento de insegurança, esse, tem as suas razões e não está desligado das realidades do risco, mas é um fenómeno mais amplo do que o da criminalidade e até certo ponto independente dele. Daí que, se num primeiro momento se excluíram certos âmbitos da questão da (in)segurança aqui tratada, num segundo momento incluíram-se outros, de outra natureza, com os quais este tipo de insegurança comunica, e que não se resumem de facto ao do crime. Qual é, então, a matéria da insegurança e que ingredientes entram na sua confeção? Como e onde toma forma e de que maneira é vivida? De que sentidos específicos se reveste em diferentes categorias sociais?
À medida que as noções no âmbito do crime, da (in)segurança e da vitimação vão sendo aqui desfiadas, vão sendo também convocados os instrumentos para medir e quantificar esses fenómenos, para lhes tomar o pulso ou para chegar aos seus aspetos mais intrincados e microscópicos, desde estatísticas oficiais e diferentes tipos de inquéritos a estudos etnográficos. Trata-se, claro, de colher deles dados e resultados para desenhar um retrato das realidades em questão, mas também de explicar o que nos podem e não podem dizer, o que mostram e o que deixam oculto, e até como podem levar ao engano um olhar desprevenido. Quis-se que o retrato que foi emergindo fosse, portanto, acompanhado do respetivo equipamento de leitura, mas também que este kit de ferramentas pudesse ser útil aos leitores e leitoras para a radiografia de outros