Da revolução do stand-up à TV Pirata: Comédia e sociedade no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra
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O ponto de partida é o stand-up norte-americano, pioneiro em exigir e conquistar um elemento fundamental para toda grande comédia desde então: liberdade total. Sem isso não haveria Monty Python, Saturday Night Live, Pasquim, Asdrúbal Trouxe o Trombone… nem TV Pirata.
Durante a trajetória você vai esbarrar em humoristas derrubando práticas autoritárias, movimentos sociais decisivos para novos tipos de comédia, formatos de programas beneficiados por ideologias políticas… sempre mostrando que a relação entre humor e sociedade é muito mais íntima e interessante do que parece.
Se você é ou pretende ser humorista, vai tirar preciosas lições das transformações do humor nesse período, fundamentais para qualquer um que queira se destacar na área. Se é um fã de comédia, certamente será surpreendido por histórias, exemplos, nomes e análises que ainda não conhecia.
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"Se não fosse o trabalho do André Boucinhas, a história por trás das câmeras da TV Pirata já estaria coberta de poeira. O programa durou até que "Pantanal" estreou na TV Manchete. Tomamos uma surra na audiência e ficou claro que a novidade estava na concorrência. Cada um seguiu seu caminho e muita coisa boa foi feita depois. Nos multiplicamos em muitos programas. A TV Pirata foi nosso Big Bang!"
Cláudio Paiva
Cartunista e roteirista
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Da revolução do stand-up à TV Pirata - André Boucinhas
Sumário
Prefácio
TV Pirata: inovador ou atrasado?
Liberdade
Estados Unidos (1950 a 1968)
Liberdade provisória
Brasil (1950 a 1964)
Irresponsabilidade
Estados Unidos e Inglaterra (1968 a 1980)
Luta
Brasil (1964 a 1979)
Conservadorismo
Estados Unidos e Inglaterra (1979 a 1990)
Livre e irresponsável
Brasil (1979 a 1988)
Epílogo
E depois?
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Sobre o autor
Texto de orelha
Ao meu pai,
o mais engraçado de todos
Prefácio
Os estudos sobre humor, de uma maneira geral, apresentam as teorias clássicas da comédia, começando lá no Aristóteles, e analisam uma delas em algum contexto específico, a partir de trechos dispersos de romances, crônicas, propagandas, charges. Nada de errado com esse caminho, mas sempre me incomodou a pouca atenção dada aos comediantes. Não que o humor seja monopólio dos comediantes. Mas deixar de incluir justamente os profissionais do ramo em uma análise do humor pode ser considerado, com justiça, um caso de omissão grave.
A questão me afeta por ser um fanático consumidor de comédias desde muito novo. Aos 10 anos eu já adorava Os Trapalhões e Jô Soares, mas fiquei fascinado pela TV Pirata. Até hoje me lembro do sentimento de revolta contra meu pai por me fazer perder um episódio (só deixei de ver a estreia e esse episódio, em toda a primeira fase do programa), porque fomos parados na estrada e ele estava com algum documento irregular. Mais ou menos na mesma época (pelo menos assim ficou registrado na minha memória), vi na televisão Em busca do cálice sagrado do Monty Python, que teve em mim o impacto de uma revelação. A partir daí, o panteão dos meus ídolos do humor só aumentou: Luis Fernando Veríssimo, Mel Brooks, Eddie Murphy, Pedro Cardoso, Homer Simpson (não sei se conta), Tina Fey, Larry David, Dave Chappelle... (estão na ordem em que apareceram na minha vida, caso interesse.)
Como me tornei historiador, comecei a olhar para a obra desses autores e intérpretes sob um ponto de vista histórico. Não se trata de ideia inédita, embora seja surpreendentemente rara. Resolvi aprofundar essa abordagem com a TV Pirata não só pelos laços afetivos, mas por ter sido o principal marco – e também quase a despedida – de um tipo de humor em uma fase de grande transformação do país.
A busca pelas suas influências me fez voltar primeiro ao humor inglês e norte-americano dos anos 70 e, em seguida, ao surgimento do stand-up moderno, nos anos 50. Ele iniciou uma longa luta por total liberdade de expressão na comédia, fundamental para a TV Pirata. Encontrei ali o meu ponto de partida. Mas por que alguns tipos de humor se desenvolveram primeiro num lugar e não no outro? Essa foi a minha pergunta por todo o livro.
Entender a relação entre comédia e contexto histórico se tornou meu objetivo declarado, mas sempre houve um outro, escondido e tão forte quanto ele (talvez até um tiquinho mais forte): o prazer de pesquisar as grandes inovações do humor na segunda metade do século XX. Se no fim das contas o livro conseguir transmitir uma pequena parte da satisfação que senti ao escrevê-lo, estou certo de que terá cumprido seu dever.
TV Pirata: inovador ou atrasado?
Naquela noite, Jocasta descobriu que teria de vender sua casa e Édipo propôs fazer um leilão para provar a lisura da empresa. Além disso, Ceres aconselhou Creonte a pedir desculpas a Jocasta, mas ele respondeu que jamais faria isso.¹ É bastante curioso ler a sinopse do episódio da novela Mandala, adaptação do mito de Édipo para o Brasil daquela época, embora mantendo (sei lá por quê) alguns nomes gregos. Os telespectadores de 1988 não pareceram se incomodar, a julgar pela audiência sempre acima dos 60% – naquele dia alcançou 67%.² De qualquer maneira, em 5 de abril a novela estava no ar havia seis meses e o estranhamento inicial tinha se dissipado. A surpresa ficou por conta do que veio em seguida.
Curioso notar que a comédia na televisão e o país pareciam caminhar em velocidades diferentes. Em termos políticos, os últimos dez anos haviam sido intensos. Revogação do AI-5 (1978), a Lei de Anistia (1979), eleições diretas para governador (1982), dívida externa encostando em 100 bilhões de dólares (1983), campanha e derrota das Diretas Já (1983/1984), morte do primeiro presidente civil em mais de 20 anos sem sequer tomar posse (1985), Plano Cruzado e seu fracasso (1986). Para completar, naquele exato momento se reunia a Assembleia Constituinte, que começara seus trabalhos em 1987 e estava a pleno vapor, suscitando debates políticos e ideológicos que repercutiam na sociedade e encontravam eco nos humoristas.
A comédia na televisão, em contrapartida, vivia um período morno, sem sobressaltos. Os grandes programas continuavam a lançar mão da fórmula que nascera no rádio, nos anos 1950: personagens fixos, caricatos, que terminavam longos quadros com um bordão. O estilo ganhara um sopro de renovação com a inclusão da sátira política no fim dos anos 1970, mas o recurso também se desgastara. O modelo reinava sozinho na TV por mais de dez anos, enquanto fora dela, como veremos, havia inovação, muita inovação, mas longe dos olhos do grande público. A atmosfera parecia propícia para uma revolução – que afinal se materializaria com o surgimento da TV Pirata.
A Rede Globo parecia temer que a ruptura fosse brusca demais. Circulavam rumores de que o novo programa era difícil
. Matérias do jornal O Globo, na semana da estreia, deixam evidente a preocupação. No domingo anterior, a Revista da TV dava mais destaque à TV Pirata do que às reestreias do Chico Anysio Show, Xou da Xuxa (para os mais novos, sempre vale lembrar que o programa se escrevia com X mesmo), Armação Ilimitada e Globo Repórter, e o texto começava assim: "pós-moderno, jovem, vanguardista, ousado ou detonador. A turma da Pirata agradece, mas recusa todos esses adjetivos. Engraçado e popular bastam para definir o novo programa de humor".³ Na terça-feira, dia 5, outra grande reportagem sobre o programa aparecia no caderno de cultura de O Globo, e novamente o cuidado de apresentar a atração como algo para todos os públicos. "Ninguém sabe o que poderá acontecer com o humor nacional a partir desta noite, quando entra no ar, depois da novela Mandala, a nova emissora de televisão do país – a ‘TV Pirata’. Ontem foi dia de gravação e, dos operários aos técnicos e elenco, ninguém duvidava do sucesso. Mas há quem tenha medo de programa elitista ou complicado. Como prometeram, porém, Claudio Paiva, que lidera o time de autores, e o diretor Guel Arraes, a TV Pirata vem mesmo com o propósito de divertir. Para não deixar dúvidas sobre seu caráter popular, a reportagem continuava:
O contrarregra Ilberson Jorge de Faria tem 32 anos, mora em Madureira e está acostumado a trabalhar em programas de humor. O último foi o do Chico Anysio. Ele está achando a TV Pirata tão engraçada que nem aguentou esperar a estreia para dividir essa alegria. Costuma levar pares dos textos para casa onde a mulher dá boas gargalhadas. Ilberson avisa que este ‘vai ser um programa diferente de tudo o que já foi feito em humor na TV brasileira’."⁴ Dá para notar que a Globo não sabia bem como vender a nova atração: diferente de tudo, embora não tão ousado; transformador do humor nacional, mas só um programa divertido. Certamente isso aumentou a expectativa para a estreia, porém manteve o público sem saber o que esperar.
A abertura deu o tom. Um casal de apresentadores de telejornal vaidosos e sérios se prepara para gravar quando um barco pirata invade o estúdio. (Sim, invade por terra mesmo.) Sua numerosa tripulação – com direito a gancho, perna de pau e tapa-olho – corre pelos corredores e enfrenta os funcionários até conseguir colocar uma fita para entrar no ar. Nesse clima de caos começou a TV Pirata.
O quadro inicial, Combate
, parodiava filmes da Guerra do Vietnã. Marco Nanini, Luiz Fernando Guimarães e Guilherme Karam correm por uma floresta (tosca) até que um deles leva um tiro dos malditos vietcongs
e pede pra chamar um médico. O capitão pergunta se ele tem convênio, mas o soldado lembra que o carnê está atrasado. Em seguida, usam o rádio para se comunicar com a base, repetindo o código de identificação – ursinho branco, mas com pequenas manchinhas nas costas
– e aproveitam o contato para pedir uma pizza com Coca-Cola. A base avisa que só tem Pepsi. As piadas continuam num ritmo acelerado e em todas as direções, até que a Hora do Brasil impede o contato com a base e fecha o esquete. Nas cenas do próximo capítulo
(que, obviamente, não apareceram no próximo capítulo) um soldado quer dar um beijo na boca do outro, mas revela que é seu pai – uma brincadeira com a novela Mandala. Comentam também sobre a invasão da Normandia, evento histórico sem nenhuma relação com a Guerra do Vietnã. Combate
funcionava bem como carta de intenções, pois não havia personagem principal, bordão ou preocupação lógica, e a história terminava sem qualquer conclusão. Durante os quarenta minutos seguintes, os telespectadores assistiram a esquetes sobre traição, investimentos financeiros, suicídio, assalto, futebol, churrascaria rodízio e muito mais. O programa encerrou com o ator Guilherme Karam fazendo uma imitação de José Sarney. O presidente explicava aos brasileiros e brasileiras que a solução para o país era um esquema de pirâmide.
Como o público reagiu? Segundo os atores Ney Latorraca e Claudia Raia, em entrevista comemorativa pelos 20 anos do programa, ninguém entendeu nada.⁵ Não deve ter sido bem assim, pois o sucesso foi imediato. Boni, diretor de programação da Globo, contou que assistiu ao primeiro episódio e teve certeza de que a atração acertara o alvo.⁶ No entanto o comentário dos dois atores marca o quanto a TV Pirata era diferente, especialmente por dois elementos inéditos nos outros programas brasileiros