Tramas e Trajetórias da Integração Regional Latino-Caribenha no Século XXI
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Tramas e Trajetórias da Integração Regional Latino-Caribenha no Século XXI - Karen dos Santos Honório
INTRODUÇÃO
Os processos integracionistas na América Latina e no Caribe no decorrer do tempo são importantes lentes pelas quais se compreendem as trajetórias políticas, econômicas, sociais e culturais de nossos países e sociedades em cada fase histórica. Os artigos que compõem este livro resultam de reflexões acerca dessa temática desenvolvidas por estudantes regulares e especiais na disciplina Integração regional na América Latina: debates e experiências
, no âmbito do PPGRI da Unila no ano de 2021.
Pensar os regionalismos latino-americanos e caribenhos a partir da Unila implica reposicionar as experiências existentes e os debates acadêmicos como ferramentas de construção de novos horizontes teóricos, práticas políticas, agendas temáticas e perspectivas, conectando-as com a missão fundadora da instituição: a integração regional pela dimensão educacional. As análises refletem sobre o que existe, efetivamente, e a potência do que pode vir (o devir) a existir. Ao trazer para o centro do debate a integração como meio de superação das estruturas desiguais de nossa região e como mecanismo de alcance de direitos, como o direito das mulheres, dos povos indígenas e do acesso a melhores condições de vida em áreas fronteiriças, por exemplo, os textos apresentados ampliam o escopo do lócus físico e político, da integração regional e dos atores envolvidos nesses processos.
Nesse sentido, os autores e as autoras da obra refletem em seus artigos análises e balanços sobre os rumos e trajetórias da integração regional na América Latina e no Caribe no século XXI. No capítulo A Estratégia de Montevidéu: entre a análise e reflexão
, Mayara Andrade e Renan Valiati apresentam e avaliam criticamente a evolução da agenda de direitos das mulheres desenvolvida no âmbito da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) e os resultados da Estratégia de Montevidéu.
Guilherme Rosa e Luis Gouvea, autores de A integração regional sul-americana a partir das fronteiras: a paradiplomacia das cidades de Tabatinga (AM) e São Borja (RS)
, abordam a dimensão subnacional da integração regional com base nas experiências de paradiplomacia em duas cidades fronteiriças brasileiras: Tabatinga (AM), fronteira com Leticia, no Peru, e São Borja (RS), fronteira com Santo Tomé, na Argentina.
Qual a relação entre o desempenho da agenda comercial e a institucionalização do Mercosul no período de 2001 a 2020? Tendo tal questão como ponto de partida, Andriele Nascimento, Emily Campos e Pablo Senra analisam, no capítulo Mercosur bajo um doble enfoque: la relación entre comercio y institucionalización (2001-2020)
, a conexão entre a evolução comercial e os avanços/retrocessos dos processos de institucionalização intrabloco.
Emanuely Gestal, no capítulo O internacionalismo cubano presente na América Latina e no Caribe na área da saúde
, trata de como o internacionalismo cubano e a diplomacia de solidariedade aos povos, fundamentos centrais da atuação externa e da diplomacia do país, contribuíram para a integração regional, especificamente na temática da saúde no contexto da pandemia de Covid-19.
No capítulo intitulado A LVIII cúpula de chefes de Estado do Mercosul e a crise do regionalismo pós-hegemônico: reflexões sobre os rumos da integração regional
, Raissa Pessotti e Gabriela Chioquetta fazem um balanço do atual cenário da integração mercosulina no contexto de ascensão política de presidentes de direita e centro-direita.
A partir da contribuição das abordagens decoloniais, Danielli Alves, Taciano Duarte e William Cardoso discorrem, no capítulo As resistências das populações originárias e dos movimentos campesinos pela posse do território como alternativa de integração na América Latina
, sobre como os movimentos sociais de luta pela terra e dos direitos dos povos indígenas são importantes atores para propostas de regionalismos emancipatórios na América Latina.
Em suma, os artigos que seguem levam os/as leitores/as por caminhos que questionam, inspiram e os instigam a conhecer mais sobre a realidade latino-americana e caribenha a partir de horizontes coletivos (regionais) e, portanto, futuros compartilhados.
1
A ESTRATÉGIA DE MONTEVIDÉU: ENTRE A ANÁLISE E A REFLEXÃO
Mayara Amaral de Andrade
Renan Ayrton Valiati
INTRODUÇÃO
Há pouco mais de quatro décadas é construída a Agenda Regional de Gênero, inicialmente entre 1977 e 1997, por meio da Conferência Regional sobre a Integração da Mulher no Desenvolvimento Econômico, tornando-se, posteriormente, a Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina. Essa agenda é um projeto que compreende os compromissos dos governos em prol dos direitos e da autonomia das mulheres, bem como se propõe aberta ao futuro, sendo capaz de incorporar, de maneira dinâmica, novos compromissos e obrigações (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017), e deve ter importância salientada, uma vez que é o único programa com esse objetivo e que se mantém há tanto tempo ininterruptamente. Durante as 14 conferências já realizadas, as negociações resultaram em medidas regionais e políticas públicas nacionais em prol da autonomia das mulheres, a busca pela igualdade de gênero e desenvolvimento dos países da região (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017).
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) constitui a secretaria técnica da Conferência Regional. A comissão teve papel fundamental na redação da Estratégia de Montevidéu, trabalho feito com base em uma revisão sistemática do que fora acordado no decorrer desse tempo (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017). Essa Estratégia é resultado da conjugação da Agenda Regional de Gênero e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Estratégia de Montevidéu se baseia em dez eixos, os quais são: 1) marco normativo; 2) institucionalidade; 3) participação; 4) construção e fortalecimento de capacidades; 5) financiamento; 6) comunicação; 7) tecnologia; 8) cooperação; 9) sistemas de informação; e 10) monitoramento, avaliação e rendimento de contas (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017). Esses elementos constituem instrumentos para o monitoramento do avanço na garantia dos direitos e autonomia das mulheres por meio da implementação de políticas públicas.
A conjugação da Agenda de Gênero na América Latina e Caribe à Agenda 2030 decorre da consciência de que o desenvolvimento dos países se dá pela inserção da mulher na atividade produtiva, não ficando mais restrita, portanto, ao trabalho não remunerado no âmbito doméstico, bem como considera a urgência de ser pautada a questão do meio ambiente nas discussões de desenvolvimento, de maneira a possibilitar a sobrevivência humana no planeta (NAÇÕES UNIDAS, 2017). Portanto, não se considera possível um desenvolvimento sem igualdade de gênero, autonomia e plenitude de Direitos Humanos de mulheres, assim como não é possível esse avanço sem que se tenha um desenvolvimento sustentável. A Estratégia se adequa, por sua vez, às distintas realidades de países e mulheres da região. Em síntese, apenas integrar as mulheres deixa de ser o objetivo final, devendo ocorrer concomitantemente ao desenvolvimento sustentável (LÓPEZ; MOLINA; CALLE, 2018).
Um dos atributos que o documento defende como necessário para o estabelecimento de padrões de qualidade para que seja assegurada a não discriminação por conta de gênero (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017) é a interseccionalidade aliada à ideia de interculturalidade. Portanto, não se considera a exclusão de qualquer mulher dos países-membros; resguarda-se, porém, a integralidade e o pleno acesso a direitos de mulheres independentemente de cor, classe ou origem étnica.
Em vista dessa breve introdução sobre a ação cepalina para o fomento ao desenvolvimento e o pleno acesso aos Direitos Humanos de mulheres e meninas na América Latina e no Caribe, o presente artigo analisa a Estratégia de Montevidéu, construída em conjunto com a necessária discussão sobre desenvolvimento sustentável, à guisa de compreender se o avanço do neoconservadorismo nos últimos anos, abordado no documento, resultou em impactos na desaceleração da implementação de políticas da Agenda Regional de Gênero e da Agenda 2030. Ainda nesse sentido, busca-se averiguar quais são os resultados concretos, já observáveis em 40 anos de conferências, do documento resultante da união entre a Agenda Regional de Gênero e a Agenda 2030.
Para tanto, foram utilizados dados qualitativos de uma análise documental da Estratégia de Montevidéu, que compreende consensos e planos debatidos e adotados durante as Conferências Regionais sobre a Mulher da América Latina e do Caribe realizadas nas quatro décadas. Além disso, foi feito o levantamento histórico da construção e sustentação da conferência. Dessa forma, os objetivos foram: analisar o contexto histórico da posição da mulher na integração regional; elucidar a construção e as bases da Estratégia a partir da Agenda Regional de Gênero; explicitar o neoconservadorismo como sendo uma importante ameaça aos avanços já conquistados na região e, por fim, averiguar o transbordamento da Estratégia para os países da América Latina e do Caribe.
MULHERES E INTEGRAÇÃO
Segundo Fraser (2007), o sistema desigual de gênero apresenta três dimensões relativamente autônomas, que são: a dimensão econômica da redistribuição, a dimensão cultural do reconhecimento e a dimensão política da representação, as quais estão ligadas a uma noção geral de justiça por paridade de participação. A partir do século XVIII, uma pequena inserção de ideias modernas na questão da organização das relações de gênero estimulou e nutriu demandas de mulheres por igualdade, acesso aos espaços públicos, às ferramentas coletivas de decisão e aos bens sociais. Não se limitando ao mero acesso ao espaço público, também há movimentos pelo enfraquecimento de limites entre o espaço público e o privado. Nesse contexto, buscam transformar a estrutura de poder do setor privado, de um modelo de poder hierárquico para um poder participativo e igualitário, visando eliminar disparidades de gênero que dificultam a generalização dos direitos das mulheres.
Um marco dessa moderna inserção da questão de gênero nos debates público e privado na região da América Latina e do Caribe se deu em 1928, quando mulheres de todas as nações dessa região foram a Havana com o intuito de exigir participação na Sexta Conferência Internacional Americana e pleitear a ratificação de Tratado sobre Igualdade de Direitos. Apesar de o tratado em questão não ter sido ratificado, nesse momento foi criada a Comissão Interamericana de Mulheres (CIM)¹, a qual permanece vigente atualmente, sendo o primeiro órgão intergovernamental criado com o propósito de assegurar o reconhecimento dos direitos civis e políticos das mulheres do mundo.
Nesse contexto, em 1977, foi realizada em Havana a primeira Conferência Regional sobre a Integração da Mulher ao Desenvolvimento Econômico e Social da América Latina. Essa conferência passou a ser convocada regularmente desde então, com intervalo de três anos em média, visando identificar a situação regional e sub-regional quanto à autonomia e ao exercício dos direitos das mulheres. Entre outros, os objetivos eram: zelar pela equidade de gênero nos países da região; difundir recomendações quanto a políticas públicas de igualdade de gênero; avaliar atividades realizadas no âmbito dos acordos regionais e internacionais; e promover fóruns para debate sobre o tema da igualdade de gênero (NAÇÕES UNIDAS; CEPAL, 2017).
CONTEXTO HISTÓRICO DAS CONFERÊNCIAS REGIONAIS SOBRE A MULHER NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE
A Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe é um órgão subsidiário da Cepal, sendo esse o principal fórum intergovernamental que trata dos direitos da mulher e da igualdade de gênero na região. Para a organização, recebe o apoio da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento da Mulher (ONU-Mulheres). Foram realizadas, até o momento, 14 edições da conferência, sendo os principais temas examinados nessas reuniões os avanços e os desafios relacionados à autonomia e à igualdade das mulheres. A agenda tem inúmeros elementos, que visam ao aprofundamento e à abrangência sobre a temática. O quadro a seguir sintetiza os principais avanços e documentos resultantes das Conferências Regionais.
Quadro 1 – Principais marcos e avanços das Conferências Regionais
Fonte: Cepal (2017)
Todas essas conferências inferem avanços no fortalecimento de mecanismos nacionais de desenvolvimento da mulher com forte impulso na adoção de planos de promoção da igualdade de oportunidades, ações e medidas para erradicar a pobreza e aumentar a participação das mulheres nos processos de tomada de decisão e em posições de poder. Visam, ainda, à implementação de políticas públicas de inserção das mulheres no desenvolvimento econômico, proteção social e ambiental. Esses compromissos alcançados até o momento são o que tem sido chamado de Agenda Regional de Gênero (LÓPEZ; MOLLINA; CALLE, 2018).
Ausência da temática na empiria dos processos e no debate acadêmico
São variados e amplos os temas presentes nos acordos das Conferências Regionais, abordando assuntos setoriais e multissetoriais, tais como: educação, mercado de trabalho, saúde, violência, ciências e novas tecnologias, pobreza e proteção social, meios de comunicação e padrões culturais, meio ambiente e recursos naturais, migração, recursos produtivos, entre outros. Sob a ótica da Agenda Regional de Gênero, esses temas são apresentados em uma proposta de máximos entre os diferentes tipos de direitos que devem ser garantidos, particularmente o direito a uma vida livre de violência e discriminação, direitos civis e políticos, direitos coletivos e ambientais, direitos sexuais e reprodutivos, direitos econômicos, sociais e culturais. Esses direitos, articulados com liberdades, traduzem a autonomia que se apela às mulheres, assim como as interdependências delas, indicando a completude dos processos de transformação necessários para que se alcance a igualdade de gênero e o desenvolvimento sustentável (CEPAL, 2016a).
A análise dos acordos derivados das Conferências Regionais sobre a Mulher mostra que cada consenso, plano ou programa reconhece o valor programático e político dos anteriores, trazendo novas linguagens, enfoques e problemáticas emergentes que não eram consideradas anteriormente. Ainda, enquadram-se nos programas de ação das Nações Unidas sobre a mulher, população e desenvolvimento, Direitos Humanos, desenvolvimento social e meio ambiente realizados nas últimas quatro décadas. Apesar de todos esses avanços, existe uma ausência da temática nos processos práticos, tanto na esfera pública quanto na privada. Ou seja, grandes são os avanços no plano da elaboração de metas e projetos, mas poucos são os resultados práticos em medidas que efetivem a integração das mulheres e que acabem com a discriminação de gênero.
ESTRATÉGIA DE MONTEVIDÉU
A construção da Agenda e seus protagonistas
A XVII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, ocorrida em 2013, em Santo Domingo, foi o marco para o início da criação de um roteiro para a implementação do consenso e de outros acordos regionais (NAÇÕES UNIDAS, 2017). Ministras e altas autoridades para o avanço das mulheres reconheceram a necessidade e debateram a ideia acerca desse projeto na 52ª Reunião da Mesa Diretora da Conferência, em 2015. No ano seguinte, em nova edição da reunião, a formulação da Estratégia foi acordada com o propósito de serem implementados os compromissos estabelecidos da Agenda Regional de Gênero para a América Latina e o Caribe pelos governos da região, aliada à recém-aprovada² Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Nesse sentido, na XVIII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2016, constitui-se a Estratégia de Montevidéu. A Cepal representa a secretaria técnica da Conferência Regional. Considerando as quatro décadas das rodadas de negociações, a Cepal foi fundamental elaborando a Estratégia com base em uma revisão sistemática do que fora acordado durante todas as conferências anteriores (NAÇÕES UNIDAS, 2017). Sendo a Estratégia um roteiro para a Agenda Regional de Gênero direcionado aos países da América Latina e do Caribe, a utilização dela se dá como um instrumento político-técnico para o fortalecimento e a aplicabilidade de políticas públicas, bem como reposiciona o papel do Estado com relação à garantia dos Direitos Humanos de mulheres. Essa preocupação é considerada o eixo transversal na constituição de