Princípio do infinito
By Luiz Antonio Simas and Diogo Cunha
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Eu o conheci numa reunião noturna. Estávamos no adequado fundo de um enorme quintal. O motivo do encontro era a mazela eterna de nossos direitos autorais. Lá pelas tantas, muita bebida rolando, duas grandes figuras do samba se estranharam e a coisa caminhou pra sair porrada. Foi quando Luiz Carlos da vila se agigantou, falou sobre o samba, lembrou porque estávamos ali e, quando todos dançávamos conforme a música de suas palavras, soltou uma sonora gargalhada.
Senti no corpo e na alma a força daquele sambista insuperável, que havia magnetizado com sua incrível inteligência todos nós, impedindo uma briga que deixaria triste cicatriz na história do samba.
Ficamos amigos nessa noite. Sempre nos encontrávamos para conversas intermináveis na casa do Moacyr Luz, e daí veio a profunda ligação entre nós, continuada na parceria.
O livro de Luiz Antonio Simas e Diogo Cunha nos ajuda com a saudade e nos restitui a esperança no valor do canto afrobrasileiro em época de latidos. Posso ouvir nas palavras dos autores os tons suaves embebidos em mel e curare, o relâmpago se transformando em rio, a lágrima e a lama, o chão batido por pés descalços virando cachoeira, o sofrimento altivo do homem que escolhe ver estrelas no fundo do poço – e reconhecemos a verdade mais profunda: o Universo é menor que a lata de bolinhas de gude iluminada por um fósforo aceso, como as pedrinhas miudinhas de Simas e Diogo.
É por tanta vida que herdamos do Luiz Carlos da Vila que eu canto, mais uma vez, o ponto – ponto de macumba, sim, inquisidores cristãos – que fiz para ele:
(…) Ele sobe de barco
os degraus da Penha.
O que tem dentro do seu chocalho
não tá lá
e é por isso que ele toca mais firme.
Ele enxerga com as mãos
e sente com os olhos.
Ele ri assim porque é Mais-Moço.
Ele sofre assim porque é Mais-Velho.
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Book preview
Princípio do infinito - Luiz Antonio Simas
Não importava a época do ano. Luiz Carlos da Vila adorava desejar Feliz Natal
para todo mundo. Era assim que se apresentava em rodas de samba e shows, saudava e se despedia dos amigos. Os que não conheciam esse hábito do artista costumavam, a princípio, estranhar o insólito desejo. Aos poucos, ver Luiz Carlos no palco ou nas rodas, conversar e cantar com ele, participar do Caldos e Canjas
— furdunço dos bons idealizado por Jane, a esposa, na Vila da Penha —, brincar o carnaval com o bloco dos Suburbanistas, era mesmo participar de um imenso Feliz Natal
.
A primeira canção de Natal brasileira a estourar em disco foi Boas Festas
, de Assis Valente, gravada em 1933 por Carlos Galhardo com arranjo de Pixinguinha.
A letra é triste e joga água no chope da euforia natalina, afirmando que: Papai Noel com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem
. Em 1934, o mesmo Assis Valente aliviou um pouco a barra e fez a marchinha Recadinho de Papai Noel
, gravada por Carmem Miranda. Em um tom entre o brejeiro e o levemente sacana, a canção chega a pedir ao Bom Velhinho aquela lua de mel em noite nupcial
. O sucesso do caminho aberto por Assis Valente foi tamanho que, no mesmo contexto, Ary Barroso, Braguinha, Bide e Herivelto Martins lançaram marchas de Natal.
É interessante perceber que grande parte do cancioneiro do Natal brasileiro foge do estilo botei meu sapatinho
, noite feliz
e bate o sino pequenino
, e mergulha na crônica de costumes da melhor qualidade. Distancia-se, ainda, de uma estética do Hemisfério Norte presente na neve, nas castanhas e na esdrúxula figura de um Papai Noel adequado ao frio do Polo Norte.
Adoniran Barbosa, em Véspera de Natal
, fala da impagável e triste história do Bom Velhinho preso numa chaminé de uma casa pobre que rima com jingle bé
. Marlene gravou Patinete no Morro
, um petardo do compositor Luiz Antonio que começa com o verso Papai Noel não sobe na favela
. Celso Viáfora fez Papai Noel de Camiseta
, prevendo um Natal na sarjeta com cachaça, arroz, feijão, malagueta, doce de leite, balas de goma e quindins. Paulinho Albuquerque produziu, em 1999, o ótimo Um Natal de Samba
, com um elenco que mais parece o escrete de 1970: Nei Lopes, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, João Nogueira, Dona Ivone Lara, Délcio Carvalho, Luiz Grande e outras feras. Na maioria do repertório, o perrengue, a amargura, o drible na pobreza, as recordações e um quê de alegria subversiva no meio do sufoco.
Uma das faixas do trabalho produzido por Paulinho Albuquerque é exatamente o samba de Luiz Carlos da Vila Quando o Natal caiu numa sexta
. O samba, com letra e música de Luiz Carlos, relata a história do casal Juvenal e Dona Ester. Ele, funcionário querido na repartição; ela, uma uva na mocidade.
Juvenal costumava esquecer-se da vida nas rodas de samba das sextas-feiras. Invariavelmente, Dona Ester passava a tranca na porta e o marido acabava dormindo na rua. Numa noite de sexta, porém, Dona Ester perdoou Juvenal: era noite de Natal. O casal terminou aplaudido pela turma da rua e até pelo padre. Tudo acabou numa festa de abraços, beijos e castanhas.
Neste samba talvez esteja uma pequena chave para abrir a porta e entrar discretamente no mundo de Luiz Carlos da Vila.
Numa definição mais formal, o samba é um gênero musical de compasso %, marcado pela síncope e correspondente ao bailado coreográfico que o ritmo sugere. É ainda uma espécie de oferenda arriada na encruzilhada entre a poderosa rítmica centro-africana e elementos da música europeia, dinamizando-se no Brasil em mais de uma dezena de subgêneros. Mas não é só isso.
Além do ritmo e da coreografia, o samba é ligado a saberes que envolvem formas de integração comunitária, construção de sociabilidades e elaboração de identidades. Uma roda de samba de fundamento não se define apenas pelo fenômeno musical. Ela pressupõe códigos de conduta e simbologias diversas; envolve sabores, comidas e bebidas propiciadoras do convívio. A cultura do samba é, essencialmente, comunitária.
A trajetória de Luiz Carlos da Vila é rigorosamente exemplar desse complexo civilizatório que o samba engendrou no Brasil e, mais particularmente, na cidade do Rio de Janeiro: nascido em Ramos, no subúrbio da Leopoldina, criado na Vila da Penha, melodista e letrista inspirado, compositor da Unidos de Vila Isabel, membro atuante da turma que revolucionou o samba no quintal do Cacique de Ramos na década de 1980, intérprete, agitador cultural, suburbano, carioca, brasileiro, do mundo.
Luiz Carlos da Vila foi, sobretudo, um agente civilizador do tempo e do espaço em que viveu. Tornou-se um personagem central da nossa cultura. E foi um sujeito que sempre soube da relevância da rua, do congraçamento, da festa, como espaço e prática de sociabilidades, invenções, afetos, fortalecimento de laços comunitários e maneiras de tornar a vida mais leve.
O desejo de Feliz Natal
de Luiz Carlos da Vila era, a rigor, um desejo imenso de Feliz Samba
: a nossa maneira mais desafiadora e potente de estar no mundo.
Da parada do trem ao bairro de Ramos
O bairro de Ramos tem um papel decisivo na história do carnaval da cidade do Rio de Janeiro. Pelas ruas da região, na primeira metade do século XX, desfilavam clubes carnavalescos como o Ameno Heliotropo e o Endiabrados de Ramos, além de blocos de todos os tipos, como o Sai como Pode, o Paixão de Ramos, o Paz e Amor e o Recreio de Ramos — o mais importante deles ao lado do legendário Cacique de Ramos.
A praia de Ramos foi também um dos principais redutos de uma das manifestações mais interessantes do carnaval da cidade: o banho de mar à fantasia. Usando as areias das praias como avenidas, blocos carnavalescos exibiam-se competitivamente, com fantasias feitas com papel crepom e vestidas por cima das roupas de banho. Ao final do desfile, os componentes caíam na água, em banhos coletivos complementados por doses generosas de cachaças