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Quatro poemas de Carlito Azevedo

MOTORES I. A. e B. necessitam ouvir msica para escrever, j M. e W. requerem nessa hora todo o silncio possvel, para obedecer, talvez, a algum ritmo interno. Durante os quatro ltimos anos eu escrevi ouvindo, pelas manhs, no quarto contguo ao meu, o motor da mquina de hemodilise e seu estrondo de lava-roupas antigo, por vezes interrompido por agudos sinais cuja funo seria advertir a enfermeira responsvel por voc, ocupada em tomar caf com bolinhos na cozinha, de que algo no ia bem com a mquina ou em seu corpo. II. Nos primeiros meses eu tentava abafar o barulho colocando msica alta nos fones de ouvido, mas isso atrapalhava ainda mais a escrita, e, por acrscimo, transformou o meu medo (de ouvir o sinal de alarme disparar dizendo que algo ia mal no delicado processo) em meu pnico (de no ouvi-lo disparar dizendo que algo ia mal no delicado processo, e de que tampouco o ouvisse a enfermeira responsvel). III. Acabei aprendendo a me virar com o rugir dessa turbina, com seu apito estridente sempre (in)esperado, nas manhs de segunda, quarta e sexta. Como o Alzheimer no lhe permitia gravar na mente a importncia de permanecer quieta durante as sesses de hemodilise, voc logo passou a ser atada cama. IV. Com sua morte, tambm esse som no participa mais do sistema de rumores desta casa, sistema que agora praticamente s inclui descarga, fechar e abrir de portas e janelas, toque de telefone, teclado de computador dentro da madrugada, jato de torneira, ducha contra piso vermelho, bater de cabides entre si e no cimo do armrio quando puxo a roupa com fora e pressa demasiadas, fervilhar de gua dentro da chaleira para o ch, batida de aparelho de barbear descartvel contra pia, minha chave dando voltas na fechadura. s vezes, num nibus antigo, rumo ao centro, me volta o motor que te adiava esse buraco na terra. [Estes quatro poemas correspondem a uma das quatro seces de H., ltima parte do livro Monodrama, editado pela Cotovia, em Fevereiro de 2010]

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