Transversalidade de gênero e raça: com abordagem interseccional em políticas públicas brasileiras
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Compreender possíveis métodos e propostas para que as políticas públicas tenham transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional, é o centro da pesquisa, que parte de uma abordagem do marco teórico: estudos decoloniais e a relação histórica e social com a colonialidade de poder; a centralidade da raça e do racismo na estrutura social, econômica e política da América Latina; a necessidade do estabelecimento de categorias de pensamento que sejam feministas, antirracistas, anticapitalistas e decoloniais; a importância dos processos relacionados aos direitos humanos no âmbito internacional; as complexidades da aplicação da interseccionalidade de gênero e raça; o caminho percorrido nas legislações brasileiras que tratam da equidade de gênero e da equidade racial; e a compreensão das limitações do Estado nos contextos citados.
A partir dessa fundamentação, foram criadas categorias de análise que abordaram duas políticas públicas, a partir da transversalidade de gênero e raça com abordagem interseccional, relacionadas à Agroecologia e Produção Orgânica e ao Plano Nacional de Cultura.
Essa análise permitiu criar um exercício metodológico que se espera poder servir de referência na construção de futuras políticas públicas, ou revisão de políticas vigentes.
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Transversalidade de gênero e raça - Isadora Candian dos Santos
1 INTRODUÇÃO
1.1 CAMINHO INICIAL
Este estudo surgiu a partir de indagações feitas quanto a abordagem da equidade de gênero de forma transversal durante uma experiência profissional ao coordenar um projeto em uma organização da sociedade civil (OSC) brasileira, conforme narrado no item anterior.
A ideia de iniciar essa pesquisa aconteceu a partir de debates levantados por algumas mulheres participantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Economia Solidária (Congresso Nacional) – quais seriam as pautas legislativas das mulheres da economia solidária e do cooperativismo? O caminho dessa discussão seguiu para um contato com a Frente Parlamentar Feminista e Antirracista com Participação Popular, cuja assessoria reforçou o argumento de se trabalhar tanto gênero quanto raça nessa abordagem.
Inicialmente, em uma leitura preliminar de legislações da área do cooperativismo e da economia solidária que possuíam ou não a transversalidade de gênero em seus Projetos de Lei (PLs), ou Leis já aprovadas, surgiram os questionamentos iniciais. Nesse levantamento constatou-se um número muito reduzido de propostas que possuíam algum recorte de gênero – seja menção à igualdade ou equidade de gênero, ou qualquer mecanismo que identificasse a necessidade de visibilizar o tema ou o público (neste caso, mulheres), e, menos ainda quanto ao recorte racial – seja referente ao combate à discriminação, à promoção da igualdade ou equidade racial, dentre outros temas relacionados. Ou seja, essas legislações ou PLs tratavam quase que exclusivamente do tema central da legislação, sem abordar gênero ou raça.
Nesse processo, as primeiras perguntas foram: pensar a equidade de gênero e equidade racial em legislações corresponde a apenas legislações cujo objeto central
são políticas públicas nomeadas como políticas para mulheres ou políticas de igualdade racial? Em outras legislações, que não focam diretamente as mulheres e a população não branca, mas que afetam essa população, seria interessante tipificar esses públicos, ou mencionar que as leis devem fomentar a equidade de gênero e racial? Existem legislações que trabalham sob essa perspectiva (gênero e/ou raça), a princípio compreendida como transversal? Se sim, quais são os argumentos que embasam essas tipificações ou recortes? Qual seria o impacto de incluir essas tipificações transversais
em legislações de diversos temas? Esse tipo de abordagem faz sentido?
A partir dessas indagações se iniciou um trabalho de compreender de uma forma mais ampla o processo de construções das legislações, e, principalmente, de compreender as nuances de uma abordagem transversal de gênero e raça, nas mais diversas áreas.
Da proposta inicial para a pesquisa que encontrarão nessas páginas muito mudou, mas se manteve a inquietação inicial, que era conseguir enxergar caminhos para uma abordagem de equidade gênero e racial em políticas públicas de diversos temas. Construído e desconstruído de muitas maneiras, esse trabalho agregou visões, pontos de vista e trouxe muito aprendizado. Nessa construção-desconstrução foi possível compreender na prática o que era a subinclusão e superinclusão da população não branca que Kimberlé Crenshaw (2002) discute (será debatido no capítulo 4). Na minha visão inicial de mulher branca quando comecei a trabalhar gênero e raça, via de forma separada, hierarquizada, pensando primeiro gênero, depois raça. E pude ver exatamente a problemática que a autora traz: não há como fazer essa separação, do contrário você exclui e/ou invisibiliza a população não branca da política pública, e não encara de fato o problema do racismo estrutural.
Esse e muitos outros foram os aprendizados realizados no percurso desse trabalho, que chegou ao seu desenho final descrito abaixo.
1.2 PROPOSTA DA PESQUISA
Esta pesquisa busca compreender possíveis métodos e propostas para que as políticas públicas tenham transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional.
No debate sobre equidade racial foram priorizadas as abordagens e análises relacionadas a população classificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como preta e parda de uma forma geral, sem fazer uma análise específica das populações indígenas ou outras populações não brancas. Apesar de extremamente relevantes para a discussão racial no Brasil, essa foi a escolha metodológica, devido às limitações dessa pesquisa, relacionadas especialmente ao prazo de execução. Dessa forma, foi adotado o termo população não branca
, uma vez que em diversos aspectos as políticas públicas abrangem os diversos grupos populacionais relacionados, contudo, é importante destacar que o olhar da pesquisa foi voltado à população classificada como preta e parda.
De forma semelhante, diversas poderiam ter sido as abordagens transversais e interseccionais, relacionadas à gênero e raça, mas que não puderam ser abordadas devido às limitações de tempo e abrangência da pesquisa, como: orientação sexual, identidade de gênero, regionalidade, urbano X rural, escolaridade, etc.
Nessa pesquisa também se optou por referenciar os autores e as autoras com nome e sobrenome, como uma forma de visibilizar, especialmente, as autoras mulheres, evitando que elas passem como desapercebidas
no texto.
Dentro dos limites desta pesquisa, foram utilizados alguns elementos teóricos e históricos, em especial: categorias e discussões trazidas pelos Estudos Decoloniais; breve debate sobre as características do racismo na América Latina e no Brasil; breve debate sobre patriarcado e a colonialidade de poder; conceitos e propostas da transversalidade de gênero e raça; e, levantamento das principais legislações relacionadas a equidade de gênero e equidade racial no Brasil.
Posteriormente, foi realizada uma breve análise de duas políticas públicas sob a ótica da equidade de gênero e equidade racial: a Política Nacional de Agricultura e Produção Orgânica (PNAPO) e o Plano de Nacional de Cultura (PNC). E, por fim, foram feitos alguns exercícios para pensar sugestões para essas políticas públicas, sob a ótica da transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional.
Dessa forma, o objetivo geral dessa pesquisa é compreender possíveis métodos e propostas para que as políticas públicas tenham transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional. E os objetivos específicos são: compreender algumas características relacionadas à promoção da equidade de gênero e equidade racial, a partir dos referenciais teóricos levantados; analisar duas políticas públicas sob a ótica da transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional; e, realizar alguns exercícios para pensar sugestões para essas políticas públicas, sob a ótica da transversalidade de gênero e raça, com uma abordagem interseccional.
2 JUSTIFICATIVA E ANTECEDENTES
Essa pesquisa surge num contexto de indagações sobre quais são as possibilidades de fomentar a equidade de gênero e racial em políticas públicas dos mais diversos segmentos.
Para discutir esses temas é necessário elencar um referencial teórico que dê conta minimamente de alguns aspectos relacionados as desigualdades de gênero e as desigualdades raciais. Os estudos decoloniais contribuem para essa discussão, trazendo o debate da perspectiva da colonialidade de poder, que compreende a colonialidade como uma categoria vigente e central para a estruturação das nações latino-americanas nos últimos 500 anos, e, especialmente, estruturante da própria modernidade, propondo um reordenamento e reposicionamento histórico, inclusive do capitalismo (Quintero; Figueira; Elizalde, 2019; Segato, 2014, 2016; Mignolo,