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O Cemitério da Consolação: Uma Encantadora Cidade dos Mortos
O Cemitério da Consolação: Uma Encantadora Cidade dos Mortos
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O Cemitério da Consolação: Uma Encantadora Cidade dos Mortos

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O fenômeno da morte é intrínseco à vida. Cada sociedade tem uma forma diferente de tratar o corpo sem vida e de reagir à ruptura dos laços familiares/comunitários provocada pela morte. Diante do exposto, os locais destinados ao sepultamento dos mortos, bem como as práticas funerárias revelam mais do que os anseios coletivos e individuais perante a morte. Expressam valores, hierarquias, estéticas, memórias, sociabilidades, ritos, moral, poder, significados e símbolos. Ou melhor, a morte é o espelho da nossa visão de mundo. Logo, refletir sobre a morte é refletir sobre a vida. Nesse horizonte, o livro O Cemitério da Consolação: uma Encantadora Cidade dos Mortos envereda por uma temática que muitas vezes preferimos não (nos) confrontar: a finitude da vida. A obra desbrava o processo de construção do Cemitério da Consolação e a sua metamorfose ao longo do tempo, constituindo-se em um lugar emblemático na cidade de São Paulo. Fascínio ou repulsa, esse cemitério, atualmente, desperta sentimentos, sonhos, afetividades, enfim, toda uma sorte de laços ata os indivíduos a esse lugar, podendo ser ele fúnebre, do passado, turístico, de educação, de entretenimento, de trabalho, de contemplação, de medo, sagrado, melancólico, mítico. Trata-se de uma leitura fluida que visa a compreensão da dinâmica cemiterial e a sua relação com a cidade em temporalidades distintas, buscando contribuir com as análises da geografia brasileira a partir de um diálogo dessa ciência com outros campos do conhecimento. Este livro é, na verdade, um convite para todos mergulharem nesse assunto rico, complexo e repleto de simbolismos e significações, uma vez que o Cemitério da Consolação é um modo de pensar, de sentir e de viver.
LanguagePortuguês
Release dateJul 29, 2020
ISBN9786555231212
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    O Cemitério da Consolação - Olga Maíra Figueiredo

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    À Janete Figueiredo, à Melissa Anjos e ao Miguel Angelo Ribeiro.

    Sem vocês, este livro não existiria.

    PREFÁCIO

    Julho de 2019,

    Olga e eu nos conhecemos há quase 15 anos. E em todo esse tempo ela nunca parou de me surpreender, me maravilhar, me questionar, me fazer pensar. Temos muitas histórias e estórias juntas – ao lado de nosso irmão Ivo Venerotti. Acompanhar a trajetória acadêmica de Olga foi e é, além de um verdadeiro prazer, um constante aprendizado. Estive presente quando ela decidiu aceitar o tema de sua monografia de graduação – ou será que foi o tema quem se decidiu por ela? – pesquisando sobre o British Burial Ground ou somente Cemitério dos Ingleses, no bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro. Continuei por perto quando ela ingressou no mestrado escrevendo sobre o Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, também no Rio. Permaneci junto durante o doutorado e a vi se aventurar por outras paragens, digo, outro estado, dessa vez São Paulo, ao pesquisar o Cemitério da Consolação. Pesquisa essa que agora transmutou-se neste belo, interessante e necessário livro para a Geografia, mas também para todas as outras áreas do pensamento e, mesmo, para os interessados pelo tema em questão.

    Dito isso, Olga Maíra Figueiredo sabe do que está falando (ou escrevendo, neste caso). Mais que isso, ela traz consigo anos de estudos, pesquisas, escritos, reflexões, debates e conhecimento empírico. Então, nada mais normal e justo do que sua obra nos importunar em um ponto chave de reflexão, qual seja: como encaramos a morte? E esse é um questionamento importante porque, como você vai ler ao longo das páginas deste livro, nossa interação com a morte foi modificando-se no decorrer do tempo e dos diferentes contextos social, político, econômico e cultural. Outro ponto importante para pensarmos o nosso trato com a morte são as expressões de fé individual e/ou coletiva.

    No decorrer do livro, compreendemos que a morte deixa de ser doméstica, esperada e festejada para ser solitária, temida e afastada. E que isso rege as nossas ações. Olga, de maneira brilhante, coerente e acessível nos conduz por uma jornada de entendimento do imaginário da morte e dos locais destinados ao sepultamento desde a Antiguidade até os dias atuais a partir de uma perspectiva cristã ocidental.

    Nesse sentido, este livro (baseado em sua tese de doutoramento defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em maio de 2017), dividido em quatro capítulos, propõe tal entendimento por meio do Cemitério da Consolação, campo santo escolhido como recorte empírico de apreensão e desvelamento do assunto em tela. A autora, buscando esclarecer os diferentes papéis atribuídos ao Cemitério da Consolação, objetiva elucidar a ação humana na construção e permanência do mesmo, enfatizando os seus significados e valores que foram/são (re)trabalhados no decurso do tempo (p. 19).

    Todos os questionamentos expressos ao longo das páginas seguintes nos fazem refletir, mas, igualmente, produzem tantas outras questões em diferentes esferas: afinal, o que é a morte? A morte é o fim? Para onde vamos? Seria a morte o limite da vida? Existe um sentido na morte? E se eu morresse amanhã? São reflexões filosóficas, eu sei. Porém, o que move a ciência senão o questionamento?! Porque perguntas fazem parte da vida. Aliás, passamos a vida e pela vida perguntando. Para várias delas existem respostas – prontas, inacabadas, certas, erradas, suficientes, elaboradas etc. –, mas a grande maioria serve, primeiro, à reflexão. Algumas jamais serão respondidas simplesmente porque não foram feitas para isso. Ficarão vagando pelo ar, indo de pessoa a pessoa, provocando, atiçando, espetando, irritando...

    Por fim, Olga Maíra Figueiredo é dessas pessoas que a gente quer acompanhar, mesmo que seja de longe (sorte minha poder estar por perto!), para saber o que anda pensando, debatendo e produzindo. Porque sabemos que é bom, é diferente, é inovador, é provocativo. Exatamente como este livro que você tem em mãos e que ora inicia a leitura. Boas reflexões!

    Professora doutora Melissa Anjos

    (NeghaRio/UERJ)

    Mas, diante do portão do cemitério, todos, instantaneamente, calaram-se. Os túmulos erguiam-se por entre as árvores, colunas partidas, pirâmides, templos, dolmens, obeliscos, hipogeus etruscos de portas de bronze. Em alguns via-se uma espécie de toucador fúnebre, com poltronas rústicas e bancos de dobrar. Teias de aranha pendiam, como farrapos, dos cadeados das urnas; e a poeira cobria os ramos de flores com fitas de cetim e os crucifixos. Por toda parte, entre os balaústres, sobre os túmulos, coroas de perpétuas e castiçais, vasos, flores, discos negros ornamentados com letras douradas, estatuetas de gesso: meninos e meninas, ou anjinhos seguros no ar por um arame: alguns até com um teto de zinco sobre a cabeça. Enormes fios de vidro, preto, branco e azul, descem do cimo das lápides até a extremidade das lajes, retorcidos como cobras. O sol batia neles, fazendo-os cintilar entre as cruzes de madeira preta; e o cortejo fúnebre avançava pelas grandes aleias, pavimentadas como as ruas de uma cidade. De quando em quando, os eixos estalavam. Mulheres de joelhos, com o vestido arrastando na grama, falavam docemente aos mortos. Uma fumarada esbranquiçada erguia-se por entre a verdura dos cedros. Eram oferendas abandonadas, restos que estavam sendo queimados.

    A cova do Senhor Dambreuse era nas proximidades das de Manuel e Benjamin Constant. O terreno faz, naquele lugar, um declive abrupto. Têm-se aos pés os cocurutos de árvores verdes; mais longe, chaminés de fábricas, depois, toda a grande cidade (FLAUBERT, 2009, p. 372-373.).

    Sumário

    CONSIDERAÇÕES INICIAIS 13

    DOS ENTERROS ECLESIÁSTICOS À EDIFICAÇÃO DOS CEMITÉRIOS MUNICIPAIS 31

    1.1 A Questão dos Sepultamentos: da Antiguidade até o Século XIX 31

    1.2 Os Sepultamentos na Cidade de São Paulo 47

    1.3 A Medicina Social na Construção dos Cemitérios Modernos 53

    1.4 O Processo de Edificação do Cemitério da Consolação 58

    CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO: ARTE TUMULAR, SÍMBOLOS

    E STATUS 77

    2.1 Cemitério, Monumento e Memória 78

    2.2 A Segunda Fase do Cemitério da Consolação 94

    OS CEMITÉRIOS NO ÂMBITO DA DINÂMICA URBANA 127

    A PRÁTICA DE VISITAS GUIADAS NO CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO 171

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 219

    REFERÊNCIAS 229

    ÍNDICE REMISSIVO 243

    CONSIDERAÇÕES INICIAIS

    Os cemitérios fazem parte de um contexto polêmico, por excelência. Esses locais de respeitabilidade, intocabilidade e de memória aos que já faleceram são e estão envoltos em uma aura de mistério. Muitas vezes são atribuídas aos chamados campos dos mortos ou campos santos, determinadas sensações, como tristeza, pavor, angústia, receio, melancolia, desolação, medo e morbidez. No universo da sétima arte, principalmente nos filmes de terror, os cemitérios são cenários de rituais assustadores e macabros com a presença de vampiros, fantasmas, zumbis e outros personagens fantásticos. Fascínio ou repúdio, tais locais despertam e são imbuídos de diversos sentimentos, atitudes, opiniões, ideias, imagens, simbolismos conflitantes e complementares. Isto é, trata-se de quadros paradoxais (OSMAN; RIBEIRO, 2007).

    Diante do exposto, os cemitérios presentes nas cidades, em suas periferias ou em seus cores, apresentam vívidas e vibrantes geografias. Marcas impressas pelo homem refletem a estrutura social, cultural, religiosa, identitária da comunidade que os criaram, sendo impregnados de valores e significados. Ou melhor, são uma extensão e reflexo da própria sociedade (FRANCAVIGLIA, 1971; JORDAN, 1982). Dessa maneira, os campos dos mortos são influenciados pela cultura e possuem significados culturais (MILLER; RIVERA, 2006). Logo, as necrópoles e todas as suas estruturas e monumentos mortuários compreendem um rico, ativo e complexo mosaico cultural (MATERO; PETERS, 2003). Segundo Rugg (2006), os campos dos mortos – assim como a sociedade – modificam-se com o decurso do tempo e do tipo de sepultamento que comportam, quer sejam os restos mortais enterrados no solo com a presença de simples ou suntuosas lápides e monumentos tumulares ou quer sejam com as cinzas em urnas. Na verdade, são lugares dinâmicos que podem ter seus significados alterados ao longo da história, providenciando oportunidade para diversos grupos expressarem suas emoções, crenças e tradições (RUGG, 2006).

    Desse modo, tais materialidades no espaço geográfico relacionam tanto desígnios funcionais quanto emocionais, na medida em que providenciam um sítio específico para o sepultamento de cadáveres e, simultaneamente, fornecem um local no qual os vivos podem refletir acerca de seus mortos e da finitude da vida (FRANCAVIGLIA, 1971). Nesse contexto, os campos santos são, nas premissas de Muniz (2006, p. 160-161), espaços construídos socialmente e podem ser vistos como lugares de práticas sociais que traduzem leituras sociais. Devem ser compreendidos como espaços de luta, de conflitos e jogos de interesses. Na realidade, são lugares de memória, pois surgem das experiências da sociedade [...]. São lugares onde emergem os significados material, simbólico e funcional. Objeto de ritual, constituindo um jogo de memória e história (MUNIZ, 2006, p. 164). Aos cemitérios é introjetada uma série de sentidos e significados (sociais, políticos, culturais, econômicos, religiosos) que se alteram com o passar dos anos, permitindo o reconhecimento, pelos indivíduos e grupos sociais, de valores seletivamente compartilhados (JORDAN, 1982). Trata-se de espaços expressivos capazes de transmitir informações valiosas aos vivos e são sujeitos a interpretações contínuas.

    As necrópoles oferecem, igualmente, a possibilidade e o contexto de memorialização de indivíduos e grupos. Suas identidades, memórias e trajetórias são perpetuadas ou enfatizadas durante um período de longa duração nos espaços cemiteriais (RUGG, 2000). Por conseguinte, os campos dos mortos, a partir de sua materialidade, são considerados sagrados na medida em que celebram a morte e arraigam certa reverência e respeitabilidade, permitindo ritualizações, contendo memórias coletivas, produzindo significados e expressando pesar e status (HARTIG; DUNN, 1998; RUGG, 2000). Salientamos, internamente são segmentados em quadras e cada sepultamento é documentado nos registros dos cemitérios. Os jazigos são considerados uma posse, na qual as famílias dos sepultados detém o controle. Compreendem, teoricamente, uma garantia de que os restos mortais de seus entes queridos não serão violados.

    De acordo com Thompson (2007, p. 50), o cemitério emerge não como um texto estático, mas uma paisagem ‘em processo’. Nessas circunstâncias, indivíduos, grupos e até mesmo o Estado participam da manipulação e negociação dos espaços destinados aos mortos com a finalidade de afirmar identidades e controlar narrativas históricas (SILVERMAN, 2002). Como afirma Buckham (2003), as necrópoles, além de serem expressões de encadeamentos religiosos, nacionais, étnicos e de classe, manifestam relações pessoais, estabelecendo um sentido de individualidade, na proporção em que a escolha do design das lápides, assim como o material utilizado e as inscrições promovem uma autoafirmação, reforçando o caráter único de uma pessoa ou família. Vale destacar, mesmo sendo uma expressão privada e específica, os túmulos contidos nos cemitérios são dispostos a permitirem uma visualização e visitação pública (WRIGHT, 2005). Assim, os campos santos são espaços que convergem heranças individuais, sociais e nacionais, servindo como um testemunho do passado e sendo simbolicamente expressivos (THOMPSON, 2007).

    Portanto as necrópoles revelam tanto aspectos materiais como imateriais das manifestações – rituais e símbolos – do homem perante a morte (MUNIZ, 2006). O layout e design dos monumentos, as inscrições, as lápides e os túmulos revelam respostas coletivas e individuais acerca da morte, bem como as atitudes do homem diante da vida (MATERO; PETERS, 2003). Conforme Collier (2003), os cemitérios permitem, afora o sepultamento dos restos mortais, que os falecidos continuem identificados como membros de famílias e da sociedade, por meio da consagração sagrada e memorial dos espaços cemiteriais na comunidade. Nessa direção, as necrópoles possuem múltiplos usos e significados, simultaneamente tangível e intangível, para os mortos, grupos e a sociedade em geral (COLLIER, 2003; THOMPSON, 2007).

    Consoante com Jordan (1982) e Titus (2008), os cemitérios foram erguidos para servir, primeiramente, aos vivos. Os indivíduos compreendem os campos dos mortos de maneiras diferenciadas. O cemitério é um lugar distinto para cada pessoa: um lugar sagrado, um lugar simbólico, um lugar dos antepassados, um parque, um museu a céu aberto, um patrimônio, um ponto turístico ou um local que imprime pavor, medo e repulsa. Desse modo, os campos dos mortos são plenos de simbolismos de proximidade/aceitação, na medida em que muitas pessoas continuam cultuando seus antepassados, o que pode ser demonstrado na condução de flores, na luminosidade da fé e das velas, nas orações, nas inscrições nas placas de mármore e granito contendo nomes e datas de nascimento e falecimento, afixação de crucifixos e santos. Em contraponto, também podem ser símbolos de rejeição porque muitos segmentos da sociedade temem a morte, forjam fantasmas e entendem os cemitérios como algo a ser evitado, por exemplo.

    A necrópole, como um artefato impregnado de significados, signos e símbolos, apresenta uma multiplicidade de usos. Mais do que isso, os campos santos apresentam particularidades e singularidades, uma vez que acomodam morfologias, estilos arquitetônicos e significados diferentes. Em outras palavras, compõem pontos específicos no espaço das cidades. Ao mesmo tempo, suas áreas internas compõem singulares cidades com suas ruas, monumentos e túmulos. Vale sublinhar, nesses espaços cemiteriais ocorrem rituais religiosos, concernentes aos cultos fúnebres e a sua celebração, e ações não religiosas, como por exemplo: imobiliárias, educacionais, sociais, turísticas e de lazer. Nessas condições, nos cemitérios são efetivadas práticas de inclusão e exclusão (AMBROS, 2010, p. 308). Assim, os campos santos perpetuam e, concomitantemente, são utilizados para confirmarem valores dominantes. Em algumas ocasiões, segregam grupos internamente, como as mulheres, negros e as classes de baixa renda (FRANCAVIGLIA, 1971; JORDAN, 1982; RUGG, 1998; MILLER; RIVERA, 2006; ABEL, 2008).

    No tocante as necrópoles brasileiras, a responsabilidade em instituir, administrar e fiscalizar os serviços funerários está a cargo das prefeituras. No caso do município de São Paulo, tal encargo é destinado ao Serviço Funerário do Município de São Paulo, órgão da Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais desde 2017. Portanto a Prefeitura controla e monitora tanto os campos santos públicos como os particulares, além das agências funerárias, capelas mortuárias, crematórios e a prática de embalsamentos realizada na cidade. Ainda é de sua competência emitir parecer técnico acerca de pedidos de licenciamento, ampliação, mudanças e instalações de necrópoles, renovar contratos, verificar focos de dengue nos cemitérios, opinar sobre a fixação de tarifas pelos serviços prestados, além de aplicar multas. Tal arsenal está previsto no Decreto-Lei nº 8383 de 19 de abril de 1976¹, bem como nas alterações posteriores.

    Dito isso, a prestação de serviços funerários é efetuada por agentes seja nas formas de concessão, quando o cemitério é público, ou na de permissão, quando a necrópole é particular. Isso posto, a urbe paulistana conta com quarenta e dois cemitérios, dos quais vinte e dois são públicos (administrados pela Autarquia Serviço Funerário do Município de São Paulo) e os vinte restantes são particulares, atuando na forma de permissão. Além desses, o município apresenta um forno crematório, o Crematório Vila Alpina (oficialmente nomeado de Crematório Dr. Jayme Augusto Lopes), de caráter público. Ainda estão presentes no espaço da cidade, no regime de concessão, um total de cento e quatorze capelas mortuárias e doze agências funerárias. Os dados em tela são referentes ao ano de 2016.

    Nessa trilha, no município existem cemitérios de variados estilos (do tradicional ao tipo jardim), inaugurados entre 1829 e 2016, espacialmente distribuídos pelas Zonas Sul, Norte, Leste e Oeste da cidade. Isto é, presentes tanto em bairros nobres como de classe média baixa, em áreas já consolidadas e em setores de crescimento da cidade. Além disso, encontram-se necrópoles destinadas a determinados grupos e classes, como aos protestantes, aos judeus e aos menos abastados. Trata-se de um desafio desvendá-las.

    Como recorte temporal, a pesquisa engloba um período que se estende desde a instituição dos cemitérios propostos pela visão da medicina social do século XIX até o ano de 2016. Dessa forma, o recorte espacial da pesquisa é o Cemitério da Consolação (Imagem 1), inaugurado em 15 de agosto de 1858, no bairro de mesmo nome na cidade de São Paulo. Sua área, de aproximadamente setenta e seis mil metros quadrados, compreende um quadrilátero delimitado pela confluência dos logradouros da Consolação (uma importante via do município, ligando o Centro Velho –Vale do Anhangabaú –, passando pelo Centro Novo da Avenida Paulista e indo até o nobre bairro de Cerqueira César), Coronel José Eusébio, Sergipe e Mato Grosso (já situado no bairro de alto padrão Higienópolis). Contíguos a essa necrópole, mas separados por muros e com portões exclusivos voltados para a Rua Sergipe, encontram-se os cemitérios particulares da Ordem Terceira do Carmo, fundado em 12 de novembro de 1868, e dos Protestante, estabelecido em 11 de fevereiro de 1864.

    Imagem 1 – Modelo em três dimensões da vista aérea e arredores do Cemitério da Consolação

    Fonte: adaptado do sítio eletrônico Google Maps pela autora (2017)

    Nesse sentido, a necrópole da Consolação, incrustrada entre os bairros de alto padrão como Higienópolis e Pacaembu, próxima tanto das towers da Avenida Paulista quanto do deteriorado Centro Velho, é reconhecida, hodiernamente, como uma área de sepultamento dirigida para uma classe abastada. Mais do que isto, em seu interior é possível identificar os túmulos de personalidades com diversos títulos de nobreza, tais como a Marquesa de Santos, o Barão de Iguapé e o Marquês de Monte Alegre; dos abolicionistas Luís Gama e Antônio Bento de Souza e Castro; dos presidentes da era da República do Café-com-Leite Campos Sales e Washington Luís; das famílias tradicionais paulistanas como os Álvares Penteado, os da Silva Prado, dentre outros; dos imigrantes enriquecidos ligados a industrialização de São Paulo como do Conde Matarazzo, da família Jafet e da família Calfat; de alguns artistas da Semana de Arte Moderna de 1922, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, além de outras pessoas públicas. A lista é extensa e múltipla.

    A necrópole em tela não é somente caracterizada por seus mortos ilustres, mas, igualmente, chamam a atenção seus jazigos compostos por expressivos arranjos escultóricos, monumentos e mausoléus edificados por marmorarias e artesões de renome, compondo um verdadeiro acervo artístico. A esse conjunto de obras denominaremos de arte tumular, arte cemiterial ou ainda de arte funerária. Nessas circunstâncias, tais artefatos fúnebres, bem como as identidades e memórias de seus sepultados célebres, são convertidos em produtos potenciais para a promoção de visitações ao campo santo com a finalidade de conhecer um pouco da história de São Paulo a partir das trajetórias de seus inumados, tecer homenagens a essas memórias públicas, além de instigar e despertar o interesse por esse ambiente como um local educativo, de entretenimento e contemplação. Na aurora do terceiro milênio, essa necrópole se autointitula um museu a céu aberto, inserido como um ponto turístico na tábua de turismo da cidade. Nesse sentido, são realizadas de forma gratuita, desde 2001, visitas guiadas previamente agendadas nesse espaço cemiterial. Esse passeio tem como guia oficial o funcionário da necrópole Francisvaldo Gomes, mais conhecido como Popó. Cabe apontar, o cemitério possui em torno de seis mil túmulos, dos quais um pouco mais de trezentos são tombados pelo município seja por se tratar do local de repouso de uma pessoa ilustre seja pelo valor artístico do componente escultórico que orna o sepulcro.

    Nesse contexto, refreando temores, tabus e preconceitos, o livro propõe estabelecer um elo entre os temas cemitério, geografia e turismo. Selecionamos, para isto, a necrópole da Consolação pela consolidação e repercussão de suas práticas turísticas. Nesses termos, a pesquisa tem como objetivo desvendar/traduzir o processo de construção do Cemitério da Consolação e a sua ressignificação ao longo do tempo. Afora compreender como essa necrópole é construída pela experiência/consciência humana, constituindo-se em um lugar emblemático na cidade de São Paulo e, ainda, revelar os sentimentos, sonhos, afetividade, enfim, os laços que unem os indivíduos com esse lugar, seja ele fúnebre, do passado, turístico, de lazer, educação, entre outros.

    Logo, em decorrência da complexidade da natureza humana, das experiências dos lugares no mundo vivido dos indivíduos comuns, como as pessoas podem conceber os diferentes papeis do Cemitério da Consolação? A cada passo, o tema em questão será descortinado, procurando elucidar a ação humana na construção e permanência deste, enfatizando os seus significados. Diante do exposto, o projeto se justifica por se apresentar como um caminho diferenciado e convidativo para o entendimento dos cemitérios a partir dos seus valores sociais, sentimentais, simbólicos e culturais. Vale considerar, ao longo dos capítulos aparecem vários questionamentos que, por vezes, se apresentam para provocar uma reflexão do leitor. Não há uma pretensão em responder todo o rol de indagações. Essas serão, certamente, alvo de outras pesquisas elaboradas pela autora deste texto e por quem tiver acesso a ele.

    Nessa direção, Figueiredo (2010) expõe que a compreensão de uma necrópole a partir de uma perspectiva geográfica é tão complexa e plural como entender a geografia de um país. Isso se deve ao fato, de acordo com Kong (1999), dos espaços destinados aos mortos e

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