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Estudo de
Os Lusíadas (1572)
Orientado por
Francisco Achcar (USP - Universidade de São Paulo)
Outra contradição que se pode apontar na obra consiste no fato de Camões celebrar os feitos
guerreiros, conclamando D. Sebastião, no início (na dedicatória) e no fim (epílogo) do poema,
empreendendo uma grandiosa guerra. No entanto, ele é humanista e seu porma resulta, basicamente,
de sua formação, sua cultura e seus ideais humanísticos. Sabe-se que o Humanismo, por princípio,
se opunha à guerra. Camões, porém, justifica seu empenho bélico com razões ao mesmo tempo
humanísticas e religiosas: a grande meta seria ampliar o domínio da civilização ocidental (ideal
humanístico) e da religião crsitã (ideal das Cruzadas) por todo o universo, levando às mais remotas
terras, não a morte, mas a superação dela, graças à imortalidade da alma prometida por Cristo e seus
seguidores.
As-ar-mas-e-os-ba-RÕES-a-ssi-na-LA(dos) (I 1)
6 10
A estrofe (ou estância) utilizada no poema é a oitava-rima (ou oitava real), conjunto de oito
versos em que os seis primeiros têm duas rimas (A e B), dispostas alternadamente (ABABAB), e os
dois últimos são emparelhados por uma terceira rima (C):
Do ponto de vista lingüístico, a obra é também prodigiosa: Camões elabora com grande
fôlego possibilidades da sintaxe portuguesa antes pouco ou nada exploradas, valendo-se ao mesmo
tempo de modelos eruditos (latinos) e de construções marcadas pel oralidade; acrescenta à língua
um grande número de vocábulos, forjados a partim do latim, e ao mesmo tempo faz uso de formas
populares de sua época; é, em síntese, um escritor intrépido tanto artística quanto lingüisticamente.
Por isso, em sua obra se encontra o maior monumento do português clássico - o primeiro estágio do
português moderno.
6. Síntese da narrativa
A narrativa ocupa mais de nove décimos da extensão do texto e, como vimos, inclui, no
meio da história da viagem de Vasco da Gama, um relato da história de Portugal até o momento da
viagem e também profecias do que aconteceria depois dela, até a época de Camões.
CANTO I
5
Depois de anunciar o assunto do poema (proposição), pedir inspiração às ninfas do rio Tejo
(invocação) e dedicar o poema ao rei, D. Sebastião (dedicatória), o poeta inicia a narrativa in
medias res (expressão latina que quer dizer "no meio do assunto"), quando os portugueses já estão
avançados na viagem, tendo passado o Cabo das Tormentas. Os deuses se reúnem no Olimpo para
decidir sobre o que fazer com esses navegadores audaciosos (primeiro concílio dos deuses). Baco
(deus do vinho) é contrário aos portugueses, pois teme que com sua chegada fique comprometida a
fama de que ele goza na Índia. Vênus (deusa do amor) e Marte (deus da guerra) defendem os
portugueses. Baco, vencido, vai tramar traições contra eles na costa oriental da África, mas os
navegantes livram-se delas graças à ajuda de Vênus.
CANTO II
Em Mombaça, Baco prepara suas armadilhas. Vênus vai reclamar junto ao chefe do Olimpo,
Júpiter, o pai dos deuses, que, em ambiente carregado de sensualidade, não resiste aos encantos da
filha (esta é apresentada, em sua beleza provocante, num sugestivo retrato de Vênus) e prognostica
as glórias futuras dos lusitanos, além de enviar Mercúrio, o deus mensageiro, em seu auxílio. Este
ruma para a África e presdispõe os habitantes de Melinde a receberem bem os portugueses. O rei de
Melinde pergunta a Vasco da Gama sobre a história de seus país.
CANTO III
Vasco da Gama, respondendo ao rei Melinde, descreve a Europa e, nela, Portugal e inicia um
relato da história portuguesa desde a fundação do país. Episódio célebre: Inês de Castro - história
de amor trágico, da sociedade massacrando o indivíduo.
CANTO IV
CANTO V
CANTO VI
6
Os portugueses seguem viagem, com o auxílio do rei de Melinde. Passagem do Oceano
Índico. Veloso narra o episódio dos Doze de Inglaterra: doze cavaleiros portugueses vão à
Inglaterra duelar com doze cavaleiros ingleses, a quem vencem, para defender a honra de doze
damas (inglesas) que aqueles ingleses tinham ofendido. Baco se reúne com Netuno, o deus do mar,
para tramar contra os portugueses (segundo concílio dos deuses). Netuno faz desencadearem os
ventos contra os navegantes, mas eles são contidos pelos encantos de Vênus e das Nereidas.
Chegada a Calecut (Calecu), na Índia.
CANTO VII
Numa abertura majestosa, o poeta cumprimeita os portugueses por seu grande feito e os
contrapóe aos demais povos da Europa, que se guerreavam uns aos outros. Em seguida, relata a
tomada de contacto com a terra (descrição da Índia). Os portugueses são recebidos por governantes
do lugar (o samorim, o catual).
CANTO VIII
Paula da Gama, irmão de Vasco, apresenta uma galeria de grandes heróis portugueses, a
pedido do catual de Calecut, que visitava os navios (essa narrativa é como um complemento da de
Vasco da Gama ao rei de Melinde). Baco trama contra os portugueses, instigando os chefes locais
contra eles. Gama é retido em terra e tem de pagar para libertar-se, o que dá ocasião a que o poeta
faça famosas considerações sobre o poder corruptor do dinheiro.
CANTO IX
Diante do perigo, e tendo já realizado o que pretendia, Vasco da Gama resolve partir. No
meio do mar, os portugueses encontram uma ilha maravilhosa, preparada por Vênus como surpresa
e recompensa aos navegantes por seu heroísmo sobre-humano. Nesse lugar paradisíaco, a Ilha
Namorada ou Ilha dos Amores, os portugueses são aguardados por deusas, as ninfas, que se
entregam amorosamente a eles. A Vasco da Gama cabe a prória deusa do mar, Tétis (esta Tétis,
esposa de Netuno, é diferente de Tétis, esposa de Peleu, a ninfa por quem Adamastor se apaixona).
O poeta encerra este canto com considerações sobre o caráter simbólico da Ilha dos Amores, que
representa, na forma de elevação ao mundo divino, a imortalidade que os portugueses tinham
conquistado, graças à fama de seus grandes feitos.
CANTO X
Durante o banquete que Tétis oferece aos portugueses, uma ninfa canta profecias sobre os
feitos de Portugal posteriores à viagem de Vasco da Gama. Tétis mostra a Gama a máquina do
mundo (algo como uma miniatura do universo, segundo a concepção ptolomaica) - uma visão que
antes só os deuses podiam ter (um outro sentido simbólico da união dos portugueses com as deusas
diz respeito à conquista do conhecimento). A deusa aponta as regiões do mundo onde os
portugueses obteriam grandes glórias. Finalmente, em viagem feliz, os navegantes voltam a
Portugal. Camões encerra o poema (epílogo) lamentando o estado de decadência do país e
conclamando novamente o rei, como já fizera na dedicatória, a uma grande empresa de salvação
nacional.
Como vimos, numa longa etapa da obra (cantos III-V), Vasco da Gama
narra ao rei de Melinde a história de Portugal. Entre os acontecimentos
notáveis do passado português, o capitão se detém (canto III) no relato
dos eventos que envolveram Inês de Castro, compondo um dos mais
belos episódios do poema. Trágico conto de amor, é a história daquela
"que depois de ser morta foi rainha": a jovem amante, e em seguida
esposa, do príncipe D. Pedro, assassinada a mando do pai dele, o rei D.
Afonso IV. Além da pungência da história (o amor inconformado e a
revolta de D. Pedro fizeram que ele, quando rei, mandasse coroar o
cadáver da amada, desenterrado na ocasião); além da gravidade da
questão, que opõe o interesse pessoal e os interesses coletivos (a razão de Estado); além disso e
mais, há o encanto lírico de que Camões cercou a figura de Inês, impondo-a como um dos grandes
símbolos femininos da literatura - e não só da literatura de língua portuguesa.
O fato relatado por Camões, registrado por historiadores (cronistas) da época, pode ser assim
resumido. Dona Inês, da importantíssima família castelhana Castro, veio a Portugal como dama de
companhia da princesa Constança, noiva de D. Pedro, herdeiro do rei D. Afonso IV. O príncipe
apaixonou-se pela moça, de quem teve filhos ainda em vida da princesa, sua esposa. Com a morte
desta, em 1435, ter-se-ia casado clandestinamente com Inês, segundo o que ele mesmo declarou
tempos depois, quando já se tornara rei. Talvez tal declaração, embora solene, fosse falsa; é fato,
porém, que o príncipe rejeitou diversos casamentos, politicamente convenientes, que lhe foram
propostos.
A ligação entre o príncipe e sua amante não foi bem vista pelo rei, que temia que seu filho
estivesse envolvido em manobras pró-castelhanas da família Perez de Castro, pai de Inês.
⇒ Aqui é preciso lembrar que o conflito entre Portugal e Castela, ou seja, a Espanha, remonta a
fundação de Portugal, que nasceu de um desmembramento do território castelhano e que
Castela sempre almejou reintegrar a si.
Em conseqüência, o rei, estimulado por seus conselheiros, decidiu-se pelo assassinato de Inês, que
foi degolada quando o príncipe se achava caçando fora de Coimbra, onde vivia o casal. O crime
motivou um longo conflito entre o príncipe e o pai. Depois que se tornou rei, D. Pedro ordenou a
exumação do cadáver, para que Inês fosse coroada como rainha.
A perseguição e as torturas que infligiu aos envolvidos no assassinato (caçados até além
das fronteiras de Portugal) ficaram célebres, registradas que foram pelo grande historiador Fernão
Lopes, na Crônica de D. Pedro: os dois principais implicados foram caçados quanto fugiam e
trazidos diante do rei que, enquanto comia, assistiu à morte que mandou dar a eles, sendo o coração
de um arrancado vivo, pelo peito, e do outro, pelas costas. E tudo foi feito por um carrasco
inexperiente, que, desajeitado, demorou mais que o necessário e teve muita dificuldade para
terminar a tarefa, prolongando e intensificando assim a satisfação do rei com aquele espetáculo.
Esse comportamento sangüinário se tornou constante em D. Pedro, que, obcecado por justiça,
torturava ele mesmo os supeitos de crimes. Por isso, ele passou a ser chamado tanto Pedro o
Justiceiro como Pedro Cru.
7.1.2 Canto III (118-120)
8
118
[Vasco da Gama, contando ao rei de Melinde a história de Portugal, fala sobre a grande vitória do rei Afonso IV na
batalha do Salado. E continua] - Depois desta vitória tão favorável, Afonso voltou a Portugal para gozar a paz com
toda a glória que conquistara na guerra. Então aconteceu o caso triste, digno de lembrança imorredoura, da infeliz
que, depois de morta, foi feita rainha.
119
Tu, só tu, puro amor, que tendes tanto domínio sobre os corações humanos, tu é que fostes a causa da sua morte
deplorável, como se ela fosse uma inimiga traiçoeira. Se dizem, Amor cruel, que a tua sede não pode ser aplacada
nem com lágrimas tristes, é porque exiges, despótico e cruel, que os teus altares sejam banhados com o sangue de
sacrifícios humanos.
120
Estavas tranqüila, linda Inês, gozando os belos dias da tua juventude e vivendo aquela ilusão alegre e cega que o
destino não deixa que dure muito. Nos campos à margem do rio Mondego, as saudades do teu amado faziam que teus
belos olhos chorassem tanto, que o rio nunca ficava seco, e que tu repetisses o nome dele - gravado no teu coração -
como se quisesses ensiná-lo aos montes e à vegetação.
121
0Do teu Príncipe ali te respondiam
1As lembranças que na alma lhe moravam,
2Que sempre ante seus olhos te traziam,
3Quando dos teus fermosos se apartavam;
9
4De noite, em doces sonhos que mentiam,
5De dia, em pensamentos que voavam;
6E quanto, enfim, cuidava e quanto via
7Eram tudo memórias de alegria.
As lembranças do Príncipe respondiam-lhe, em pensamentos e em sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a memória
do amado fazia com que Inês conversasse com ele, quando este estava ausente. Ambos não se esqueciam um do outro
e se “comunicavam” através da memória, em forma de pensamentos e sonhos. Assim, tudo quanto faziam ou viam os
fazia felizes, porque lembravam dos respectivos amados.
Esta estrofe é bastante ambígua. As lembranças do Príncipe vinham à mente de Inês como resposta aos seus cuidados
amorosos; por outro lado, as mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma do príncipe quando
estava longe da amada. Os sonhos e os pensamentos dos versos 5 e 6, dois modos de lembranças, pertencem
indistintamente ao amado e à amada. E o sujeito de cuidava e via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o Príncipe.
122
O Príncipe se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento, leito conjugal) porque o amor despreza, rejeita
tudo que não seja o rosto do amado (gesto significa rosto, semblante) a quem está sujeito. Ao ver este estranho amor,
este comportamento estranho de não querer se casar, o pai sisudo atende ao murmurar do povo e…
123
… decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai acredita que só o sangue da morte apagará o
fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada
contra uma frágil e indefesa mulher?
124
Quando os horríveis e cruéis carrascos trouxeram Inês perante o rei, este já estava compadecido (com dó) e
arrependido. No entanto, o povo persuadia, incitava o rei a matá-la. Inês, então, com palavras ou com a voz triste,
sentindo mais pela dor e saudade do príncipe e dos filhos do que pela própria morte…
125
Levantando os olhos cheios de lágrimas ao céu (somente os olhos, porque um carrasco prendia-lhe as mãos) e,
depois, olhando para as crianças - que amava tanto e temia que ficassem órfãs -, disse para o avô cruel (o rei):
126
“Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as aves de rapina têm piedade com as
crianças, como demostraram as histórias da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma…”
Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino foi alimentada por aves de rapina.
Rômulo e Remo, fundadores de Roma, foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.
127
Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é humano matar uma mulher só porque esta
ama um homem que a conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se
importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o rei se compadeça dela e das crianças, já que não
queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um crime, que não tinha cometido.
128
11
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
E se o rei sabia dar a morte, como o mostrara ao vencer os Mouros, também saberia dar a vida a quem era inocente.
Mas, se apesar da sua inocência, ainda a quisesse castigar, que a desterrasse, expulsasse, para uma região gelada ou
tórrida, para sempre.
129
Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que não achara entre os homens. Ali, por amor
daquele por quem morria ou sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.
130
O rei bondoso queria perdoar Inês, comovido por suas palavras. Mas o povo obstinado, persistente e o destino de Inês
(que assim o quis) não lhe perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria morrer puxam suas espadas. Mostram-se
valentes atacando uma dama.
131
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Do mesmo modo agem os cruéis assassinos de Inês. No pescoço (“colo”) que sustenta o belo rosto (“as obras”: o
sorriso, o olhar, os movimentos do rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de paixão) o
príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas espadas e também as faces pálidas
(“brancas flores”) e molhadas de lágrimas de Inês; atacavam enraivecidos, sem pensarem no castigo que o futuro
lhes reservava.
Camões supõe que Inês foi degolada, como Policena oferecendo o pescoço ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu
rosto.
133
Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes comeu os próprios filhos em um banquete
servido por Atreu, para não ver o terrível crime. A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou longa
e repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes. Tiestes era filho de Pélops e irmão de
Atreu. Seduziu a esposa do irmão. Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.
134
135
As ninfas do Mondego (rio de Portugal), durante muito tempo, lembraram chorando a morte de Inês. E, para sua
memória eterna, as lágrimas transformaram-se numa fonte chamada “dos amores de Inês”, acontecidos ali. A fonte
que rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas e de amores.
Depois de contar ao rei Melinde a história de seu país, Vasco da Gama fala-
lhe de su viagem. No início dela, situa-se outro célebre episódio do poema:
o Velho do Restelo. Os navios portugueses estão prestes a largar; esposas,
filhos, mães, pais e amigos dos marinheios apinham-se na praia (do
Restelo) para dar seu adeus, envolto em muitas lágrimas e lamentos,
àqueles que partiam para perigos inimagináveis e talvez para não mais
voltar. No meio dessa confusão emocionada, destaca-se a figura imponente
de um velho que, com sua voz "pesada", ouvida até nos navios, faz um
discurso veemente, condenando aquela aventura insana, impelida, segundo
ele, pela cobiça. Diz o velho que, para ir enfrentar desnecessariamente perigos desconhecidos, os
portugueses abandonavam os perigos urgentes de seu país, ainda ameaçado pelos mouros e no qual
já se instalava a desorganização social que decorreu das grandes navegações.
Para além de representar uma opinião corrente na época, que devia ser, em maiorou
menor medida, partilhada pelo próprio poeta, o episódio do Velho do Restelo tem um papel
estrutural no poema. Comenta Valverde (p. 258): "Dentro dos cânones do gênero, jusifica o episódio
a conveniência épica de que o herói parta apesar dos presságios contrários. O Velho é a aldeia, e a
aldeia é ideal dourado, mas anti-heróico. Vasco da Gama parte vencendo as lágrimas do sangue e as
vozes da terra. Que, na realidade, umas e outras houve na partida, afirma-o claramente João de
Barros [historiador contemporâneo a Camões] na Década I: 'dobraram estas lágrimas e começaram
de os encomendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cada um sentia da partida'. Também aqui
temos, portanto, uma base histórica, real, para um episódio moldado em evocações clássicas; uma
vez mais, a visão literária sobrepóe-se ao conhecimento de um fato verdadeiro, aliando poesia e
verdade". E acrescenta: " A fala do Velho do Restelo tem, dentro do poema, um papel análogo ao do
coro trágico, de admoestação desatendida".
90
Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e cuidar dela na velhice, a está abandonando
para servir de alimento aos peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a
frota de Vasco da Gama deixou o cais do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.
91
15
Outra mulher, com o cabelo descoberto (“em cabelo”), pergunta ao marido, sem o qual não poderá viver, o motivo de
ele ir arriscar a vida ao mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a ele; e como ele pode esquecer ou trocar
o sentimento deles pela incerteza dos ventos e do mar. Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da
embarcação, o seu amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do Vento.
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Com estas e outras palavras de amor e de piedade, os velhos e as crianças, a quem a idade faz mais fracos, os
seguiam. E os montes, como se estivessem comovidos, respondiam a estes lamentos com ecos. As lágrimas
molhavam a areia, e eram tantas que, em quantidade, se igualavam à areia.
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Com medo de sofrer ou se arrepender, os nautas (navegantes), não olhavam para as mães e esposas. Vasco da Gama
decidiu que embarcariam sem a despedida costumeira, porque, ainda que seja um bom costume porque mostra o amor
das pessoas, faz sofrer a quem parte e a quem fica.
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Mas um velho de aspecto respeitável (venerável), que estava entre as pessoas, na praia, olhando para os navegadores
e balançando a cabeça negativamente, levantou um pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida claramente pelo que
estavam no mar, e com uma sabedoria feita de experiências disse algumas palavras sábias, inteligentes, e profundas
(“experto peito” - “experto” = experiente, experimentado, culto, inteligente).
95
Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil e sem valor da fama são tolices ilusórias, passageiras (“vaidade”).
Esta satisfação falsa, enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a chamam de honra. Isso castiga grandemente os
homens de coração tolo, vazio (“peito vão”) que ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem
muitos suplícios (“mortes”, “perigos”, “tormentas”) e crueldade.
Note que a expressão “peito vão”, nesta estrofe, se opõe à “experto peito”, na estrofe anterior.
Essas estrofes remetem ao livro bíblico de Eclesiastes, em que o rei Salomão afirma e argumenta que “é tudo
vaidade” (Eclesiastes 1:2) e que “Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo.”
(Eclesiastes 7:5).
96
Esta ambição causa angústia e perturbação (“inquietação d’alma e da vida”), é origem de abandonos e adultérios e
destrói fortunas e Estados. Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de desmoralizantes insultos,
palavras infamantes. Fama e glória são palavras para enganar o povo ignorante e tolo.
97
98
Mas o gênero humano, descendente do insensato e demente cujo pecado provocou não somente sua expulsão e exílio
(“desterro e triste ausência”) do paraíso (“reino soberano”), mas também privou-o do estado de paz e de inocência da
idade de ouro e o colocou, o abateu (“te deitou”) na idade do ferro e das guerras.
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Já que, nessa prazerosa tolice, o homem tanto empenha, arrebata a imaginação, a criatividade; já que dá o nome de
esforço e valentia à violenta crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que deveria ser
sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de perdê-la (refere-se a Cristo, que receou a morte, na
noite anterior à sua crucificação).
100
Já que é assim, não estão ali perto os Mouros (“o Ismaelita”), com quem sempre terá guerras de sobra (muitos
combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes (refere-se ao Corão – lei islâmica, criada por Maomé, profeta de
Alá), enquanto você guerreia (“pelejas”) pela lei de Cristo? Se luta para enriquecer (“terras e riqueza mais desejas”),
os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes (“por armas esforçado”), se o que deseja é ser
glorificado, elogiado pelas vitórias na guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar. Os ismaelitas viviam
numa confederação de tribos no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.
18
101
Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o reino iria se despovoar, se enfraquecer e se
perder. Procura o perigo impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o, em grande
quantidade (“larga cópia”), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso. Primeiro é um sentimento descrito como
“glória de mandar” etc; depois é a “geração daquele insano”, isto é, o gênero humano; então é alguém que procura a
guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o título de “senhor da Índia, Pérsia,
Arábia e de Etiópia” que identifica o próprio rei de Portugal.
102
O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco (“pôs velas nas ondas”), como merecedor do inferno (“dino da
eterna pena do profundo”), se houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto conceito, nem
música (“cítara sonora”) ou poesia (“vivo engenho”) que eternize sua memória por este feito (“Te dê por isso fama
nem memória”), mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua reputação (“seu nome”) e sua
glória.
103
Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens, esse fogo o mundo acendeu em armas, em
mortes, em desonras. Foi um grande erro (“engano”) dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e causado
menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não tivesse o fogo do desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. Prometeu trouxe o fogo
do Olimpo escondido em uma estátua humana. Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe
comia as entranhas.
104
19
— "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!" —
Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não teria ousado guiar o carro do pai, nem o
grande arquiteto e seu filho teriam se arriscado a voar (“cometera o ar vazio”). Um deu nome ao mar e o outro deu
fama ao rio. Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi imprudente e caiu com o carro
do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho
Ícaro que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo realizado (“Por fogo, ferro, água, calma e frio”),
o gênero humano (“humana geração”) não tenta realizar (“deixa intentado”). É um destino miserável e uma estranha
obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).