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A Sonata de Deus e o diabolus:: música, cinema e pensamento modernista
A Sonata de Deus e o diabolus:: música, cinema e pensamento modernista
A Sonata de Deus e o diabolus:: música, cinema e pensamento modernista
Ebook262 pages3 hours

A Sonata de Deus e o diabolus:: música, cinema e pensamento modernista

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Analisando os pontos de contato entre a música de Villa-Lobos e o cinema de Glauber Rocha, o autor demonstra que nos entraves e dilemas colocados pelos filmes militantes do cineasta ressoam os problemas levantados pelos modernistas de 1922, tanto quanto na obra do grande maestro. Discutindo os idiomas musicais modal e tonal, formas típicas de sociedades distintas, mostra que na história brasileira, bastante chegada ao acomodamento dos contrários, tais idiomas convivem na forma de grande música, mascarando os conflitos de suas origens.
LanguagePortuguês
PublisherEDUEL
Release dateFeb 1, 2023
ISBN9786589814696
A Sonata de Deus e o diabolus:: música, cinema e pensamento modernista

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    A Sonata de Deus e o diabolus: - André Ricardo Siqueira

    Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos

    Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

    Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

    Elaborada pela Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich – CRB 9/1250

    S618s Siqueira, André Ricardo.

    A sonata de Deus e o diabolus [livro eletrônico]: música, cinema e pensamento modernista / André Ricardo Siqueira. --

    Londrina : Eduel, 2022.

    1 livro digital

    Inclui bibliografia.

    Disponível em www.eduel.br

    ISBN 978-65-89814-69-6

    1. Rocha, Glauber, 1939-1981. 2. Villa-Lobos, Heitor, 1887-1959. 3. Andrade, Mário de, 1893-1945. 4. Semana de Arte Moderna. 5. Nacionalismo e cinema. 6. Nacionalismo na música. 7. Música de cinema. 8. Pensamento social. I. Título.

    CDU 3:78

    Enviado em: Recebido em:

    Parecer 1 18/01/2022 24/01/2022

    Parecer 2 14/03/2022 12/05/2022

    Aprovação pelo Conselho Editorial em: 09/08/2022

    Direitos reservados à

    Editora da Universidade Estadual de Londrina

    Campus Universitário

    Caixa Postal 10.011

    86057-970 Londrina – PR

    Fone/Fax: 43 3371 4673

    e-mail: eduel@uel.br

    www.eduel.com.br

    SUMÁRIO

    AGRADECIMENTOS

    PREFÁCIO

    APRESENTAÇÃO

    PRIMEIRA PARTE

    CONTRAPONTO I

    SEGUNDA PARTE

    TERCEIRA PARTE

    CONTRAPONTO II

    Considerações finais

    Referências

    As palavras do poeta,

    justamente por serem palavras,

    são suas e alheias.

    Por um lado,

    são históricas:

    pertencem a um povo e a um momento

    da fala desse povo:

    são algo datável.

    Por outro lado,

    são anteriores a toda data:

    são um começo absoluto.

    (Octávio Paz)

    AGRADECIMENTOS

    À Daniele, ao Pedro e ao Danilo Siqueira, pelo suporte amoroso de sempre.

    Aos meus pais, João Batista Siqueira (in memoriam) e Maria Albonette Siqueira.

    À Célia Tolentino e ao Luca Bernar, amigos queridos e fontes de muita inspiração.

    Ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho (UNESP – Marília) e a todos os seus docentes pelo suporte oferecido à realização deste trabalho.

    Aos amigos queridos que estiveram por perto enquanto esta pesquisa era gestada.

    Este livro é dedicado ao querido e saudoso amigo, o dramaturgo

    João das Neves (in memoriam).

    PREFÁCIO

    A lição das artes em tempos de transe

    A Sonata de Deus e o diabolus: música, cinema e pensamento modernista nasce como tese de doutorado junto ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp – Campus de Marília. No entanto, já nasceu com cara de livro, como dizemos nos corredores da universidade. Quer dizer, veio ao mundo com a profundidade de uma pesquisa acadêmica, mas com a qualidade rara de poder ser lido por leitores de diferentes áreas ou simplesmente interessados pelo cinema de Glauber Rocha, a música de Villa-Lobos e as profícuas pesquisas musicais de Mário de Andrade.

    Partindo da perspectiva crítica de que o debate cultural brasileiro da primeira metade do século XX digladiou-se permanentemente entre rural versus urbano, moderno versus arcaico, erudito versus popular, propõe uma correspondência desses pares de oposição, como diz Antonio Candido, em relação aos idiomas musicais divididos em modal e tonal. E com conhecimento de causa, pois músico e compositor de formação e ação, expõe para o leitor que o idioma modal é aquele originário das sociedades coletivistas, da racionalidade anterior ao iluminismo, onde vige o pensamento mitológico e mágico. O seu contrário é o idioma tonal, típico da racionalidade ocidental, particularmente europeia, posterior ao Iluminismo e contemporânea ao surgimento do capitalismo.

    E tomando o cinema de Glauber Rocha e a música de Villa-Lobos nele presente, o autor examina a sociedade brasileira e o pensamento social a partir das próprias obras. Ou, traduzindo de outro modo, neste livro se discute os temas, os assuntos e os mecanismos de linguagem utilizados para dar vida artística às questões que o cineasta e o compositor se dispuseram a enfrentar. Lembremos que Villa-Lobos buscava uma música nacionalista de respiro internacional e que Glauber Rocha queria um cinema nacional-popular que falasse ao mundo. O autor vai constatar que o terreno social a partir do qual falam é complexo e intrincado e nem sempre a flecha disparada atinge o alvo desejado. Assim também acontece com as artes em questão, segundo a fina análise desenvolvida aqui: ainda que o artista engajado politicamente force a narrativa, a matéria resiste. Parafraseando Guimarães Rosa, citado não por acaso pelo autor, apesar da corrente, o artista passa o rio a nado, insiste e passa, mas vai dar na outra margem num ponto bem diverso do que pensou em chegar.

    De Rocha muito se falou, até porque ele próprio não se furtava a teorizar sobre os objetivos do seu cinema e do movimento que integrava. Elaborou o manifesto A Estética da Fome para explicar aos críticos europeus a necessidade de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, a pobreza técnica do artista latino-americano e a razão da sua fúria discursiva. Mas é quando o cineasta de Deus e o Diabo resgata a música erudita de Villa-Lobos para dentro da sua estética da fome, incorporando-a ao filme com o qual pretendia contar para o mundo com mínimos recursos as verdades do Brasil mais recôndito, que nos perguntamos: por que usar a música grandiloquente de Villa-Lobos para comentar a miséria do vaqueiro Manuel e sua incapacidade de tomar nas mãos o próprio destino? A obra crítica, já clássica, de Ismail Xavier, publicada em Sertão-Mar (1983) nos disse que a música de Villa-Lobos é um segundo narrador da obra de Rocha: a forma sinfônica ressaltaria, exaltaria, daria tônus à matéria sertaneja resistente às transformações. Tal grandiloquência parece dizer: colhe a semente da rebeldia, recolhe a ira que sustenta a sua revolta e mude a história. O vaqueiro Manuel pode ser lido como uma representação do povo brasileiro, assim como o beato e o cangaceiro, numa alegoria endereçada à história nacional e às páginas trágicas que acompanharam os massacres aos movimentos messiânicos e ao cangaço.

    E corria o ano de 1963 quando Rocha filmou Deus e o Diabo na terra do Sol, essa obra prima. Pretendeu exaltar e elogiar as rebeldias populares em si mesmas com a música erudita de Villa-Lobos, não deixou de dar espaço para o outro narrador, o aedo popular, na figura do cego cantador-de-feira, que conta a história a partir de outro ponto de vista, alertando que desde Antônio Conselheiro o sertão está para virar mar e o mar virar sertão. Mas a profecia não se realiza senão como catástrofe como aconteceu com Canudos e Pedra Bonita. Aquilo que o intelectual do cinema busca é a ira santa transformadora com os poderes na mão do povo e não dos mandatários. É profecia, é terreno mítico, na concretude dos fatos o resultado é bem outro.

    A comunidade sertaneja que dá força e beleza para o terreno heroico está no mundo da honra, da dependência, dos compadrios e da vingança, não da consciência de classe. Rocha queria a revolução social no horizonte e por isso insiste em discordar da voz popular que conhece o chão que pisa. É com a música de Villa-Lobos, fazendo as vezes de narrador intelectual que ele, como parte da sua geração, insiste e concede à rebeldia o status de ação revolucionária. No entanto, a flecha não atinge o alvo também na música, dirá André Siqueira, avançando um tento às análises vigentes. O terreno social de Villa-Lobos é o de Glauber Rocha. Essa primeira metade de século XX no Brasil impõe-se na obra do cineasta como na do compositor. E nesse aspecto reside a novidade fundamental desse livro: a sociedade a meio caminho entre superação e permanência, comparece na forma das obras, tanto no cinema como na música, aspecto que demonstrará com análise detalhada para o leitor.

    É sempre interessante lembrar que os artistas do Movimento Modernista, assim como os cineastas do Cinema Novo, propuseram uma volta ao povo para fundamentar uma estética que pudesse ser chamada de nacional. Mas essa mesma volta exigia um exercício de compreensão dos entraves que se impunham ao desenvolvimento nacional, leia-se a ausência de uma economia industrial e moderna no primeiro movimento - modernista, a superação do atraso com vistas à revolução, no segundo movimento - cinemanovista. Assim como Macunaíma, o personagem modernista, por excelência, vira estrela ou vai para o lugar mítico depois de sua heroica jornada; o vaqueiro Manuel corre para um mar aberto que invade o sertão por obra do cinema. Ambos vão para um não lugar, para falar com o autor. A realidade nacional iníqua e inaceitável carece do diabolus, aquele que em música opera a dissonância, a ruptura, nesse eterno arranjo de contrários que é a sociedade brasileira. O diabolus parece estar sempre à espreita, mas preso no redemoinho:

    "O canto indígena, tratado por Villa com o aparato sinfônico, desabrocha na corrida para o mar com um assombro típico de uma grande obra de arte, porém, qual é o sinal que a linguagem musical nos dá? O de que no Brasil, ou neste caso, no sertão de Glauber, o modal, ou seja, as tradições seculares, os hábitos da tradição oral e suas crenças; estão a conviver e a se digladiar com o moderno em surgimento e a racionalidade e a transparência que este traz consigo. A alternância entre estes estados que vinha ocorrendo até então cai por terra e o que ouvimos é o idioma modal, até então relacionado ao cantador nordestino, vestido pela roupagem sinfônica".

    Serão precisos mais dois filmes para que o cineasta revisse o projeto malogrado na história com o Golpe de 1964 repondo os conservadorismos políticos, inclusive com a passividade popular: os impasses da sociedade brasileira renderiam Terra em Transe e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Há o país sempre imaginado e aquele que se manifesta na sua concretude, não sem assombro, como acontece quando escrevo esse prefácio, aspectos que a nossa arte tem indicado para além das nossas análises acadêmicas mais elaboradas. Entre as conclusões dessa pesquisa, lemos:

    "Essa indefinição entre moderno e rural, tonal e modal, permeia os três filmes e sugere que a indefinição de Manuel em Deus e o Diabo na Terra do Sol se conecta à melancolia e desesperança de Antônio das Mortes em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. O intermezzo de Terra em Transe recoloca o intelectual, sugerido pelo Villa-Lobos do primeiro filme, na pele do intelectual que ainda transitava, como que perdido e em adaptação, entre os terrenos sociais, movediços, do período".

    O período do qual o autor fala é 1968, ano do último filme da trilogia glauberiana. Ruralismos e ruralidades, patriarcalismos, mandonismos e autoritarismos ressurgem em tempos e formas insuspeitas, no Brasil e alhures, é importante que se diga, e a arte e a cultura, como vimos, e se pode ler aqui nas minúcias, não passam incólumes.

    Quando os artistas de 1922 tomaram a questão e sonharam um país moderno, mais do que construírem uma modernidade, estavam recusando o provincialismo, o descompasso cultural com a Europa. O marco dessa imaginação de país foi a Semana de Arte Moderna de 1922, mas provavelmente nela teria morrido, como evento pífio de um grupo de bacanas, se não houvessem desdobramentos duradouros em dois níveis fundamentais: em obras de arte, pintura, música, artes plásticas, teatro e, sobretudo, literatura, e se não estivesse em diálogo com questões latentes na sociedade brasileira que em breve tempo passaria por uma crise econômica profunda, a do café com as perdas na Bolsa de Nova York, em 1929. Os magnatas do café, com visão cosmopolita, queriam São Paulo como Paris. Mas quando as burras ficaram vazias, os artistas precisaram buscar caminhos ou novas formas de imaginação para prosseguirem suas pesquisas sem a carteira do seu mais famoso mecenas, Paulo Prado. E prosseguiram, inclusive com pesquisas mais profundas e ampliadas em relação ao imenso e diverso país do qual haviam ouvido falar – era preciso ousar conhecer Minas Gerais, o Nordeste, o Amazonas, para além de Paris. E dentro do movimento se diversificaram e compuseram um mosaico de modernidades artísticas com outros desdobramentos já muito discutidos.

    Se no campo do modernismo brasileiro os grupos se dividem e subdividem, há os que aderem ao pensamento conservador e os que aderem ao governo conservador sem ser conservador em arte. Essa intersecção às vezes foi geradora, produtiva e teve como questão os avanços nacionais. Os que defendiam o purismo foram ficando pelos caminhos, ainda que em arte algo tenha sido dito.

    O cineasta, filmando e escrevendo quatro décadas mais tarde, retoma o diálogo com os modernistas de primeira e segunda geração. Sugere, com ousadia, que mais do que reformar o verso, pretende uma arte transformadora: empunhar a câmera como quem empunha uma arma. O tempo em curso se encarregaria de dizer para que lado apontaria o cano do fuzil, esse fantasma que insiste em ressurgir ameaçando o lento avanço da modernidade e seu projeto de liberdade e igualitarismo. Nem parece que foi ontem:

    Glauber Rocha expõe à crítica o modus operandi da sociedade brasileira do período, não só em relação à política, mas, também, a expõe sobre o quanto a produção artística brasileira se fez em um terreno de difícil perspectiva na qual a arte desinteressada, nos dizeres de Mário de Andrade, está bem mais vinculada à modernização que conserva, que avança e recua, que se ilumina de razão e se oculta na penumbra do pensamento mítico, mágico, enfim, modal.

    Nesse ano do centenário da Semana de Arte Moderna e bicentenário da Independência do Brasil, a cena que assistimos, em moto perpétuo, obsessivamente, é aquela que finaliza o filme que André Siqueira definiu como um intermezzo dessa sonata fílmica glauberiana, isto é, Terra em Transe, onde vemos o discurso enlouquecido do ditador Diaz, afirmando as bases do seu projeto de país:

    "O meu princípio é a pureza de caráter!

    A pátria é intocável!

    A família é sagrada!!

    ...

    Aprenderão! Aprenderão! Dominarei esta terra, botarei estas histéricas tradições em ordem! Pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!"

    O filme de Rocha está mais do que nunca na ordem do dia. O grande ator Paulo Autran, na pele de Diaz, o ditador escancarado, com a bandeira e a cruz nas mãos era um retrato exacerbado e alegórico da realidade brasileira, ainda não totalmente radicalizada. Se a história se repete como farsa, vimos a paródia desse personagem enlouquecido e as suas consequências trágicas. A cruz e a bandeira, Deus e o Diabo no meio do redemoinho. Os mesmos ícones da era de chumbo, num transe e trânsito que assistiu à urbanização, aos anos do milagre econômico e à subsequente pobreza das periferias das cidades, à miséria da fome de horizontes e cultura. Quinze anos de democracia deram um avanço cultural imenso, o país estava inteligente em 1964, dizia Roberto Schwarz. Nossa retomada democrática vinha trazendo a fala de setores recém organizados, com pautas novas e novíssimas, antes dessa investida retrógrada com reminiscências passadistas e novas formas de fascismos – que encontra, infelizmente, eco no mundo ocidental e não só. Há de passar a noite profunda, diz a personagem de Anna Magnani em Roma, cidade aberta, de Rossellini, filme de 1945, que traz na forma e no tema o ardor das feridas abertas pela Segunda Guerra Mundial no coração da cidade eterna.

    Para finalizar, voltando ao fato de que esse livro resulta de uma tese acadêmica, é interessante dizer mais um aspecto que o distingue, o da transdisciplinaridade. Por anos, dentro do curso de Pós-graduação, debatemos a questão da transdisciplinaridade, dado que um Curso de Ciências Sociais carrega consigo pela própria natureza. No entanto, com a exigência de uma formação em tempos cada vez mais rápidos, essa capacidade de transitar entre as disciplinas econômicas, sociológicas, políticas, cultural de modo integrado e com conhecimento de causa é cada vez mais rara. Neste livro, temos um exemplo notável de transdisciplinaridade no âmbito das relações entre arte e sociedade, tomando-a em perspectiva histórica. Em causa está a sociedade brasileira e seus dilemas em relação aos caminhos do desenvolvimento social, da construção de sua modernidade e a arte mostrando que ainda é nossa grande forma de compreensão de nós mesmos.

    Por último, gostaria de notar a forma do próprio trabalho de André Siqueira, dividindo seus capítulos como quem escrevesse uma sonata, tal como enuncia o título dessa obra: num momento expõe seus argumentos com base nas críticas e teorias já conhecidas, é nos contrapontos que aprofunda as questões que levanta. Na veste de leitora privilegiada e não mais orientadora, me ocorre dizer, como ao final de um excelente concerto: bravo!

    Célia Tolentino

    Portogruaro, setembro de 2022

    APRESENTAÇÃO

    Nossa primeira questão sobre a música no cinema brasileiro surgiu a partir da discussão sobre os filmes políticos da década de 1960 e a apropriação que os cineastas faziam da música, do ruído e do silêncio com intenção narrativa. Interessava-nos, particularmente, a forma como estes cineastas engajados no projeto de um cinema nacional e nacionalista, além de político e crítico da realidade brasileira, apropriavam-se da música para compor este projeto de uma nova linguagem para a sétima arte nacional. Os filmes de Glauber Rocha, considerados pela crítica como as mais relevantes contribuições para o debate político cinematográfico da época, chamaram-nos a atenção por utilizarem a música não só como caracterização de personagens, narração ou ambientação. Enquanto a música entrava como elemento de fundo na construção da temática nacional na maioria das obras, percebemos que a música atuava e influenciava de maneira privilegiada a forma dos filmes do cineasta. Dessa observação, apareceu nossa hipótese de que a música, tal como estava colocada nos filmes de Glauber, seria determinante da própria forma do filme, como uma estrutura que constituía uma espécie de mapa de sua própria gênese, interferindo na montagem e, por sua vez, no sentido político das narrativas.

    A partir deste ponto, iniciamos uma busca pelas relações de similaridade existentes entre a montagem desses filmes e as músicas neles contidas e descobrimos que, mais do que uma simples inspiração ao cineasta, as músicas presentes nestas obras encerram em si (nas suas características nacionalistas, rurais ou urbanas, nas relações entre os idiomas modal e tonal) uma importante parcela do substrato do pensamento social brasileiro do século XX. Com sua música tomando parte determinante em duas das produções aqui analisadas, a figura de Heitor Villa-Lobos surge como uma importante conexão entre o pensamento social da primeira metade do século XX, particularmente incluindo a Semana de Arte Moderna de 1922 e suas importantes reverberações nacionalistas nas décadas posteriores. Em suas aproximações com as questões nacionais e a busca de uma identidade nacional, Villa-Lobos representa aqui uma espécie de âncora, um pilar de sustentação e, poderíamos dizer, um arquétipo no que diz respeito ao tratamento erudito, realizado pelo intelectual, na utilização da matéria popular.

    Antonio Candido escreve que o debate cultural no Brasil da primeira metade do Século XX sempre aparece na forma de pares em oposição: rural versus urbano, moderno versus arcaico, erudito versus popular, assim como as questões relativas aos idiomas modal (racionalidade anterior ao iluminismo, pensamento mitológico, mágico) versus tonal (racionalidade europeia posterior ao iluminismo, tipicamente ocidental, contemporânea ao surgimento do capitalismo). Tais aspectos estão presentes e são questões suscitadas pelos filmes de Glauber Rocha. Nesse sentido, optamos por analisar os filmes escolhidos colocando-os em interlocução e contraponto com as questões que levantam, utilizamos um arcabouço conceitual que pudesse contribuir para compreendermos os termos em níveis de oposição, mas que, como veremos, muitas vezes se sobrepõem gerando mais de um sentido.

    Elemento essencial que permeia toda a nossa discussão é a questão da modernização conservadora, presente tanto na música como nas relações imagem-som, e que entendemos como estrutural no pensamento social brasileiro durante todo o nosso século XX. Nossa tese é a de que é por essa via que o cineasta resgata as questões, os debates e os problemas do nacionalismo cultural colocados pelos modernistas da Semana de 1922. Questões cuja consciência era ainda incipiente na primeira metade do século são retomadas não apenas pelo enredo, mas pela música, remetendo-se às décadas de 1920, 30 e 40, sempre trazendo à tona as oposições citadas acima, demonstrando que o problema existente no processo de modernizar e conservar é amplo e apresenta-se

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