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Prosérpina
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Prosérpina

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Theo Janssen, colorista e herdeiro inesperado de uma das melhores ― ainda que poucas ― lojas de tintas da Inglaterra, estava certo de que não estava destinado à felicidade. Resignado com a própria solidão, acreditava que sua vida seria pincelada apenas em tons azuis.
Mas quando Pasha, um de seus amigos mais antigos, entra em seu escritório com um enorme pacote embrulhado em papel pardo e jornal velho, pedindo para que Theo investigue se há algo de mágico em uma pintura, o colorista não poderia imaginar que seus dias monocromáticos acabariam mais rápido do que pensava.
Retratada como uma mulher em trajes dourados, segurando uma romã rachada ao meio, Prosérpina era um quadro tão belo quanto misterioso. Suas cores vivas pareciam saltar da tela, atiçando o interesse imediato de Theo. Apesar da relutância ― afinal, ele era especialista em tintas, não em magia ― aceita ajudar seu amigo, cativado pela pintura.
No entanto, há mais nessa história do que parece: após um misterioso desaparecimento, Theo se vê metido em uma confusão que pode colocar em risco o furacão de cores que transformou sua vida. Agora, ele precisa desvendar segredos do passado e encarar seus reais sentimentos se quiser salvar a única coisa que fez sentido em anos.
Prosérpina é uma história de amor cativante cheia de magia e de aquecer o coração! Esta edição ainda inclui conto extra, Lá no alto e aqui no chão, protagonizado por Samir, o fiel escudeiro de Theo (e um dos personagens mais queridos pelo público que acompanhou a versão seriada).
LanguagePortuguês
PublisherNoveletter
Release dateMar 10, 2023
ISBN9786599788246
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    Prosérpina - Anna Martino

    I.

    — Pois você diga para aque­la me­ni­ni­nha que ela pode ir para o in­fer­no!

    Di­zem que a rai­va é ver­me­lha. Theo fe­chou os olhos e no­tou que não, não era o caso ali. A rai­va da­que­le pin­tor na sua fren­te não era ver­me­lha como san­gue — pu­xa­va mais para o la­ran­ja, como bra­sas mor­nas ou pôr do sol. Ele es­ta­va bra­vo, mas não fu­ri­o­so. A musa ti­nha sido tro­ca­da por ou­tra, a pai­xão an­te­ri­or ces­sa­ra. Até o tom irô­ni­co da pa­la­vra me­ni­ni­nha não car­re­ga­va nem fogo, nem ve­ne­no: era só res­quí­cio de quan­do ain­da se im­por­ta­va.

    Theo abriu os olhos de­va­gar, re­a­dap­tan­do-se ao am­bi­en­te: as es­tan­tes chei­as de cai­xas e vi­dros, pig­men­tos vin­dos de to­dos os can­tos do mun­do, os tu­bos de me­tal com o ró­tu­lo da Hig­gins & Co. es­pe­ran­do para se­rem re­che­a­dos com tin­ta a óleo e eti­que­ta­dos; os li­vros-cai­xa em­pi­lha­dos em um can­to, os re­la­tó­rios de ven­da a se­rem con­fe­ri­dos, o ca­len­dá­rio na pa­re­de com a data er­ra­da — mar­ca­va 5 de se­tem­bro de 1848, e não dia 4, como era de fato. Não eram nem 9 da ma­nhã e lá es­ta­va ele li­dan­do com pro­ble­mas que não lhe di­zi­am res­pei­to ao in­vés de cui­dar das tin­tas e dos pig­men­tos, que eram seu ga­nha-pão, afi­nal de con­tas.

    Pro­ble­mas como Dan­te Ga­bri­el Ros­set­ti, me­ta­de in­glês, me­ta­de ita­li­a­no, e com­ple­ta­men­te ir­ri­ta­do, que pa­re­cia ter es­que­ci­do que ti­nha dez anos e qua­se dez cen­tí­me­tros a me­nos que Theo, um su­jei­to que, por sua vez, ti­nha pu­nhos acos­tu­ma­dos a so­car ti­pos bem me­nos me­ti­dos a bes­ta.

    Pa­trão! Te­mos vi­si­ta! — Uma voz de ba­rí­to­no do lado de fora do es­cri­tó­rio in­ter­rom­peu a bri­ga an­tes de nas­cer. O dono da voz ou­via tudo atrás da por­ta, mas Theo não fi­cou ir­ri­ta­do. Aque­la era uma das mui­tas fun­ções do su­jei­to na loja: co­lo­car frei­os no mau hu­mor do dono.

    Jan­sen, meu caro! Des­cul­pa in­ter­rom­per! Pre­ci­so de uma mão­zi­nha… — Ou­tra voz, mais doce e ani­ma­da, soou lon­ge. Aqui­lo sim era uma imen­sa sur­pre­sa, e Theo abriu a por­ta sem pen­sar duas ve­zes.

    Dois ho­mens en­tra­ram no es­cri­tó­rio car­re­gan­do um enor­me pa­co­te em­bru­lha­do em pa­pel par­do e jor­nal ve­lho. O da di­rei­ta, mo­re­no de bar­ba imen­sa, era o bra­ço-di­rei­to de Jan­sen, um ho­mem a quem cha­ma­vam Sa­mir: um an­glo-egíp­cio que pa­re­cia dis­pos­to a cha­mar aten­ção de pro­pó­si­to em tra­jes que mis­tu­ra­vam Ori­en­te e Oci­den­te, o na­riz lar­go e os far­tos ca­be­los ca­che­a­dos em ele­gan­te de­sa­li­nho. O da es­quer­da aten­dia por Paul ou Pá­vel, de­pen­dia do dia — sem­pre Pasha para os ín­ti­mos, como Theo. Na­que­la ma­nhã, pa­re­cia um boyar mui­to mo­der­no com a gra­va­ta es­ti­lo Os­bal­des­ton e o re­din­go­te es­me­ral­da com­bi­nan­do com os ado­rá­veis olhos ver­de-cla­ros. Quem o vis­se na rua, com cer­te­za di­ria que ti­nha en­con­tra­do o fi­lho de um czar.

    Tudo na du­pla era fei­to para dis­trair, como as­sis­ten­tes de má­gi­co que pu­xam o olhar da pla­teia para lon­ge de onde o tru­que acon­te­ce. Eles sa­bi­am usar o fato de se­rem di­fe­ren­tes como uma arma, e fi­ze­ram isso com su­ces­so para re­mo­ver o foco da en­cren­ca no es­cri­tó­rio.

    Ou pelo me­nos era o que pa­re­cia à pri­mei­ra vis­ta.

    Mas nada na­que­le es­cri­tó­rio era o que se via à pri­mei­ra vis­ta.

    — Pela co­mu­nhão dos san­tos, mas isso aqui é um es­tor­vo… — o boyar res­mun­gou en­quan­to ma­no­bra­va com gran­de es­tar­da­lha­ço para co­lo­car o pa­co­te na es­cri­va­ni­nha. — Ah, des­cul­pe, que­ri­do, não sa­bia que você es­ta­va com vi­si­tas… — A men­ti­ra era doce e ro­sa­da aos olhos de Theo, um con­fei­to lin­do re­che­a­do de ve­ne­no de rato. — Ros­set­ti, meu caro, que sur­pre­sa! Como vão os fa­mi­li­a­res?

    — To­dos bem, se­nhor Doy­le. — O pin­tor sor­riu como se a vida fos­se um mar de ro­sas, es­ti­can­do os olhos para cima do pa­co­te. — Trou­xe no­vi­da­des para Jan­sen?

    — Com medo de per­der o pos­to de pro­dí­gio fa­vo­ri­to do nos­so co­lo­ris­ta, meu caro? — A ri­sa­da es­con­deu bem o gol­pe su­til que de­ses­ta­bi­li­zou o pin­tor. — Ima­gi­no que vo­cês es­te­jam tra­tan­do de ne­gó­cios?

    — Ele já es­ta­va de sa­í­da. — Theo cru­zou os bra­ços, es­for­çan­do-se para que seu so­ta­que não atra­pa­lhas­se mais ain­da o ra­ci­o­cí­nio. — Eu dou o re­ca­do, Ga­bri­el… Você vai pa­gar a ses­são para a Eli­za, não vai?

    — Man­da o tal de Hum­mel pa­gar! Não foi por cau­sa dele que ela me deu o cano? Por que ele a es­ta­va se­guin­do? En­tão ele que cu­bra o pre­ju­í­zo! — Ros­set­ti fin­giu que ain­da es­ta­va ir­ri­ta­do ao pe­gar ca­sa­co e cha­péu no gan­cho da por­ta, mas sa­bia que ti­nha per­di­do a pose e a dig­ni­da­de ao mor­der o con­fei­to ima­gi­ná­rio na voz de Doy­le e, com a boca quei­man­do, fu­giu an­tes que a si­tu­a­ção fi­cas­se pior.

    Ain­da as­sim, quan­do Theo fe­chou a por­ta do es­cri­tó­rio, qua­se se pôs a xin­gar em seu idi­o­ma na­tal — as pa­la­vras vi­nham em roxo pro­fun­do como os­tro, to­das cus­pi­das com um des­gos­to imen­so, mas en­go­li­das de­pres­sa em um ges­to au­to­má­ti­co de so­bre­vi­vên­cia. Mal­di­to Ros­set­ti!

    — O que a Eli­za apron­tou ago­ra? — A voz de Doy­le era sem­pre ver­de e cá­li­da, uma eter­na pri­ma­ve­ra.

    — Deu o cano numa ses­são com Ros­set­ti e dis­se que não apa­re­ceu por­que um su­jei­to a es­ta­va se­guin­do na rua e pre­ci­sou se es­con­der… E aí ele veio re­cla­mar co­mi­go da des­cul­pa es­far­ra­pa­da, di­zen­do que não ti­nha de atu­rar uma me­ni­ni­nha tola se fa­zen­do de ví­ti­ma — res­pon­deu Theo de­va­gar, pro­cu­ran­do as pa­la­vras cor­re­tas.

    — Bem, pa­trão, des­cul­pe a ho­nes­ti­da­de, mas en­ten­do o ra­ci­o­cí­nio do se­nhor Ros­set­ti… — Sa­mir dis­se. — A se­nho­ri­ta Sil­ver pode não ser sua irmã de san­gue, mas o se­nhor é o ho­mem da casa, é cla­ro que ele vi­ria fa­lar com o se­nhor.

    — Não, não sou o ho­mem de casa ne­nhu­ma, nun­ca fui! E mes­mo que fos­se, a Eli­za não obe­de­ce nem à mãe, por que obe­de­ce­ria jus­to a mim? — Theo sus­pi­rou, co­çan­do a ca­be­ça a pon­to dos ca­chos rui­vos se er­gue­rem como anê­mo­nas. — En­fim, de­pois vejo isso… O que tem no pa­co­te, Pasha?

    — Uma en­cren­ca da­que­las, e só o me­lhor co­lo­ris­ta de Lon­dres pode me aju­dar.

    — E como o me­lhor co­lo­ris­ta de Lon­dres não es­ta­va em casa, você veio me ver.

    — Pos­so dar um ta­be­fe nele? — Pasha se vol­tou para Sa­mir, fin­gin­do-se ofen­di­do.

    — Não te­nho au­to­ri­za­ção para res­pon­der, se­nhor Doy­le. — Sa­mir fez gran­de es­for­ço para man­ter a se­ri­e­da­de, mas o sor­ri­so en­tre­gou o fato de ter acha­do gra­ça no chis­te. — Pa­trão, eu vou cui­dar da fren­te da loja, se pre­ci­sar de al­gu­ma coi­sa…

    Theo ape­nas as­sen­tiu, os de­dos ajei­tan­do o ca­be­lo re­vol­to — seu se­cre­tá­rio sa­bia que vi­si­tas de Pasha Doy­le cos­tu­ma­vam ser si­gi­lo­sas.

    E não para me­nos. As­sim que a por­ta foi fe­cha­da, Pasha sol­tou um sus­pi­ro com­pri­do, e en­fim as par­tes me­nos ób­vi­as fi­ca­ram vi­sí­veis: a pele pá­li­da e di­fu­sa como as nu­vens, os de­dos es­ver­de­a­dos como ra­mos de plan­tas sel­va­gens, os olhos cor-de-púr­pu­ra como flo­res sel­va­gens — o lado feé­ri­co pre­ci­san­do de ar.

    — Você está mes­mo ner­vo­so — foi tudo o que Theo dis­se.

    — Que­ri­do, você não quei­ra sa­ber o quan­to. — E ao boyar Pasha vol­tou an­tes que Theo pis­cas­se. — En­fim, eis aí meu pro­ble­ma. Abre o pa­co­te e me diz o que vê.

    Theo pe­gou uma faca e cor­tou as amar­ras do pa­co­te, ras­gan­do o pa­pel como quem lida com um pre­sen­te de ani­ver­sá­rio.

    Foi sur­preen­di­do por um par de olhos de um tom qua­se so­bre­na­tu­ral en­tre o ver­de e o âm­bar, tão vi­vos que, por um ins­tan­te, jul­gou que a ima­gem era um re­fle­xo de al­guém atrás dele. Tão vi­vos que fi­ze­ram algo res­so­ar den­tro de si, uma vi­bra­ção que não se lem­bra­va mais de como era.

    Pu­xou o res­to do pa­pel para des­co­brir o re­tra­to de uma mu­lher em tra­jes dou­ra­dos fal­sa­men­te me­di­e­vais, os ca­be­los cor de li­nho pre­sos em uma rede bor­da­da com pé­ro­las. Ela olha­va de vol­ta para ele. Se­gu­ra­va uma romã ra­cha­da no meio, as se­men­tes de um ru­bro tão vivo que pa­re­cia san­gue fres­co.

    Pro­sér­pi­na, ele pen­sou: Pro­sér­pi­na, con­de­na­da ao mun­do in­fe­ri­or por con­ta de seis se­men­tes de romã.

    Para não ser en­go­li­do pelo dou­ra­do e âm­bar que ati­ça­vam os sen­ti­dos, con­cen­trou-se nos de­ta­lhes. Um pon­to cha­mou mui­to a aten­ção: Pro­sér­pi­na aper­ta­va a romã en­tre de­dos le­ve­men­te ca­le­ja­dos — in­te­res­san­te, pen­sou. A mo­de­lo de­via ser uma ga­ro­ta das clas­ses mais bai­xas, do tipo que vi­nha atrás de di­nhei­ro e um pou­co mais de aven­tu­ra do que te­ria em sua pro­vín­cia na­tal.

    — Bo­ni­ta, a moça. — Pasha sor­riu.

    — Sim, lin­da! — Theo se apro­xi­mou da pin­tu­ra. Não era um qua­dro re­cen­te, dava para no­tar pelo chei­ro da tela e pe­las pe­que­nas ra­cha­du­ras na su­per­fí­cie. Mas os pig­men­tos ti­nham re­sis­ti­do mui­to bem à pas­sa­gem dos anos. Uma exe­cu­ção per­fei­ta, obra de mes­tre. — De onde veio?

    — Lon­ga his­tó­ria, lon­ga e meio en­te­di­an­te. O caso é que pre­ci­so de seus ta­len­tos.

    — Que ta­len­tos? Não en­ten­do nada de ma­gia!

    — Mas en­ten­de de tin­tas, não en­ten­de?

    — Ga­nho meu sus­ten­to com isso, sim, mas as tin­tas que eu fa­bri­co são… Que­ro di­zer, elas não fa­zem nada sal­tar da tela.

    — Deus nos li­vre des­sa mo­ci­nha sal­tar da tela! — Pasha pis­cou os olhos. Des­ta vez, fi­ca­ram azuis e não ver­des. Ele re­al­men­te es­ta­va ner­vo­so. — En­fim, ouça. Pelo o que meu cli­en­te re­la­tou, esta moça aqui era par­te da co­le­ção pes­so­al da afa­ma­da im­pe­ra­triz Jo­sép­hi­ne da Fran­ça. Como isso che­gou aqui em Lon­dres, o dono da pin­tu­ra não quis con­tar, mas aqui está. En­fim, o su­jei­to quer sa­ber se a tela tem… di­ga­mos… ele­men­tos inu­ma­nos. Se não está na tela, está na tin­ta.

    — Ah, en­tão por isso que ela é as­sim cha­ma­ti­va? — Theo fez um mu­xo­xo. — Que gra­ça tem usar ma­gia para cri­ar qua­dros?

    — A gra­ça de sem­pre: o re­sul­ta­do e não a exe­cu­ção. O des­ti­no e não a jor­na­da. A fama e a for­tu­na, e não o suor e os ca­los e as do­res nas cos­tas. Tem quem pre­fi­ra a gló­ria sem pre­ci­sar se es­fal­far por ela.

    — Ata­lho é para trân­si­to, não para arte. En­fim, do que eu en­ten­do? Você com seus pro­ble­mas e eu com os meus. — Theo apon­tou para a por­ta.

    A loja, que­ria di­zer. O pro­ble­ma dele era a loja e as tin­tas. Ma­gia era o ter­ri­tó­rio de gen­te como Pasha. Eram ami­gos de lon­ga data, e o fato de que não se im­por­ta­va com a na­tu­re­za da­que­la cri­a­tu­ra era o que se­la­va a ami­za­de en­tre eles. Bem, isso e o fato de que o fal­so-rus­so o ti­nha aju­da­do mui­to nos pri­mei­ros dias como dono da Hig­gins & Co., quan­do as pes­so­as ain­da sus­sur­ra­vam que o tes­ta­men­to do an­ti­go dono fora for­ja­do para fa­vo­re­cer o ho­lan­dês fi­lho-de-nin­guém, que, num gol­pe do des­ti­no, ti­nha su­bi­do de vida às cus­tas da mor­te de um fi­lho di­le­to da so­ci­e­da­de lon­dri­na.

    Dois anos des­de que Fre­de­rick mor­re­ra, e Theo ain­da não con­se­guia se acos­tu­mar com isso. Com cer­te­za Ros­set­ti não se atre­ve­ria a fa­lar gros­so com um le­gí­ti­mo fi­lho di­le­to da so­ci­e­da­de. Por­que Fre­de­rick nun­ca se re­bai­xa­ria a dar aten­ção a um pro­je­to de pin­tor como Ros­set­ti.

    Mas Fre­de­rick, que Deus o guar­das­se, nun­ca se­ria ca­paz de en­ten­der por que aque­la pin­tu­ra di­an­te dele era tão es­pe­ci­al. Não te­ria en­ten­di­do que aque­la Pro­sér­pi­na im­plo­ra­va por so­cor­ro, para ser de­vol­vi­da à sua pá­tria, para ser res­ga­ta­da do in­fer­no abai­xo da ter­ra.

    Pro­sér­pi­na tam­bém era Per­sé­fo­ne, a rai­nha do mun­do dos mor­tos, a con­sor­te de Ha­des. Ela im­plo­ra­va aju­da ago­ra, mas de­pois se acos­tu­ma­ria com o in­ver­no e com o ma­ri­do — até mes­mo pas­sa­ria a gos­tar da es­cu­ri­dão e do po­der que re­ce­be­ra.

    Ele olhou de novo: era im­pres­são ou a ex­pres­são no ros­to da mo­de­lo ti­nha mu­da­do? Aque­le olhar de sur­pre­sa não es­ta­va ali an­tes; as so­bran­ce­lhas dou­ra­das pa­re­ci­am um tan­to mais ar­que­a­das. Ele olhou de novo — não, tudo es­ta­va como an­tes.

    — Como eu te aju­do? — Theo vol­tou o olhar para Pasha. Por­que ele de­via sua vida àque­le fi­lho das fa­das, e fa­ria qual­quer coi­sa por ele. Ma­gia não lhe dava medo, por­que ma­gia era como amor: coi­sa que acon­te­cia com os ou­tros e nun­ca com ele.

    II.

    Se a rai­va é ver­me­lha, a in­ve­ja é roxa.

    Pelo me­nos a in­ve­ja de Eli­za Sil­ver era roxa como he­ma­to­mas ou como tra­jes de meio-luto, es­cor­ren­do far­ta pela boca en­quan­to su­bia em um ban­qui­nho para ob­ser­var a pin­tu­ra de Pro­sér­pi­na pen­du­ra­da na pa­re­de. Cla­ro que ela vi­ria — e logo cedo, an­tes de Theo par­tir para o tra­ba­lho, an­tes que os vi­zi­nhos do pré­dio em Gower Street per­ce­bes­sem al­gu­ma coi­sa es­tra­nha. A des­cul­pa era a ces­ta de co­mi­da que a mãe sem­pre en­vi­a­va para Theo, mas o ob­je­ti­vo da vi­si­ta, na­que­le dia, era cla­ra­men­te ou­tro — só que a aten­ção da jo­vem aca­bou sen­do fis­ga­da para a ima­gem dou­ra­da ilu­mi­nan­do a mi­nús­cu­la sala de es­tar.

    — Mas que be­le­zi­nha, essa daí. Quem é a mo­de­lo? Aque­la puta da An­nie Mil­ler? — Eli­za olhou o qua­dro mais de per­to, qua­se fa­re­jan­do a tela. — Sabe o que foi que a se­nho­ri­ta Mil­ler me apron­tou? Ela fez o Hunt can­ce­lar a ses­são que ti­nha mar­ca­do co­mi­go, a co­bri­nha! Eu pre­ci­sa­va dos co­bres que ele ia pa­gar! Já não bas­tas­se o que o Ros­set­ti apron­tou co­mi­go? Você sabe o que aque­le des­gra­ça­do fez?

    — Eli­za, des­ce des­se ban­co, você vai es­tra­gar a tela! Anda, você não é mais cri­an­ça…

    — Vê que en­gra­ça­do? Sou adul­ta e ele sabe, mas me tra­ta como se fos­se cri­an­ça o tem­po todo! — Eli­za fa­lou com o qua­dro como se a Pro­sér­pi­na pin­ta­da na tela pu­des­se res­pon­der. — Ele é mes­mo bobo, não é mes­mo, Vir­gem Ma­ria?

    — Eu dis­se para des­cer! — Theo a pu­xou pela fai­xa pre­sa na cin­tu­ra, e Eli­za de­sa­bou nos bra­ços do co­lo­ris­ta. Ela era tão ma­gra, tão pe­que­na, que dava até pena; pa­re­cia mes­mo uma cri­an­ça en­fi­a­da em seu xale gas­to e no ve­lho ves­ti­do azul (que já ti­nha sido cre­me e de­pois ver­de, e sabe-se lá que cor se­ria na pró­xi­ma es­ta­ção, quan­do fos­se tin­gi­do no­va­men­te). — O que você veio fa­zer aqui, afi­nal?

    — En­tre­gar sua co­mi­da…

    — Con­ta ou­tra! — Theo qua­se agar­rou a jo­vem pe­los om­bros. O pen­te­a­do de Eli­za ti­nha des­mon­ta­do, os ca­chos cas­ta­nhos ca­í­am pelo ros­to. Pa­re­cia tão exaus­ta quan­to ele. — É di­nhei­ro ou­tra vez? Ou é o tal su­jei­to que anda te se­guin­do? Qual a his­tó­ria do dia?

    — Quem te con­tou?! Não, não res­pon­de, eu sei quem foi. — Eli­za olhou para o qua­dro no­va­men­te. — Você é que tem sor­te, Vir­gem Ma­ria. Os ho­mens re­zam pra você. No meu caso, quem tem que fi­car de jo­e­lhos sou eu… — Eli­za viu como Theo se er­guia com di­fi­cul­da­de do ta­pe­te em­po­ei­ra­do, re­co­lhen­do uma joia dou­ra­da que

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