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Saúde em Debate v.32 n.78/79/80 jan./dez.

2008 Cebes
ISSN 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Saúde em Debate REVISÃO DE TEXTO, PROOFREADING
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E COVER, LAYOUT AND
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revista@saudeemdebate.org.br Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976)
– São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.

v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm

Quadrimestral
ISSN 0103-1104
Apoio
A Revista Saúde em Debate é
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
associada à Associação Brasileira
de Editores Científicos CDD 362.1
Rio de Janeiro v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

ISSN 0103-1104
S U M Á R I O • SUMMARY

Editorial / EDITORIAL 108 R elato de E xperiência


Grupo como dispositivo de vida em um C aps ad: um cuidado em Saúde Mental
para além do sintoma
aPRESENTAÇÃO / PRESENTATION Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms
Milena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann

Artigos ORIGINAIS / Original articles 121 Pesquisa


Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Ensaio 9 An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro
Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir Magda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra
do materialismo dialético
Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination 133 Pesquisa
based on the dialectical materialism Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na
Alice Hirdes Estratégia Saúde da Família
Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health
R evisão 18 Strategy
Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Ionara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares
Psychology and Mental Health: three moments of a history
João Leite Ferreira Neto 143 Ensaio
Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma
Ensaio 27 rede multicêntrica
A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric
dispositivos de Saúde Mental net
Eaps : challenge in the practice of the new devices of Mental Health Mariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos
Silvio Yasui, Abilio Costa-Rosa
150 Pesquisa
Ensaio 38 A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context
formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção Katita Jardim, Magda Dimenstein
da saúde
Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation 161 R elato de E xperiência
of the Mental Health professional in the context of health promotion A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro
Walter Ferreira de Oliveira Psiquiátrico Rio de Janeiro
The construction of a territorial base service: the experience of the Centro Psiquiátrico
Ensaio 49 Rio de Janeiro
Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor Alexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho
compreensão da questão atual
Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the 172 R elato de E xperiência
current debate Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços
Richard Couto, Sonia Alberti substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
60 Linking planning and management contracts in the organization of substitute services
R evisão of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas Gerais
Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos Serafim Barbosa Santos-Filho
brasileiros
The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific
literature DocumentoS HISTÓRICOS / HISTORICAL DocumentS
Tatiana Ramminger
182 Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
Ensaio 72 Comissão de Saúde Mental dos Cebes
A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea
The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Artigos ORIGINAIS / Original articles
Contemporânea
Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino 193 Ensaio
A crise de dominação no sistema público de saúde
Ensaio 83 The domination crisis in the Brazilian public health system
Saúde Mental e cultura: que cultura? Arlene Laurenti Monterrosa Ayala
Mental Health and culture: what culture?
Alexandre Simões Ribeiro 200 Ensaio
François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
Ensaio 92 François Dagognet, for a new philosophy of disease
A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Sabira de Alencar Czermak
Experimental Mu...dança
The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia
Experimental Mu...dança ARTIGO INTERNACIONAL / INTERNATIONAL ARTICLE
Myrna Coelho
207 Ensaio
Pesquisa 99 Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market
substitutiva Mauricio Torres Tovar
The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator
of its substitutive nature
Renata Martins Quintas, Paulo Amarante
Editorial 3

A mbiciosa e revolucionária, a Declaração de Alma-


Ata completou 30 anos sem que seus objetivos
fossem totalmente concretizados. O Centro Brasileiro
Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con-
sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco
são uniformes as abordagens em sua implementação.
de Estudos de Saúde (Cebes) dava seus primeiros passos Vista por alguns gestores como programa seletivo que
quando, em setembro de 1978,  a Organização Mundial oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros, 
da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a meramente como um dos níveis de atenção à saúde,
Infância (Unicef) reuniram no Cazaquistão os represen- ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra-
tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de
saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000. entrada do sistema, a atenção primária tem um papel
A promessa era desenvolver ações urgentes baseadas preponderante no processo de implementação do novo
na participação social e na promoção da atenção básica modelo assistencial do SUS, desde que superadas a
à saúde. O apelo maior era em relação à necessidade superposição de redes de assistência, a falta de unifor-
de uma ordem econômica mundial mais justa e mais midade na execução do Programa Saúde da Família
solidária. (PSF), as  desigualdades no acesso e na utilização dos
A essência da Alma-Ata foi perdida, pois os resul- serviços,  a pouca valorização e formação inadequada dos
tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo, profissionais, a  focalização e seletividade de ofertas do
assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico 
à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na as Assistências Médicas Ambulatoriais (AMA) na cidade
expectativa de vida entre as nações mais pobres e as de São Paulo e as Unidades de Pronto-Atendimento
mais ricas. Os gastos públicos com a saúde nesses paí- (UPA) no município do Rio de Janeiro, alimentadas,
ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por na verdade, pelo marketing eleitoral.
pessoa e por ano. Muitos Governos deram respostas Desde que proposta a ‘re-fundação’ do Cebes, tem-se
inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido voltado muito a atenção para a necessidade de retomada
incapazes de antecipar os problemas e impotentes na do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem
busca de soluções. ao projeto da Reforma Sanitária brasileira. Não se trata
Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reco-
de Saúde (SUS), 30 anos de Alma-Ata, 60 anos da De- nhecer o seu grande êxito na construção do SUS.
claração Universal dos Direitos Humanos ­– O Brasil tem Da mesma forma, não se trata de reinventar o
bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na passado, mas de manter o clima dos movimentos que
tentativa de melhoria da saúde de seu povo. O relatório se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,
anual da OMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên-
atenção primária à saúde em todos os países e destacou cias, de reorientar os compromissos institucionais e de
o Brasil como exemplo. Os avanços na construção da radicalizar a democracia.
política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta
Saúde em Debate, representam bem essa conquista. A DIRETORIA NACIONAL

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008


4 Editorial

A mbitious and revolutionary, the Alma-Ata Decla-


ration has completed 30 years, without the total
fulfillment of its objectives. The Centro Brasileiro de
Even in Brazil, with so many advances, the placing
of primary attention to health is not consensual, and nei-
ther are uniform the approaches in its implementation.
Estudos de Saúde (Cebes) was taking its first steps when, Considered by many managers as a selective program
in September, 1978, the World Health Organization that offers a restricted “basket” of services and, by others,
(WHO) and the United Nations Children’s Fund (Uni- as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t
cef) brought together in Kazakhstan 137 representatives been made possible in its decentralized concept, more
of countries that would reach the goal of providing access extensive and complete. As a strategic front door of the
to a deserving health for all, until 2000, at the latest. system, primary attention plays a preponderant role
The promise was to develop urgent actions based on in the process of implementing a new SUS assistance
social participation and on the promotion of basic atten- model, as long as some issues can be overcome, such
tion to health. The greatest plea was related to the need as the superposition of assistance networks, the lack
for a fairer and more solidary economic world order. of uniformity to execute the Family Health Program
The essence of the Alma-Ata was lost, because the (PSF), the inequalities to access and to use the services,
sanitary results have never been so unequal in the world, the little importance given to professionals and their
as well as the access to health, which has never been so inadequate qualification, the focalization and selectivity
precarious and unfair. Nowadays, the difference of life of minimum emergency room offers – in this topic are
expectation rates between the poorest and the richest included the Ambulatory Medical Care (AMA), in São
nations is of more than 40 years. Public expenses with Paulo, and the Emergency Rooms (UPA), in Rio de
health in these countries vary, respectively, from 20 to Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.
6 thousand dollars per person and per year. Many Go- Since the proposal of re-founding Cebes, there has
vernments have given inadequate answers regarding this been a lot of attention into the need to retake the critical
sector, and have also been incapable of anticipating the spirit, the preposition debate that originated the Bra-
problems and impotent in the search for solutions. zilian Sanitary Reform project. It is not about insisting
On an ephemerides year – 20 years of National on the resurrection of the reform itself, but recognizing
Health System (SUS), 30 years of Alma-Ata, 60 years of its great success in constructing SUS.
the Universal Declaration of Human Rights – Brazil has Also, it is not about reinventing the past, but
good reasons to be proud of the work accomplished in keeping the atmosphere of the movements that were
the attempt to improve people’s health. The World Health organized around collective ideas and projects, which
Report 2008 has once again recommended the adoption were able to exercise the criticism, recognize deficien-
of primary attention to health in all countries, and poin- cies, reorient institutional commitments and radicalize
ted Brazil as an example. The advances in constructing a democracy.
Mental Health national policy, one of the subjects of this
Saúde em Debate, clearly represent this achievement. THE NATIONAL DIRECTORATE

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008


Apresentação 5

E sta revista surge num momento muito especial,


afinal, comemoram-se os 30 anos da Reforma Psi-
quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos
A revista é iniciada com uma série de artigos de
natureza conceitual. Aqui se incluem os artigos de
Alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica
uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um e da reabilitação psicossocial a partir do materialis-
hospital psiquiátrico. O objetivo desta imagem provo- mo dialético, de João Leite Ferreira Neto, com uma
cativa é demarcar a distância histórica, ética e política análise história de três momentos da psicologia em
entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual Belo Horizonte, de Silvio Yasui e Abilio Costa-Rosa,
de participação dos usuários na construção da política, que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo
serviços e estratégias em Saúde Mental. modelo de atenção psicossocial, de Walter Oliveira
No início deste ano, em meio às comemorações dos que aborda as bases conceituais da Saúde Mental
30 anos de reforma, foi realizado, no Rio de Janeiro, e sua relação com a formação dos profissionais no
o II  Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde contexto da promoção da saúde. O artigo de Richard
Mental e Direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas, Couto e Sonia Alberti apresenta um histórico sobre
militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi- o conceito de Reforma Psiquiátrica e a tensão entre
tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série,
construindo um novo cenário para a Saúde Mental no uma importante revisão de estudos brasileiros sobre
Brasil e em várias partes do mundo. Saúde Mental do trabalhador, de autoria de Tatiana
Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos Ramminger.
este número especialmente dedicado ao tema da Saúde A intervenção no campo da cultura tem assumido
Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental, um papel importante no processo da Reforma Psiqui-
organizado pela recém-criada Associação Brasileira de átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos
Saúde Mental (Abrasme). é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental.
Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a O texto de Ricardo Aquino trata dos fundamentos e
importante contribuição que o campo da Saúde Mental princípios da Escola Livre de Artes Visuais do Museu
tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan- Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Alexandre
do a relação instituição-usuário e de institucionalização, Ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental
destacando a importância do trabalho e do envolvimento e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a
da família, bem como a importância do trabalho no dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica a
território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri- partir das experiências vivenciadas na Companhia
buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental Experimental Mu...dança.
não será consultada apenas por profissionais da área, Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dispo-
mas de toda a saúde pública. sitivos estratégicos da política pública de Saúde Mental

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008


6 Apresentação

brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de Renata Na seção de Documentos Históricos, republicamos
Quintas e Paulo Amarante que discorrem sobre as uma das primeiras manifestações políticas do processo
características inovadoras e substitutivas de tais dispo- de Reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro-
sitivos. O artigo de autoria de Milena Leal Pacheco e dução crítica em Saúde Mental no país. Trata-se de um
Luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental
grupo em um Caps especializado em dependência quí- do Cebes, intitulado Condições de assistência ao doente
mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento mental que, trazendo uma análise bastante precisa das
dos usuários de drogas no Rio de Janeiro no texto de características de desassistência e violência institucional
Magda Vaissman et al. do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no
Outro tema importante diz respeito às relações e I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos De-
possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio,
da Família que, de formas distintas, está presente nas o Cebes apresentou à sociedade brasileira a proposta
abordagens dos artigos de Ionara Rabelo e Rosana do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico
Carneiro Tavares, através dos resultados de uma in- texto A questão democrática na área da saúde. A capa da
tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de presente edição traz uma das ilustrações desse texto.
ansiolíticos, e de Mariana Dorsa Figueiredo e Rosana Temos uma pauta bastante ampla e variada, que
Onocko Campos, que traz algumas observações acerca caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão
do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica do campo da Saúde Mental.
à saúde. Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de
A atenção aos usuários em crise é um dos aspectos Arlene Laurenti Ayala com uma instigante análise sobre a
mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da crise de dominação ou controle das instituições de saúde
Reforma Psiquiátrica. Três artigos são dedicados a esse por parte dos trabalhadores de saúde e da população. O
tema: O de Katita Jardim e Magda Dimenstein, que traz texto de Sabira de Alencar traz as reflexões do filósofo,
um análise das práticas do Serviço de Atendimento Mó- médico e epistemólogo François Dagognet, o precursor,
vel de Urgência (Samu) em Aracaju e suas articulações a seu modo, da tradição de seu mestre Georges Cangui-
com a rede de atenção psicossocial; o artigo de Alexandre lhem. Na seção internacional, Maurício Torres analisa
Keusen e Andréa da Luz Carvalho relata a trajetória de em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao
um centro de atenção em Saúde Mental que atende à financiamento e funcionamento do modelo de saúde
crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim colombiano.
Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento
e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental Boa leitura!
em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos Paulo Amarante
para os gestores. Editor Científico

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008


Presentation 7

T his magazine appears at a very special moment,


after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric
Reform in Brazil is commemorated. To celebrate this
The magazine starts with a series of articles of
conceptual nature. Here are included articles by Alice
Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-
date, we have selected a strange cover: a picture of prison social rehabilitation from dialectic materialism; by João
cell bars of a psychiatric hospital. The purpose of this Leite Ferreita Neto, with historical analysis of three
provocative image is to delimit the historical distance, moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio
ethics and politics between the initial moment, 1978 Yasui and Abilio Costa-Rosa, who discourse about the
and 1979, and the current scenery of users’ participation strategies and challenges of the new model of psychoso-
in the construction of Mental Health politics, services cial attention; by Walter Oliveira, who approaches the
and strategies. conceptual basis of Mental Health and its relation to
In the beginning of this year, during celebrations the graduation of professionals in the context of pro-
for the thirty years of the reform, the 2 International
nd
moting health. The article by Richard Couto and Sonia
Forum about Collective Health, Mental Health and Alberti presents the history of the Psychiatric Reform
Human Rights took place in Rio de Janeiro. More than concept and the tension between clinic and psychosocial
3 thousand people, militants in different fields of health attention and, to end the series, an important review of
and human rights, have participated in this Forum, Brazilian studies about Mental Health of workers, by
debating and constructing a new scenery for Mental Tatiana Ramminger.
Health in Brazil and around the world. The intervention in the culture field has been
To end the year with a cherry on top, we have assuming an important role in the process of the Bra-
released this issue, specially dedicated to the theme of zilian Psychiatric Reform and, because of that, another
Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental block of articles is dedicated to the relation between
Health, organized by the recently created Associação culture and Mental Health. A text by Ricardo Aquino
Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). about the fundamentals and principles of the Escola
There is consensus in the collective health area Livre de Artes Visuais from the Museu Bispo do Ro-
about the important contribution brought by the sário de Arte Contemporânea is presented. Alexandre
Mental Health field for health in general, rendering Ribeiro approaches the articulations between Mental
problematic to the relation institution-user and institu- Health and culture and Myrna Coelho comments on
tionalization, accentuating the importance of health and the sociocultural dimension of the Psychiatric Reform
family involvement, as well as the importance of field from experiences seen in the dancing group Companhia
work. Anyway, there many recognized contributions. Experimental Mu…dança.
We know that a magazine about Mental Health will The Psychosocial Care Centers (the so called Caps
not be consulted only by professionals of the field, but in Brazil), strategic devices from the public policy of
by the whole public health. Brazilian Mental Health, are objects of research in the

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008


8 Presentation

article by Renata Quintas and Paulo Amarante, who the process of Psychiatric Reform in Brazil, a mark of
discourse about the innovative and substitutive charac- critical production on Mental Health in the country. It
teristics of these institutions. The article by Milena Leal is a document developed by the Mental Health Com-
Pacheco and Luiz Zielgman brings subjects to reflect mittee of Cebes, entitled Condições de assistência ao
about group therapy at a Caps that is specialized in doente mental, that, by bringing a very precise analysis
chemical dependence; we also contemplate an analysis of the characteristics of unassistance and institutional
of drug users` treatment in Rio de Janeiro, in the text violence of the early psychiatric model, was presented
by Magda Vaissman et al. at the 1st Symposium of Health Policies in the Deputy’s
Other important theme argues about the relations in October, 1979. In this symposium, Cebes presented
and possibilities between the field of Mental Health and to the Brazilian society the proposal of the Unified
Family Health that, in distinct ways, is present in the National Health System (the so called SUS in Brazil)
analysis of articles by Ionara Rabelo and Rosana Carnei- from the historical text A questão democrática na área da
ro Tavares, through results of a psychosocial intervention saúde. The cover of the present edition has one of the
in women who were on anxiolytics, and by Mariana illustrations of this text.
Dorsa Figueiredo and Rosana Onocko Campos, that The subjects are very broad and varied, which cha-
brings some observations about matricial support to racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension
Mental Health in the primary health care. of the Mental Health field.
The attention to users in crisis is one of the most In the general themes section, we have published
serious aspects and jeopardizes the whole process of the the articles by Arlene Laurenti Ayala with a provoking
Psychiatric Reform. Three articles are dedicated to this analysis about the domination crisis or the control of the
subject: The one by Katita Jardim and Magda Dimens- health institutions by the health workers and the popu-
tein, which brings an analysis of practices of the Mobile lation. The text by Sabira de Alencar brings reflections
Urgency Service (the so called Samu in Brazil) in Aracaju of the philosopher, doctor and epistemologist François
and its articulations with the net of psychosocial atten- Dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition
tion; the article by Alexandre Keusen and Andréa da Luz of his master Georges Canguilhem. In the international
Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care section, Maurício Torres analyzes the aspects related to
Center that attends to the crisis and is based on the logic the structure, financing and functioning of the Colom-
of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the bian health model.
rich experience in planning and managing the net of
services of health and Mental Health in Belo Horizonte, Enjoy your reading!
pointing out important directions for managers.
In the section of Historical Documents, we have Paulo Amarante
republished one of the first political manifestations on Scientific Editor

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 9

Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial:


uma leitura a partir do materialismo dialético
Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation:
an examination based on the dialectical materialism

Alice Hirdes 1

1
Mestre em Enfermagem pela RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial
Universidade Federal de Santa Catarina
teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação
(UFSC); docente de Saúde Mental
da Universidade Luterana do Brasil
e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no
(Ulbra). contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do
alicehirdes@gmail.com concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram
historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação
psicossocial.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; 


Desinstitucionalização; Marxismo.

ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological


theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss
the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The
laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical
support to the analysis of the movements that have taken place in the field of
mental health as well as in psychosocial rehabilitation.

KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization;


Marxism.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008


10 HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

I N T R O D U ç ão compreender as diferenças numa unidade ou totalidade


parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas,
isto é, do modo de relacionamento entre as várias
instâncias da realidade e o processo de constituição da
totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em
análise, as determinações essenciais e as condições e
efeitos de sua manifestação. (Minayo, 1988, p. 70).
Este artigo tem como objetivo realizar uma re-
flexão teórica sobre o tema da Reforma Psiquiátrica
Ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik
e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo
(1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método
dialético. Recorreu-se a autores como Lukács (1979),
que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um
Konder (1981), Kosik (1995) e Lefebvre (1991), a fim
panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade
de se resgatarem os princípios e leis da dialética que
e do conhecimento que se tem dela como realidade. É
sustentam uma interpretação dos fenômenos com base
a partir do entendimento da realidade como concretude
materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno,
possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem
fixo, absoluto. Toda vida humana é social e está sujeita
concepções da realidade. Dessas concepções decorrem
a transformações, ou seja, está historicamente condi-
conclusões metodológicas que se convertem em princípios
cionada. O sujeito humano é essencialmente ativo e
epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou
interfere na realidade. Para a história sociológica (ou
de práticas relativas à organização da vida humana e da
sociologia histórica), os seres humanos não são apenas
situação social. Kosik enfatiza que
objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao pro-
cesso investigatório. a totalidade concreta não é um método para captar
e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades,
relações e processos da realidade; é a teoria da realidade
como totalidade concreta. (1995, p. 44).
UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO
MATERIALISMO DIALÉTICO Pontua, também, que totalidade não significa conhe-
cer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um
A lógica dialética, conforme Minayo (1998), todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto
“introduz na compreensão da realidade o princípio de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. O
do conflito e da contradição como algo permanente conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig-
que explica a transformação” (p. 68). Outra tese nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião
fundamental da dialética é “o caráter total da exis- de determinados fatos não constitui ainda a totalidade.
tência humana e da ligação indissolúvel entre história Se compreendidos como partes estruturais de um todo
dos fatos econômicos e sociais e história das idéias” dialético, os fatos são conhecimentos da realidade.
(p. 69-70). Konder (1981) também ressalta a característica
A partir do conceito de totalidade, que busca reter totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa
a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre teoria decompõe o todo em partes para depois recompô-
o processo de pesquisa. O princípio metodológico da lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que
totalidade significa: tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do

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todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de- isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um
senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis- constante caminho traçado do concreto ao abstrato
ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum,
obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos
realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última, fenômenos do todo. A complexidade da dialética se dá
o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e pela busca constante da superação, pela não-satisfação
práticas são executados de forma isolada, estanque, cada com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas
um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer de apreensão da realidade e a explicitação que as contra-
que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que dições da realidade e dos fenômenos encerram.
a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas De acordo com Lukács:
entre si, será outra.
Este autor chama atenção para o fato de que a apro- o conhecimento, que está em condições de apreender
dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é vá-
ximação da realidade não é a realidade, e que a realidade
lido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos
é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem expedientes para a ação prática, cujas experiências virão,
dela. Outra noção diz respeito à visão de conjunto da por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe
realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali- uma força sempre nova. (1979, p. 237).
dade não é estática, mas dinâmica e em está constante
transformação; não se pode pretender o esgotamento Entendo que o conhecimento deverá ser passível de
da realidade de determinado contexto. Ou seja, nunca ser traduzido em uma prática; prática essa transforma-
a realidade alcança uma forma definitiva, acabada. dora e que, se entendida a partir do conceito marxista
A dialética, enquanto conceito grego da arte do de práxis – união da prática com a teoria – pode levar
diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o
de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus estudo de outras formas de tratamento e recuperação
familiares, assim como pela interlocução estabelecida de portadores de transtornos psíquicos emerge como
entre profissionais de equipes interdisciplinares. A dia- uma força que se empenha na busca de soluções mais
lética enquanto conceito moderno do modo de pensar completas e complexas, visualizando a totalidade do
as contradições da realidade e modo de compreender ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação
a realidade em constante transformação nos remete das idéias acerca da realidade e a transformação dessa
à busca constante de novas formas de abordagem da realidade devem caminhar juntas.
complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por De acordo com Kosik (1995) o homem não está
formas mais completas nas quais, através da construção emparedado na subjetividade, mas tem com a sua
de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí- existência a capacidade de conhecer as coisas como elas
quico reencontre e reescreva a sua história. realmente são. E este conhecimento se dá através da
Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen- práxis. A dialética, para o autor, trata da “totalidade do
sar as contradições da realidade, a história humana e a mundo revelada pelo homem na história e o homem
transformação da sociedade, nos leva a uma permanente que existe na totalidade do mundo” (p. 248).
inquietação, porque não se satisfaz com a aparência O princípio metodológico da investigação dialética
das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para da realidade social é, para o autor anteriormente referido,

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12 HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente
que cada fenômeno pode ser compreendido como um busca-se melhorar a vida do ser humano portador de
momento do todo. Ressalta-se que um fenômeno social é transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação
um fato histórico que desempenha dupla função: definir psicossocial.
a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser Aos novos serviços deverá corresponder uma clínica
revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con- renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual
quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos
mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que projetos terapêuticos que contemplem as necessidades
os fatos isolados são momentos artificiosamente separa- psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá
dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante
quando inseridos no todo correspondente. Assim como se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos
o todo, se os momentos não forem separados tornam-se construídos a partir dos profissionais; devem ser cons-
um todo vazio e abstrato (Kosik, 1995). truídos coletivamente com os maiores interessados: os
Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo usuários.
alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o
trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento hu-
mano através da qual pode ser compreendida a atividade
criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de supe- PRINCIPAIS LEIS
ração dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que
significa suspender. O filósofo emprega três diferentes Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-
sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular, to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago,
cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro
suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a de uma perspectiva materialista. As três leis da dialética
passagem de alguma coisa para um plano superior. A su- formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da
peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei
da negação de uma determinada realidade, a conservação da unidade e luta dos contrários e lei da negação da
do essencial que existe na realidade negada e a elevação negação.
dela a um nível superior (Konder, 1981). Alguns autores contemporâneos como Lefebvre
Abstraindo da concepção dialética a questão e Konder entendem que as leis da dialética não se
negação-superação para o referencial de reabilitação deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão
psicossocial, trago a negação da realidade assistencial de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa
dos portadores de transtornos mentais centrado no que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com
modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate precaução. Lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis
e a centralização do foco nas habilidades e a busca do do método dialético deverão ser universais e concre-
trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção tas. Para este autor o método representa o universal
social, cidadania e qualidade de vida. Ou seja, nega-se concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo,
a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais leis do real e do pensamento. Deverão ser concretas
e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza- para atingir toda a realidade, mas não podem subs-

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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético 13

tituir a investigação e o contato com o conteúdo. E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento
Através da investigação das realidades particulares, universal, que reintegra o movimento interno dos fatos
da experiência e do contato com o conteúdo pode-se e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no
chegar à essência, ao conceito e às relações das leis devir e vir-a-ser universal. A pesquisa dialética considera
particulares. O autor ressalta: cada fenômeno no conjunto de suas relações com os
demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre-
o método é alternadamente a expressão das leis uni- endemos a reintegração dos fenômenos – institucionali-
versais e o quadro de aplicação delas ao particular;
zação/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em
ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular
subunir-se ao universal.(1991, p. 237). seu movimento próprio. Através do movimento destes
fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a
As grandes leis do método dialético para Lefebvre conexão entre eles.
são: lei da interação universal (da conexão, da media- A lei da unidade (interpretação) dos contrários nos
ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento fornece a idéia de que a contradição dialética é uma
universal; lei da unidade dos contrários; transformação inclusão concreta dos contraditórios um no outro e,
da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de- simultaneamente, uma exclusão ativa. Diferentemente
senvolvimento em espiral (da superação). da lógica formal que conserva os dois contraditórios à
A lei da interação universal prevê que nada é margem um do outro, que estabelece uma relação de
isolado. O isolamento dos fatos e fenômenos significa exclusão. A contradição dialética se situa no universal
uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo. concreto, enquanto a contradição formal permanece na
A pesquisa dialética considera cada fenômeno no generalidade abstrata.
conjunto da inter-relação com os demais fenômenos
O método dialético busca captar a ligação, a unidade,
e, também, o conjunto da realidade na qual ele é
o movimento que engendra os contraditórios, que os
fenômeno. opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou
Essa lei estabelece uma conexão importante dos os supera. (Lefebvre, 1991, p. 238).
processos de institucionalização/ desinstitucionalização
e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten- Nessa lei, situo a institucionalização e a desins-
dimento anterior sobre a conformação do instituciona- titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente
lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante contraditórias), como dois lados opostos um ao
décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o outro, mas com uma unidade em comum: o foco na
entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em abordagem da doença mental. Conforme o contexto,
sua totalidade. A reabilitação psicossocial nasceu de prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou
um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes a desinstitucionalização. As idéias contidas em um
internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos e em outro modelo entram em choque na realidade
1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes concreta através das práticas executadas. A realidade
ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos da desinstitucionalização não pode ser compreendida
psiquiátricos (Saraceno, 1999). Dessa forma, a rea- sem o prévio entendimento da institucionalização,
bilitação psicossocial não pode ser tratada como um assim como a conexão estabelecida com a reabilitação
fenômeno isolado. psicossocial.

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14 HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

As modificações quantitativas, lentas e graduais Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para
desembocam em uma modificação qualitativa que apre- a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica, em Caracas,
senta características bruscas, tumultuosas, expressam a que resultou na Declaração de Caracas. Finalmente, em
crise e a metamorfose através da intensificação de todas 1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde
as contradições. É a transformação da quantidade em Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere
qualidade, também chamada lei dos saltos. O salto às conferências e à legislação (porque os serviços conti-
dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril
descontinuidade. Ou seja, o movimento que continua de 2001, da Lei de Reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi
e o aparecimento do novo. estabelecido um novo fórum de discussões por meio da
Trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental.
processo de desinstitucionalização identificadas em A lei do desenvolvimento em espiral defende que
alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida,
no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. As e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade
transformações políticas, a redemocratização no país, a sempre renovada entre o individual e o universal, que
Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e submete esse individual às leis universais. É na sociedade
o Movimento pela Reforma Sanitária desembocaram e no pensamento que se revela o movimento em espiral:
em um movimento pela Reforma Psiquiátrica no Bra- o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá-
sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição
mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de- dialética da negação da negação.
núncias expostas à opinião pública e o surgimento de
novas experiências em Saúde Mental, com características
desinstitucionalizantes. Observa-se como característica
do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital APLICAÇÃO DO MATERIALISMO
psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E
e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda REABILITAÇÃO
não superados; e a descontinuidade, que compreende
o aparecimento de novos serviços respaldados pelas Considero esta lei fundamental para a compreensão
iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental. das mudanças e movimentos que o processo de Reforma
Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos
não mudarem sempre no mesmo ritmo. Transpondo conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-
para a questão da Reforma Psiquiátrica, foi possível renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do
observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida
intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser- das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo-
viços, assim como períodos em que houve uma desace- delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico,
leração do processo. Historicamente, podemos situar as nos sinais e sintomas, nos déficits. Através da modificação
décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo
discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,
a
no país. Em 1987, ocorreu a 1 Conferência Nacional de permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico,

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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético 15

e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des-
usuário/paciente e o profissional desses limites. Ocorre aí peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da
um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já Reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de
que o tratamento continua a ser realizado, mas associado constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas
com técnicas de reabilitação psicossocial. A partir da em curso para que aos novos serviços correspondam as
união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial
do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se da Reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-se que os projetos
aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe-
completas. A lei da negação da negação promove refina- cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais
mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia da área. Dessa forma, é possível visualizar a existência de
para se promover a superação dialética. princípios orientadores gerais, mas que em última análise
Dentro de uma perspectiva mais ampla, de to- estão subordinados aos settings específicos das práticas.
talidade, considera-se de fundamental importância o Através da negação da negação, ou seja, a negação de uma
diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente determinada realidade centrada na exclusão (na doença)
estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,
contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi- na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento
cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê psíquico, deverá prevalecer a superação dialética.
margem a possíveis redimensionamentos. Ressalta-se Os serviços se constituem, para Saraceno (1999),
a necessidade de leitura do contexto dentro de uma como a variável que influi no processo reabilitativo.
mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada O autor assinala como característica de um serviço de
em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de
as forças e os aspectos sadios constitui uma transição todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de
importante no processo de tratamento e reabilitação, reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços
assim como a noção de indissociabilidade de ambos. que não oferecem essas possibilidades acabam gerando
Lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas hierarquias de intervenção, e os menos dotados são
constituem uma análise do movimento e no movimento excluídos do processo. O autor ressalta que um serviço
real estão implicadas a continuidade e a descontinui- de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com
dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos alta integração interna e externa:
qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos
do movimento. As leis dialéticas pressupõem uma uni- [...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e
dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e
dade fundamental, que é encontrada no movimento,
em que a organização está orientada às necessidades
no devir universal. O que ocorre, segundo o autor, é a do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97).
ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de
estudo realizado. A integração interna e externa também deverá
A partir desta constatação, utilizo como referência acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-
para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi- to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará
mento em espiral, representado pela negação – superação possível e concreta se os profissionais visualizarem a
dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências importância da não-dissociação e assumirem ambos,

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16 HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

o tratamento e a reabilitação. A idéia contida nessa Acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia
proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas (1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição
vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu- em termos estruturais, através de novos esquemas,
tado por uns e a reabilitação, por outros. Ou seja, há que garantirá ações terapêuticas, mas as relações
a necessidade de não-separação do trabalho manual do que se estabelecerão dentro das novas organizações
intelectual reproduzido dentro dos serviços para que assistenciais. Os novos serviços deverão atentar para
haja a superação dialética. as possíveis (e concretas) contradições que podem se
Saraceno (1999) alerta que, na integração interna configurar no seu interior. Uma dessas contradições
de um bom serviço devem ser contempladas estratégias se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não
organizativas e afetivas. A permeabilidade dos recursos ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia
e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen- postula que as contradições do real deverão ser
demos que esse patamar deveria se constituir no ideal dialeticamente vividas. É importante ressaltar que,
a ser alcançado pelos serviços. Os movimentos nos ser- nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as
viços, quando encaminhados às questões organizativas contradições não forem ignoradas ou postergadas,
e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se
dialética. Da mesma forma, quando os conflitos e tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna-
contradições forem dialeticamente trabalhados, e não tivas, possibilidades.
ocultados, será promovida a descontinuidade; o apa-
recimento do novo e a explicitação das contradições
conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças
reais nos serviços. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Saraceno, Asioli e Tognoni (1997) destacam a
atitude de integração da equipe como uma das muitas Resgato a lei da dialética, defensora de que a nega-
variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten-
intervenção. Tais variáveis, relacionadas à organização e dida como a negação de uma determinada realidade e
ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou a força, como aquela que se empenha na construção de
desfavoráveis. Os autores conceituam uma equipe inte- outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser
grada com variável favorável e que deve ter as seguintes empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi-
características: distribuição do poder; importância dos camente na área da reabilitação psicossocial. Resgata-se,
conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória; neste processo, toda a potencialidade para a produção
discussão e planificação do trabalho; socialização dos de vida significativa ao ser humano. Nesse momento
conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos ocorre um salto qualitativo significativo, através de
resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos uma práxis transformadora que vislumbra todas as
à integração interna, os autores apontam a separação possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à
prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife- pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite
rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos alcançar refinamentos conceituais que, em última análi-
papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis
os membros da equipe. da Reforma Psiquiátrica.

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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético 17

O foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a Lukács, G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo:
validação da identidade dos usuários, bem como a abor- Ciências Humanas, 1979.
dagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos
Minayo, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa
conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos
qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/
serviços pautada na égide da Reforma Psiquiátrica. Esses Abrasco, 1998.
diferenciais que contornam as ações introduzem saltos
qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pesso- Saraceno, B.; Asioli, F.; Tognoni, G. Manual de saúde
mental. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
as. A superação dialética é alcançada no momento em
que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos
Saraceno, B. Libertando identidades: da reabilitação psi-
subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares cossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Instituto
de cada pessoa. Franco Basaglia/Te Corá, 1999.
Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o
Recebido: abr./2008
doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora,
Aprovado: nov./2008
na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social
dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada
de consciência sobre a importância dessas intervenções
produz movimentos de superação da objetalização a que
foi submetido o doente e, também, a reconstrução de
um corpo físico, subjetivo e social.

R E F E R Ê N C I A S

Basaglia, F. (Org.). A instituição negada: relato de um


hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

Konder, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense,


1981. (Coleção Primeiros Passos).

Kosik, K. Dialética do concreto. 6. ed. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1995.

Lefebvre, H. Lógica formal/lógica dialética. 5. ed. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

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18 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história


Psychology and Mental Health: three moments of a history

João Leite Ferreira Neto 1

1
Professor do Programa de Pós- RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória
graduação em Psicologia da Pontifícia
dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde
Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas); doutor em psicologia da
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas Gerais. O primeiro é aqui
PUC São Paulo. chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio
jleite.bhe@terra.com.br matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área.
Conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação
clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde
Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a
ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente
prática matricial.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial;


Apoio matricial; Psicoterapia de Grupo.

ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists


trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field
of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The first
moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third,
matrix support. This paper is examines a literature review and documents of
the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical
training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental
Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis
in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand,
enables the professional to work with present-day practice in matrix support.

KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix


support; Psychotherapy, Group.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008


FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história 19

I N T R O D U ç ão A polaridade entre abordagens individuais e coletivas,


e a composta pela especificidade da Saúde Mental e
da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo
da saúde geral e reforma sanitária. Além da necessá-
ria revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de
Quando a psicologia foi reconhecida como profis- dados será um conjunto de documentos produzidos
são em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote- no decorrer da história mineira e da nacional.
rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório,
a organizacional e a educacional. A saúde pública ainda
não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos
Momento ‘implantação’ – anos 1980
essa situação mudou drasticamente.
Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca-
O Programa de Saúde Mental foi oficialmente
dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)
implantado em Minas Gerais, na Região Metropolitana
contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de
de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do go-
Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos
vernador Tancredo Neves pelo Partido do Movimento
profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi-
Democrático Brasileiro (Pmdb). Nesse período, um
cologia (Spink, 2007). Diversos estudos apontam que a
número expressivo de profissionais de saúde com perfil
crescente presença dos psicólogos na saúde pública no
progressista ocupou postos importantes na Secretaria de
Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátri-
Estado de Saúde. É importante lembrar que o período
ca e com a criação do campo chamado de Saúde Mental
de abertura democrática no país consolidou uma
(Dimenstein, 1998; Ferreira Neto, 2004).
O objetivo deste artigo é a apresentação de al- [...] tática desenvolvida inicialmente no seio do mo-
guns elementos da história da entrada e do percurso vimento sanitário, de ocupação de espaços públicos
dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde de poder e de tomada de decisão como forma de in-
troduzir mudanças no sistema de saúde. (Amarante,
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas 1998, p. 91).
Gerais. As fontes bibliográficas e documentais pesqui-
sadas indicam que a construção desse percurso nesse A chamada Nova República tornou-se o apogeu
município ocorreu em três momentos, marcados por dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,
características próprias, em que a noção de Saúde juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu
Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas com o próprio Estado.
diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua Os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa
integração no contexto do SUS. Na década de 1980, Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI
ocorreu o primeiro período chamado de implantação, Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração
seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial, entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados
respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa atendendo em centros de saúde sem ligação com um
análise histórica abordará com maior atenção a pre- projeto ou programa que organizasse ações em Saúde
sença de duas polaridades que atravessam este campo. Mental.

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20 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

A proposta do Pisam parte da avaliação de uma Nos antecedentes à oficialização do Programa


prevalência de transtornos mentais de 18% e uma de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada
demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem e genérica do que poderia ser definido como Saúde
ações de prevenção primária, integração da Saúde Mental na rede pública. Algumas vezes, era entendida
Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o
leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais doente grave, como as ações preventivas e a participação
não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,
primária era considerada eficaz a realização de “grupos mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda
operativos de gestantes, mães, professores e o atendi- pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.
mento a crises” (Mendonça Filho; Alkimin, 1998, p. Já no Programa de Ações da Saúde Mental da Re-
25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do
conduzido por psicólogos. programa na região metropolitana de Belo Horizonte,
Quanto ao atendimento clínico individual, os Minas Gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas
graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços
franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria
psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico- com algumas prefeituras. As equipes são estabelecidas
logia. O Pisam teve curta duração devido, entre outras como referência secundária, ou seja, como atendimento
causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos especializado. A princípio, o Programa de Saúde Men-
privados (Mendonça Filho; Alkimin, 1998). tal buscava formular, de modo ainda primário, uma
Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde concepção integral de saúde – o famoso trinômio do
1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde
de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),
de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram psicólogo (psico) e assistente social (social). A falta de
as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em experiência para uma formulação mais sofisticada do
centros de saúde no município. A atuação na época era que seria um trabalho em equipe multiprofissional e
voltada para a demanda infantil, para a participação em interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-
outros programas em andamento nas unidades (pueri- nativa mais óbvia.
cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação O documento retoma o histórico anterior do Pisam
junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com
no documento pela priorização do trabalho em grupos, muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-
“por permitir uma melhor resposta a demanda” (Secre- jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.
taria Municipal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à
ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar, demanda específica (doença mental), apoio aos demais
eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma, programas dos centros de saúde integrando a Saúde
a expressão Saúde Mental era tomada de um modo Mental no contexto global da saúde, apoio técnico
genérico, sem relação com as propostas da reforma ao nível primário, articulação com os recursos das
psiquiátrica. comunidades (escolas, creches, hospitais e associações

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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história 21

de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-
do programa. Apenas no primeiro eixo é mencionada a ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio
necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final- da psiquiatria. Somente quando Programa de Ações é
mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,
‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a
de evitar ‘internações desnecessárias’ (Secretaria de atuação dos psicólogos aos pacientes graves.
Estado de Saúde, 1985, p. 8). Ainda não se falava em Nesse momento, é marcante a preocupação da
substituição do modelo hospitalar. integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde
A ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten- e a participação de seus profissionais em ações cole-
dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma tivas com outros profissionais do serviço. As práticas
de abordagem das questões de Saúde Mental” (Secre- de grupo se constituem numa importante diretriz de
taria de Estado de Saúde, 1985, p. 7). Aponta ainda trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais
que a intervenção em grupos é um trabalho que exige agentes. Além disso, é preconizado o apoio técnico ao
constante discussão e aprofundamento por parte dos nível primário, estratégia que somente se consolidará
profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por no terceiro momento de ‘apoio matricial’.
avaliação de seus impactos.
A partir desse período os psicólogos continuam
envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos
serviços, mas também começam a receber a clientela Momento ‘antimanicomial’ – anos 1990
prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes
com transtornos graves e persistentes. Como notificado A passagem entre os dois primeiros momentos
no documento, a formação em serviço por meio de su- analisados está atravessada por alguns importantes
pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais eventos. O primeiro deles, no ano de 1987, foi o II
constante. Além disso, inicia-se o curso de Especializa- Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental
ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por
de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede, uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de
oferecido pela Escola de Saúde de Minas Gerais (Esmig), maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Os
com forte acento na prática clínica de base psicanalítica psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores
lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando
ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-
tornará Escola Brasileira de Psicanálise. borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar
Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por- a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do
tador de algumas características. Anterior à implantação movimento em relação ao Estado. As diretrizes apon-
oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais tavam para um caminho de alargamento das fronteiras
de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse da luta para uma ação no interior da própria cultura,
campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra- trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano
mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade
atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do puramente assistencial e criava pontes entre as ações no

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22 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu, centros de referência em Saúde Mental (Cersam, versão
desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou mineira dos Centros de Atenção Psicossocial – Caps).
da desconstrução/invenção” (Amarante, 1998, p. 93), Um importante documento que avalia esse período
induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista foi publicado numa coletânea organizada por técnicos
e sua tática de ocupação da máquina estatal. Desde essa da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,
nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade sobre a gestão da saúde. O capítulo que nos interessa
civil e os movimentos populares e com as associações de é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de
usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental
e da opinião pública. da SMSA (Lobosque; Abou-Yd, 1998). Nesse docu-
Através do segundo evento, em 1989, a reforma mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o
psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter- projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão
venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva
na Casa de Saúde Anchieta e a seqüente criação de dis- “a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição
positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que por outro modelo de atenção (p. 244).
inspirou várias experiências posteriormente conduzidas O texto, que possui uma função de relatório da
por todo o país (Amarante, 1998, p. 83). gestão, possui um marcado tom político de ruptura
Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada
ao Congresso do Projeto de Lei 3.657/89 visando re- em pelo menos quatro aspectos. O primeiro deles, de
gulamentar o processo de reestruturação da atenção à cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação
Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-
Paulo Delgado (Partido dos Trabalhadores de Minas mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,
Gerais, PT/MG). em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as
Em Belo Horizonte, somente durante a gestão autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário,
municipal do prefeito Patrus Ananias, do PT (1993 é estabelecida uma divisão indesejada
a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSA)
de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para [...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os
pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas,
priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos
mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas
pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos em geral. (1998, p. 245).
profissionais ficassem comprometidas e congestionadas
com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha- O projeto propõe o abandono do modelo america-
da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente
quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela pelo Programa da Região Metropolitana de 1985, com
cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços
para a SMSA o psiquiatra César Campos, engajado, já especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-
de longa data, com os movimentos de luta contra o nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por
aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos isso, afirma que os Cersam “não se caracterizam como
substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas

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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história 23

compõem uma rede de assistência que visa substituir Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,
os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,
de atenção. via Distrito Sanitário, com um profissional de Saúde
O segundo tem componentes de gestão de pessoal, Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. A
uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta
por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-
se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes ternados após nova crise. Garantiu também a chegada
do trabalho” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 253). A dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o
proposta aponta uma mudança de foco da atenção das circuito: alta, residência, crise e nova internação.
“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas Pacientes e familiares passaram a conhecer uma
clientela majoritária das unidades básicas, para os nova possibilidade de atenção profissional, próxima de
psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali- suas casas. Decorridos alguns anos após esse conjunto
ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-
acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação
ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem de equipes nas unidades, é necessário uma política de
como a presença em grupos de outros programas, como organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os
aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246). profissionais permaneceriam com sua atividade drenada
O tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se
e da participação em outros programas de promoção da tornassem parte de sua clientela habitual.
saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse O quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz
contexto de uma gestão que se compromete com a respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto
direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente antimanicomial. De um lado, existe o destaque à psica-
momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia- nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos
ção entre ações clínicas e de promoção de saúde. inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não
O terceiro aspecto, de caráter político-adminis- seriam o que são” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 249).
trativo, configurou-se como passo fundamental para As autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não
garantir a reorganização da assistência a partir das di- está presente em momentos políticos incisivos, sendo,
retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSA com portanto esta uma rara articulação. Ainda é necessário
os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-
hospitais privados conveniados por parte da Secretaria. dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo
Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe- da Saúde Mental (Ferreira Neto, 2008).
tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão De qualquer modo, a contribuição da psicanálise,
hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre
ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade
hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos presente no despreparo para conduzir uma clínica
hospitalares privados conveniados na central de inter- sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua
nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para colagem com a clínica de consultório, uma vez que os
a organização da nova rede de assistência em Saúde espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008


24 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc. atenção à saúde (Brasil, 2004A). É um movimento de
Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que reorientação do modelo assistencial, operacionalizado
a formação prevalente ainda atende a esse modelo. As mediante a implantação de equipes multiprofissionais
autoras reconhecem que os profissionais não receberam em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal
anteriormente este tipo de formação e perguntam: com uma parcela da população adscrita. Foi formulado
“quem a recebe, aliás?!” (p. 263). pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser
O texto relata também duas importantes ações implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome
extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à de BH – Vida.
demanda infantil. A primeira foi a criação de fóruns O documento municipal a ser analisado, datado
regionais de Atenção à Saúde Mental da Criança e do de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental
Adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como na assistência básica (Secretaria Municipal da Saúde,
os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de 2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações
Conselhos Tutelares e de outras instâncias comunitárias, entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu
com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’
soluções na atenção à infância tanto individual quanto preconizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004B).
coletivamente. A ação dos psicólogos nesse processo foi Seu diferencial em relação a outros documentos é sua
de suma relevância. O segundo foi o Projeto Arte na redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e
Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar as gerências de Atenção à Saúde, ainda que a linguagem
as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com
com monitores da própria comunidade, desenvolvendo a Saúde Mental.
atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga O documento aponta para o desenvolvimento de
de unidade básica. ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões
Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi- relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,
cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). Discute
âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor- também a importância do atendimento na crise, even-
nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o to que alimenta o sistema manicomial sem a busca
que ocorreu processualmente e não sem dificuldades apressada da internação. Finalmente, indica o traba-
e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a lho em equipe como instrumento para superação do
trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e paradigma médico, “alargando competências comuns,
até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-
contribuições importantes ao projeto. belecidos” (p. 3).
No âmbito da integração das Equipes de Saúde
Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família
(ESF), o documento preconiza que as primeiras
Momento ‘apoio matricial’ – anos 2000
[...] priorizarão o atendimento aos portadores de
sofrimento mental grave e persistente e as ESF se
O Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta
estratégia para reorientação do modelo assistencial de clientela. (p. 4).

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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história 25

As ESM continuariam acolhendo outras demandas maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma
mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com suposta “continuidade ideal” teleológica (Foucault, 1979, p.
apoio das ESM. Os usuários e familiares devem par- 28). Também cerceia a tentação sempre presente da produção
ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa
controle e planejamento das ações de Saúde Mental. As uma mitologia construída por um grupo hegemônico.
ações de apoio matricial devem realizar a O recorte histórico aqui apresentado, que tem por
eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de
[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como interpretação. Uma delas é que as direções previstas em
forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho
1984 na implantação do programa, o ideário de inte-
concreto, saberes e competências, bem como, progres-
sivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5). gração na saúde geral de prática de apoio às equipes de
saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com
Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a
a portaria 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs
Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial, a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um
através da criação de núcleos multiprofissionais, numa momento essencial para garantia do projeto de atenção
composição escolhida entre 13 opções profissionais, com ao paciente grave. O antagonismo ‘clínica versus promo-
ênfase nas ações de planejamento, educação continuada, ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma
promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental
Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas. na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.
Recomenda também a presença de pelo menos um pro- Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente
fissional de Saúde Mental em cada Nasf (Diário Oficial grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de
da União, 2008, p. 39). Na portaria são considerados integração em que ações de promoção caminhem juntas
profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te- com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. A Saúde
rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais). Mental é um projeto sempre em movimento, composto
Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos, por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos,
sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um têm contribuído para sua contínua reinvenção.
tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as
muito centrada na diminuição e qualificação da demanda deficiências de uma formação clínica baseada num modelo
para a Saúde Mental (Sirimim, 2007). Contudo, podemos liberal-privado de consultório, o que não o preparava para
esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,
ESM e as ESF, terá vários outros desdobramentos. portanto, em serviço, através das práticas de atendimento
aliada às supervisões. Sua entrada no Sus transformou
sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas
de clínica ampliada (Ferreira Neto, 2008).
Considerações finais Mais recentemente, a ênfase presente em sua for-
mação para práticas grupais e intervenções psicossociais
Refletir a partir de estudos históricos com enfoques e pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente
recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma prática de apoio matricial.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008


26 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 27

A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos


novos dispositivos de Saúde Mental
Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health

Silvio Yasui 1
Abilio Costa-Rosa 2

1
Doutor em Saúde Pública pela RESUMO O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica, concretizado
Escola Nacional de Saúde Pública
como Política de Saúde Mental, nas últimas décadas tem levado a uma
(ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz); docente do Departamento profunda transformação na prática dos cuidados em Saúde Mental. Isso conduz
de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar a mudanças no modelo técnico-assistencial que organiza e sustenta as práticas
e do Programa de Pós-graduação em
desses profissionais que, por sua vez, encontram resistência em outros campos.
Psicologia da Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual de São
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Instituições
Paulo (Unesp), Assis. de Saúde Mental, que buscam implantar o novo modelo assistencial, apesar de
syasui@assis.unesp.br se depararem com práticas hegemônicas do paradigma que tentam superar. Foi
realizado um mapeamento preliminar das características da Estratégia Atenção
2
Doutor em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo (USP); Psicossocial e possíveis avanços, a partir de sua implantação, são apontados.
docente do Departamento de Psicologia
PALAVRAS-CHAVE: Centros de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Assistência
Clínica do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da Faculdade de Ciências Integral à Saúde; Saúde coletiva.
e Letras da Unesp, Assis.
abiliocr@assis.unesp.br
ABSTRACT Once the complex social process of Psychiatric Reformation, materialized
in Brazil as Mental Health Policy, involves a deep transformation in mental health
assistance and causes several changes in the traditional technical assistance model
that organizes professional practices, it finds many resistances inside several fields of
knowledge. The main objective of this paper is to think about the everyday challenges
of Mental Health Institutions that aim to establish a new model of care but still have
problems with the old hegemonic practices that they intend to deny. It has been made
a preliminary mapping of Psychosocial Attention Strategy characteristics and some
possible advances, which could happen after its deployment, are herein stated.

KEYWORDS: Mental Health Services; Mental Health; Comprehensive Health


Care; Public health.

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I N T R O D U ç ão no que diz respeito aos desdobrementos a partir da


proposta de ações de matriciamento em implantação
nas diretrizes do Ministério da Saúde. Parte-se da hipó-
tese de que esses esclarecimentos poderiam contribuir
como importantes fatores de municiamento na luta
A política de Saúde Mental, construída e pactuada pelos avanços da Eaps.
por diferentes atores sociais desde meados da década de As mudanças que já se processam, entretanto,
1980, preconiza e almeja profundas transformações da não se dão sem muitas resistências ou claras oposições
atenção, isto é, o atendimento e os cuidados ao sofri- advindas de vários setores e direções. Já temos situado
mento psíquico e demais impasses subjetivos. o processo complexo a partir do qual se desdobram as
Essas transformações apontam para mudanças lutas pela Reforma Sanitária e pela Reforma Psiquiá-
na concepção do processo saúde-adoecimento, no trica, sob a égide de uma luta de hegemonia quanto
modelo teórico e técnico-assistencial que organiza e ao controle dos interesses e valores que se encarnam
sustenta as práticas dos profissionais; que orienta e também nas instituições de Saúde Mental (Costa-
sustenta o arcabouço jurídico e o universo de práticas Rosa; Luzio; Yasui, 2003). Um de nós tem realizado
e valores culturais. Mudanças que apontam, tam- um avanço nos referenciais de análise desse processo
bém, para proposições éticas em relação aos efeitos de ações e reações, especificando a forma geral dos
e desdobramentos das ações no campo da Saúde antagonismos em termos de luta paradigmática de dois
Mental (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2000). Al- paradigmas: o Paradigma Psicossocial e o Paradigma
gumas dessas transformações estão na constituição Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Costa-
maior do país e regulamentadas em forma de lei Rosa (2006) propõe que ‘paradigma’ seja entendido
como, por exemplo, a participação da população como uma agregação dos diferentes vetores das pul-
no planejamento, gestão e controle das práticas de sações tanto em termos de ação instituinte quanto de
Atenção, e até mesmo na gestão dos dispositivos resistências do instituído no campo da Saúde Mental.
institucionais. O termo ‘medicalizador’ é utilizado com o duplo sen-
Esse conjunto amplo de transformações práticas tido do radical ‘medic’: centrado no discurso e na ação
e proposições teóricas, tanto éticas quanto políticas, médica (Clavreul, 1983) e orientado pela utilização
incorporado e vivenciado na atual Política de Saúde da medicação como resposta preferencial às demandas
Mental é suficiente para que possamos falar em Es- do sofrimento psíquico.
tratégia Atenção Psicossocial (Eaps), assim como foi Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente
proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF). Analisar trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Insti-
os avanços, as resistências e os impasses no campo da tuições de Saúde Mental que buscam implantar o novo
Saúde Mental atualmente, em termos de Eaps, nos modelo assistencial, mas ainda se deparam com práticas
ajudará a explicitar algumas das relações atuais entre hegemônicas do paradigma que buscam superar. Procu-
o Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) e o Am- raremos, também, realizar um mapeamento preliminar
bulatório de Saúde Mental, bem como entre esses dois das características da Eaps e indicar possíveis avanços a
e a Atenção Básica. Essas relações se dão, sobretudo, partir de sua implantação.

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A mudança de modelo e a prática dos como um poderoso suporte para a valia da próspera
profissionais: desafios do cotidiano indústria farmacêutica.
dos serviços A proposta de ação da Eaps exige a superação desse
paradigma e sua substituição por um novo que seja capaz
As transformações propostas pelo complexo campo de se situar de modo afirmativo: um paradigma que
da Reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes situe a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, com-
desafios, especialmente aos profissionais de saúde que preendendo o processo saúde-doença como resultante
cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar de processos sociais complexos e que demandam uma
essa mudança. Para isso, seus principais instrumentos abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e interseto-
são: sua formação permanente, que faculte a redefini- rial, com a decorrente construção de uma diversidade de
ção e reorganização de seu processo de trabalho, e a dispositivos territorializados de Atenção e de cuidado.
articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas, Mais ainda, para esse novo paradigma, produção de
entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que saúde e produção de subjetividade estão entrelaçadas
viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de e são indissociáveis, o que traz como conseqüência a
atenção e cuidados baseada em um território e pautada radical superação das relações sociais e intersubjetivas
nos princípios de integralidade e participação popular. sintônicas com o Modo Capitalista de Produção, que é
Esse processo emergente de trabalho deve pautar o alicerce do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico
sua organização cotidiana na ruptura com o modelo Medicalizador (Costa-Rosa, 2006).
tradicional. O modelo tradicional, pois, baseia-se no Esses desafios se tornam ainda maiores, consi-
princípio doença-cura e compreende de forma pre- derando que essa mudança de paradigma ainda não
dominantemente orgânica o processo saúde-doença, está presente na formação básica dos profissionais de
além de ser estratificado e hierarquizado por níveis de Saúde. Essa formação continua sendo organizada em
Atenção. Suas premissas são concretizadas em estratégias disciplinas e especialidades, com pouca ou nenhuma
de cuidado centradas na sintomatologia e, em conse- integração, levando os profissionais em formação a um
qüência, predominantemente medicamentosas; além olhar fragmentado da realidade, conseqüência do Para-
disso, por causa da herança deixada pelas instituições digma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador,
da reclusão, essas premissas são também hospitalo- ainda dominante. Formados e formatados no modelo
cêntricas. As aproximações à clientela e à população médico-centrado hegemônico e em práticas disciplina-
seguem modelos verticalizados e reproduzem os moldes res, os profissionais se vêem diante da responsabilidade
socialmente dominantes da subjetividade serializada de implantar uma proposta de mudança de modelo
do Modo Capitalista de Produção. As ações tendem assistencial que requer uma ruptura radical da maioria
a ser funcionalistas por proporem uma adaptação de dos conceitos estudados ao longo dos anos de formação,
indivíduos queixosos, ‘desequilibrados’ ou desajustados. além de necessitarem rever radicalmente concepções
Um aspecto dessa prática que merece ser explicitado, ideológicas e éticas. Tal situação assume, por vezes,
por sua importância radical, é a ação medicamentosa características de um impasse.
como única solução para todos os males e sofrimentos, Esse conflito entre proposta e prática, intenção e
subsumindo as pulsações instituintes que por ventura gesto, gera uma tensão permanente no cotidiano insti-
estejam presentes nas queixas e impasses, funcionando tucional revelando a contradição entre os paradigmas

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que sustentam os diferentes modelos de cuidado. Via de Nesse contexto cresce a consciência de que a crise
regra, os profissionais foram moldados em cursos nor- na Saúde nada mais é que uma expressão fenomênica
teados pelo paradigma hegemônico, foram organizados de causas mais profundas que têm sua raiz no modelo
em torno de disciplinas fragmentadas, compartimenta- de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma
lizadas, com pouca ou nenhuma articulação entre si. flexneriano. Sair da crise implica, necessariamente,
Os profissionais são estimulados, por exigência transitar de um modelo de atenção médica, fruto do
do mercado, a se super-especializarem com o aprendi- paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à
zado e o domínio de tecnologias pretensamente mais saúde, expressão do paradigma da produção social da
sofisticadas. Uma vez graduados, estão aptos a agir saúde (Mendes, 2006). A saúde seria concebida como
de forma específica, a ler fragmentos da realidade. Os estado geral decorrente do modo de se levar a vida em
médicos aprendem a medicar e a ver na medicação a todos os aspectos: físicos, psíquicos, sociais, econômicos,
solução primeira para qualquer tipo de situação; os culturais e ambientais.
psicólogos aprendem a realizar uma terapia centrada Ao Paradigma da Produção Social da Saúde corres-
no indivíduo e em seu sofrimento privatizado; os tera- ponde o Paradigma Psicossocial. Há uma sintonia das
peutas ocupacionais aprendem a coordenar atividades, concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a Reforma
etc. No entanto, nenhum desses profissionais aprende Psiquiátrica e a Reforma Sanitária. Isso torna ainda mais
a lidar com as situações cotidianas que os usuários dos inadiável a questão da formação de novos trabalhadores
serviços de saúde e Saúde Mental necessitam quando de Saúde Mental e do redirecionamento de outros que
procuram pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como, se encontram ainda em práticas típicas dos modelos
por exemplo, impasses na subjetividade das pessoas e seu vigentes, cuja superação se exige. Nossa experiência tem
sofrimento, na maioria das vezes, desencadeados pelo demonstrado que, no campo da Atenção ao sofrimento
cotidiano, que se desenrola em duras condições sociais. psíquico, os avanços na direção da Eaps aparecem como
Esses profissionais são incapazes de ouvir o sujeito e sua o passo mais apropriado para a superação de uma série
dor além da doença, de forma que articule os sintomas e de impasses decorrentes dessas heranças do Paradigma
sinais em um quadro mais amplo e complexo; raramente Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Tais im-
estabelecem diálogos que produzam uma integração passes apresentam-se tanto na forma direta do modelo
com outros profissionais que trabalham a seu lado; não asilar como na forma do preventivo-comunitário, cujo
compreendem as dificuldades das pessoas em aderir ao estabelecimento modelo é o Ambulatório de Saúde
tratamento estruturado dessa forma; estranham e se Mental.
incomodam com as reivindicações das pessoas a res- O relatório final da III Conferência de Saúde
peito de seus direitos; apresentam grandes dificuldades Mental, promovida pelo Ministério da Saúde em 2002,
em construir estratégias que ampliem a participação e apresenta propostas referentes à política de Recursos
autonomia dos usuários. Humanos, destacando-se que:
A mudança de paradigma não é uma agenda es-
pecífica da Saúde Mental. Pelo contrário, ela se inclui [...] uma política de recursos humanos deve visar im-
plantar, em todos os níveis, o trabalho interdisciplinar
no conjunto de transformações práticas que têm como
e multiprofissional no campo da Saúde Mental, na
prioridade a construção do SUS no contexto da Reforma perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’ e da
Sanitária. construção de um novo trabalhador em saúde men-

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tal, atento e sensível aos diversos aspectos do cuidado, (UBS), acompanhada de um texto que apresentava
garantindo que todo usuário dos serviços de saúde seja uma série de sugestões de organização do trabalho das
atendido por profissionais com uma visão integral e
equipes de Saúde Mental nessas Unidades de Saúde e
não fragmentada da saúde. (Brasil, 2002, p. 68).
nos Ambulatórios. A abordagem era designada como
bio-psico-social.
É importante referir, aqui, as ações do Ministério
O trabalho em equipe era uma espécie de terra
que, no setor da Saúde Mental, tendo à frente repre-
prometida onde, afinal, seria possível mudar o modelo
sentantes dos interesses diretos da Reforma Sanitária e
asilar e exercer uma boa assistência à Saúde Mental. Mas
Reforma Psiquiátrica, empreende preciosas ações politi-
a concretização dessa proposta de trabalho em equipes
camente orientadas para essa direção, em termos de for-
multiprofissionais fez com que ela se transformasse,
mação permanente, análise e supervisão institucional dos
ao longo dos anos, em um dispositivo burocrático. Tal
Caps. Um passo imprescindível nesse momento é reunir
organização de assistência hierarquizada, tendo a equipe
e sistematizar todos os conhecimentos capazes de confi-
de Saúde Mental da UBS como porta de entrada, contri-
gurar claramente a Eaps. A partir da sistematização desse
buiu para se configurarem novas demandas, sobretudo
corpo de conhecimentos, é possível ampliar as bases de
um conjunto de ações ambulatoriais paralelas às do
reflexão e análise da práxis, tanto da Atenção Psicossocial
Hospital Psiquiátrico. No entanto, não foi capaz de
quanto da própria formação de trabalhadores em ação.
produzir qualquer impacto na lógica hospitalocêntrica;
Essa nossa experiência indica que a ‘formação em ação’ pelo contrário, produziu um aumento na demanda de
é a única estratégia capaz de se contrapor efetivamente internações ao ampliar o acesso da população às con-
aos efeitos desastrosos de uma formação universitária sultas psiquiátricas.
que se referencia mais pelas demandas ideológicas co- A multiprofissionalidade continua na agenda do
nectadas aos interesses socialmente dominantes e menos dia da Eaps; por isso é oportuno refletirmos um pouco
pelas exigências éticas concretas da realidade da Atenção sobre ela.
Psicossocial e da Eaps. Podemos levantar uma questão referente ao fato de
a reprodução da divisão social do trabalho no campo da
Saúde gerar uma hierarquização das relações, na qual o
saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem
O Ambulatório de Saúde Mental um papel secundário, o que reproduz a divisão típica do
como estratégia que visou contra- Modo Capitalista de Produção. Isso produz uma espécie
por-se à lógica hospitalocêntrica de divisão de atividades e tarefas em compartimentos
com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo
Nos anos 1980, a criação dos Ambulatórios de desta divisão é uma dada situação em que a consulta
Saúde Mental, constituídos por equipes multiprofis- do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e
sionais, era apontada como um promissor instrumento essencial. Isso gera uma agenda repleta, atendimentos de
de mudança na realidade o primeiro passo da Reforma curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo
Psiquiátrica. No estado de São Paulo, a Secretaria de entre uma consulta e outra, visando uma alta produtivi-
Estado da Saúde elaborou também uma proposta de dade, medida pelo número de consultas. Há, também,
ação em Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde a consulta, geralmente individual, com o psicólogo, que

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tem longa lista de espera, repetindo o modelo da prática lizador que, por sua vez, está em sintonia com a lógica
liberal típica de parte do trabalho desse profissional; da divisão do trabalho do Modo Capitalista de Produ-
por fim, há os grupos de orientação, coordenados pela ção (Costa-Rosa, 1987). Não há dúvidas de que, sem
enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos uma crítica radical à divisão do trabalho e ao processo
e geralmente à margem das demandas subjetivas espe- de produção da Atenção vigente no campo da Saúde
cíficas daqueles indivíduos. Esses encaminhamentos de Mental, não poderemos obter avanços na superação da
um profissional para outro são feitos mediante preen- estratégia asilar e preventivista ainda dominantes. A Eaps
chimento de uma guia entregue pela recepção, onde se exige um modo de organização de divisão do trabalho
agendam as consultas. Todos os profissionais se reúnem mais coerente com a lógica dos modos de produção de
(com dificuldade) uma vez por mês e discutem questões cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial,
administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da
caso mais grave é trazido à atenção da pequena parte da produção e dos beneficiários de tais efeitos.
equipe que permanece até o final da reunião. No campo psíquico há uma indissociabilidade
A propósito do conceito multidisciplinar, do qual entre produção de saúde e produção de subjetividade.
surgiu o termo multiprofissional, Japiassu (1976) já Levar em conta a radicalidade dessa proposição conduz
afirmava que a abordagem multidisciplinar estuda um a uma possível superação do modo de produção comum
objeto sob diferentes pontos de vista, mas sem que tenha e a um ‘drible’ das diferentes formas do atravessamento
havido um acordo prévio sobre os métodos a se seguirem capitalístico dessa produção. Para a Eaps, a superação
ou sobre os conceitos a serem utilizados. Há apenas uma da divisão parcelada do processo de produção (divisão
justaposição de disciplinas sem que fiquem evidentes as em especialidades), ainda deverá vir acompanhada da
relações que possam existir entre elas. capacidade de vislumbrar formas para se alcançar a
Na mesma linha de pensamento, Almeida Filho transdisciplinaridade. A superação do princípio doença-
(2000) descreve a multiprofissionalidade como uma cura, pois, exige também a superação do modelo sujeito-
justaposição de disciplinas em um único nível, sem objeto que define as especialidades e ações no paradigma
cooperação sistemática entre os diversos campos disci- hegemônico.
plinares. Dessa forma, e segundo esses autores, pode-se A Eaps implica também na superação da raciona-
definir o multidisciplinar como uma somatória de lidade implícita no modelo médico hegemônico que
diferentes campos que não estabelecem diálogo e não determina um modo de organização das práticas de
apresentam nenhuma cooperação entre si necessaria- saúde, caracterizadas por atividades curativas, indivi-
mente, mantendo seus limites e fronteiras e olhando duais, assistencialistas e organizadas em especialidades.
sob suas perspectivas e a partir de seus lugares para um O Paradigma da Produção Social da Saúde pressupõe o
mesmo objeto, no caso, o sofrimento psíquico. A equipe planejamento das ações de Atenção de modo integral,
multiprofissional, por esta caracterização, já está fadada baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas
a ser um apenas um agrupamento de profissionais de de saúde, superando a atual racionalidade que está
distintas áreas que ocupam o mesmo espaço físico. pautada numa prática privada e regida por uma lógica
Essa configuração multiprofissional, já analisada e de mercado. Nessa lógica existe apenas a sociedade
criticada desde muito cedo, está de acordo com a lógica colocada de modo figurado, ou a parceria, movida a
do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica- interesses comerciais.

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Uma proposta de trabalho em equipe para a Eaps qual também já se conhecem várias coordenadas e que
precisa reconhecer os processos cotidianos de trabalho é enunciado como estratégia dominante no discurso
como áreas de tensão e interesses sociais conflitantes oficial do Ministério da Saúde.
encarnados por distintos atores, para justamente pôr Um sujeito em crise que se recusa a ir à institui-
a salvo desse conflito maior os interesses imediatos ção sob pretexto de que lá é lugar de louco; a família
dos sujeitos do sofrimento. Com isso, seria permi- que exige internação de um de seus membros em um
tido que eles tomassem uma posição nos conflitos e hospital psiquiátrico, reproduzindo a inércia do hábito
contradições que os atravessam; conflitos esses que se já instituído; o morador de rua que incomoda os vizi-
expressam no sofrimento que, por sua vez, manifesta-se nhos por se encontrar em sofrimento psíquico grave;
em sua história. Além disso, remover as conquistas da o usuário que estabelece uma relação de dependência
Reforma Sanitária sobre a participação dos usuários e com a instituição. Como resposta da equipe a essas
da população no planejamento, gestão e avaliação dos situações, ouvimos com muita freqüência as seguintes
dispositivos institucionais não deixa de ser um modo falas: “O usuário não quer vir? Não é mais de nossa
de abrir a oportunidade para eles de participação na responsabilidade, então.”; “A família pede internação?
metabolização da contradição maior. Sair da posição de Pois que interne.”; “Morador de rua? Isso é problema
objeto exigirá um exercício rotineiro nos vários aspectos da Assistência Social do município.”; “O usuário está
da práxis concernente ao novo paradigma. em crise no serviço? Chama o psiquiatra para medi-
car!”; Se o usuário está tendo uma crise no meio da
rua, “Chama-se a polícia”
Além das características que já foram apresentadas
A permanência micropolítica sobre esse modelo hegemônico, é oportuno apresentar
do hegemônico outras características desanimadoramente freqüêntes nas
ações realizadas em muitos dos Caps: atos norteados por
A prática encontrada em diferentes Caps, principal valores e julgamentos morais como “Não faça mais isso,
dispositivo para a implantação da atual política de Saúde
fulano. É muito feio!”; “Quem não se comportar direito
Mental, revelam que a lógica ambulatorial ainda está am-
não ganha o ovinho de Páscoa!”; “Quem vai acompa-
plamente presente no sistema e de forma aparentemente
nhar os usuários? Eles não podem sair sozinhos!”; “Que
intacta. Prática essa bem distante daquela idealizada pelo
gracinha, nem parece que são doentes mentais!”
modo da Atenção Psicossocial, cuja ética implica na
Frases como essas revelam que o sujeito do sofri-
ousadia de buscar o novo. Isso ocorre ainda com mais
mento é infantilizado e a atuação da equipe se pauta
freqüência nos lugares em que a implantação do Caps se
na ‘correção’ e ‘educação’ de seus comportamentos.
deu a partir do Ambulatório de Saúde Mental.
Certa vez, um usuário, irritado, afirmou, a respeito do
Os exemplos a seguir demonstram situações de-
Caps que freqüenta: “Isto aqui parece uma creche para
safiadoras que as equipes encontram no cotidiano, nas
doido!”
quais se apresenta a tensão permanente que há entre um
Sobre esse tema Foucault afirma:
paradigma hegemônico de cuidados que já se conhece,
e que o discurso oficial pretende superar, e outro para- [...] a loucura encontra-se inserida no sistema de
digma que se pretende construir a partir da prática, do valores e das repressões morais. Ela está encerrada

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num sistema punitivo onde o louco, minorizado, sua demanda, e do trabalhador com sua subjetividade
encontra-se incontestavelmente aparentado com a e caixa de ferramentas (Merhy, 2002).
criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se
Ao romper com a visão biológica reducionista e
originariamente ligada ao erro. (1975, p. 84).
propor a desmontagem dos conceitos basilares da psi-
quiatria hospitalocêntrica e medicalizadora, a Reforma
A lógica presente nesse modo de atenção à Saúde
Psiquiátrica, alinha-se na perspectiva de uma crítica aos
Mental submete os sujeitos do sofrimento e os próprios
fundamentos da racionalidade científica moderna (relação
trabalhadores a um lugar de sujeição, produção e repro-
sujeito-objeto, reducionismo, determinismo) e propõe
dução de subjetividades enquadradas, conformadas e
inventar o seu campo teórico-conceitual, estabelecendo
bem-comportadas: produção de afetos tristes, renúncia
um intenso diálogo entre os diferentes campos do saber
à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não
e conhecimentos acerca do humano. Produz, também,
há Caps aqui, apenas mais uma instituição de Saúde
um turvamento entre os limites e fronteiras, constituindo
Mental organizada a partir da mesma lógica hege-
possibilidades diversas para pensar e fazer.
mônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico
Essa é uma perspectiva semelhante à que Passos e
Medicalizador.
Barros (2000) denominam transdisciplinaridade que:
Essa persistência micropolítica da lógica paradigmá-
tica hegemônica também só poderá ser adequadamente subverte o eixo de sustentação dos campos episte-
enfrentada com a ampliação dos espaços de formação mológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto
da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das
(formação continuada) e de exercício analisado (análise
disciplinas e dos especialismos. (p. 76).
e supervisão institucional), que já fazem parte das inicia-
tivas de formação dos Trabalhadores de Saúde Mental Essa proposta é ousada, de alto risco e, ao ser intro-
(TSM), componentes da atual política de Atenção duzida na práxis cotidiana, visa à produção do disforme,
Psicossocial do Ministério da Saúde. à emergência do sem contornos, que mais desorganiza do
que orienta, que institui o próprio processo de instituir.
Dessa forma, o pensamento corre riscos, assume o perigo
de se perder na indiferença e no relativismo, estando
Inventar a transdisciplinariedade sujeito à inércia do ‘tudo ou nada vale o mesmo’. É um
como meio necessário da Eaps grande desafio constituir esse saber fazer nos interstícios
dos campos disciplinares. Ou, como propõem Passos e
A equipe é o alicerce, o principal instrumento de Barros (2000), com base em um conceito de Deleuze,
intervenção, invenção e produção dos cuidados em nos “intercessores”, naquilo que se dá no “entre”, no
Atenção Psicossocial. Produção que se dá no agencia- momento em que ocorre.
mento das pulsações da demanda social e dos afetos para Não são apenas diferentes disciplinas que analisam
se produzirem vínculos na negociação de interesses di- um mesmo objeto; a própria consistência do objeto é
vergentes e se construir a ética da Atenção Psicossocial na transformada. É preciso se abrir às fronteiras e fazer tran-
pactuação familiar e social para um projeto de cuidado; sitarem conceitos e categorias, transmudarem os olhares
agenciamento esse, enfim, das relações que emergem no dos sujeitos em ação, transformarem-se os modos de
encontro que se dá entre o sujeito do sofrimento com pensar, transformarmo-nos como sujeitos, já que se trata

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de um processo de construção de novas subjetividades. formas de saída da subjetividade serializada que, mor-
Como diz Edgar Morin (2000), trata-se do desafio do mente, vem associada ao sofrimento e aos sintomas, para
pensar complexo que remete à dialética e à revisão das outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar
teorias de subjetividade. ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-
No meio de aparentes desencontros é que reside a lizador e ao Modo Capitalista de Produção.
estratégia para se produzirem os encontros dos sujeitos do Conectar-se aos horizontes teóricos, técnicos e
sofrimento com a equipe. Como concretizar, no dia-a-dia éticos da Atenção Psicossocial significa estar sempre
de trabalho e de produção da atenção, esta transdisciplina- atento aos riscos de se recair na alienação do que já está
ridade? Aqui, podemos evocar a experiência vivenciada no instituído. É preciso estarmos sempre atentos para que
Caps Luiz Cerqueira, no qual foi possível realizar um traba- nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela
lho que muito se aproximou da proposta transdisciplinar, lógica do conformismo e da repetição, pois este é um
e que poderia ser sintetizado da seguinte forma: o trabalho processo que se constrói em um movimento contínuo
em equipe é aquele em que os profissionais adotam uma de desfazer e fazer, desconstruir e construir. Desconstruir
posição de humildade frente ao sofrimento psíquico, este conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos
nosso objeto complexo, e o existir por ele contextualizado. vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades
Apenas uma solidária e despojada atitude de diálogo (in- semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares
tenso e complexo), pode começar a sondar e contemplar para tornar novas as produções. Trata-se aqui de um
a amplitude de tal complexidade (Yasui, 1989). novo agenciamento de pulsações da demanda social e
Isso se reflete na organização dos processos de traba- dos afetos, para se produzirem vínculos, que não deixam
lho, construídos como uma criação coletiva, de relações de ser transferenciais; negociações entre interesses diver-
horizontais, que aspira à transversalidade proposta por gentes presentes nas dimensões micro e macropolítica do
Felix Guattari (1981), e com uma efetiva participação território; pactuações para um projeto de Atenção e cui-
dos sujeitos do sofrimento e seus familiares. A concre- dado, que se fazem a partir das relações e nas relações que
tização desse projeto implica em: considerar e ativar os emergem no encontro entre as demandas dos sujeitos e
dispositivos existentes no território; na responsabilização as ofertas de possibilidades transferenciais, ou seja, entre
pela demanda, especialmente nos momentos de crise; o sofrimento dos sujeitos e a capacidade de continência
na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado da equipe. Não há dúvidas de que essa capacidade de
aumentando a responsabilidade de cada profissional, não agenciamento por parte das equipes também é moldada
apenas nas decisões e nas competências para o projeto de pela plasticidade de sua subjetividade e pela desenvoltura
cuidados, mas também na gestão dos dispositivos insti- complexa de sua ‘caixa de ferramentas’.
tucionais. Isso implica, de outra parte, uma flexibilidade
na execução de tarefas distintas e intercambiáveis. É
necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores
de uma prática social, que têm a potencialidade, por A Estratégia Atenção Psicossocial
meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa
práxis, de produzir novos processos de subjetivação, de A seguir são apresentados alguns pontos para um
produzir modos mais autônomos de viver e de fazer a início de discussão acerca de uma definição possível
diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes da Eaps.

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Yasui (2006) apresenta a idéia de compreender o instâncias aptas a responder à especificidade das demandas
Centro de Atenção Psicossocial como uma estratégia de que lhes são atribuídas: demandas específicas de sofrimen-
transformação da assistência, concretizada pela organiza- to psíquico com exigências de intensidade variada, que
ção de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e vão da exigência máxima que define o Caps atual, até as
que não se limita ou se esgota em sua implantação como intensidades variadas que definem atualmente, de modo
um serviço de saúde. geral, o Ambulatório. Sobretudo, a Eaps permitirá consi-
Neste texto, nomeamos claramente e E aps , derar a atenção a um conjunto importante e numeroso de
definindo-a a partir dos quatro parâmetros do Modo problemáticas dentro da especificidade da atenção à saúde,
Psicossocial e das transformações nas dimensões epis- impedindo a medicalização e psicologização, geralmente
temológicas, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e resultantes do modelo atual.
culturais (Costa-Rosa; Luzio; Yasui, 2003; Amarante; É necessário ressaltar, também, que na Eaps não
2007). Tal definição deve incluir, ainda, os princípios
interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa
e diretrizes da Reforma Sanitária, particularmente a
complexidade. Nas ações de matriciamento, ou nas ações
participação popular no planejamento, gestão e con-
específicas dos serviços Caps, tudo é considerado de alta
trole das instituições de Saúde, bem como a concepção
complexidade, o que pode diferir é a especificidade do
de integralidade das problemáticas de saúde e da ação
saber e da ação exigidos. Também não se trata apenas de
territorializada sobre elas. Essa realização prática da Eaps
organizar os novos dispositivos institucionais em algum
se opera pela agregação da tática do Matriciamento, já
sistema de referência e contra-referência: o sujeito será
exercitada em alguns municípios e posta em ação pelo
sempre compreendido como aquele que está inserido no
o Ministério da Saúde, conforme a Portaria 154/2008
território e, mesmo quando for alvo de ações específicas
(Brasil, 2008), que cria os Núcleos de Apoio à Saúde
de Caps ou ambulatoriais, não deixará de estar adscrito
da Família (Nasf).
A Eaps é uma lógica que perpassa e transcende as à ESF nem de participar das ações simultaneamente

instituições enquanto estabelecimentos, tomando-as realizadas por ela; por isso a ESF deverá ser sempre a
dispositivos referenciados na ação sobre a demanda referência maior da Eaps.
social do território, distanciando-se, dessa forma, de
um sistema organizado e hierarquizado por níveis de
complexidade da Atenção.
A Eaps, uma vez operando e concretizando o princi-
pio da integralidade na produção da atenção e cuidado,
através do matriciamento, da atenção básica e com a
Estratégia de Saúde da Família, poderá dar outro sentido R E F E R Ê N C I A S
aos estabelecimentos Caps e seu atual segmento de ações
ambulatoriais. Poderá ajudar, também, na compreensão
Almeida Filho, N. A ciência da saúde. São Paulo: Hu-
de que a persistência do Ambulatório, que convive com
citec, 2000.
o Caps em um mesmo território, significa a reincidência
no preventivismo, longe, portanto, da lógica da Atenção Amarante, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
Psicossocial. Permitirá, ainda, re-configurar os Caps como Janeiro: Fiocruz, 2007.

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38 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde


Mental e a formação do profissional de Saúde Mental
no contexto da promoção da saúde
Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation
of the Mental Health professional in the context of health promotion

Walter Ferreira de Oliveira 1

1
Doutor; professor do Departamento RESUMO Este texto discute algumas bases conceituais da Saúde Mental e aspectos
de Saúde Pública do Centro de Ciências
relativos à inserção do profissional de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde
da Saúde da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
(SUS), na perspectiva da promoção da saúde. Algumas enunciações do conceito de
walter@ccs.ufsc.br Saúde Mental são examinadas à luz dos confrontos paradigmáticos proporcionados
pela perspectiva multiprofissional. Os temas abordam as necessidades fundamentais
da formação em Saúde Mental, fortemente influenciada por fatores culturais,
econômicos e sociais. Aponta-se uma necessidade de maior discussão, no campo da
Saúde Mental, sobre suas bases conceituais e outros temas inter-relacionados.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Saúde pública; Sistema Único de


Saúde.

ABSTRACT This paper brings a discussion about some conceptual bases of Mental
Health and aspects related to the insertion of the Mental Health professional in
the Single Health System (the so called SUS in Brazil), in the perspective of health
promotion. The conceptualization of Mental Health is examined in light of the
paradigmatic confrontations propitiated in the multiprofessional context. The
themes herein stated respond to a fundamental need in the context of professional
formation in Mental Health which is strongly influenced by cultural, economic
and social factors. The need of more discussion on the Mental Health concepts
and other related themes are herein pointed out.

KEYWORDS: Mental Health; Public health; Single Health System. 

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde 39

I N T R O D U ç ão texto da Reforma Psiquiátrica. Propõe-se um novo olhar


sobre e um novo lugar social para a loucura, tomada
como referência emblemática; é preciso identificar a Re-
forma Psiquiátrica a partir desse novo olhar e desse novo
lugar social (Amarante, 1995). Mas há outros temas a
Desafios conceituais e serem explorados na perspectiva do cuidado, da promo-
paradigmáticos em Saúde Mental ção da saúde e das ações preventivas. Alguns passos têm
sido dados nesse sentido, por exemplo, ampliando-se a
O campo profissional da Saúde Mental é vasto, compreensão de certos estados psíquicos diagnosticáveis
multidimensional e tem grande importância no con- como possíveis insanidades, para modos diferenciados
texto da saúde coletiva. Encontra-se em um momento de vivenciar o cotidiano e que traz conseqüências para
histórico de transição paradigmática, que tem como uma a qualidade da vida de muitos sujeitos estigmatizados
de suas características a força que ganham propostas de como ‘loucos’ ou ‘anormais’.
reestruturação epistemológica, técnico-assistencial e Apesar dos avanços, na prática, os profissionais,
político-jurídica, cujo maior impacto reside no desafio nem sempre conseguem deixar de ter como foco prin-
da psiquiatria hegemônica como dispositivo de máximo cipal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades
poder na área (Amarante, 1995). O enfraquecimento da de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtor-
hegemonia psiquiátrica favorece abordagens, em Saúde nos mentais (Rosa, 2006; Scalzavara, 2006; Oliveira;
Mental, a partir de bases conceituais mais diversificadas Dorneles, 2005). Coloca-se, então, uma questão
e, particularmente, uma visão mais fenomênica, mais crucial: como desenvolver ações de Saúde Mental na
social e interativa do universo psíquico, que desprivilegia perspectiva da responsabilidade sanitária exercida efe-
o domínio quase exclusivo do referencial nosográfico da tivamente em serviços territorializados e promotores da
psiquiatria descritiva tradicional, inclusive no campo saúde? A questão ressalta a necessidade de se continuar
clínico (Moreira; Sloan, 2002). com questionamentos, reflexões, problematizações sobre
A Reforma Sanitária brasileira apóia-se em uma e a busca pela operacionalização dos novos conceitos e
definição ampla de saúde, que procura não usar a doença paradigmas na prática cotidiana do cuidado sanitário,
como referência primordial. No caso específico da Saúde bem como na perspectiva das relações interpessoais,
Mental, a busca é por uma definição de sanidade que interdisciplinares e multiprofissionais, de forma a se
não tome como referência fundamental a patologia sob construírem e operarem interações promotoras de saú-
a óptica médico-psiquiátrica. Essa idéia não só provoca de. Além disso, ressalta-se a necessidade de as práticas
novos entendimentos do processo saúde-doença, na preventivas e reabilitadoras serem repensadas de forma
perspectiva psicossocial, como estrutura o modelo de que sejam contextualizadas no projeto do SUS.
atenção para a rede de Saúde Mental como um todo. A formação dos profissionais de Saúde Mental,
O compromisso da responsabilidade sanitária, que entretanto, ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-
se vem discutindo intensamente no âmbito do Sistema repticiamente como uma antítese das propostas das
Único de Saúde (SUS), inclui um reexame das posturas Reformas Sanitária e Psiquiátrica. O profissional está,
éticas profissionais (Campos, 1997). Novas posturas e via de regra, à mercê de currículos que marginalizam
novas abordagens tornam-se temas importantes no con- a Saúde Mental e o submetem à psicopatologia tradi-

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40 OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

cional, privilegiam procedimentos clínicos quase que vés de seus questionamentos. Mas, esse profissional
exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios também traz consigo contradições inerentes à sua
tradicionais e promovem a medicalização da vida coti- formação, com sua raiz na literatura psiquiátrica tra-
diana, o que vai além da corriqueira medicamentação, dicional. Esta, através dos tempos, cristalizou idéias
passando para toda uma postura cultural que transforma que são assimiladas, repetidas e perpetuadas de forma
condições sociais e culturais em problemas de ordem mé- ostensiva ou sub-reptícia nos ambientes curriculares e
dica. Além disso, há o currículo oculto, que desfavorece extracurriculares. O contraponto é dado pela incor-
a autonomia do cidadão usuário dos serviços de Saúde poração gradativa, ainda que marginal, de um corpo
Mental, fomentando a tutela e as assimetrias de poder literário que vem surgindo nos últimos 30 anos a partir
que permeiam as relações profissionais e institucionais do movimento da Reforma Psiquiátrica.
(Oliveira, 2003). A superação dessa situação é um dos No período de graduação dos cursos da área da
maiores desafios no contexto da Reforma Psiquiátrica. saúde, embora os níveis de discussão variem de acordo
Nesse sentido, ainda há muito a se debater (sobre a com o curso, as idéias são em geral apresentadas sem
evolução das bases conceituais e das representações que se enfatizem os embates epistemológicos travados,
sociais da Saúde Mental, por exemplo) e a se repensar desde o século 18, em torno dos conceitos de saúde,
como, por exemplo, as idéias que foram se cristalizando Saúde Mental e doença mental. Na pós-graduação,
no campo da psiquiatria e que estruturam grande parte esse quadro melhora para os profissionais que aten-
do pensamento dos profissionais de Saúde Mental, no dem às áreas confluentes da saúde e das Ciências
momento de sua formação acadêmica. Humanas e Sociais.
Nossa reflexão sobre a evolução do universo con- Afinal, quais são as idéias, os conceitos e a filosofia
ceitual em Saúde Mental é extremamente limitada, e da prática que são transmitidas aos estudantes da área
toma por base metodológica uma análise bibliográfica como verdades inquestionáveis e, além de tudo, em um
focada em obras de autores que se tornaram marcos ambiente de sala de aula, intimidador, pouco convida-
proeminentes tanto no que se refere à historicidade da tivo à crítica e perenemente condicionado pelas notas
formação acadêmica como no que diz respeito à for- obtidas nas avaliações?
mação profissional a partir do que propõe a Reforma A história da psiquiatria constitui uma rota concei-
Psiquiátrica. Torna-se possível, dessa forma, esboçar tual que tem como marco o trabalho de Philippe Pinel,
algumas considerações frente às atuais políticas de Saúde considerado por muitos o pai da psiquiatria e defensor
Mental propostas no contexto do SUS. dos direitos humanos, conforme os cânones da Revolu-
ção Francesa, da qual foi deputado. Pinel era adepto do
chamado tratamento moral, baseado na idéia de que a
disciplina e a moralização do comportamento, exercidas
VERTENTES FUNDAMENTAIS NA em ambiente hospitalar, eram os principais elementos
FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL potenciais de cura das doenças mentais (Alexander; Se-
lesnick, 1980). Isto se coadunava perfeitamente com al-

O profissional de Saúde Mental contribui, com guns preceitos estabelecidos pela nova ordem capitalista
sua emergente presença nas unidades de saúde geral, imposta pela burguesia, agora dominante. A organização
para oxigenar o sistema de saúde como um todo atra- da existência humana nos moldes capitalistas torna de-

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sejável que os corpos não abriguem condições limitantes Um dos legados da nosologia de Kraepelin é a idéia
ao trabalho, condições que podem ser produzidas por de que não há cura para transtornos mentais graves,
problemas inatos ou por vidas desregradas. É preciso como as síndromes psicóticas. Existe também a palavra
cuidar dos corpos, atitudes e comportamentos, além de ‘alienado’, oriunda da dicotomia colocada e usada para se
controlá-los e normalizá-los. A noção de normalidade explicar e descrever a doença mental entre razão e desati-
torna-se importante e a prevenção e reabilitação passa no. O doente mental, por não dispor da razão, não pode
pelo controle, inclusive moral, das pessoas em todas as participar adequadamente da comunidade social; sua
suas instâncias (Foucault, 1986; 1999). Surge, desta própria natureza o aliena da convivência sadia e normal
forma, uma linha de pensamento e ação em saúde, cujo (Almeida Filho, 1999). As idéias de que os alienados
objetivo é a normalização dos comportamentos e cuja não são capazes de contribuir produtivamente com a
principal medida é a capacidade de produção. sociedade e de que apresentam um razoável potencial
A medicina se compromete, concomitantemente, de periculosidade são, então, estabelecidas. O esquema
com o pensar científico da época, que busca as causas moral e nosográfico impregnou as páginas dos textos di-
definitivas das doenças em substratos patológicos orgâ- dáticos utilizados largamente na formação de psiquiatras
nicos subjacentes. No final do século 19 surgiu, como e, por contingência, de outras disciplinas ligadas à Saúde
resultado, a nosologia de Emil Kraepelin, psiquiatra Mental. Passou-se a aceitar como verdades absolutas
alemão que se dedicou à descrição minuciosa de todos essa idéia de que as pessoas com problemas mentais são
os comportamentos apresentados pelos ‘doentes mentais’ desatinadas, improdutivas, perigosas, incuráveis e que
e à definição de síndromes identificadas com estes com- seu tratamento deve ser feito em regime de estrita tutela,
portamentos, permitindo uma sistematização substancial baseado no controle cuidadoso de seus comportamentos,
do trabalho semiológico em psiquiatria e conferindo um normalizando-os e moralizando-os.
status de ciência clínica a esta especialidade, tornando-a Na contra-hegemonia surge o trabalho de Freud,
mais respeitável no âmbito da medicina geral. mas algumas questões importantes pendiam sobre sua
As obras de Pinel e Kraepelin, assim como as de obra. Primeiro, a psicanálise não se enquadra no restrito
outros psiquiatras como Esquirol e Janet, permitem esquema experimental que a ciência positivista domi-
que diagnósticos psiquiátricos cada vez mais específicos, nante aceitava como legítimo; segundo, Freud trabalhou
que levem em consideração os comportamentos (sinais) com populações restritas, principalmente com a classe
e sentimentos (sintomas) expressados pelos pacientes, social mais privilegiada da Europa do fim do século 19
sejam estabelecidos. Essa psicopatologia descritiva per- (embora os estudos das forças hegemônicas também
mite que os médicos psiquiatras estabeleçam ‘verdades tenham sido, em sua quase totalidade, restritos a sujeitos
científicas’ e mantenham sob controle a determinação internados em manicômios). Apesar de sua psicologia
do cuidado à doença mental. A verdade sobre a doença dinâmica ser considerada contra-hegemônica, ainda é
mental, estabelecida pelo esquema nosográfico-compor- de natureza essencialmente determinista e baseada em
tamental, afirma-se como instrumento de poder médico; estudos de casos patológicos.
uma vez ensinada sob esta óptica, a psicopatologia passa Em 1913, Karl Jaspers lançou Psicopatologia geral,
a ser aceita como verdade natural. E ela é apresentada propondo uma abordagem fenomenológica e existencial do
dessa forma até hoje, tendo como ‘bíblia’ o DSM-IV- psiquismo. Localizamos três vertentes importantes (psico-
TR® da American Psychiatric Association (2003). patologia descritiva, psicologia dinâmica e fenomenologia

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42 OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

existencial) para o futuro desenvolvimento do pensamento mana tem um significado maior e um valor profundo,
em Saúde Mental; vertentes essas que até hoje marcam tem mais resistência à descompensação emocional do
que aqueles que têm atitudes e sentimentos que levam
profundamente a formação dos profissionais da área.
à insegurança.(p. 2324).

Por outro lado, Ginsburg (1955) privilegia a capa-


cidade de se relacionar com o meio, que se manifesta
DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL EM em três áreas principais: amor, trabalho e prazer. Ele
SAÚDE MENTAL enfatiza como sinais de uma mente sã

No início do século 20, o movimento higienista a habilidade de reter um emprego, ter uma família,
ganha grande força na psiquiatria, afirmando o inte- manter-se sem problemas com a lei e aproveitar as
oportunidades de obtenção de prazer. (p. 2324).
resse pela anormalidade e a intervenção preventiva da
psiquiatria na vida pessoal, comunitária e institucional.
A noção de sanidade estava centrada, portanto, na
A essa altura o repertório psiquiátrico já incluía a noção
adaptação social e cultural mediada pela segurança pessoal
de impossibilidade de os esquizofrênicos estabelecerem
e confiança na vida e no próximo, na participação alegre
relações adequadas, o grande sintoma da esquizofrenia
de um jogo cujas regras eram estabelecidas no contexto
na visão da nosologia de Kraepelin. Essa característica,
de um complexo social e ideológico hegemônico e na
aliada àa noções de periculosidade e improdutividade,
passou a estereotipar por contraposição as maneiras de habilidade em se adaptar à sociedade como ela é, aprovei-

ser da normalidade na visão da psiquiatria; visão essa tando as oportunidades que ela oferece para o encontro

que consolidava a afirmação peremptória do sistema da felicidade. Tornam-se automaticamente suspeitos não

capitalista. Algumas repercussões desse jogo de forças só aqueles que se encontram em forma radical de alie-

ideológicas no território da epistemologia da Saúde nação (os chamados loucos), mas também aqueles que
Mental são flagrantes. Em 1947, Karl Menninger (apud questionam, angustiam-se ou não aceitam as propostas
Brown, 1958, p. 2324), enuncia a seguinte definição de participação social oferecidas pelo sistema.
de Saúde Mental: Essas, e outras definições de mesmo tom, tornam-se
importantes referências e compõem o universo conceitual
Adaptação dos seres humanos ao mundo e a outros com dos livros-texto de psiquiatria dos países alinhados com o
o máximo de efetividade e felicidade. Não somente
sistema de produção e o modus vivendi capitalista, como o
eficiência, ou apenas contentamento - ou a graça de
obedecer alegremente às regras do jogo. É tudo isto Brasil. Tais definições acabaram por nortear, nas décadas
junto, os comportamentos que implicam consideração seguintes, os principais textos psiquiátricos, como os de
social, e uma disposição alegre. Mayer-Gross (Inglaterra), Kaplan (EUA), Honório Delga-
do (Espanha) e Henry Ey (França) entre outros; passaram,
Também emblemáticos, Ewalt e Fansworth (apud
também, a apresentar ressonância em textos das áreas de psi-
Brown, 1975) definem o indivíduo saudável como
cologia, enfermagem psiquiátrica e terapia ocupacional que,
sendo aquele:
mesmo trazendo eventuais críticas ao modelo biomédico,
que tem confiança em si mesmo e nos outros, um senso aceitavam como base as verdades científicas já estabelecidas
de competência e um sentimento de que a situação hu- nos textos psiquiátricos a respeito da loucura.

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde 43

Essa linha de pensamento, assim como as linhas temente vinculada a uma epistemologia essencialmente
contra-hegemônicas, continuava abordando a Saúde positivista, ao discurso da promoção, privilegiando-se
Mental a partir da doença. A Organização Mundial da a quantificação de procedimentos, a protocolização
Saúde (OMS) problematizou o assunto ao lançar no de ações e a avaliação por alcance de metas gerenciais
preâmbulo de sua constituição, em 1946, a idéia de que estabelecidas por planejamentos normativos.
saúde não podia ser considerada apenas como a ausência A promoção da saúde questiona a atuação dos serviços
de doenças, mas um estado de bem-estar físico, mental com base na objetividade e na quantificação. Como estabe-
e social. Essa forma de compreender a saúde é simultâ- lecer medidas efetivas para a Saúde Mental, ou objetivar a
nea ao lançamento de O normal e o patológico (1943), análise da condição psíquica, sem voltar a privilegiar uma
de Canguilhem, que questiona a epistemologia vigente nosologia hoje posta sob suspeita do ponto de vista da
até então na saúde e com grandes repercussões na Saúde eficácia terapêutica? (Moreira; Sloan, 2002).
Mental. Esse filósofo discutiu de forma aprofundada a Não existem definições claras que nos ajudem a
questão de a saúde poder ou não ser considerada como elucidar e quantificar a Saúde Mental, para fins de diag-
um conceito dentro dos padrões da ciência. O autor nóstico e tratamento e as que existem têm sua credibili-
conclui que sim, mas faz uma ressalva: há uma forma dade em cheque, como é o caso dos testes psicológicos
de encarar a saúde que é subjetiva, pessoal e outra mais e de muitas escalas diagnósticas baseadas em contagem
objetiva, científica (Canguilhem, 1990). Essa idéia se de itens sintomáticos. A questão pode ter significados
contrapunha àquelas de alguns autores da escola feno- diferentes para profissionais que subscrevem uma abor-
menológica, sobretudo os mais radicais, para os quais dagem fenomenológica, existencial, qualitativa ou dinâ-
a saúde é uma manifestação exclusivamente de caráter mica, e para gestores e avaliadores que determinam, com
pessoal, absolutamente privado, só podendo ser avaliada base no desempenho objetivo e quantitativo, a alocação
pela pessoa que a vivencia (Almeida Filho, 1999). de recursos nos âmbitos público e privado.
Tal problematização epistemológica, tanto quanto a Na medida em que se acirram, e não se resolvem,
definição da OMS de 1946, trouxe conseqüências para as tensões entre a hegemonia do modelo tradicional e a
decisões sobre saúde coletiva. A partir desse entendimento postura de Reforma Psiquiátrica, os profissionais de Saúde
da saúde, como sendo um estado de bem-estar, ou uma Mental sofrem a ação de fatores estressantes que obstaculi-
manifestação subjetiva, um atributo que se pode obje- zam seu desempenho profissional, obrigados a fazer, muitas
tivar e até mensurar, fundam-se diferentes maneiras e vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.
possibilidades de programar, ou não, ações a promovam
e reabilitem. Dependendo do conceito de Saúde Mental
sobre o qual se fundamenta, é possível pensar em que
consiste a sua manutenção, promoção e reabilitação. CONTRIBUIÇÕES DO MODELO
Embora o discurso da saúde coletiva inclua o ob- CULTURALISTA, DA ANTIPSIQUIATRIA E DA
jetivo da promoção, as discussões acima colocadas não PSICOLOGIA SOCIAL
são, a nosso ver, suficientemente contempladas nas dis-
cussões clínicas, curriculares ou nos processos de gestão O modelo biomédico segue a tradição hegemôni-
e planejamento. Essa evasão intensifica a confusão que ca e, portanto, dicotomiza saúde e doença. Na lógica
se instala a partir da contraposição de uma prática, for- prevalente, o avanço de um lado significa a menor

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44 OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

ingerência do outro, isto é, quanto mais uma pessoa se e o termo enfermidade (illness) para as características
encontra doente menos possibilidades há de que seja culturais da doença. Patologia refere-se à ocorrência ob-
considerada saudável e vice-versa. Essa premissa, aceita jetiva de funcionamento anômalo dos sistemas orgânicos
com reservas, na clínica médica, torna-se complicada no ou fisiológicos. Na categoria enfermidade, incorpora-se
terreno mental que contempla a idéia de que um indi- a experiência e a percepção individual relativas a uma
víduo pode, por exemplo, apresentar sinais de doença variedade de problemas decorrentes da patologia, bem
mental e, ao mesmo tempo, funcionar de forma saudável como a reação pessoal e social à enfermidade, ou seja, o
em outros planos existenciais ou temporais. O modelo significado atribuído pessoal e culturalmente à doença.
tradicional, ancorado na descrição e quantificação de A Antropologia Médica potencializou um novo olhar
sintomas, se traduz em uma prática institucional que sobre a apresentação e o curso das doenças mentais. Sob
desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza sua óptica, as apresentações, percepções, significados e
por meio de diagnósticos que definem uma condição evolução das doenças não constituem uma realidade ob-
como irreversível, apenas controlável por medicamen- jetiva e inquestionável, como preconiza a psicopatologia
tos. Por outro lado, essa mesma maneira institucional descritiva, mas ocorrem de acordo com o sujeito, com o
reforça a promiscuidade terminológica saúde/doença grupo sociocultural e com a interpretação e significância
como Zusman (1975) ilustra: que lhe são atribuídas pela sociedade e pelos próprios pro-
fissionais da área. Além de se contrapor a uma nosologia
Instituições de ‘saúde mental’ normalmente atendem que reconhece uma evolução da doença independente-
a “doentes mentais.” Profissionais de saúde mental são mente da subjetividade, a abordagem antropológica tira
especialistas em tratamento de doenças mentais e têm
o foco da doença e o coloca na pessoa que sofre e nos
relativamente pouco treino em saúde mental. Muitos
questionários aplicados à população com a intenção de sujeitos que a circundam, inclusive o profissional que
medir a saúde mental na verdade focalizam sintomas a diagnostica e trata. Essa é uma proposta radical para
de doenças mentais. (p. 2324). evolução do pensamento sobre a doença mental, embora,
como enfatiza Almeida Filho (1999), a doença ainda seja
Para Ronald Laing (1959; 1967) e Thomas Szasz a referência para se pensar a saúde.
(1974), o diagnóstico é uma construção social e política A antipsiquiatria, na década de 1960, marcou uma
de base econômica e cultural; essa discussão é retoma- nova aderência à fenomenologia existencial e uma transi-
da no campo da Antropologia Médica sobretudo por ção para as definições reformistas contemporâneas, enfa-
Kleinman (1988) e Young (1982). A contribuição epis- tizando o condicionamento social da construção coletiva
temológica desses autores é suficientemente vasta para da experiência e das identidades de grupos e indivíduos
merecer uma revisão à parte, trabalho a que se dedicou (Szasz, 1974). Uma criança, argumenta Laing (1967),
Almeida Filho (1999). começa já em tenra idade a perpetuar valores, crenças
Limitamo-nos aqui a enfatizar o reconhecimento, e atitudes aprendidos no contexto da vida familiar e
por Kleinman, das diferenças biológicas e culturais no por conta dos meios de comunicação. À medida que
estado de doença (sickness). O autor propõe duas cate- se desenvolve pela socialização que acontece na igreja,
gorias na análise da doença, usando o termo patologia na escola, nos clubes e em outras instituições nas quais
(disease) para categorizar as alterações biológicas ou se estabelecem relações, cujo acesso é determinado por
psicológicas, de acordo com a classificação biomédica, sua classe socioeconômica e pelas oportunidades que

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde 45

lhe são apresentadas (ou negadas) de acordo com sua destacando-se a atuação de Franco Basaglia na Itália,
inserção sociocultural. A definição da insanidade mental, que adicionou à sua visão epistemológica uma prática
aponta Szasz (1974), é produzida a partir dessas normas política que visava o fim dos manicômios. Vastas
e padrões de desenvolvimento, que obedecem a regras revisões sobre a Reforma Psiquiátrica, na Itália e no
morais e servem à opressão de minorias socioeconômicas Brasil, têm sido conduzidas, como na obra de Basa-
e aos interesses de indústrias de serviços e de produção glia (1985), Amarante (1995) e Rotelli, Leonardis e
farmacológica, que dependem da sistematização da in- Mauri (2001).
sanidade para o seu sustento econômico e político. Uma série de definições de Saúde Mental ainda
A fenomenologia existencial, na visão da antipsi- têm sido propostas, seguindo as várias vertentes que
quiatria, conceitua a experiência humana como experi- compõem os eixos teórico-conceituais da área. Kaplan,
ência comum, compartilhada socialmente. Lane (1984) Sadock e Grebb (1997) revisam o conceito e apontam di-
corrobora esta visão, apontando que toda psicologia é versos fatores considerados nessas definições, entre eles,
psicologia social; não há como dicotomizar ser indivi- a resistência funcional, a constância da personalidade, a
dual e ser social. A autora trabalha a idéia de ‘indivíduo disposição pessoal, o crescimento e o desenvolvimento
social’, argumentando que a formação da identidade é compatíveis com ciclo vital, a auto-afirmação, as atitudes
completamente relacional, que ocorre não só em fun- com o self, a percepção da realidade, a previsibilidade
ção de fatores pessoais, mas das relações com o mundo de ações, as formas de reação perante circunstâncias
exterior. Eu sou o que o outro ajuda a definir. Minha internas e externas, as características adquiridas e
experiência é parte da experiência geral do mundo. Mi- adaptadas em relação ao meio-ambiente, a habilidade
nha percepção do mundo exterior, meus desejos, atitudes de se relacionar com o meio ambiente e os graus de
e ambições são fruto do que os outros determinam. Os autonomia, entendida como uma independência das
‘outros’ são pessoas, grupos e instituições com os quais influências sociais.
estou envolvido direta e pessoalmente, ou aqueles que Se pensarmos as tendências a partir do Relatório
nem mesmo suspeito quem sejam, mas que podem in- Lalonde, um dos marcos da Promoção de Saúde, lan-
fluenciar minha maneira de ser. A idéia de que a Saúde çado em 1974, teríamos ainda que considerar o estilo
Mental da pessoa depende, além dela mesma, de suas de vida, a capacitação das comunidades e a oferta de
relações com o outro e com o mundo, também se con- serviços como fatores condicionantes da saúde. A Saúde
trapõe à radicalidade nosográfica-positivista, já que essa Mental, nessa perspectiva, depende também da respon-
busca a explicação da determinação da Saúde Mental sabilidade pessoal e admite a influência dos poderes
primordialmente a partir da genética e da bioquímica. socioinstitucionais.
Finalmente, em 2001 a Organização Mundial de
Saúde enunciou uma definição de Saúde Mental, como
um:
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE
DEFINIÇÃO DE SAÚDE MENTAL Estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas
habilidades, consegue lidar com os estresses normais da
vida, pode trabalhar produtivamente e frutiferamente
A década de 1970 foi marcada pelo desenvol- e está em condições de contribuir com sua comunidade.
vimento de uma série de movimentos de reforma, (Organização Mundial de Saúde, 2005).

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46 OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Pode-se dizer, ainda, que a evolução conceitual CONSIDERAÇÕES FINAIS


no campo da Saúde Mental, em seus aspectos mais
progressistas, propicia um retorno da filosofia exis- Frente a um mundo em constante transformação, o
tencial como base interpretativa para a experiência profissional de Saúde Mental enfrenta questionamentos
subjetiva (Amarante, 2007). A compreensão ampla sobre temas emergentes e persistentes e, particularmente,
desta evolução nos ambientes curriculares, acadêmi- sobre o desenvolvimento de seu campo profissional.
cos e clínicos, pode se fortalecer com o fomento de Uma das formas de definir o campo da Saúde Mental
discussões sobre a natureza da saúde, da doença, da é como um sistema aberto que pensa a natureza, as
cura, da reabilitação, da promoção e da prevenção; condições e as interações humanas, contextualizando
assim como discussões sobre temas como a inter e sua existência cognitivo-intelectual e suas interações
a transdisciplinaridade, o interparadigmatismo, as simbólicas. Esse sistema funciona em meio a uma
relações de poder e a contratualidade exercida entre perspectiva sociocultural que constantemente avalia
profissionais, serviços e usuários, direitos humanos, comportamentos, determinando quais são adequados e
autonomia e cidadania das pessoas com transtornos quais são inadequados. Nessa perspectiva, o campo da
psíquicos, natureza, missão e funcionamento das Saúde Mental é um universo no qual constantemente
instituições, institucionalização e desinstituciona- se elaboram, checam, discutem e restabelecem valores,
lização, determinação multifatorial envolvida nos símbolos e significados; é um campo que contribui com
processos saúde-doença e, enfim, sobre a natureza a formação, compreensão e elaboração de atitudes e
essencialmente política da epistemologia em Saúde comportamentos pessoais, profissionais e institucionais,
Mental (Vasconcelos, 2002; Almeida Filho, 1999). diretamente influenciadores na qualidade da vida dos
Essas discussões podem viabilizar o exercício de novas indivíduos e das comunidades por meio do poder que
formas de relação, novas linguagens, novas práticas e os profissionais detêm sobre os processos privados e
novas tecnologias sociais nos projetos terapêuticos, coletivos de saúde-doença.
bem como nortear a participação do profissional de O avanço neste campo é crucial para uma sociedade
Saúde Mental em ações comunitárias. mais sadia, mais justa e humanizada e se materializa no
É importante discutir como se efetiva e se cons- seio de processos sociais complexos, como as Políticas
trói, conceitualmente e na prática, a postura, o olhar, Públicas. A discussão das bases conceituais em Saúde
do profissional e das instituições em relação ao sujeito Mental contrasta e dialoga, assim, com um pano de
que procura por seus serviços ou é colocado involun- fundo social, político e cultural. As maneiras de concei-
tariamente na condição de usuário. O debate entre tuar ‘saúde’ e ‘Saúde Mental’, transcendem disciplinas
correntes positivistas, biologicistas, fenomenológicas, científicas e territórios de ação em saúde, colocando
existencialistas, culturalistas, entre outras, tem um po- em perspectiva a necessidade de o profissional de Saúde
tencial frutífero se exercido como um diálogo no qual Mental encarar, em sua permanente formação, os papéis
podem emergir livremente as discussões sobre estes e que exerce frente à realidade da experiência humana da
outros temas relevantes para o avanço do projeto sani- forma como ela se apresenta no cotidiano de indivíduos,
tário do SUS. grupos, comunidades e instituições.

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Recebido: maio/2008
Aprovado: set./2008

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ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 49

Breve história da Reforma Psiquiátrica para


uma melhor compreensão da questão atual*
Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension
of the current debate

Richard Couto 1

Sonia Alberti 2

1
Mestre em Pesquisa e Clínica em RESUMO O presente artigo visa fornecer um breve histórico do que se convencionou
Psicanálise pelo Instituto de Psicologia
denominar Reforma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (IP/UERJ).
moderna, como especialidade médica, nasceu com uma reforma que seria, portanto,
rhmoz@yahoo.com.br um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos
desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, visa-
2
Professora adjunta do IP/UERJ;
se depreender o campo instituído da Saúde Mental – dos manuais de Psiquiatria à
e pró-cientista da UERJ; Doutora
em Psicologia pela Universidade de
Psicanálise, passando pelas Políticas da saúde pública –, supondo que o conhecimento
Paris X-Nanterre; pós-doutorada pelo da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se
Instituto de Psiquiatria da Universidade apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.
Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ);
pesquisadora do Conselho Nacional PALAVRAS-CHAVE: Reforma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais
de Desenvolvimento Científico e psiquiátricos; Psicanálise.
Tecnológico (CNPq); psicanalista
membro da Escola de Psicanálise dos
Fóruns do Campo Lacaniano. ABSTRACT The article proposes a brief history of the so called Psychiatric
alberti@fcclrio.org.br Reforms. It begins with the idea that modern Psychiatry was born as a reform
which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances of the
term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950´s and
changes in Psychiatry occurred in France, England, Italy and the United States.
The instituted field for Mental Health will then be examined as a derivation
from the effects of Psychiatric manuals and Psychoanalysis, as well as public health
politics, assuming that the fact of better knowledge of the history may provide
instruments for a better comprehension than the actual one, which presents a
tension between the clinic work and the psychological and social care.

KEYWORDS: Psychiatric Reform; Health politics; Psychiatric manuals;


Psychoanalysis.
* Texto que se baseia no primeiro capítulo da dissertação de Mestrado de Richard Couto, orientando da professora Sonia Alberti, que foi defendida e aprovada
em 30 de abril de 2008.

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50 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

I N T R O D U ç ão quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das


muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos
20 anos, no Brasil, é que o termo Reforma Psiquiátrica
ganhou ares de grande novidade, principalmente com
aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 2001, con-
Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui-
a atual Reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática. átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a
O intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus invenção de dispositivos substitutivos. Daí a questão: que
aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no- implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de
ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna, atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e
a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,
psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeito, como são denominados pela lei 10.216?
quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre Com base do que foi apresentado na introdução (a
para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa
modo geral, que foram enclausurados devido à grande é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes
mudança dos meios de produção na Europa e que gerou mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode-
modificações sociais contundentes no século 18, os loucos ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então
foram mantidos enclausurados (Morrissey, Goldman e proposto ‘tratamento moral’), se consolidou como uma
Klerman, 1980). Assim, pode-se dizer que a primeira reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura
Reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como das patologias mentais deveria ser conduzida mediante
uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no a atenção integral à mente do doente, partindo da supo-
espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico, sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a
sustentado pelo saber médico. Tal observação não data de doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história
hoje, veja-se, por exemplo, o texto de Tuke (1892). Por natural e a filosofia para especificar as particularidades
outro lado, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica é, atualmen- das doenças mentais (Bercherie; 1989).
te, elevada à categoria de conceito, guardando relação com Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con-
os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de
concretizam as propostas engendradas pelo movimento seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova
sustentado pela lei 10.216. BRASIL. MINISTÉRIO DA maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo
SAÚDE. Lei n.º 10216, de 06 de abril de 2001. presente no século 19, em particular a partir de sua segunda
metade (Alberti, 2003). Contudo, o que os historiadores
mostram é que por trás dessa reforma está a exigência feita à
Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,
AS VÁRIAS NUANÇAS DO TERMO REFORMA quanto na América do Norte, aqueles que poderiam abalar
PSIQUIÁTRICA e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (Foucault,
1972; Resende, 1987; Candiotto, 2007).
Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo A massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por
Reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi- longos anos, especialmente a partir do início do século

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual 51

20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques-
postos em questão depois da Segunda Guerra Mundial. tionamento do modelo manicomial, respaldado num
Muitos fatores contribuíram para esse questionamento consenso técnico, político e social, que permitia a elabo-
e por uma nova argumentação de Reforma Psiquiátrica. ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)
Dentre os principais fatores que exerceram influência para a legitimação administrativa, que deveria partir do Estado
a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos em forma de um compromisso de levar adiante o processo
do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.
países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis. Para o autor mencionado, todas as tentativas de Reforma
Há outros fatores importantes: os psicofármacos – apesar Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.
dos freqüentes questionamentos quanto aos efeitos de
sua comercialização –, a entrada da psicanálise nos meios
psiquiátricos. Tanto nos hospitais ingleses quanto nos fran-
DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL ÀS
ceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica
COMUNIDADES
cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma
de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados
A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na
Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada
França, formaram um conjunto de reformas que influen-
Psiquiatria Psicodinâmica; identificada com uma prática
ciaram várias regiões da Europa, mas também a América
liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria,
Latina, como o Brasil. A Psicoterapia Institucional foi o
nos anos 1950, era aquela praticada na American Psycho- braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela
analytic Association (APA), restringindo o exercício da que orientava o atendimento aos doentes mentais de
Psicanálise aos médicos – apesar das críticas veementes a forma setorizada. Tal forma de serviço pôde ser verificada
essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927. depois em outros movimentos de Reforma Psiquiátrica
Tal conjuntura também trouxe, ao campo da do- que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os
ença mental, a reivindicação da participação da saúde serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência
pública de competência do Estado, obrigando-o a uma francesa foi a primeira a pôr, na prática, o atendimento em
maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional
para os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de
surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia orientação lacaniana. A hipótese inicial da Psicoterapia
Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia- Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela
tria Comunitária e Antipsiquiatria, na Inglaterra; a hospital, presídio, entre outros, estava doente. Com
Psiquiatria Antiinstitucional, na Itália, e a Desinstitu- isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas
cionalização, nos Estados Unidos. também os funcionários e agentes da instituição, e ambos
Segundo Desviat (1999), apesar de haver diferenças deveriam ser tratados. Assim, o marco da Psicoterapia
entre todos esses movimentos de Reforma Psiquiátrica, as Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua
condições norteadoras e essenciais para suas efetivações proposta: ser uma ação de saúde pública1.
1
Tal proposta da Política de Setor tinham como princípios fundamentais: o princípio da setorização ou zoneamento - delimitaram-se áreas com 50 mil a 100 mil
habitantes; o princípio da continuidade terapêutica - uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos
diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e pós-cura; o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar
- o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (Desviat, 1999).

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52 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Já a Comunidade Terapêutica forneceu subsídios ENTRE HUMANIZAÇÃO E ECLETISMO


à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da Grã-
Bretanha. As comunidades terapêuticas tiveram seu início A Psiquiatria Antiinstitucional, que se fez ponto
ainda nos tempos da Segunda Guerra Mundial, principal- de partida para a Reforma Psiquiátrica italiana, teve
mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W. seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,
Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital
que apresentavam problemas quanto ao engajamento na de Gorizia, província italiana. O movimento basaglia-
guerra. Essa foi a forma que ele encontrou para atender no se caracterizou pela tentativa de humanização e a
um grande número de pacientes. No entanto, seu trabalho transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se
diferia o grupo daquele identificado por Freud (1976C) no modelo de Comunidade Terapêutica. Porém, em se-
na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes
trabalhou com a possibilidade da existência: para fora dos muros do hospital, para a sociedade que
os excluiu:
de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (como
Exército e a Igreja nas célebres análises freudianas), Uma comunidade que se queira terapêutica deve levar
mas que fizesse existir o particular do sujeito promo- em conta esta realidade dupla, a doença e a estigma-
vendo a heterogeneidade inassimilável a qualquer fu- tização, para poder reconstruir gradualmente o rosto
são identificatória. (Laurent et al.; 1998, p. 259). do doente, como devia ser antes de a sociedade, com
seus inúmeros atos de exclusão e através da instituição
que inventou, agir sobre ele com sua força negativa.
Deve-se salientar que as diretrizes da Lei de Saúde (Basaglia; 1967 [1985], p. 124).
Mental britânica não tinham como objetivo abolir
do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos Ao contrário dos movimentos na França e na Ingla-
psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação
tributário do estabelecimento de outras unidades de incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas
assistência aos pacientes e de serviços presentes nas mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por
comunidades onde os pacientes se encontravam. A Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra
estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento o doente mental, como o choque elétrico, os métodos
em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen- de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o
to parcial e nos serviços residenciais completos nas psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins-
comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio- tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,
nais como a Organização Mundial de Saúde (OMS). além de ser condição essencial para o estabelecimento e a
Finalmente, é notória a modificação do tratamento efetivação da instituição e tendo uma função meramente
da questão com essa contribuição especificamente adaptativa maquilada por um discurso respaldado no
inglesa e que tange à designação do campo já não campo médico a inferir uma causalidade biológica ao
mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois sofrimento psíquico. O psiquiatra respalda a objetivação
foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento
documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia
à doença mental. ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual 53

a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia- a facilidade de acesso pela população aos serviços, que
tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do incluía uma boa localização e descentralização dos refe-
doente mental. ridos serviços; informações à população da área sobre os
A Desinstitucionalização norte-americana não serviços, a assistência e suas características. Além disso,
ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.
grande número de abandonados. Até hoje, o estado Outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua
norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de ênfase na prevenção da doença mental, como também
Saúde, tais como os estados europeus ou como o Brasil. a tentativa de abrangência das necessidades da comuni-
Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o dade atendida e não somente dos doentes mentais, que
estado americano pouco fez para se ter uma Reforma já tinham tratamento.
Psiquiátrica no país. Isso não quer dizer que nos Estados O método utilizado para realizar o tratamento
Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:
1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá- psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera-
tricos e até 1958 houve uma crescente no número de pia ocupacional, etc. Todavia, a orientação que mais se
internos, sendo que os métodos de tratamento foram destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria
questionados tanto pela opinião pública quanto por Preventiva, de Gerald Caplan, que pode ser considerado
psiquiatras da Associação Norte-Americana de Psiquia- o seu criador. A concepção de doença mental para a Psi-
tria. Diante desse quadro, em 1963, John Kennedy quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias
realizou um discurso intitulado Mensagem sobre a formas de doença mental, nas diferentes populações,
doença e o retardo mentais , no Congresso Nacional
2
eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,
Norte-Americano, para lançar seu programa de Saúde denominados subsídios e fatores negativos, denominados
Mental, que chegou a ser considerado uma revolução práticas de risco. O trabalho da Psiquiatria Preventiva seria
na psiquiatria norte-americana. Depois da mensagem, identificar tais fatores negativos e tentar corrigi-los de
foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear
título era Community Mental Health Centers Act of uma doença mental. A teoria da crise, desenvolvida em
1963, que estabelecia a criação de serviços que visassem 1944 por Lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria
a prevenção e/ou o diagnóstico das doenças mentais e Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises
que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao evolutivas e acidentais do psicanalista norte-americano
nível comunitário. Erik Erikson. O projeto apresentado por Kennedy previa
As propostas dos centros de Saúde Mental norte- a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente
americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil 600. Além disso, na ausência de um sistema nacional de
habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços saúde e o estado crônico de alguns pacientes – e a pouca
essenciais tais como atendimento de emergência e importância que se deu ao fator da causalidade social tão
hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 – aca-
semana. Como todo projeto de Reforma Psiquiátrica, bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao
os centros de Saúde Mental tinham como princípios: funcionamento dos centros de Saúde Mental.

2
Special Message to the Congress on Mental Illness and Mental Retardation.

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54 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA [...excluem] toda e qualquer hipótese etiopatogênica,
E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE como também [fazem desaparecer] o próprio conceito
de doença” (Quinet, 2006, p. 12).
Logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen- Por que não considerar a criação dos manuais de
to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária diagnósticos ateóricos como uma Reforma Psiquiátrica?
de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de Porque a Reforma Psiquiátrica não é somente movi-
retorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien- mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a
tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também
psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja
os trabalhos publicados em 1962 por Donald Klein com propostas de trabalho diferentes das anteriores, seja
sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou instrumentalizando-a com as descobertas do saber médi-
conhecido como a Escola de Saint Louis, que, na dé- co-científico ou tentando eliminar a confusão conceitual
cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da entre as diversas disciplinas psiquiátricas. Levantou-se
eficácia do medicamento, da diferença existente entre a hipótese de que a proposta do DMS de ser ‘ateórico’,
psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades além de ser um projeto empírico-pragmático, também
clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela deve ser examinada como uma proposta de Reforma
Psicanálise, com Lacan, que, na França, conceituou-as Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação ‘ateórica’ é
como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con- uma tentativa de não estar “submetido aos pressupostos
ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes
perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo, no campo da psicopatologia” (1998, p. 4). Tal tentativa
apoiada na noção de transtorno (disorder). As condições é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos
para estabelecer o DSM-III e suas posteriores edições clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,
estavam dadas: identificados e sustentados pela chamada Medicina
Baseada em Evidências (MBE).
O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação A confecção do DSM também se serviu da di-
Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o mensão sanistarista que sempre esteve subsidiada pela
resultado melhor acabado das propostas empírico-
operacionais da chamada Escola de Saint-Louis, epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando,
liderada por Feighner, Robins e Guze na década de assim, um lugar dentro das políticas de saúde públi-
70. A criação de um sistema operacional de diagnós- ca. Tendo em vista que o estado considera necessária
tico para pesquisa como o RDC (Research Diagnostic
a intervenção da Medicina no social, no cotidiano,
Criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam
diretamente das proposições daquele grupo. (Pereira, principalmente quando a clínica passa a ser regida por
1998, p. 4). parâmetros normatizados, o DSM acabou sendo bem
recebido por se fazer um instrumento para o estado. A
Os manuais que se seguiram pretenderam ser cada marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de
vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto eficácia que a consolidação do DSM visa em garantir
de, atualmente, a própria prática da Psiquiatria neles a normatização dos usuários, apagando as diferenças
sustentada ser de interesse cada vez menor para os subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a
estudantes de Medicina: “deliberadamente ateóricos oportunidade de comparecer com sua singularidade.

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual 55

Não é sem razão que muitos governos, inclusive no desses médicos era ‘limpar’ a cidade do Rio de Janeiro
Brasil, adotaram como modelo de tratamento, em do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e
muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas planejamento urbanos e da massa de desempregados e
pelos Manuais de Diagnósticos, como a classificação indigentes que habitavam as ruas (Resende, 1987). Por
diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,
fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista promovendo o uso do trabalho agrícola como instru-
que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os mento de tratamento global dos doentes mentais. Como
mais adequados ao paciente. tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram
Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos
biologização e à medicalização do sofrimento huma- doentes mentais em locais geograficamente distantes.
no está a Psicanálise. O rompimento da ortodoxia A massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas
psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de colônias e as condições dessas instituições não sofreram
Lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.
da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das
como um saber que tem contribuições importantes instalações já existentes e a criação em larga escala de
à Saúde Mental (cf. Figueiredo, 1997). Mas o uso outros hospitais estaduais, financiados pelo Governo
da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.
questões em Lacan, que, em vários momentos de seu O modelo manicomial sempre foi a mola mestra das
ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida- Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go-
de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos verno militar na década de 1960, o que se testemunhou
e “outros distintos assistentes terapêuticos” (Lacan, foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados
1966[2001], p. 32). pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e
o enriquecimento de seus proprietários, às custas das
diárias pagas pelo estado por cada paciente internado.
Em contraposição, durante os anos 1970, o mo-
A CONJUNTURA QUE LEVOU À ATUAL vimento que resultou nas ‘Comunidades Terapêuticas’
REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou
a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar
Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá- um trabalho terapêutico em função das propostas que
trica brasileira. O hospital Dom Pedro II, inaugurado vinham das reformas realizadas em outros países e dos
pelo próprio imperador, destinado aos doentes de todo investimentos pessoais de alguns psiquiatras. Delgado
o território nacional, tinha uma capacidade para so- (1998) circunscreve três eventos políticos que desenca-
mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já dearam o início da contestação e aquilo que se deno-
contava com 144 internos. Uma característica peculiar minou Reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso
da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de
Higienicista. No governo de Rodrigues Alves (1902- 1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso
1906), dois nomes se destacaram na então ciência Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental, em São
brasileira: Oswaldo Cruz e Juliano Moreira. A missão Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de

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56 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de elaboração de propostas de transformação do modelo


Franco Basaglia, que teve uma influência marcante no clássico e do paradigma da psiquiatria. (Amarante,
1995, p. 91, grifo nosso).
movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil.
A partir do projeto de lei, conhecido como projeto
No Brasil, associa tal processo à redemocratização
Paulo Delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989,
do país e à
iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescente
de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Mental, crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas
que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto clássicas, no bojo de toda a movimentação político-
social que caracteriza essa mesma conjuntura de
para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas
redemocrtatização. (Amarante, 1995, p. 91)
áreas quanto para a saída de pacientes que, muitas ve-
zes, encontravam-se internados há décadas. Uma das Três anos depois, Delgado (1998) chamava a aten-
grandes contribuições da primeira versão do projeto de ção para certa imprecisão do termo Reforma Psiquiátri-
lei foi possibilitar o debate sobre a Lei Federal de Saúde ca, do qual seria feito uso para designar as modificações
Mental, tendo em vista que a referida lei datava de 1934, do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico
baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do brasileiro, no qual se deu início um diálogo entre a Psi-
convívio social. quiatria e outras áreas do campo da Saúde Mental:

Reforma psiquiátrica é uma expressão algo impre-


cisa. Nela temos insistido como recurso de designação
para o conjunto de modificações recentes que vêm sendo
o conceito de reforma psiquiátrica produzidas ou tentadas, a partir do final da década
no Brasil A partir de 1995 de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiá-
trico público, sua sustentação teórica e técnica, e as
relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a
Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes, Psiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do campo
com uma referência à Reforma Psiquiátrica como um social, e as instituições e movimentos sociais. (1998,
conceito (cf. Delgado, 1998; Amarante, 1995). Sua p. 42, grifo nosso).
formulação como conceito depende de cada autor que o
propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais Ainda três anos depois, Amarante (2001) apre-
e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes- senta uma outra definição, o que permite depreender
sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito um avanço no próprio uso do termo. O autor mantém

ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam o termo ‘processo’, mas ele deixa de ser histórico e

aqui algumas de suas incidências. passa a ser ‘social’ e ‘complexo’, tendo uma dimensão
epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política
Em 1995, Amarante identificava a Reforma Psi-
e cultural, pois haveria várias dimensões nesse mo-
quiátrica com um importante questionamento e con-
vimento:
seqüente elaboração de propostas contrárias ao modelo
asilar. Propunha a Reforma Psiquiátrica como um: “sendo um processo, é antes de tudo permanente, não
tem fim predeterminado e articula várias dimensões
processo histórico de formulação crítica e prática que simultâneas e inter-relacionadas” (Amarante, 2001,
tem como objetivos e estratégias o questionamento e a p. 104).

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual 57

Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de, O que fica notório, tanto na idéia central da lei
efetivamente, definir o termo Reforma Psiquiátrica, não 10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados
como um termo cujas incidências históricas podem ser a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate
buscadas em vários contextos, mas que passou à referên- da contratualidade social, de modo que não há dúvida
cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e
seja, a desinstitucionalização – que estabelece outro mo- na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um
delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento quadro calamitoso do contexto da institucionalização.
terapêutico – e a mudança – que redefine o conceito de
doença mental. O autor defende que debater o conceito
de doença é suficiente para transformar as relações das
pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além CONSIDERAÇÕES FINAIS
de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos
e dos espaços na maneira de ver o usuário. Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os
Esse novo paradigma já traz consigo também estudos sobre a necessidade de investimento na clínica
o debate da dimensão jurídico-política dos direitos da Reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título
dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e do livro de Fernando Tenório (2001). Apesar de serem
redefina “as relações sociais e civis em termos de cida- criados locais de tratamento que têm como objetivo
dania, direitos humanos e sociais” (Amarante, 2001, sustentar a clínica da Reforma Psiquiátrica, observa-se,
p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados
dos usuários, quase que perdido devido às internações como referência do tratamento dos usuários, mas, por
forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi- outro, promove-se uma preocupação maior com a es-
cação da Reforma Psiquiátrica, pois o movimento pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente
entende cidadania como a tentativa de garantir, por à atenção psicossocial.
meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que
projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento
dos portadores de sofrimento psíquico. Além disso, é psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono-
necessária a implantação de serviços e/ou modificações mia pode ficar comprometido. Assim, surge uma nova
dos serviços já existentes para que a cidadania possa tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo
ser uma conquista diária. da Saúde Mental. Algumas propostas por uma solução
Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli-
a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório nar: “o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,
informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta- heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se
dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos, entrecruzam” (Rinaldi, 2006, p. 142).
a lei 10.216 promoveu grandes mudanças – os Caps, as Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe-
residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente
–, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con-
afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqüente- sistência para enfrentar os problemas diários de nossa
mente, as coisas avançam muito lentamente. prática? (Barbosa, 2004) Desde o início da história

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da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há Basaglia, F. As instituições da violência. In: Basaglia,
clínica sem orientação definida (Bercherie, 1989). Por F. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p.
99-133.
razões que transcendem este artigo e que precisariam
ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico
Barbosa, L.H. Psicologia clínica na Saúde Mental: crí-
que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que tica à Reforma Psiquiátrica. Ciências & Cognição, ano
não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora, 1, v. 3, p. 63-65, 2004.
nota-se que a reação que alguns setores da Reforma Psi-
Bercherie, P. Fundamentos da clínica. Rio de Janeiro:
quiátrica atual dirigem contra o trabalho de psicanalistas
Jorge Zahar, 1989.
que se instrumentalizam do movimento da reforma e,
ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as Candiotto, C. Verdade e diferença no pensamento de
contribuições de sua própria formação, relaciona-se com Michel Foucault. Kriterion, Belo Horizonte, n. 115,
o que já se observou, na década de 1970, nos Estados jun., p. 203-217, 2007.
Unidos, quando da publicação dos manuais como o
Delgado, P.G. No litoral do vasto mundo: lei 10.216
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dências anteriores de questões atuais transcende a função A.T.A.; Cavalcanti, M.T. Saúde Mental: campos, sa-
da história como registro e permite estudar as determi- beres e discursos. Rio de Janeiro: Edições Ipub/Cuca,
2001.
nações – nem sempre conhecidas – de movimentos e
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Recebido: abr./2008
Aprovado: ago./2008

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008


60 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Saúde do trabalhador de Saúde Mental:


uma revisão dos estudos brasileiros
The health of Mental Health workers:
a review of Brazilian scientific literature

Tatiana Ramminger 1

1
Psicóloga; mestre em Psicologia RESUMO Neste artigo apresentamos uma revisão dos estudos brasileiros sobre a
Social e Institucional pela Universidade
saúde do trabalhador de Saúde Mental, considerando o processo de implantação
Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); doutoranda em Saúde
da Reforma Psiquiátrica no país. A bibliografia disponível é recente, datando
Pública pela Escola Nacional de Saúde de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990 havia um predomínio
Pública da Fundação Oswaldo Cruz de estudos em torno do conceito de estresse, com profissionais da enfermagem e
(ENSP/Fiocruz).
de hospitais psiquiátricos. Atualmente, sobretudo a partir de 2006, os estudos
ramminger@ensp.fiocruz.br
não apenas apresentaram um crescimento significativo, como se tornaram mais
complexos e ganharam em qualidade, privilegiando, os trabalhadores de Saúde
Mental dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

PALAVRAS-CHAVE: Serviços de Saúde Mental; Saúde do trabalhador;


Literatura de revisão.

ABSTRACT This paper presents a literature review under the theme “health of


Mental Health workers” as considered the introduction of the Psychiatric Reform
in Brazil. The available bibliography is recent, with less than a decade. In the
end of the 1990’s, studies on the concept of stress carried out with professionals of
nursing and in psychiatry hospitals were predominant. Nowadays, mainly since
2006, the studies not only increased significantly, but also became more complex
and acquired quality, favouring the workers of Mental Health of the Psychosocial
Care Centers (Caps).

KEYWORDS: Mental Health services; Workers Health; Review literature.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008


RAMMINGER, T. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros 61

I N T R O D U ç ão concepção de ‘loucura’ e nas formas de tratamento dos


usuários (Passos, 2003).
Farta bibliografia preocupa-se em (re)discutir a
função dos diferentes profissionais nas equipes dos
novos serviços de Saúde Mental como, por exemplo,
Neste artigo, procurou-se questionar a formar a atuação do terapeuta ocupacional (Mangia, 2000;
como o campo Saúde do Trabalhador dialoga com Ribeiro; Oliveira, 2005), do psicólogo (Bandeira,
a saúde dos trabalhadores de Saúde Mental. Res- 1992; Figueiredo; Rodrigues, 2004), do assistente
saltamos que esse não é um tema muito pesquisado social (Vasconcelos, 2000), do psicanalista (Figueire-
nem na área de Saúde Mental, que tem priorizado do, 2001), do acompanhante terapêutico (Palombini,
as discussões em torno das mudanças no cuidado ao 2004) e, sobretudo, dos enfermeiros (Dalmolin, 1998;
portador dos transtornos mentais e no entendimento Bertoncello; Franco, 2001; Kirschbaum; Paula,
da loucura, nem no campo da Saúde do Trabalha- 2001; Casanova, 2002; Lima; Amorim, 2003; Oliveira;
dor, que acumula estudos em organizações privadas Alessi, 2003; Silveira, 2003; Silveira; Alves, 2003;
e industriais. Tentando potencializar esse diálogo Silva; FonsecA, 2005), técnicos e auxiliares de Enfer-
necessário, nosso esforço aqui será reunir e discutir magem (Maranhão, 2004; Zerbetto; Pereira, 2005).
a produção científica brasileira a respeito da relação Destaca-se, ainda, a tendência a repetir padrões comuns
entre saúde/adoecimento e trabalho na área da Saúde ao hospital psiquiátrico, mesmo com severas críticas a
Mental, sobretudo a partir do processo de implantação esse modelo (Brêda; AugustO, 2001; Campos; Soares,
da Reforma Psiquiátrica no país. 2003; Oliveira; Alessi, 2005A, 2005B; Bichaff, 2006;
Para tanto, foram utilizados os bancos de dados de Antunes; Queiroz, 2007; Leao; Barros, 2008).
teses e dissertações1 das universidades que disponibilizam Por outro lado, a bibliografia existente sobre a rela-
este recurso, bem como a base de dados da Biblioteca ção entre saúde e trabalho em Saúde Mental é recente,
Virtual em Saúde (Bireme, www.bireme.br), que inclui datando de pouco menos de uma década. Recordemos
Lilacs, Medline, Cochrane e SciELO, com pesquisa feita a que os estudos sobre a relação entre saúde/adoecimento
partir dos seguintes descritores: Saúde do Trabalhador; e trabalho, tendem a estar ligados ao que é visível, ou
Saúde Mental; reforma psiquiátrica; trabalhador de Saú- seja, ao que pode ser medido, examinado ou medicado,
de Mental; trabalhador psiquiátrico; hospital psiquiátri- estabelecendo-se objetivamente um nexo entre determi-
co. A última consulta foi feita em abril de 2008, sendo nada situação de trabalho e respectivas conseqüências
que também recorremos, eventualmente, a resumos de para a saúde do trabalhador (como no caso de uma
congressos científicos e capítulos de livros. perda auditiva por exposição ao ruído, por exemplo).
Em consulta à literatura que aborda o trabalho na Dificilmente considera-se, portanto, a mobilização
área da Saúde Mental, principalmente aos textos publi- cognitiva e afetiva do trabalhador, ambas característi-
cados a partir do processo de implantação da Reforma cas importantes do trabalho em saúde, especialmente
Psiquiátrica no país, percebemos que os estudos privile- do trabalho em Saúde Mental. Sendo assim, quase a
giam as mudanças recentes nesse campo, sobretudo na totalidade dos textos tem caráter qualitativo e poderiam

1
Quando parte das conclusões das dissertações ou teses possuíam publicação em periódicos científicos, privilegiou-se o artigo publicado.

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ser reconhecidos como parte do campo de estudos deno- apontada como recorrente entre os profissionais da
minado ‘Saúde Mental e Trabalho’. Como este campo educação, da saúde e da segurança, sobrecarregados em
não é homogêneo, ou seja, não há consenso sobre quais suas formas de prover cuidado (Codo, 1999). Segundo
seriam suas principais correntes teóricas (Fernandes; Codo, as principais características dessa síndrome são
Melo; Gusmão et al., 2006; Jacques, 2003), fizemos a exaustão emocional, a despersonalização da atenção
nossa própria divisão em três blocos, conforme os temas e a falta de compromisso com o trabalho. As pesquisas
privilegiados em cada estudo. acerca dos trabalhadores de Saúde Mental que seguem
esse referencial apontam um alto índice de esgotamento
emocional e estresse crônico entre eles, diretamente pro-
porcional ao tempo e à intensidade do cuidado direto
ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO ao paciente (Fensterseifer, 1999; Rego, 2000; Rosa,
TRABALHO EM SAÚDE MENTAL 2001; Costa; Lima, 2002; Ramminger, 2002; Vianey;
Brasileiro, 2003).
Estabelecer a relação entre doença/Saúde Mental e Por outro lado, Carvalho e Felli (2006), buscaram
trabalho não é tarefa fácil. O processo de adoecimento analisar o processo saúde-doença vivenciado pela equipe
psíquico é sempre singular e envolve várias dimensões de enfermagem de um hospital psiquiátrico a partir dos
da vida do sujeito, o que pode dificultar pesquisas quan- conceitos de carga de trabalho e desgaste, chegando
titativas. Talvez seja essa a explicação para o reduzido à conclusão que esses trabalhadores apresentam um
número de estudos epidemiológicos encontrados, ainda intenso desgaste mental muito mais pelas condições de
que sejam fundamentais para nos dar a dimensão deste trabalho do que pelo convívio com os pacientes. As
‘invisível’ que pode se tornar mais palpável na medida cargas de trabalho (físicas, químicas, biológicas, fisio-
em que começa a ser reconhecido estatisticamente lógicas e psíquicas), segundo Laurell e Noriega (1989),
(Tittoni, 1997). são elementos do processo de trabalho que interagem
Aliás, foi o peso das estatísticas, somado ao esforço dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador
dos pesquisadores e dos movimentos sociais, que possi- gerando processos de adaptação e que resultam em
bilitou o reconhecimento legal da relação entre Saúde desgaste, entendido como uma perda da capacidade
Mental e trabalho no Brasil a partir de 1999, através potencial e/ou efetiva corporal e psíquica.
do Decreto 3.048 do Ministério da Previdência e As- Nessa direção, Bandeira, Pitta e Mercier (2000)
sistência Social que discrimina os Transtornos Mentais validaram, no Brasil, escalas internacionais de avaliação
Relacionados ao Trabalho. Dentre esses transtornos, há de satisfação (SATIS-BR) e sobrecarga (IMPACTO-BR)
a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout, das equipes técnicas de serviços de Saúde Mental. Tais
descrita pelas teorias do estresse. escalas passaram a ser utilizadas em pesquisas de ava-
As teorias do estresse, embora tenham como re- liação, fornecendo importantes subsídios para estudos
ferencial básico a Fisiologia, originaram modelos mais epidemiológicos. Além disso, os estudos de satisfação
complexos, com a inclusão da perspectiva social e da vêm crescendo em importância na avaliação da quali-
subjetividade (Seligmann-Silva, 2003). A síndrome dade dos serviços de Saúde Mental por considerarem
de burnout, mesmo que de início não estivesse ligada a percepção dos diferentes segmentos envolvidos na
exclusivamente às situações de trabalho, hoje tem sido atenção (usuários, familiares e trabalhadores), assim

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como a “escala de sobrecarga constitui um preditor os níveis mais baixos de satisfação e mais elevados de
do estresse apresentado pelos trabalhadores de Saúde sobrecarga entre os trabalhadores com indicativo de
Mental” (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007, p. 280). No estresse (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007). As demais
entanto, Reboucas, Abelha, Legay et al. (2008, p. 625) pesquisas confirmam que quanto maior o grau de so-
ressaltam que, embora os estudos brasileiros sejam rea- brecarga dos profissionais, menor o seu nível de satis-
lizados com todos estes segmentos, “a pesquisa dirigida fação no trabalho, assim como a relação inversa entre o
à equipe técnica tem despertado menos interesse do que nível de escolaridade e satisfação. Em duas pesquisas, a
as que avaliam usuários e familiares”. satisfação no trabalho esteve relacionada à atuação em
Percebemos que de sua validação (ano 2000) até a projetos novos e de status diferenciado, à maior idade
publicação das primeiras pesquisas feitas a partir dessas e ao contrato de trabalho precário. As pesquisadoras
escalas em relação ao trabalho em Saúde Mental, passa- atribuem tal resultado ao fato de que, provavelmente,
ram-se sete anos. Tivemos acesso a quatro estudos, sendo os profissionais mais jovens têm menos recursos para
um de validação do construto das escalas, realizado em lidar com os problemas inerentes ao desempenho das
um município de São Paulo (Bandeira, Ishara; Zuardi, atividades e quando possuem escolaridade mais elevada,
2007), dois realizados em instituições do município do maiores expectativas em relação ao trabalho. (Reboucas;
Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007; Rebou- Legay; Abelha, 2007; Godoy; Rigotto; Maciel et al.,
cas; Abelha; Legay et al., 2008) e um que apresenta os 2007). Em relação ao impacto do trabalho, os resultados
resultados preliminares da aplicação do instrumento em foram diferentes. Enquanto os resultados encontrados
toda rede de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do no Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007;
Ceará (Godoy; Rigotto; Maciel et al., 2007). Nesses Reboucas; Abelha; Legay et al., 2008) não remetem
estudos, a satisfação é considerada um estado emocio- à associação significativa com a escolaridade, Godoy,
nal que envolve a interação das características pessoais, Rigotto, Maciel et al. (2007) apontam a relação direta
valores e expectativas dos profissionais em relação ao entre a baixa escolaridade e o impacto menor do trabalho
ambiente e organização do trabalho. Já o impacto diz na vida dos profissionais.
respeito às repercussões do trabalho sobre a saúde e o
sentimento de bem-estar do trabalhador (Reboucas;
Legay; Abelha, 2007).
Todas as pesquisas apontam para a predominância SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM
significativa das mulheres no trabalho em Saúde Men- SAÚDE MENTAL
tal, culminando no caso do Ceará, onde 72,8% dos
trabalhadores dos Caps são mulheres (Godoy; Rigotto; Passemos agora aos estudos que consideram a re-
Maciel et al., 2007). A pesquisa de Reboucas, Legay e lação entre prazer e sofrimento no trabalho em Saúde
Abelha (2007) destaca que esse segmento concentrou Mental. A pesquisa de Lanzarin (2003), ancorada na
o menor nível de satisfação com o trabalho e o maior Psicodinâmica do trabalho, procurou analisar as rela-
impacto sobre a saúde, interpretado pelas autoras como ções entre trabalho, prazer e sofrimento das auxiliares
conseqüência da ‘dupla jornada’ feminina. No estudo de de enfermagem de um hospital psiquiátrico. À Luz
validação de construto foi constatada a relação negativa da Psicanálise, Dejours (1988) entende que, frente às
entre os escores de satisfação e sobrecarga, bem como vivências de sofrimento, os trabalhadores desenvolvem,

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coletivamente, estratégias defensivas que podem ser Considerando o referencial da Psicologia Institucio-
muito úteis, pois permitem que as pessoas continuem nal e da Psicanálise de grupos, Koda e Fernandes (2007)
trabalhando, sobrevivendo à angústia. No entanto: analisam os conflitos e contradições que se instauram
a partir da implantação de um serviço substitutivo à
[...] as estratégias defensivas podem atenuar o sofri- internação psiquiátrica que exige um contato mais pró-
mento, mas, por outro lado, se funcionarem muito bem
ximo com o paciente e um trabalho mais articulado com
e as pessoas deixarem de sentir o sofrimento, pode-se
prever a alienação. (Dejours, 1999). profissionais de outras áreas e instituições. Segundo as
autoras, isso leva a um “desenraizamento” do trabalha-
Lanzarin (2003) percebeu grande envolvimento dor, que vê sua identidade profissional posta em questão.
emocional entre as auxiliares de enfermagem e a clien- Os códigos anteriores, ainda que fossem avaliados como
tela atendida. Segundo a pesquisadora, se por um lado inadequados, asseguravam um modelo de práticas e re-
essa intensificação do laço afetivo constitui-se fonte de presentações comuns em relação ao lugar do trabalhador,
gratificação para as auxiliares, e funciona como uma es- à relação profissional/usuário, à concepção da loucura,
tratégia defensiva frente ao medo e à angústia, por outro entre outras. A transformação desses códigos leva a um
lado contribui para a exploração do trabalho. Mulheres momento de fragilidade, muitas vezes vivenciado como
em sua maioria, as auxiliares acabam tomando para si ameaça contra o sujeito e o grupo ao qual pertence.
algumas responsabilidades que não estão relacionadas Corroborando esse entendimento, Rabelo e Torres
à função que desempenham. Ao mesmo tempo, esse (2005) pretenderam avaliar a relação entre a adesão a
cuidado não é reconhecido como uma qualificação ou determinado paradigma norteador de práticas em Saú-
competência da trabalhadora, mas como a expressão de de Mental, e a saúde física e psicológica dos profissio-
um instinto maternal inato. nais da área em Goiânia. As autoras consideraram dois
Ferrer (2007) e Silva (2007) nos apresentam paradigmas: o biológico e o psicossocial. O primeiro
análises similares de estudos realizados com os pro- está ligado ao discurso médico psiquiátrico, com ênfase
fissionais dos C aps de Campinas, interior de São nas causas orgânicas do adoecimento; o segundo, ao
Paulo (Ferrer, 2007) e Goiânia, Goiás (Silva, 2007), discurso da Reforma Psiquiátrica. Participaram da pes-
embora não utilizem apenas o referencial dejouriano, quisa, trabalhadores de seis serviços de Saúde Mental
privilegiando as vivências de sofrimento dos traba- ‘substitutivos’ e seis clínicas psiquiátricas. Os resultados
lhadores. Ambas as análises citam como importantes mostraram que os maiores níveis de bem-estar físico
componentes que contribuem para o sofrimento do e psicológico não estiveram relacionados ao local de
trabalhador de Saúde Mental a baixa remuneração, trabalho, mas à adesão ao paradigma biológico que,
os contratos diferenciados e, por vezes, precários de segundo as autoras, por ser mais legitimado, oferece
trabalho, a má condição física e material dos estabe- maior segurança ao profissional nesse momento de
lecimentos, a limitação das demais redes de suporte transição no qual o modelo biológico não foi aban-
e promoção social, a carência de uma política de donado, nem o modelo psicossocial definitivamente
cuidado aos trabalhadores da saúde e o próprio fato implantado. No entanto, não podemos deixar de
de haver contato com a loucura. Por outro lado, as questionar a validade da separação estanque entre esses
duas pesquisadoras também apontam a implicação e dois paradigmas, bem como das escalas de bem-estar
o prazer desses trabalhadores com sua atividade. físico e psicológico utilizadas.

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SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRÁTICAS discursivas, incluindo desde a crença de que cuidar é


E VIVÊNCIAS DOS TRABALHADORES DE uma forma de caridade (discurso religioso), a afirma-
SAÚDE MENTAL ção de que é a ciência que pode falar do tratamento da
loucura (discurso científico), até o entendimento de que
Por fim, aqui destacamos os artigos que não tratam o trabalho em Saúde Mental não pode ser reduzido a
diretamente da relação entre saúde e trabalho em Saúde um domínio de técnicas, devendo incluir a implicação
Mental, mas que apresentam contribuições para o tema. política e afetiva com a construção de outro modo de
Considerando a análise do discurso dos trabalhadores, se relacionar com a loucura (discurso antimanicomial).
encontramos os trabalhos de Bernardes e Guareschi Em segundo lugar, pela oscilação dos trabalhadores
(2004) e Garcia e Jorge (2006). O primeiro parte do entre um papel desafiador e criativo, como agentes de
referencial foucaultiano para compreender as formas de um dispositivo que se pretende inovador, e a constante
subjetivação, ou o modo como os profissionais consti- desvalorização de sua função enquanto servidor público,
tuem a si mesmos e se reconhecem como trabalhadores traduzida pela falta de investimentos e ações interseto-
de Saúde Mental. Já Garcia e Jorge (2006) procuram riais que impõem limites à prática e responsabilizam o
destacar a vivência dos trabalhadores de um Caps à luz trabalhador individual, excessiva e exclusivamente pela
do pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg resolutividade dos serviços.
Gadamer. Embora sigam caminhos diferentes, os dois Da mesma forma, o artigo de Silva (2005) sobre
estudos se valem da figura do ‘humano’ e da ‘humani- os discursos e práticas em torno da responsabilidade
zação’ para retratar as transformações no cuidado em no campo da Saúde Mental, aponta para o aumento da
Saúde Mental. A conclusão é que a Reforma Psiqui- responsabilidade e autonomia do trabalhador de Saúde
átrica, ao reivindicar a humanização do atendimento Mental em seu processo de trabalho. No entanto, a
em Saúde Mental, não pode deixar de lado o “humano exigência do trabalhador apto a resolver problemas
que cuida” (Garcia; Jorge, 2006), já que os próprios complexos não é acompanhada do aumento dos ne-
trabalhadores reconhecem que “a humanização deles cessários recursos teóricos, financeiros ou emocionais,
[dos pacientes] será a nossa humanização” (Bernardes; em uma clara tendência à precarizacão do trabalho,
Guareschi, 2004). somada a expectativas cada vez maiores em relação ao
Em um estudo que privilegiou o ponto de vista dos trabalhador. Além disso, a ‘tomada de responsabilidade’
trabalhadores de Saúde Mental sobre a relação entre a – jargão do campo da saúde – não é apenas do serviço
saúde e suas atividades de trabalho (Ramminger, 2006; (pelo território), mas também do trabalhador (por seu
Ramminger; Nardi, 2007), evidencia-se que a preca- processo de trabalho), do usuário (por sua condição
riedade das políticas públicas de atenção à saúde do subjetiva), da família e da comunidade de modo geral
servidor público reflete nos serviços de Saúde Mental. O (responsabilização social dos atores), em um processo
acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde no qual distintas áreas – Saúde Pública, Análise Institu-
no trabalho depende do funcionamento e das diretrizes cional e Psicanálise – unem-se em torno da convocação
particulares de cada serviço. A análise dos discursos e à responsabilidade.
práticas possibilita o entendimento de que os trabalha- Também os estudos que privilegiam as teorias
dores habitam um espaço de tensionamentos e confron- sobre a representação social corroboram com a com-
tos. Primeiro, pela circulação de diferentes formações preensão do trabalho em Saúde Mental como uma

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atividade complexa, com a circulação de distintos A alegria é tomada como indicador da luta contra
discursos e um sobre-encargo do trabalhador, prin- a tristeza e o sofrimento, sendo necessário um espaço de
cipalmente pelo desinvestimento no trabalho e nos apoio, para além das supervisões institucionais e clínicas,
serviços públicos (Koda, 2002; Antunes; Queiroz, que permita retomar a produção de vida, consumida
2007; Leao; Barros, 2008). em meio ao fazer cotidiano. Essa imagem do consumo
Andrade (2007) propõe, inspirado em Nourodine da vida pelo trabalho remete à exaustão ou combustão
(2004), considerar o risco no e do trabalho em Saúde (burnout) do trabalhador e da equipe, pois um coletivo
Mental não apenas como negatividade ou algo que deva que consome sua própria vida com o objetivo de cons-
ser combatido, mas como positividade e potencialidade, truir novas possibilidades de vida para outros, se não
um “ato de criatividade necessário e jamais dominado a produzir o tempo todo, exaure. Da mesma forma, o
para agir, produzir, inventar e realizar” (Andrade, 2007, segundo analisador proposto por Merhy – o alívio –
p. 85). No entanto, a não ser pelo risco de reproduzir aponta para a necessidade de alívio também daquele
os modelos manicomiais ou enclausurar-se nas próprias que se ocupa do alívio dos outros.
defesas frente ao sofrimento do outro, o autor não se
aprofunda em relação aos riscos da atividade do traba- Uma equipe de trabalhadores dos Caps que não possa
usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria,
lhador de Saúde Mental.
de forma implicada, não tem muito a ofertar a não
Merhy (2007), embora sem a pretensão de apre- ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o ma-
sentar um estudo mais sistematizado, compartilha suas nicômio já fazia e faz. (Merhy, 2007, p. 65).
reflexões, a partir de sua experiência como supervisor
de um Caps. Ele diz que buscar a produção de cuidados Aliás, a precarizacão e a falta de condições de tra-
em saúde para além das práticas hegemônicas, é estar balho em Saúde Mental, bem como o número sempre
no ‘olho do furacão’, sendo necessário construir um insuficiente de trabalhadores, com excesso de encargos
campo de proteção para aqueles que têm que moldar e responsabilidades, salientados nos estudos aqui apre-
suas caixas de ferramentas em ato. Descreve o trabalho sentados, integram uma herança que acompanhou o
nos Caps como algo árduo, com intensa demanda de hospital psiquiátrico desde a sua fundação e parece ter
múltiplos cuidados, o que faz o trabalhador experi- se perpetuado nos novos serviços de Saúde Mental2.
mentar sentimentos intensos e antagônicos, cobrando Esses últimos estudos, já apontam a relação intrín-
de si mesmo e da equipe uma disponibilidade e uma seca entre a gestão do trabalho e o trabalho como gestão,
abertura difíceis de serem mantidas permanentemen- ou seja, a indissociabilidade entre as formas de atenção
te, sobretudo para quem oferta seu trabalho vivo e gestão. O abismo entre um e outro gera sofrimento
para vivificar a vida do outro. São sentimentos de e adoecimento entre os trabalhadores (Santos-Filho;
tristeza, exaustão e impotência que caminham lado a Barros, 2007). Jorge, Guimarães, Nogueira et al. (2007)
lado com a exigência de acolhimento e resolução de trata especificamente da gestão de recursos humanos
problemas complexos de forma criativa e entusiasma- em três Caps de Fortaleza (CE). Os autores afirmam
da. Assim, o autor propõe a alegria e o alívio como que os serviços de Saúde Mental enfrentam os mesmos
dispositivos analisadores. desafios do sistema de saúde geral como, por exemplo,

2
A esse respeito, consultar os relatórios dos primeiros hospitais psiquiátricos citados nos trabalhos de Wadi (2002) e Machado et al. (1978).

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a precarização do trabalho em saúde, que pode ser de loucura e cuidado. O trabalho em Saúde Mental é
definida como a flexibilização ou ausência de direitos compreendido como uma atividade, ao mesmo tempo
trabalhistas e de proteção social, baixa qualificação singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e
profissional e condições de trabalho insatisfatórias. Na desgastante e que, para além do corpo do trabalhador,
pesquisa, 60% dos trabalhadores manifestaram algum deve contar com sua capacidade relacional. Os conceitos
desconforto em relação ao processo de trabalho; suas mais utilizados nesses estudos, mesmo que por vezes mal
queixas compreenderam desde o volume de tarefas e a definidos, são aqueles relacionados ao campo da Saúde
burocracia excessiva, até a falta de colaboração e apoio Mental do Trabalhador, tais como: estresse, desgaste,
dos colegas e do próprio gestor. As condições de traba- sobrecarga, impacto, sofrimento psíquico, modos de
lho relacionadas à estrutura física dos serviços, também subjetivação e vivência subjetiva.
deixa muito a desejar. No entanto, mesmo com todas
essas limitações, 80% dos trabalhadores declararam que
seu nível de satisfação, por trabalhar no Caps, é bom ou
excelente. Os autores concluem que há um descompasso
entre as políticas de recursos humanos implantadas –
como a Política Nacional de Humanização da Atenção
e Gestão do SUS e o Programa Nacional de Despreca- R E F E R Ê N C I A S
rização do Trabalho no SUS – e sua operacionalização
no nível local.
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pouco menos de uma década. No final dos anos 1990, estão os profissionais de psicologia preparados? Psicolo-
predominaram os estudos em torno do conceito de es- gia: teoria e pesquisa, v. 8, n. 3, p. 373-384, 1992.
tresse em profissionais da enfermagem e trabalhadores
de hospitais psiquiátricos. Atualmente, os estudos não Bandeira, M.; Ishara, S.; Zuardi, A.W. Satisfação e
sobrecarga de profissionais de saúde mental: validade
apenas cresceram significativamente, como se tornaram de construto das escalas SATIS-BR e IMPACTO-BR.
mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 56, n. 4, p. 280-286,
os trabalhadores de Saúde Mental dos Caps. A biblio- 2007.
grafia tende a destacar os desafios colocados aos traba-
Bandeira, M.; Pitta, A.M.F.; Mercier, C. Validação das
lhadores pela proposta “cuidar sem segregar” que exige
escalas de avaliação da satisfação (SATIS-BR) e da sobre-
a redefinição de seu papel como profissional, sua relação carga (IMPACTO-BR) da equipe técnica em serviços de
com a equipe e os usuários, bem como sua concepção saúde mental. Jornal Brasileiro de Psiquiatria,

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Recebido:abr./2008
Aprovado: nov./2008

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008


72 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário


Arte Contemporânea
The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Ricardo Aquino 1
Thiago Ferreira de Aquino 2

Rita Aquino 3

1
Diretor; curador do Museu Bispo do RESUMO É apresentado o modo de funcionamento, princípio ético e os
Rosário Arte Contemporânea.
fundamentos da Escola Livre de Artes Visuais, um setor do Museu Bispo do
ricardoaquinorico@hotmail.com
Rosário Arte Contemporânea que oferece experiência com a criação artística. O
2
Músico; mestrando do Programa museu define-se pela criação e é constituído como ‘instituição inventada’ na luta
de Pós-graduação em Música na da cultura contra a psiquiatria disciplinar.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Unirio); professor da Escola Livre de PALAVRAS-CHAVE: Arte; Criação; Museu; Psiquiatria; Terapia artística.
Artes Visuais (Elavi).
thiago_aquino1@yahoo.com.br
ABSTRACT One presents the modus operandi, ethical principles and foundations
3
Dançarina; mestre em Dança pela of Escola Livre de Artes Visuais (Elavi). Elavi is a section of Museu Bispo do
Universidade Federal da Bahia (UFBA); Rosário Arte Contemporânea which offers experience with artistic creation. The
professora da Elavi em 2005-2006.
museum is defined by the creation and stands as an ‘invented institution’ in the
aquino.rita@gmail.com
fight of culture against disciplinary psychiatry.

KEYWORDS: Art; Creation; Museum; Psychiatry; Art therapy.

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea 73

I N T R O D U ç ão a criação artística como uma estratégia de combate à


ciência psiquiátrica e aos seus efeitos.
Benedetto Saraceno recomenda que:

Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessi-


tamos de esquizofrênicos cidadãos, não necessitamos
Neste trabalho é apresentada a Escola Livre de que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a
Artes Visuais (Elavi) do Museu Bispo do Rosário cidadania. (Saraceno, 1996, p. 16).
Arte Contemporânea inaugurada em 18 de maio de
2005. A Elavi é o segmento do museu que oferece De fato, a Elavi enquanto setor do Museu Bispo
a possibilidade de experimentação artística, seu pe- do Rosário Arte Contemporânea, que oferece experi-
ríodo de funcionamento é de segunda a sexta-feira, ências com a arte, se coloca no campo da mudança e
matutino e vespertino, nas dependências do museu do novo, contra o paradigma psiquiátrico clássico e o
localizado no perímetro do Instituto Municipal de seu positivismo cientificista. O museu coloca em ação
Assistência à Saúde Juliano Moreira, na cidade do as palavras de Friedrich Nietzsche, as quais sintetizam
Rio de Janeiro, e é aberta a usuários dos serviços de sua inserção no debate das questões sustentadas pela
saúde mental, técnicos e comunidade. A característica Reforma Psiquiátrica:
essencial da Elavi decorre do fato de ser um dispositi-
A história e as ciências naturais foram úteis para
vo sem medicamentos que oferece a possibilidade de
vencer a Idade Média: o saber contra a crença. Agora
experimentar a arte fora do circuito de tratamento, lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida!
de oficina de terapia ocupacional, da arteterapia, ou (Nietzsche, 1987, p. 11).
outros. Trata-se de um espaço catalisado por artistas,
sem a presença de qualquer profissional relacionado O funcionamento por três anos motivou esta
à Saúde Mental. apresentação em que são contemplados os fun-
O nome escolhido para a escola tem por referência damentos e, justificado o recurso da arte contra a
o trabalho do psiquiatra e psicanalista Osório César psiquiatria.
desenvolvido na Colônia do Juqueri entre 1949 e 1971.
O psicanalista denominava de Escola Livre de Artes
Plásticas. A escolha da denominação Escola Livre de
Artes Visuais foi dada em conformidade com a amplia- MUSEU E REFORMA PSIQUIÁTRICA
ção do campo das artes plásticas, por intermédio do uso
de novas mídias. A Reforma Psiquiátrica se empenha pela mudança
O nome deste setor transmite a idéia de que os do paradigma psiquiátrico que foi construído tendo
freqüentadores não são ‘doentes mentais sob trata- por base o asilo e saber psiquiátrico. A Modernidade foi
mento’, mas sim estudantes ou aprendizes de vivências construída sobre as bases das instituições e dos saberes de
artísticas. Portanto, a escola desloca o foco da saúde e matiz disciplinar. A Reforma Psiquiátrica problematiza
doença para o da criação e cultura. Entende-se criação as bases disciplinares da Psiquiatria: o asilo e o saber, e o
artística como algo inerente ao que todos os homens são correlato disto na cidadania. Mais do que isto, a Reforma
potencialmente capazes. Desta forma, a Elavi sustenta Psiquiátrica luta por um novo lugar social na cultura a

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ser ocupado pela loucura e pelos que se encontram na • o conceito do Museu Bispo do Rosário Arte
condição de sofrimento psíquico. Joel Birman (1992, Contemporânea se baseia na crítica ao modelo discipli-
p. 72) destaca este como o eixo central da luta do mo- nar de museu que se estrutura e define sobre a coleção de
vimento. Isto vem ao encontro das seguintes palavras objetos. A coleção funda o museu disciplinar localizado
de Michel Foucault: em um edifício, o qual funciona como um pan-óptico,
como qualquer instituição disciplinar na qual se dirige
A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo o público a receber passivamente uma narrativa que
e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa,
tem por base uma história mestra, seja na esfera da arte,
a partir da qual denunciamos uma palavra como
não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, como da história humana ou natural.
uma figura como não tendo direito a tomar lugar na Pode-se sintetizar o modelo disciplinar de museu
história. (Foucault, 2000, p. 157). da seguinte maneira: museu = coleção + edifício +
público.
A desconstrução das instituições e do saber que A crítica a este modelo exigiu do Museu uma nova
sustentam a psiquiatria exigiu a construção de novos definição assentada sobre a criação. A criação artística
dispositivos, denominados por Franco Rotelli (1990A) é o que possibilita estabelecer uma linha de fuga do
como ‘instituição inventada’. Esta necessidade decorre controle do poder psiquiátrico. Como estudou Gilles
da mudança do foco do ‘mal obscuro’ (Rotelli, 1990B, Deleuze (2003) a criação é a resistência por excelência
p. 91) – os indivíduos recolhidos numa instituição – ao poder, sendo, conseqüentemente, o que funda o
para ter como objeto as pessoas em situação de sofri- Museu.
mento psíquico. A ‘instituição inventada’ inventa uma Segundo Deleuze (2003, p. 4), “existe uma afi-
nova maneira de cuidar, a partir de um novo olhar, nidade fundamental entre a obra de arte e o ato de
sobre um novo objeto. O Museu Bispo do Rosário resistência”. Para ele fazer arte é resistir: 
Arte Contemporânea é uma instituição inventada
pelas necessidades e especificidades da luta na cultura. [...] Quando dizemos que ‘criar é resistir’, trata-se de
uma afirmação de fato; o mundo não seria o que é se
O foco de sua atuação é a defesa da cidadania plena
não fosse pela arte, (...) as pessoas não agüentariam
da criação artística dos usuários dos serviços de Saúde mais. (Deleuze, 2003, p. 5).
Mental (Aquino, 2004).
Com outras palavras, o Museu é uma instituição A criação pode ocorrer em qualquer lugar denomi-
inventada na dimensão da luta na cultura que tem como nado conforme Michel de Certau (2002, p. 202) ‘lugar
proposta o empenho em prol da Reforma Psiquiátrica praticado’. Esta criação que é realizada no lugar pratica-
da criação artística dos usuários, museus e experiências do e não mais no edifício sede do museu agencia relações
com a arte. Se a Reforma Psiquiátrica luta pela cidadania em ressonância naqueles pontos da rede do tecido social
dos usuários e por instituições de cuidados em saúde que que entram em contato com a ação de criação do museu.
respeitem estes direitos, o museu, por sua vez, é uma Com isto de forma abreviada, o modo de funcionamento
‘instituição inventada’ que luta pela cidadania plena da do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea é:
criação dos usuários. museu = criação + lugar praticado + rede. A criação é o
Há três observações que ajudam a contextualizar elemento que funda o Museu em todo e cada segmento
a Elavi: do seu funcionamento, inclusive na Elavi;

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• quando se fala em luta contra a psiquia- de epistémê. A epistémê da Modernidade, a terceira


tria deve-se levar em consideração a observação de e última estudada por Foucault, se alicerçou sobre
Foucault, referente à obra de Robert Castel: “[...] o historicismo e o deciframento. O historicismo se
a psiquiatria não nasceu no asilo; ela foi, de saída, apoiou no darwinismo e reservou ao ‘doente mental’
imperialista; ela sempre fez parte integrante de um o lugar do primitivo, arcaico, não-culturalizado e
projeto social global” (Foucault, 2002, p. 325). mais próximo ao animal. O deciframento é a atri-
Esta afirmação ganha maior relevo quando focada buição daqueles racionais, adultos, machos, brancos,
para o fato de que a função de controle das institui- europeus, de interpretar o sentido oculto das coisas
ções disciplinares tende a se espalhar por todo o corpo e o último segredo dos fatos humanos. A psicanálise
social. Para Foucault,
e a etnologia atravessam os saberes da modernidade
(Foucault, 1981, p. 396).
[...] o esquema pan-óptico, sem se desfazer nem
perder nenhuma de suas propriedades, é destinado A crise da sociedade disciplinar é concomitante
a se difundir no corpo social; tem por vocação à crise da epistémê da Modernidade. Para George
tornar-se aí uma função generalizada. (Foucault,
Yúdice (2004), atualmente na sociedade de controle
1977, p. 183).
vive-se sob uma nova epistémê, a contemporânea, que
A tendência prevalente é a disseminação das fun- é caracterizada pela ultrapassagem do historicismo e
ções, entre elas o controle, exercidas dentro de cada do deciframento:
instituição disciplinar pela sociedade, exacerbado a
[...] propor uma quarta epistémê baseada na re-
partir de 1945. Com isto, Deleuze (1996) denominou
lação entre as palavras e o mundo que resulta das
sociedade de controle a nova modalidade do poder de epistémês anteriores – semelhança, representação e
demarcar o tecido social que se observa cada vez mais historicidade-, mas que, no entanto, as recombina
na contemporaneidade. Assim, o poder psiquiátrico levando em consideração a força constitutiva dos
signos. (Yúdice, 2004, p. 53).
de controle circula pelo tecido social.
Na sociedade de controle, sustentar a resistência
Este é o patamar para a apresentação da Elavi,
através da criação artística é sustentar a própria vida,
enquanto setor do Museu que é uma instituição in-
pois, “a vida se torna resistência ao poder quando o
ventada pela Reforma Psiquiátrica na crítica do museu
poder toma como objeto a vida”. (Deleuze, 1988, p.
disciplinar e que se afirma como um museu da criação.
99) Com isto, amplia-se a definição: o Museu Bispo
A criação organiza e sustenta todos os aspectos do seu
do Rosário Arte Contemporânea se estrutura tendo
por base a criação para se colocar como uma estratégia funcionamento: a própria escola livre, as exposições, a

de resistência ao controle do poder psiquiátrico que ação educativa, etc. O foco é a luta pela cidadania da
se exprime na cultura; criação dos usuários na cultura. O seu funcionamento
se exerce em sintonia com a sociedade de controle –
• a Modernidade foi marcada pela construção enquanto uma estratégia de resistência ao controle
das instituições disciplinares e por uma nova raciona- exercido pelo poder psiquiátrico – e também com a
lidade ou maneira de correlacionar as palavras e coisas. racionalidade contemporânea em contraposição com
Foucault denominou a este arranjo do pensamento a moderna.

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76 AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA Cooperação contra o comando


O exercício do comando é a afirmação do consti-
Antonio Negri e Michel Hardt (2000, p. 453- tuído, instituído, normatizado e do uniformizado. Ao
458) indicam as características da nova racionalidade. contrário, cooperação é inovação. As práticas com a
Eles começam por identificar as cinco oposições que arte na Elavi rompem com o esquema da racionalidade
caracterizam a contemporaneidade: (1) criação contra o moderna. Isso significa estimular a criação artística, sus-
limite e a medida; (2) procedimento e processo contra o tentar o procedimento, afirmar a igualdade, pressupor
mecanismo dedutivo; (3) igualdade contra o privilégio; a diversidade e atuar em cooperação. Portanto, surgem
(4) entre diversidade e uniformidade e (5) cooperação os três eixos de sustentação da Elavi.
contra o comando.

Três eixos de sustentação da Elavi


A nova racionalidade da Elavi
• Efetiva subjunção da concepção de espaço à
Criação contra o limite e a medida concepção de tempo – Hardt e Negri afirmam que “a
É afirmado o caráter ilimitado e desmedido da potência constituinte rompe o espaço e o transpõe para
potência de criação. Quando a potência cria, cria a si o tempo” (Hardt; Negri, 2000, p. 439). Esta mudan-
mesma, alterando todas as relações e colocando-se em
ça, no eixo da temporalidade, implica redimensionar o
um movimento de ultrapassar os limites e medidas, as
referencial de espaço para o de lugar praticado: o tempo
quais, contra o poder da criação, lutam por reduzi-la.
da criação, no presente, é que funda o espaço.

Procedimento e processo contra o mecanismo


• Continuidade da crise instaurada pela potên-
dedutivo
cia – Implica na valorização do evento da criação e não
Trata-se da afirmação da liberdade e do processo
do lugar instituído, a Elavi é um lugar praticado pela
em luta com os enquadramentos externos da norma,
criação artística que instaura a crise que é a possibili-
da verdade, da instituição, do saber e da autoridade.
dade de mudança que o acontecimento possibilita. Os
Acrescenta-se, entre outros, da instituição e dos saberes
acontecimentos ou eventos como define Milton Santos
psiquiátricos. É a afirmação da criação de novas singu-
não se repetem, são singulares: “Onde ele se instala, há
laridades agenciadas pela potência da arte.
mudança” (Santos, 2002, p. 146).

Igualdade contra o privilégio A definição da Elavi é ampliada com a idéia de ser

O privilégio, por exemplo, dos técnicos ou do saber um lugar praticado pela criação artística, que institui a

é contraditório ao movimento da potência, ilimitada, crise permanente, a crise da criação desmedida, susten-
desmedida, não-institucionalizada. O privilégio promo- tando-se assim enquanto uma clínica da desmedida, da
ve o bloqueio do processo. criação permanente a provocar crises, ou seja, mudanças
tanto externas – no ambiente – quanto internas nos
Entre diversidade e uniformidade alunos e professores. Esta dinâmica do evento, no caso,
Decorre logicamente da oposição entre igualdade da criação artística, pode ser alcançada quando este
e privilégio evento está catalisado e ocorre levando-se em contas

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as cinco oposições já descritas que levam a superar a Possibilita-se que os usuários criem o seu fazer
racionalidade moderna. artístico, valorizando a cooperação, sem a sugestão ou
a cobrança de um saber psiquiátrico. Esta produção
• Mudança da natureza da práxis constitutiva não está subjugada em seu nascedouro pelo olhar
– Para Hardt e Negri, “sua definição não é dada pela interpretativo redutor a outra lógica ou saber. Nem
efetividade do êxito, mas pela ação efetiva no sentido mesmo à concessão que se faz em arteterapia, quando
de tentar sempre um novo êxito” (Hardt; Negri, 2000, se afirma que possibilitam os pacientes à se exprimir
p. 440). Na Elavi a práxis é sempre re-proposta. A em outra linguagem, mais próxima daquela que pre-
potência se afirma em cada evento ou acontecimento, domina no inconsciente, ou seja, por imagens e não
criando novas relações de tempo e espaço. Isto pode por palavras.
gerar, em cada nível, novas subjetividades que são pro-
porcionadas pela experimentação repetida. O objeto é
a memória do ato e o importante é a aposta na criação
desmedida através da arte. Na Elavi toma-se a potên- A Elavi: ÉTICA E FUNDAMENTOS
cia da arte como a possibilidade de criação de novas
subjetividades que resistem ao controle. Fica esclareido Um princípio ético: as três metamorfoses
A ilustração do que é a postura ética adotada na
que o processo de afirmação da potência de criação é
Escola Livre pode ser encontrada em Nietzsche (1988, p.
mais importante que o produto final – o objeto é a
43-44), quando ele menciona as três metamorfoses: do
memória do ato. Todo o esforço se dirige à valorização
espírito da suportação (camelo) ao espírito de rebeldia
do ato de criação e não do objeto final. A Elavi não
(leão) e, deste ao espírito de criação (criança). E indica
quer ‘fabricar artistas’, pois estes são valorizados pelos
então qual atitude do espírito que leva verdadeiramente
objetos criados.
à criação: é o dizer sim à vida.
O artista é aquele que vê o mundo com o frescor
A afirmação desta produção, enquanto arte é apoia-
de uma criança, ou seja, com a total abertura para o
da no fato de que o processo a ser ativado é o da criação
novo, aquele cuja postura não é a de ficar aprisionado
artística, sendo o seu produto, o objeto, de natureza
ao “Sim”, tal qual a postura do camelo, à submissão
artística. Isto é atingido, desde que não se interponha
aos ditames de, por exemplo, uma oficina, em que lhe
outra lógica, a da razão e do pensamento. seria solicitado que este criasse naquele momento, com
A Escola valoriza a produção artística dos pacientes, aquelas pessoas, a partir daquele material, em muitas
não como objeto artístico ou produto final a ser reconhe- até, que crie determinada forma de objeto, para tal ou
cido como arte de qualidade e o seu produtor, artista, qual finalidade: a cura; um bazar; uma exposição; para
mas sim, deve-se valorizar a produção artística, no qual agradar ao profissional, etc.
os usuários se empenham. Pois, nesta produção eles se A postura de dizer “Sim” o condena ao simulacro e
fazem, constituindo novas subjetividades, segundo Niet- o afasta da possibilidade de criação, condenando aquele
zsche: “A ‘obra’, aquela do artista, do filósofo, inventa que a isto se submete a uma falsa identidade, alienado
em primeiro lugar aquele que a criou, que se supõe que na submissão ao outro. Da mesma forma, a atitude de
a tenha criado” (Nietzsche, s/d, p. 199). afirmar o “Não”, tal qual na postura do leão. Quando

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78 AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

alguém se coloca nessa postura, sua identidade é cons- cos – sejam de sua história pessoal ou institucional – e
truída em referência contrária a este outro. sem nenhuma expectativa direcionada a uma finalidade,
A postura ética é levar às últimas conseqüências objetivo, intenção ou projeto. O devir criança é o apaga-
a atitude de criar as condições para que as pessoas se mento de qualquer sentimento ou ressentimento prévio
outrem, do verbo outrar, qual seja o exercício da capa- ao processo de criação. Trata-se de promover o encontro
cidade da pessoa poder vir a ser um outro pelo recurso da sensibilidade consigo mesma sem a interferência de
da arte. Os “outramentos”, ou novas subjetividades de nenhum pensamento, nenhum traço de identidade ou
um tipo distinto daquelas constituídas pela repetição referência de papel.
automatizada de padrões podem se afirmar quando O catalisador não deve olhar o criador a partir de
ocorre um mergulho na criação, quando se afirma a nenhuma expectativa: de ser artista ou doente; de conti-
desmedida da criação artística. Denomina-se clínica da nuar o último trabalho; de criar algo para uma exposição;
desmedida a clínica ampliada no sentido definido por de fazer algo para vender; de se colocar em tratamento;
Maurício Garcia (1996, p. 11) que se calca na criação de ser um artista plástico; ou seja, a postura deve ser sem
artística, pois a arte não tem medida. Se houver medida memória e sem desejo; sem nenhuma referência ao que
não há arte, pois esta é disruptiva por natureza, conforme passou e sem nenhuma expectativa para o futuro.
afirmou Felix Guattari (1986, p. 36). O silêncio das emoções não se aplica no caso da
Deve-se estar atento para que não se sucumba à ilu- Escola. Vive-se no cotidiano um ruidoso e radical en-
são de que o fato de uma determinada oficina produzir volvimento, principalmente, com o processo de criação.
‘produtos’, seria algo interessante sob o ponto de vista As relações e os afetos circulam entre as pessoas no
da Reforma Psiquiátrica. Assim, até mesmo a realização cotidiano das práticas. A intensidade dos afetos entre
de uma exposição não deve iludir. Deve-se atentar para os freqüentadores acontece com as características da-
o fato de esta determinada oficina ou exposição estar quelas prevalentes dentro de qualquer grupo humano.
fabricando ou não falsas identidades, constituindo ou É possível definir que o grupo constituído na Elavi é
não falsos selves, mesmo que o de artista. E, refletir se um grupo homogêneo com todos – alunos e professores
dinamiza a construção de uma nova possibilidade ou – igualmente irmanados na criação artística. Trata-se
se está condenada ao passado, reproduzindo a lógica de relações transferenciais, sim, como qualquer outra
disciplinar. relação humana.
Para que a Elavi sustente as condições de afirma- A relação transferencial não é operacionalizada,
ção do devir criança, deve-se estar atento para que os entendida no plano da objetividade das relações
catalisadores também participem criando. Com isto, humanas. Nem mesmo se coloca a ressalva de que
é eliminada a distância entre um ‘olhar de fora’ – téc- numa atividade de arteterapia ou terapia ocupacional
nico ou profissional, dotado de um saber artístico ou a transferência se desenvolve mediada pela imagem ou
de uma verdade psicológica -, no encontro com os objeto. Na escola, o afeto que catalisa é a paixão de
aprendizes. criar; a captura que a arte agencia em cada um e esta
A atitude dos catalisadores deve estar pautada paixão não deve ser mediada por nenhuma relação
pelo recomendado pelo psicanalista Wilfred Bion, ‘sem terapêutica ou transferencial.
memória e sem desejo’. Deve-se colocar junto ao aluno A atitude de se colocar ‘sem memória e sem desejo’
sem ser o portador de nenhum de seus traços biográfi- implica sustentar as questões surgidas e não obstruí-las

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea 79

com alguma verdade, respondendo às solicitações ou Fundamento primeiro: por uma estética não-
oferecendo respostas, promessas e perspectivas. Trata-se aristotélica
de não oferecer respostas às questões e sim sustentar Indica-se sumariamente que o Museu se insere na
a indagação. Busca-se sair da ilusão de verdade, que luta contra o paradigma clássico da estética concebida
é o ancoradouro da ciência – falsa proteção de um segundo os mesmos princípios que fundamentam a
saber que lança previsões e que é transcendente – para ciência para Aristóteles, uma lógica do geral; algo que
se colocar numa relação imanente à sensibilidade. pode ser entendido e reproduzido por qualquer um,
Localizando-se no aqui e agora da criação, sem certe- desde que leve em conta as condições de emergência do
zas e verdades, mas com a potência da abertura para fenômeno e que se assenta na possibilidade de se afirmar
o novo, inesperado, disruptivo, a desmedida, enfim, os princípios gerais segundo os quais, dado efeito se ex-
a criação artística. ternaliza. A estética foi concebida tal qual uma ciência.
Outro aspecto derivado da postura ética é o que A arte, ao contrário, é de natureza singular e individual.
Frieda Fromm-Reichmann (1984, p. 27) postula, Fernando Pessoa (1986, p. 240) sistematizou a crítica
referindo-se aos profissionais que atuam na Saúde a esta arte aristotélica, caracterizando que esta tem por
Mental, de que o paciente não deva ser uma fonte de finalidade a beleza. Também indica os princípios que
satisfação, realização, segurança para o terapeuta, nem caracterizam uma estética não-aristotélica, apontando
mesmo nas fantasias. para a idéia de força em contraposição a de beleza. Na
A aposta é no processo de criação e não nos resul- Elavi não interessa uma estética – aristotélica – que se
tados, benefícios advindos do resultado, uso que vai baseie na noção de beleza, que vem ao lado da de catarse,
haver do resultado, ou na promoção e gratificação dos contemplação, acomodação ou adaptação.
profissionais envolvidos. Fromm-Reichmann chama a
atenção para a situação em que o profissional inseguro
ou insatisfeito não garanta uma transferência positiva Fundamento segundo: a loucura é ausência de obra
dos usuários, reforçando laços de admiração e de gra- A Elavi é apoiada no ensinamento de Foucault
tidão, o que estimula uma relação de dependência e (2000, p. 156), que evidencia a relação de exclusão: a
infantilização. Isto deve ser levado em conta, pois se loucura é ‘a ausência de obra’ (Foucault, 2000, p. 156).
trabalha com a arte e com produtos que podem vir a Deleuze (1990) desenvolveu a seguinte tese, o paciente
ser valorizados no mercado repercutindo em ganhos quando está criando se coloca num devir artista e clinica
financeiros ou de prestígio. o mundo. Neste momento, o criador se coloca numa
Enfim, na Escola Livre, apostar num devir criança postura contrária da compulsão à repetição, prevalente
não se resume a uma recomendação técnica. Mais que na doença.
isto: trata-se de um princípio ético, visto que se articula As práticas da Elavi estimulam o processo criativo
com uma postura básica de aposta radical na arte e na e através deste possibilitam a construção de novas subje-
criação artística. É a afirmação da vontade de alinhar- tividades. Isto leva a um processo inverso ao da loucura,
se numa postura contra o controle que possa ocorrer enquanto a ausência de obra entrega à repetição do mesmo,
mesmo em dispositivos extramuros, pois, estas podem sem diferenciação, sem a afirmação da diferença. A saúde é
reproduzir com a mesma intensidade uma relação de na- entendida como o fluir do processo de criação e a doença
tureza asilar, como destacou Deleuze (1996, p. 220). como a interrupção deste processo. O objeto final a que se

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80 AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

atinge é a memória do ato de criação. O que importa de F – Os produtos são deles: o produto final perten-
fato é a criação de novas possibilidades para o criador. ce a seus criadores. Os usuários podem dispor de sua
criação.
G – Eles explicam: os autores ou criadores pro-
Fundamento terceiro: o objeto é a memória do ato duzem discursividade sobre suas obras, recebem os
A Elavi investe no processo de criação artística: visitantes e comentam suas obras.
não importa o objeto ou o produto final originado. H – Exibir, segundo as correntes: Expõem-se as
Valoriza-se o processo de criação, sendo entendido o obras segundo as correntes reconhecidas na História
objeto como a memória do ato. da Arte. O Museu combate o uso das denominações
que este segmento da criação humana recebeu no
campo psiquiátrico, que as toma como sintoma de
A prática na Elavi: sumário doença mental: arte psicótica, psicopatológica, louca,
A – Alunos: usuários, técnicos, artistas e co- teratológica, degenerada ou imagem do inconsciente.
munidade. Da mesma forma, combate as denominações que
B – Artistas como catalisadores: artistas oriundos surgiram no campo artístico conferindo minoridade
do campo da Saúde Mental ou do campo artístico social à estas obras: arte virgem, bruta, outside art
conduzem os trabalhos. Estes são os propositores ou ou folk art.
professores, denominados catalisadores. O catalisa- I – Busca do estilo: Busca-se criar condições para
dor, tal qual na reação química, é o agente que cria a constituição de novas subjetividades, a afirmação do
as condições para que determinada reação química se estilo de cada um, numa direção contrária à da psiquia-
processe. Ele não está presente, nem no início nem tria, de tratamento e cura.
no resultado do processo, sua ação é a de facilitar
para que a reação ocorra, de forma mais rápida, mais
eficiente. O professor não ‘ensina a fazer arte’, mas
sim se coloca como exemplo e estimula a atitude da CONCLUSÕES
criação.
C – Fazer junto: todos os envolvidos nas práticas Definir o Museu Bispo do Rosário Arte Con-
devem fazer juntos as mesmas atividades para evitar temporânea, como um museu de criação, implica
o olhar controlador ou decifrador. Rompe-se com a privilegiar a criação artística na exposição, na ação
prática de deciframento da criação sob qualquer teoria, educativa, na E lavi , entre outros. São criadas as
escola ou autor. condições para que o processo da criação se expresse
D – Diferentes linguagens: diferentes linguagens em seu mais elevado grau, na forma mais radical da
facilitam a livre escolha. arte, numa perspectiva que denominada ‘Clínica da
E – Saídas semanais: os alunos são convidados a Desmedida’, posto que se operacionalize a arte sem
circularem pelos espaços sociais consagrados à arte, a amarras numa postura de se contrapor à lógica psi-
conhecer outros artistas e seus ateliês, a receberem a quiátrica, procurando através da criação artística, a
visita de outros artistas interessados em intercâmbio e criação de novas subjetividades como resistência ao
troca de experiências. controle do poder psiquiátrico.

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea 81

Na Elavi, a criação artística não é usada enquanto Certeau, M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer.
terapia e se rompe com o deciframento da obra de arte. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
Quando se fala em cura, tratamento, terapia e outros a
Deleuze, G. Qu’est-ce que l’acte de création? Conferência
partir do referencial teórico da psiquiatria, diz-se: a Elavi
na fundação Femis, realizada em 17 de maio de 1987.
não cura, não trata, não é terapia. Porém, cura, trata, e age Resgatada no endereço: www.webdeleuze.com. Acesso
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criação é catalisada exclusivamente por artistas.
Praticar oficinas com a arte pode implicar na ______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle.
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repetição da lógica disciplinar, a qual fundou o saber
São Paulo: Ed. 34, 1996.
psiquiátrico e o asilo. Nesse caso, se lança mão da arte
– domesticada –, como já se lançou mão da psicanálise, ______. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1990.
dos grupos, das comunidades terapêuticas, do lazer e
do trabalho. ______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
A Elavi permite a afirmação da obra em contra-
posição à loucura, ao criar as condições pra que estes Foucault, M. O asilo ilimitado. In: Motta, M.B.
gestos sejam reconhecidos, enquanto obra e estas falas Ditos e escritos I: problematização do sujeito: psicolo-
gia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense
são entendidas como linguagem. Universitária, 2002.
A prática clínica da Escola Livre é inserida no
campo em construção da clínica ampliada que interessa ______. Prefácio Folie et déraison. In: Histoire de la folie
à Reforma Psiquiátrica, no qual o eixo da cidadania é à L’Âge Classique. Paris: Plon, 1961, p. VI. Publicado em
um dos referenciais e o alvo é o indivíduo em situação Motta, M. B. (Org.). Michel Foucault: problematização
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Recebido: abr./2008
Aprovado: nov./2008

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ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 83

Saúde Mental e cultura: que cultura?


Mental Health and culture: what culture?

“Em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”


(Canclini, Culturas híbridas, p. 349)

Alexandre Simões Ribeiro 1

1
Psicanalista; doutor em filosofia pela RESUMO A partir de uma crítica às perspectivas mentalistas fortemente presentes
Universidade Federal de Minas Gerais
entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde
(UFMG); professor da Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG) no
Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de
campus da Fundação Educacional de cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental
Divinópolis (Funedi). coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,
alexandresimoes@terra.com.br
enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reforço das concepções
mentalistas na Saúde Mental, o que seria um retrocesso para posturas excludentes.
Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura.
Para tal, são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção e hibridação a partir
das análises sobre a cultura empreendidas por Canclini.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental

ABSTRACT From a critical point of view to the mental perspectives, strongly


operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to
searching the joint of collective Mental Health with the culture. However, it is
put in question what conception of culture would be supporting the advances in
the field of the collective Mental Health. There are culture conceptualizations that
reestablish reactionary positions and, therefore, are combined with traditional
positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding
postures. However, the conceptions after-critical of culture are more beneficial.
The general lines of descollect concepts and hibridation from the analyses on the
culture are herein displayed in the words of Canclini.

KEYWORDS: Psychoanalysis; Clinical psychology; Mental Health

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84 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

Salas-ao-Lado de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no


tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário
incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade
das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as
pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou
Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial
um interessante deslocamento nas rotinas e desafios que em que a presença e a produção de diferenças, bem como
compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for- a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,

mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada

propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que
garantiam a verdade, a ordem e o futuro.
bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contu-
É justo sublinhar, porém, a necessária discussão
do, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda
acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em
era um tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto
geral) de maneira não restrita às especialidades (a iden-
e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de
tidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidade-
tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais,
família etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já
fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do
devidamente abordada por alguns autores (Lobosque,
conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado
2001; Amarante, 2003). De certa forma, essa parece ser
e consistente.
a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do
Aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as
modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (Costa-
iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental po-
Rosa; Luzio; Yasui, 2003).
deriam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos
Certamente, a articulação das questões suscitadas
de outros campos e problemáticas, não só relacionados à
pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em
doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em
relação à cultura tem como repercussão a produção de
suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na
um novo tom ou ânimo e, até mesmo, esperança em meio
saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável.
normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousar- Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do
mos visitar, por assim dizer, a ‘sala-ao-lado’. que se entende por ‘cultura’, não conseguiremos ir além de
Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando uma extravagante idolatria do ‘até-então-marginal’ (sob o
potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre- escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)
cisamente a que se mostra sensível às considerações pós- ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a
estruturalistas acerca da cultura. Tais circunstâncias e acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob
resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma, a forma do louco). Ora, se há de fato uma possibilidade
com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. Silva, e o desejo de se fazer uma transformação no campo da
2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação, Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma
conhecimento e cultura face às novas condições dos hierarquização disfarçada (‘somos tão superiores que acei-
trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela tamos a diferença!’), trata-se de se produzir a diferença e
bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas não exatamente aceitá-la piedosamente. Em suma,

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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 85

[...] procuramos deixar claro desde o início que o tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentar-
projeto antimanicomial não se reduz a reformas se-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso
assistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no
isenta de rigor e, muito menos, de vigor. Reflexões
âmbito da assistência só adquirem um caráter trans-
formador quando se articulam com uma intervenção desenvolvidas entre nós por Jairo Goldberg (1992),
na cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figura Paulo Amarante (2003), Abílio Costa-Rosa (2003),
do louco ao mesmo tempo como objetivo e efeito de sua Ana Pitta (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros,
implementação. (Lobosque, 2001, p. 30).
certamente influenciados por uma série de movimentos,
tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se
Mas é vital estarmos atentos para a seguinte pos-
impuseram no período pós anos 1950, em muitos países,
sibilidade:
apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes
O conceito de cultura é profundamente reacionário. de um mesmo território; território este que já coloca em
É uma maneira de separar atividades semióticas xeque a própria noção enrijecida de território, de espaço
(atividades de orientação no mundo social e cósmico) com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por
em esferas às quais os homens são remetidos. Tais ati-
conseguinte, de diferença). Ao articular essas circunstân-
vidades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas
potencial ou realmente e capitalizadas para o modo cias, promovedoras de descentramentos, com o rápido
de semiotização dominante - ou seja, simplesmente quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de
cortadas de suas realidades políticas. (Guattari; se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as
Rolnik, 2000, p. 15).
possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um
mundo pós-colonial?
Ou ainda:

Atrás da falsa democracia da cultura continuam a se


instaurar – de modo completamente subjacente – os A esfera e a clínica estrita
mesmos sistemas de segregação a partir de uma cate- Principalmente através dos diversos discursos e
goria geral da cultura. Os Ministros da Cultura e os ações que compõem a psicologia, algo se impôs em
especialistas dos equipamentos culturais, nessa perspec-
tiva modernista, declaram não pretender qualificar nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a
socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes
apenas difundir cultura num determinado campo discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam
social, que funcionaria segundo a lei de liberdade de
oficialmente desde a segunda metade do século 19): a
trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo
social que recebe cultura não é homogêneo. (Guattari; apreensão do psíquico como uma interioridade, como
Rolnik, 2000, p. 20). algo que se apresenta como posse individualizada e,
em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível
marca individualizante e, por isso, identitária.
O psíquico, como um emaranhado de traços, memó-
O deslocamento rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem-
Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos
a freqüentação de salas-ao-lado? Trata-se da migração de e ações que extrapolam de forma marcante o campo da
uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença
calcados em prerrogativas mentalistas para uma perspec- maiores: a psicologização. A constituição de identidades

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008


86 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên- Para continuarmos a localizar grandes marcos e
cia direta desse homo psychologicus, finamente construído momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a
ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de
industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que
idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista) ali se produziu, a ampliação da prática da introspec-
enquanto descobridor do inconsciente. Tão recorrente e ção ao leitor comum como via de prospecção de uma
homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que
que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,
de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no
discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e
leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube
Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha matricialmente chamar atenção para um caminho que
que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da ‘fala-
de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava de-si’ para o outro do externo, do dado a ver: o nosso
aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos interior. A notória frase de Montaigne, “o que sou eu
do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma sou para mim mesmo importa mais do que eu significo
espécie de ‘servidão voluntária’ para, então, retomar a para os outros” (1991, p. 47), ilustra precisamente a
incômoda expressão de La Boétie (1999). Essa servidão, dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne
que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se ou por ele, mas em seu tempo, desde então.
em mentalismo. A ampliação desse processo para aqueles que nem
Todavia, é justo frisar que a noção de interioridade leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor-
psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an- mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como
tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe-
psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a
rastro em Santo Agostinho e em suas reflexões confes- reconhecermo-nos como dominados por uma profun-
sionais. A partir de outro ângulo, podemos notar que didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou
com Descartes (1596-1650), a interioridade é elevada a entreouvir-nos.
a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen- O projeto de dominação, discernimento e ades-
talização da razão, ou seja, a esta localização da razão tramento desse insondável não está em Shakespeare;
como ferramenta que moverá, doravante, o mundo. sejamos justos, pois ele privilegia perspicazmente o
Aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde
pelo próprio autor: então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao
mesmo tempo, nos descompletássemos e transformás-
Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu ligar e semos. A colonização do psíquico interiorizado foi, a
transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, despeito disso, uma decorrência da modernidade.
exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei
Curiosamente, debates que parecem ser bipolari-
o direito de conceber altas esperanças, se for bastante
feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa zados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas
e indubitável. (Descartes, 1979, p. 91). materialistas (hoje, significativamente reerguidas com

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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 87

o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente Esse imaginário que promulga a detenção privada e,
paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu- em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental
larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da
que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano: psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des-
a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos, vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação
regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas
o espaço mental e o espaço do mental. A própria idéia ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância
de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes, clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir
é um corolário dessas perspectivas. a posição do psicanalista – “o eu não é senhor em sua
Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia, própria morada” (1976, p. 178) – não conseguiu le-
sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa
Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o ótica esférica acerca de nós mesmos.
‘fantasma na máquina’ (para retomarmos o tropo pro- Ótica esférica de nós mesmos. O que isso significa?
posto por Gilbert Ryle em 1949, em O conceito de mente; Essa organização que nos conduz a um pathos dicotô-
cf. Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que
da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica, as esferas à semelhança do que Guimarães Rosa (1988)
tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos propõe acerca dos espelhos1, são muitas.
excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa, Quão comum é, entre psicanalistas, professores e
e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos
e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente a postulação do inconsciente menos como desconti-
em outra forma de essencialismo. nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como
Certamente, há razões para que essa imagem da ‘impossibilidade de totalização’ e mais como duplo que,
mente como espaço internalizado (ou locus privado) seja substancialmente, me habita?
tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como Essas localizações sempre comportam efeitos clíni-
óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,
psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica, somos levados a compreender que na passagem do sé-
ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma, culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe
adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria implicações agudas que ultrapassaram em muito seus
em uma forma de behaviorismo radical. espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a
O estabelecimento de espaços a serem conquistados, clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos
demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das outros campos obtiveram seus delineamentos. Tornou-se
importantes decorrências da razão instrumental e da mo- possível, a partir da medicina, amparada principalmente
dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora, pelo método anátomo-patológico, estabelecer um saber
produto e processo dessa cena, conforme Dumont (1985), sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come-
restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não
interior hipostasiado sob a forma de mente. se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,

1
Conto O espelho (Rosa, 1988, p. 65.)

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88 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con-
este que não mais se volta para o estudo das doenças duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se
tomadas como realidade em si, mas como específicas a contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de
quem é afetado por elas. A clínica tornou possível uma platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos
episteme do particular. o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando
O passo seguinte, no campo das psicologias, foi não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo
conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as- que um psiquismo que se coloca no ‘entre-dois’ e não exa-
sim, a clínica do psíquico. Dessa forma, a clínica pôde se tamente em um in ou out seria uma rota viável e oblíqua
sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem aos poderes dos discursos essencialistas.
etimológica, fazendo com que o ‘klinos’ implicasse em Porém, sobretudo a partir da performática concilia-
um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja
abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade. a possibilidade de a ciência, através de uma englobante
parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os
atuais modos de produção, circulação e consumo de
A dobra da esfera bens (rapidamente chamados de globalização), temos
Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no a inundação de explicações e imagens fisicalistas do
início desse texto tem íntima relação com o afrouxa- funcionamento da vida em todos os seus aspectos e,
mento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus em especial, de nosso pathos. A exacerbação do espaço
mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados
individual, e não mais opaco ao organismo, colocou o
tanto para o melhor quanto para o pior, por um
sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele.
outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente
Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspi-
narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fe-
cazmente a forma como palavras e processos demarca-
nômenos contemporâneos, que partam de perspectivas
dores de alguns aspectos de nossa condição, tais como
solipsistas. O solipsista é aquele que nos propõe que
tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram
‘meu mundo é meu mundo’, tamanho o compromisso
lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à
com essências, apriorismos e categorias universais que
adaptação, tais como ‘depressão’, ‘distimia’, ‘síndrome
independem da história e da política, ou seja, que não
do pânico’, ‘ansiedade’ e ‘afetivo-bipolar’. Nitidamente,
se inscrevem em e através de processos contestados.
temos o mercado aberto a todos os ‘especialistas do bem-
Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se
estar’ que buscam um patamar de qualidade total, versa-
como a medida da vida.
tilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma
Apresento a hipótese de que a crescente reflexão,
que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental.
ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde
O mal-estar ganha, pois, uma visibilidade per-
Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na ‘Saúde
formática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de
Mental coletiva’ como espaço poroso e afeito a uma
Benilton Bezerra (2002, p. 235):
constante reterritorialização do psíquico, não seria pos-
sível sem que se instale uma sincronicidade entre esses
Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofri-
processos e as reterritorializações implicadas nos estudos mento era experimentado como conflito interior ou
voltados à cultura, desde um viés antiessencialista. como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as

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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 89

regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é Compreendo que os profissionais atuantes na área
outro. Na cultura das sensações e do espetáculo, o mal- da Saúde Mental possam obter uma interessante dobra
estar tende a se situar no campo da performance física
em seus tecnicismos realizando visitas à sala-ao-lado.
ou mental falha, muito mais que em uma interiori-
dade enigmática que causa estranheza. Os quadros Um empolgante espaço de desconstrução de categorias
sintomáticos prevalentes parecem atestar isso: fenô- e perspectivas essencialistas vem sendo empreendido
menos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar nas problematizações acerca da cultura. Dentre diversas
a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva pela
possibilidades que participam de um amplo quadro (que
via das drogas ilícitas, dos medicamentos, do consumo,
da ginástica e do sexo), transtornos vinculados à ima- poderíamos denominar pós-crítico ou pós-estruturalista
gem ou á experiência do corpo (bulimias, anorexias, a título de uma nomeação um tanto quanto precária),
ataques de pânico), depressões menores e distimias encontramos a argumentação de Nestor García Canclini
(ausência de desejo, motivação, empenho).
em seu livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e
sair da modernidade.
Ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em rela-
ção ao tratamento dicotômico e essencialista reservado,
classicamente, à cultura (suas produções, seus processos,
Saúde Mental COLETIVA E CULTURA:
suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só
ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO
à cultura. Recorrendo a dois conceitos mutuamente im-
plicados – os conceitos de ‘hibridação’ e de ‘descoleção’
Uma das características mais marcantes do campo
– Canclini procura argumentar que não mais podemos
da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possi-
compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos
bilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a
(por exemplo, cultura erudita/cultura popular, cultura
primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que
massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno,
as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a partir da
rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo- suposta segurança dos lugares em que ela é produzida
delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria ou, a princípio, contida. Trata-se, por conseguinte, de
que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas se desomogeneizar a cultura.
e dúvidas estão em estado de ‘descoleção’, isto é, estão Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu-
desterritorializados quando cotejados com a situação mentação que questiona o estatuto de locais destinados
anterior. Descolecionar leva a ‘deslocar’, ‘decolar’, ‘des- à cultura e à preservação da história ou do patrimônio
colar’ e, muitas vezes, a ‘des-escolarizar’. cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se
Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos dá usualmente com os museus e os monumentos.
muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como Ao falar em hibridação, isto é, a constante articu-
de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação, lação entre elementos supostamente puros e discretos,
aqui, não implica em um aparato teórico que conduza promovendo outros elementos, estruturas, processos
à representação do real em suas minúcias para melhor que apagam as certezas em relação às fronteiras de-
compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de marcadoras, conforme Canclini (2006, pxix), somos
dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.
de tornar a novidade algo transmissível. Segundo Canclini:

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90 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos R E F E R Ê N C I A S


e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso
atual nas lojas, os objetos do passado em museus de his-
tória, os que pretendem valer por seu sentido estético em
museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas Amarante, P. O homem e a serpente: outras histórias para a
pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas e
pelos meios massivos de comunicações. Uma classificação Bezerra Júnior, B. O ocaso da interioridade e suas
rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, repercussões sobre a clínica. In: Plastino, C.A. (Org.).
sustém a organização sistemática dos espaços sociais em Transgressões. Rio de Janeiro: Contra-capa, 2002. p.
que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida 229-238.
dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de
percepção adequados a cada situação2. (2006, p. 300). Birman, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as
novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização
A descoleção é uma decorrência da hibridação e, brasileira, 2005.
enquanto tal, implica em repensar os modos e usos dos
Bloom, H. O cânone ocidental: os livros e a escola do
poderes:
tempo. São Paulo: Objetiva, 1995.

A partir do que viemos analisando, uma questão se


Bouveresse, J. Le mythe de l’intériorité: expérience,
torna fundamental: a reorganização cultural do poder.
signification et langue prive chez Wittgenstein. Paris:
Trata-se de analisar quais são as conseqüências políti-
Minuit, 1987.
cas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para
outra descentralizada, multideterminada, das relações
sociopolítica. (Canclini, 2006, p. 345). Canclini, N.G. Culturas híbridas: estratégias para entrar
e sair da modernidade. 4ª ed. São Paulo: Edusp, 2006.

Talvez tivesse valia a amplificação de uma descole-


Costa-Rosa, A. O modo psicossocial: um paradigma das
ção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante, P.
por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação (Org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade.
já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 141-168.
em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não
Costa-Rosa, A.; Luzio, C.A.; Yasui, S. Atenção psicosso-
bem como técnica de revelação do incógnito ou arte
cial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva.
interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que In: Amarante, P. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção
instaura descontinuidades e, portanto, devires. Tal como psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003. p. 13-44.
convidam as palavras de Benilton Bezerra:
Descartes, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural,
O que determinará o lugar da psicanálise no cenário social 1979.
das próximas décadas será sua capacidade de atualizar
aquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação de Dumont, L. O individualismo: uma perspectiva antro-
um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência pológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco,
humana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238). 1985.

2
Vale ressaltar que o conceito de hibridação se torna mais potente à medida em que a hibridação não implica em junção totalizante, bem como na proporção
em que é um processo que implica em perdas e ganhos. Ainda segundo Canclini, “é necessário registrar aquilo que, nos entrecruzamentos, permanece diferente”
(2006).

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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 91

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Recebido: abr./2008
Aprovado: jun./2008

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008


92 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a


Companhia Experimental Mu...dança
The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia
Experimental Mu...dança

Myrna Coelho 1

1
Psicóloga; coreógrafa; mestre em RESUMO Este artigo trata dos percursos da construção coletiva do espetáculo
Estética e História da Arte pela
de dança-teatro das loucuras Da História, pela companhia Experimental Mu...
Universidade de São Paulo (USP);
professora do curso de Psicologia da
Dança, no município de Diadema entre 1999 e 2001, e seus desdobramentos
Universidade Nove de Julho (Uninove); até 2005. A Companhia Experimental Mu...Dança é um grupo de dança-teatro
myrnacoelho@usp.br formado em 1999 por pessoas com grave sofrimento psíquico e militantes do
Movimento da Luta Antimanicomial. Esse espetáculo tem 80 minutos de duração
divididos em 16 coreografias criadas coletivamente, a partir de dois eixos definidos
pelos participantes: como o grupo vivenciou o processo de enlouquecimento e o
conceito de loucura. A partir da interface arte-loucura, essas experiências são
definidas como criação de um espaço de participação política.

PALAVRAS-CHAVE: Transtorno mental; Aceitação social; Política social.

ABSTRACT This paper presents the construction trajectory of the dance-theater


show das loucuras Da História created by the Experimental Company Mu...
Dança, in the city of Diadema, São Paulo, Brazil, between 1999 and 2001, as
well as its development until 2005. This is a dancing-theater company created in
1999 by people with psychiatric disorders and militants of the antimanicomial
movement. The referred show has 80 minutes and presents 16 choreographies
that have been developed by the integrants of the group, based on two subjects:
how the group experienced the process of becoming “crazy” and the concept of
craziness. Supported by the art/craziness interface, these experiences are defined
as the creation of a space with political participation.

KEYWORDS: Mental disorder; Social desirability; Public policy.

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança 93

I N T R O D U ç ão a prática de “oficinas terapêuticas” como “uma das


principais formas de tratamento oferecido nos Caps”
(Brasil, 2004).
Ressalta-se que nessas manifestações artísticas, os
dispositivos materiais e institucionais que as atraves-
O presente trabalho tem por objetivo discutir um sam, isto é, o ambiente onde o indivíduo manifesta sua
dos aspectos principais da Reforma Psiquiátrica brasi- criação, bem como aqueles de que dispõe para efetuar
leira: a dimensão sociocultural. sua criação, as referências de sua história de vida, de sua
Segundo Amarante (2007, p. 73), a dimensão própria subjetividade e da relação de si com a instituição
‘sociocultural’ expressa o objetivo maior da Reforma à qual está subordinado, marcará as possibilidades de
Psiquiátrica, ou seja, a transformação do ‘lugar social’ sua obra.
da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ide- Mas, infelizmente, o fato de inserirmos práticas
ologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona a artísticas em Saúde Mental não garante que elas sejam
loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer relações antimanicomiais e, portanto, subordinadas teorica-
sociais e simbólicas. Dessa forma, o aspecto estratégico mente ao paradigma da Reforma Psiquiátrica, o que
desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que garantiria sua inserção real na dimensão sociocultural.
visam transformar a concepção de loucura no imaginário Nesse processo, muitas ações acabam por afirmar o
social, transformando, assim, as relações estabelecidas pensamento manicomial, reforçando preconceitos e
entre sociedade e loucura. prestando um não-serviço à população. Por isso torna-se
De acordo com o ideal da Reforma Psiquiátrica, tão necessário que tais práticas contemporâneas possam
as transformações devem transcender à simples reor- ser discutidas.
ganização do modelo assistencial e alcançar as práticas
e concepções sociais, intervindo não apenas no fun-
cionamento dos serviços e na formação profissional
dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo A Companhia EXPERIMENTAL MU...DAN-
fenômeno da ‘representação social da loucura’. Devemos ÇA E A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA
pensar o campo da Saúde Mental não como um mo- REFORMA PSIQUIÁTRICA
delo, mas como um processo. Para tanto, a dimensão
sociocultural é fundamental. Mesmo sendo Política Ministerial, as oficinas artís-
Nesse processo, novas práticas surgem constante- ticas dentro de um Caps não são unanimidade teórica.
mente, em especial aquelas que fazem uso das linguagens Os saberes do campo da Saúde Mental não são únicos, há
artísticas. Com o advento e a proliferação, especialmente muitas divergências que se colocam especialmente entre
nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao dois paradigmas. De um lado, o manicomial baseia-se,
manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a como nos adverte Foucault (2000), em uma invenção da
ser amplamente utilizadas e, com isso, estudadas par- loucura como doença mental que pede um tratamento
ticularmente no campo da Saúde Mental. Inclusive, a fundamentado na moralidade e na medicamentação,
legislação brasileira que regulamenta o funcionamento propondo, num processo de banalização do sofrimento
dos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps) insere e da natureza humana, que qualquer investimento de

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94 Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

cuidado em Saúde Mental seja um investimento voltado da região nordestina, tornou-se interessante a criação de
para a ‘doença’, nunca para os sujeitos da experiência. um projeto que resgatasse, a partir das danças populares,
Já o paradigma antimanicomial, desenvolve várias ações histórias culturais das pessoas que estavam no Capsi, das
que buscam transformar o imaginário social em relação origens de suas famílias, de antigos costumes e rituais.
à loucura, à doença mental, à anormalidade e que se Iniciamos o projeto como grupo aberto e, com o
referem a um conjunto de práticas sociais que possam passar do tempo, pudemos perceber que nossa proposta
construir solidariedade, a inclusão dos sujeitos em des- de trabalho não fazia sentido: o grupo queria dançar seu
vantagem social, a diferença e a diversidade (Amarante, encontro com a loucura, suas histórias de vida e enlouque-
1999, p. 51). cimento. A partir daí, mudamos os objetivos do grupo.
Temos o relato de uma experiência paradigmática Num processo coletivo de discussão e decisão, inventamos
da dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica, a Companhia Experimental Mu...Dança e construímos seu
possibilitada pelo trabalho iniciado em 1999 no Centro primeiro espetáculo, das loucuras Da História.
de atenção Psicossocial (Capsi) de Diadema (município Decidimos, em primeiro lugar, coreografar coleti-
da periferia de São Paulo), época em que trabalhávamos vamente um espetáculo que problematizasse as histórias
com arte na tentativa de encontrar novas formas de con- de enlouquecimento dos participantes com o objetivo
vivência respeitosa e digna com as pessoas que buscavam de apresentá-lo o máximo possível para militarmos na
auxílio em Saúde Mental, coisa que o pensamento mani- reinserção social da loucura, ou seja, travar debates
comial não leva em conta. Como estagiária de psicologia, com as platéias sobre a loucura e o Movimento da Luta
uma das atividades propostas pela ‘comissão de ensino’ Antimanicomial, divulgando-o e contribuindo para
da instituição a serem cumpridas era a realização de modificar o lugar social do louco. As apresentações eram,
um projeto que unisse a experiência de coordenação de portanto, um norteador fundamental do trabalho sem o
grupo com um desejo pessoal do estagiário. Por conta qual o mesmo não se justificaria. A construção coletiva
de minha história pessoal como bailarina, eu e minha surgia em nosso trabalho a partir de Hannah Arendt
supervisora de estágio, Patrícia Villas-Boas Valero, de- (2003) e sua distinção entre trabalho e labor, distinção
cidimos montar um ‘grupo de dança’ . 1
esta gerada por uma sociedade da produção. A idéia do
A princípio, esse grupo se preocupava em recontar trabalho está comumente ligada ao suor e à supressão,
as histórias culturais familiares dos participantes através mas Arendt chama nossa atenção para o quanto estes
das danças populares brasileiras, pois hipotetizávamos que aspectos relacionam-se com a idéia de ‘labor’, conceito
um dos causadores do enlouquecimento é a vivência da que expressa ciclos repetitivos, de longa duração. Já no
aculturação. Segundo Redko (1998), tanto a incidência ‘trabalho’, transcendemos nosso próprio universo na
quanto a evolução de graves sofrimentos psíquicos estão medida em que, necessariamente, nos identificamos com
ligados aos conflitos psíquicos inescapáveis ligados à nossa produção criativa, diferindo-a da natureza. Isso faz
questão da imigração, à vivência pessoal ou familiar, ao do ‘trabalho’ uma atividade tipicamente humana, que
distanciamento de elementos de sua cultura tradicional. nos possibilita construir histórias. É a diferença entre
Sendo a população de Diadema composta em sua maioria fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição
por migrantes, especialmente naturais de Minas Gerais e de beleza e produzir escravidão.

1
Esta experiência está descrita e analisada em nossa dissertação de mestrado das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social, apre-
sentada ao programa de pós-graduação Iterunidades em Estética e História da Arte da USP, 2007.

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança 95

O segundo ponto fundamental do trabalho da repetição, mas a usa consistentemente para subverter
Companhia Experimental Mu...Dança era que, além seu próprio processo de dominação corporal, no aspecto
de recontar as próprias histórias de enlouquecimento, estético, cognitivo e social, para dançarinos e para o
pudéssemos questionar o conceito de ‘loucura’ estabe- público. Através da repetição, sua companhia, o Wu-
lecido em diferentes culturas e épocas históricas. Para ppertal Dança-Teatro, transforma estáveis polaridades.
tanto, montamos um horário de ‘grupo de estudos’ que Simultaneamente natural e linguístico, experiencial e
ocorriam por meio de visitas à biblioteca e à videoteca automático, pessoal e social, o corpo ‘reconta’ e ‘redança’
municipais e discussões acerca de livros como História sua própria história de fragmentação, ausência e domi-
da loucura, de Michel Foucault e Dom Quixote de La nação, repetindo e transformando constantemente, ou
Mancha, de Miguel de Cervantes. Esse segundo ponto seja, ‘redefinindo’ a dança (Fernandes, 2000).
viabilizava a construção de uma visão crítica a respeito da Vale lembrar que durante todo o processo de cons-
própria loucura, e foi proposto pelos bailarinos do grupo trução de Pina Bausch, as preocupações coreográficas
no momento em que deixaram de olhar apenas para o centram-se na valorização e reapropriação da gestua-
próprio sofrimento e despertaram para os fenômenos lidade individual. Assim, na Companhia Experimental
que contribuíram com a construção social da loucura. Mu...Dança, construímos pontes destas preocupações
Um terceiro ponto do trabalho foi a definição de coreográficas com o grupo, ampliando as possibilidades
que, como militantes e aspirantes da divulgação da criativas (Castro, 1992).
nossa causa, deveríamos ocupar a cidade, “levando o Em nossa Companhia entendemos que na contem-
delírio à praça pública” (Pelbart, 1990, p. 134), ou poraneidade estamos muito distantes de nosso corpo e, no
seja, não deveríamos ensaiar no ambulatório, mas em caso de pessoas que tiveram histórias de confinamento em
espaços dedicados a atividades culturais da cidade, onde instituições psiquiátricas, a relação com o corpo fica ainda
se encontrava nosso público-alvo. Assim, ensaiamos no mais prejudicada. O corpo é visto como meio para a ob-
Centro Cultural Okinawa em dois momentos: quando tenção de lucro (Weil, 1990), tornando-se visível apenas
funcionava como um centro cultural, e quando abrigou no binômio trabalho-consumo, distante do que Keleman
a guarda municipal. Ensaiamos, também, no Centro (2001) chama de experiência da corporificação.
Poliesportivo da cidade, no Teatro Municipal (Centro Partindo dos pilares apresentados, as pesquisas do
Cultural Clara Nunes) e na sala de dança do Centro grupo levaram a construção do espetáculo por três eixos
Cultural Serraria. norteadores: histórias/experiências de enlouquecimento
Nosso último ponto fundamental do trabalho foi dos bailarinos, histórias de tratamento dos bailarinos,
a definição da técnica artística utilizada: a dança-teatro, estudo sobre a história da loucura e sua inserção em
em especial sua expressão contemporânea desenvolvida algumas culturas. Assim, o espetáculo das loucuras Da
pela bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch. História conta com 16 coreografias distribuídas em 80
As obras de Bausch não apenas utilizam-se da re- minutos, criadas a partir das biografias dos próprios
petição como método ou artifício coreográfico, mas a bailarinos e pesquisadas a partir de três temas escolhidos
incorporam como um tema a ser criticamente retalhado pelo grupo: O que é loucura? No decorrer da história
e decomposto, até gerar o inesperado e, supostamente, da civilização, ela recebe o mesmo significado? Esse(s)
o oposto: a diferença, a transformação. A dança-teatro significado(s) existe(m) independentemente da cultura
de Bausch não rejeita nem serve à força disciplinária da e da época em que o fenômeno está inserido?

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96 Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

Em nossa dissertação, concluímos que a Companhia foi proposta e construída, tornou-se um facilitador
Experimental Mu...Dança possibilitou aos bailarinos para que o grupo pudesse despir-se do manicômio
‘desgrudarem-se’ das experiências de enlouquecimento mental (Pelbart, 1990). Apesar de todos nós sermos
e deixá-las no passado, saindo do lugar de ‘troca-zero’ da militantes do Movimento da Luta Antimanicomial e,
loucura para a descoberta de outros lugares do mundo. ainda, apesar dos Caps serem instituições baseadas na
A metodologia de construção desse espetáculo tornou-se lógica da Reforma Psiquiátrica, é comum percebermos
visível. A partir da análise do espetáculo apontamos e que as relações estabelecidas nessas instituições ainda
refletimos sobre as mudanças despertadas nos bailarinos. são baseadas em relações de saber-poder, ou seja, os
A possibilidade de sair de um lugar de ‘troca-zero’ para profissionais ‘psi’ têm uma posição privilegiada sobre os
um lugar de criação abriu caminho para que outras sujeitos acometidos de sofrimento psíquico. Enquanto
potencialidades fossem exploradas por eles. Sair do os profissionais são bombardeados desde o início de sua
papel social do louco é abrir-se para a possibilidade de formação com uma verdade paradigmática que institui
ocupar múltiplos papéis sociais. A apropriação de uma as relações de certo e errado, profissional e paciente,
nova linguagem, a vivência de uma construção grupal, doente e são, louco e arrazoado, os pacientes, em suas
a ampliação da percepção sobre si e dos outros e a luta histórias de tratamento (ou tentativa de tratamento)
pela mudança do imaginário social a respeito da loucura são bombardeados com informações a respeito de certa
trouxeram ao grupo uma vivência do trabalho como doença incurável, da dependência do saber profissional
construção de linguagem. e mesmo da subordinação a ele. Mudar essa relação é
A transformação do ‘sintoma’ do sujeito em uma mudar a si mesmo.
característica de estilo da personagem que ele repre- Assim como a Companhia Experimental Mu...
sentaria apresentou-se durante todo o trabalho como Dança, muitos outros projetos inseridos na dimensão
um método bastante significativo. Uma saída para a sociocultural da reforma se tornaram paradigmáticos.
construção da tarefa e das personagens, mas também Portanto, torna-se necessário que pesquisas sejam
uma maneira diferenciada de trabalhar com aquelas feitas de modo a sistematizar tais experiências para
pessoas. Percebemos que ao transformar o ‘sintoma’ em que seja possível compreender os procedimentos me-
‘estilo’ fornecíamos um novo sentido do ‘sintoma’ para todológicos comuns que garantiriam uma verdadeira
o sujeito, que poderia, a partir de então, entendê-lo inserção na dimensão sociocultural e a facilidade de
como algo que fosse além dele mesmo. Com o passar novas experiências.
do tempo, pesquisando e estudando as personagens, o
sintoma ‘desgrudava’ minimamente dos bailarinos, que
assumiam novas possibilidades de identidade produzin-
do algo além da loucura: a arte. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a valorização da formação do vínculo como
intermediário da tarefa, todos puderam perceber que No momento em que a Secretaria Nacional de
para que o objetivo do grupo fosse alcançado com êxito Identidade e Diversidade Cultural criou uma política
era necessário que todos se empenhassem e expressas- específica para financiar projetos culturais no campo
sem sincera opiniões. Esse fato sustenta o paradigma da Saúde Mental, é veemente que esse financiamento
antimanicomial na medida em que essa tarefa, tal como seja direcionado pela qualidade dos trabalhos realizados

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança 97

e efetivo apoio às pessoas com sofrimento psíquico, idéias e opiniões, pois o trabalho realizado é de todos
promovendo uma política de cura que garanta a disse- e diz respeito aos processos de subjetivação e interação
minação do Movimento da Luta Antimanicomial na de todo o grupo, ao passo que cria uma concretude
cultura. para esse processo, tornado visível justamente no fazer
Sabemos que no atual estágio do capitalismo, no artístico, na arte.
qual técnica e razão se sobrepõem à subjetividade e ao Assim, hipotetiza-se, a partir da experiência da
sentimento, as artes podem transformar essa situação em Companhia Experimental Mu...Dança que, além da qua-
criação para a autodeterminação. Nesse contexto a arte lidade técnica dos trabalhos realizados na dimensão so-
se mostra um meio de conhecimento, instrumentos de ciocultural da reforma, o que garante a essas experiências
aprendizado e, por ser uma ‘ação’ coletiva, possibilita o seu verdadeiro envolvimento pelos ideais da Reforma
encontro e a atitude. Psiquiátrica é, justamente, a existência da ‘ação’.
Ao falar em ‘ação’, somos remetidos ao conceito
proposto por Arendt (2003). Para a autora, a ‘ação’ é a
única atividade exercida diretamente entre os homens
sem a mediação das coisas ou da matéria. Para que ela
ocorra, é necessário que exista um ‘espaço público’, ou
seja, um espaço correspondente à condição humana da
pluralidade. Um espaço em que ‘iniciativa’ e ‘palavra’ R E F E R Ê N C I A S
circulem, conferindo a todos o mesmo direito de expres-
sar suas diferenças na construção coletiva. A ‘ação’ é a
condição para a vida política, a condição necessária para Amarante, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2007.
que os sujeitos sejam protagonistas de seus papéis como
zoon politikon2 na construção coletiva de transformações
______. (Org.). Franco Basaglia: escritos selecionados
das realidades humanas. A ‘ação’ se consolida, então, em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro:
como a condição humana fundamental. Garamound Universitária, 2005.
Se pensarmos que a construção do ‘espaço público’
______. (Org.). Archivos de Saúde Mental e atenção
é justamente proporcionada por um espaço horizontal
psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003.
e criativo onde as subjetividades circulam, podemos
afirmar que a experiência de criação artística coletiva ______. (Org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental,
pode ser uma tentativa de construção de ‘espaço pú- sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. Coleção
blico’, ou seja, de experimentação da ‘ação’, a principal Loucura e Civilização.
característica dos homens.
______. Manicômio e loucura no final do século e do
A criação artística coletiva proporciona aos envol- milênio. In: Fernandes, M.I.A.; Scarcelli, I.R.; Costa,
vidos a experiência da ‘ação’. Todos sabem que podem E.S. (Org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo:
tomar a ‘iniciativa’ da ‘palavra’ para colocarem suas Ipusp, 1999. p. 47-53.

2
Animal Político

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98 Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

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ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 99

A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial


em sua natureza substitutiva
The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator
of its substitutive nature

Renata Martins Quintas 1

Paulo Amarante 2

1
Psicóloga; mestre em Saúde Pública RESUMO Tomou-se como campo de investigação um Centro de Atenção
pela Escola Nacional de Saúde Pública
Psicossocial (CAPS), situado no município do Rio de Janeiro, para verificar como
da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/
Fiocruz).
se organiza o seu cotidiano, investigando as possibilidades de suas ações tanto no
renata_quintas@yahoo.com.br seu interior quanto em relação ao território. Foram eleitas como categorias de
análise: a responsabilidade pela demanda, a porta aberta, a atenção às situações
2
Doutor em Saúde Pública, pesquisador
de crise e o trabalho territorial, por estas características se articularem em um
titular da Ensp /Fiocruz.
pauloamarante@ensp.fiocruz.br
serviço substitutivo. Utilizou-se de observação participante e de entrevistas semi-
estruturadas com profissionais do serviço. A investigação ressalta a importância
de chegar ao cotidiano deste dispositivo um entendimento das transformações
que pode operar.

PALAVRAS-CHAVE: Território; Serviço substitutivo; CAPS; Reforma


Psiquiátrica.

ABSTRACT The Psychosocial Attention Center (Caps) in the state of Rio de


Janeiro, Brazil, was taken as a field of investigation in order to verify how its
everyday praxis is organized, investigating the possibilities of its actions, either
inside the institution or in relation to the territory. It was elected as analysis
category the responsibility towards demand, the open door, the attention to crises
situations and the territorial work, for these characteristics are articulated to a
substitutive service. A participant observation was used as well as semi-structured
interviews with some professionals who work in the CAPS. The investigation
emphasizes the importance of making the everyday work reach an understanding
of the transformations it can operate.

KEYWORDS: Territory; Substitutive services; CAPS; Psychiatric Reform.

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100 QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

I N T R O D U ç ão A capacidade do Caps em substituir o manicômio


deve estar articulada ao modo com que a sociedade lida
com a diferença e como representa a loucura na era da
supremacia da razão. Trata-se, portanto, da quantidade
de forças que o Caps pode mobilizar, e que o torna capaz
A Reforma Psiquiátrica, no Brasil, constitui-se de de operar uma revolução na forma como que se lida com
processos com características locais, envolvendo lutas a loucura na atualidade. Portanto cabe aqui a pergunta:
sociais pela transformação do modo de concepção da do que se trata ao se constituir um Caps? E, uma vez que
loucura e como lidar com o dito louco. Luta-se tam- é no território onde essas forças configuram o imaginário
bém, para transformar o modo como a Psiquiatria, em e concretizam relações, torna-se estratégico indagar a
nome da razão, permite-se categorizar, trancar e tratar cerca do que pode um Caps em relação ao território.
a loucura, em relação à articulação e invenção de possi- O objetivo da pesquisa foi caracterizar o funcio-
bilidades de inserção social para as pessoas que sofrem namento do Caps no que diz respeito às novas práticas
com transtornos mentais. Além disso, compreende, assistenciais, verificando sua capacidade de articular
ainda, um processo permanente de utilização de jogos ou não às características do território, como indicativo
de forças que engendram saberes e poderes, e configuram de sua capacidade de promover uma transformação na
a sociedade em que se vive. relação da sociedade com a loucura. Não se propôs uma
O referencial teórico fornecido pela Psiquiatria De- avaliação do Caps, mas contribuir com a compreensão
mocrática Italiana e pela experiência santista de Saúde da noção de serviço substitutivo, a partir do conjunto
Mental introduz serviços que atuam como substitutivos de ações que sua atuação territorial possibilita.
ao modelo manicomial, por promoverem rupturas em
relação ao modo de funcionamento centrado do hos-
pital psiquiátrico. Enquanto conjunto de referências
sociais, de códigos de funcionamento intrapessoais DESENHO METODOLÓGICO
que conformam um imaginário e uma realidade social
que inclui ou exclui o diferente, o território é palco de Trabalhou-se com a abordagem qualitativa, que de
exercício para a transformação cultural em relação ao acordo com Minayo (1993, p.10), possibilita “incorpo-
fenômeno da loucura. rar a questão do significado e da intencionalidade”, per-
No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), mitindo evidenciar importantes questões que se fazem
o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) surge como presentes na construção cotidiana do Caps e definem sua
promessa de composição de uma assistência mais tomada de posição em relação ao território.
articulada ao território (Portaria 336 de 19/02/02), Após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesqui-
virtualmente capaz de conhecê-lo em suas peculia- sa, foi obtida permissão para realizá-la tanto no serviço
ridades, de lidar com as necessidades de seus usu- de Saúde Mental pesquisado quanto na Coordenação
ários, com as demandas que se produzem, enfim, da Área Programática.
de compor com as forças do território em favor da Para caracterizar o funcionamento do Caps em
autonomia, a fim de que se encontrem soluções ao relação às práticas assistenciais, foi necessária a inserção
sofrimento psíquico. em campo, tendo como instrumentos de coleta de dados

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva 101

a observação participante e as entrevistas realizadas com A partir dos dados obtidos na observação, foram
os profissionais do serviço. elaboradas perguntas que permitiram colher dos entre-
A estada no serviço ococrreu por um período de vistados suas opiniões acerca dos temas pretendidos.
quatro meses. Neste intervalo de tempo, buscou-se Para isso, utilizaram-se perguntas disparadoras, no
adentrar gradativamente nos espaços de atuação dos intuito de deixar que os entrevistados discursassem
profissionais, na medida em que havia consentimento. livremente sobre os temas de interesse, expondo, por
A observação foi guiada por um roteiro que con- meio das associações de idéias, os sentidos que dão às
templava aspectos como: a estrutura física do serviço; suas práticas no Caps.
seu funcionamento rotineiro; a dinâmica de equipe; as Foram realizadas seis entrevistas, no período de
relações construídas no interior do Caps, com demais agosto a novembro de 2005, concedidas no local de
atores e instituições do território. trabalho dos entrevistados. Os entrevistados, pela Re-
Procurou-se, também, desenvolver o hábito de solução 196/96, concederam livre e esclarecidamente
estar no Caps de diversas maneiras, isto é, ao expe- seus depoimentos, conforme o termo de consentimento
rimentar o lugar de alguém na sala de espera, nas livre esclarecido.
discussões da equipe de profissionais no espaço de su- As categorias de análise foram retiradas de Nicácio
pervisão, ao observar as interações entre os profissionais (2003), que entende a proposta de um serviço substi-
e destes com a clientela, nas oficinas, assembléias, e em tutivo como “serviço no/do território”, quando nele se
atividades e reuniões fora do Caps. No entanto, foi articulam características, como a responsabilidade pela
possível perceber que havia um limite para a presença demanda, a porta aberta, a atenção às situações de crise
em alguns espaços. e o trabalho territorial, que levam a uma relação com
As entrevistas fizeram-se necessárias tanto para as pessoas que nele vivem, quais sejam. Estes princípios
abrir o campo de explanação sobre situações não expressam e compõem a transformação da prática tera-
acompanhadas como para aprofundar o nível de in- pêutica e efetivam a substituição da lógica manicomial,
formações e opiniões quanto à construção do serviço ao constituírem serviços fortes.
(Minayo, 1993). Para Rotelli (2001), o serviço torna-se ‘forte’,
As anotações feitas no diário de campo foram territorial ou substitutivo, ao reconhecer o usuário
separadas por categorias, as quais foram entrecruzadas, em sua complexidade, mas também considerando sua
promovendo uma sistematização que permitiu a formu- singularidade e sua diversidade, elaborando respostas
lação de alguns temas principais, que, no final, compu- dinâmicas e individualizadas que tentam preservar e
seram a análise dos resultados, além do levantamento ampliar a riqueza da vida das pessoas.
de hipóteses esclarecidas nas entrevistas.
Optou-se por entrevistas abertas, por possibilitarem
aos entrevistados discorrer livremente sobre os temas
de interesse para a pesquisa, favorecendo a elaboração A PORTA ABERTA
de um discurso em que pudessem expressar suas idéias,
crenças, maneiras de atuar e de conceber o Caps. As A porta aberta delineia novas bases na relação com
entrevistas foram realizadas após algum tempo de par- o usuário, em que a acessibilidade e a permeabilidade
ticipação no dia-a-dia do Caps. do uso do serviço, por parte de qualquer pessoa, tra-

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102 QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

duzem uma flexibilidade em sua organização. Manter era autorizado ou não a participar, o que evidencia
a porta aberta implica, na capacidade plástica, de aco- que o serviço não funcionava segundo a dinâmica da
lher a demanda, de forma a garantir atenção a todas porta aberta.
as pessoas que chegam ao serviço, oferecendo uma
possibilidade de resposta a sua questão, mesmo que Esse paciente foi indo por conta própria. Ele sabia que
tinha oficina do papel tal dia, ele vinha na oficina
seja sua escuta apenas. do papel. E aí, quando a gente se deu conta, ele tava
Na experiência santista, a ‘porta aberta’ traduz um freqüentando várias atividades no Caps. Até ele le-
conjunto de relações institucionais, num movimento vou a criar uma regra na equipe, de que paciente de
recepção não poderia participar das atividades ainda,
contínuo de questionar e eliminar a contenção concreta
só depois que já tivesse cadastrado, que tivesse projeto
e simbólica das instituições asilares, pelas quais se dava terapêutico que podia participar, porque meio que
o controle do paciente, que: fugiu das nossas rédeas. (T2).

[...] requer uma dinâmica de trabalho que distante A porta aberta também significa a abertura
de concepções burocráticas seja capaz de operar no
para o outro, no reconhecimento e acolhimento dos
movimento de ordem-desordem, instituinte-instituído
na qual as ações são construídas, desmontadas, recons- usuários e ao responsabilizar-se pelos problemas de
truídas a partir das necessidades dos usuários em seu saúde da região, numa relação em que Campos (1994)
contexto de relações [...]. (Nicácio, 2003, p.221). estabelece entre um “coeficiente de acolhida” e a
“plasticidade” do modelo de atenção, quando se trata
O dia-a-dia do serviço evidenciou a falta da com- de acessar, junto com o paciente, toda uma variedade
preensão da noção de porta aberta. Observou-se, por de problemas da demanda, que incluem questões
meio da fala de um entrevistado, um ritmo ambulato- sociais, econômicas, culturais, além da inconstância
rial de funcionamento, com uma freqüência maior de dos recursos disponíveis.
técnicos trabalhando nos consultórios ou em oficinas:
“a gente ainda tá preso a esse modelo do atendimento,
da consulta, os grupos” (T3).
Poucas pessoas freqüentavam o serviço de forma RESPONSABILIDADE PELA DEMANDA
diária e as diversas atividades funcionavam com pou-
cos, sendo quase sempre com os mesmos pacientes. A A tomada de responsabilidade aponta para a
presença das famílias restringia-se ao grupo familiar ou ação no território da vida dos pacientes, a partir da
ao acompanhamento às consultas, e não foi observada necessidade de assumir uma interação ampla e direta
a presença de pessoas da comunidade, mesmo em mo- com a condição do paciente e das suas relações, e
mentos mais coletivos, como em festas. chegando aos seus ambientes de vida (Dell’acqua,
A dinâmica do serviço deixava pouco espaço para 1991). O serviço não é o único local de exercício da
a invenção de ações por parte dos pacientes (mesmo tomada de responsabilidade, pois a prática terapêu-
aquelas requeridas para cada caso), funcionando com tica é orientada para o enriquecimento da existência
atividades padrão: consultas e psicoterapias individuais, global, complexa e concreta dos usuários, que os faz
oficinas, visitas domiciliares, assembléia e supervisão. sujeitos ativos nas relações dentro e fora do serviço
Havia uma repartição dos espaços em que o paciente (Rotelli, 2001).

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva 103

Ao contrário da direção da prática em relação aos depende da disponibilidade da equipe para situações que
ambientes de vida dos usuários dos serviços substituti- desafiam novas formas de comunicação entre os envolvi-
vos, observou-se uma tendência na dinâmica do Caps dos, “sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou
de trazer para o serviço as situações de trabalho com mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção” (Dell’acqua,
seus pacientes. No caso de uma paciente, a falta de um 1991, p.61). Lidar com a crise requer a permissão de
trabalho mais articulado com a vizinhança e os fami- entrada em cena de todos que participam do contexto
liares resultou em ela ser vista como ‘monstro’ por uma relacional dos usuários.
pessoa próxima, que exigiu que a tirassem dali e que a Segundo os discursos dos profissionais, a forma
internassem. A dificuldade em conviver com a diferença de o serviço lidar com a crise era ruim, acentuada pela
de seu comportamento tornou-se insuportável para sua falta de condições materiais. Evidenciava-se o mau fun-
mãe, que optou por sua internação já na primeira reação cionamento em equipe e o medo dos profissionais em
de agressividade da filha. lidar com o paciente em crise e articular possibilidades
Assim como o olhar de estranhamento da mãe, de atuação que substituíssem a internação.
o olhar do serviço enxergava a doença, algum retardo
mental a junto à psicose, deixando de encontrar soluções Precisava não a mesma estrutura que o hospital
tem, mas o mínimo de estrutura pra poder ficar
terapêuticas que ampliassem a rede de relações para a com uma pessoa que está de fato agitada. Porque
aceitação e promoção da diferença. A hospitalidade assusta, né?, ameaça de bater, fica falando sem
oferecida pelo serviço deixou de mobilizar “uma quanti- parar.[...] As pessoas chamam logo a ambulância.
Muito rapidamente, é a 1ª coisa que se pensa. Você
dade maior de energia humana e recursos institucionais”
pode tentar fazer outras coisas, você pode chamar a
(Dell’acqua, 1991, p.65). ambulância e paralelamente ir tentando abordar
essa pessoa.[..] Tem situações com colegas onde a
gente ficou lá embaixo e as pessoas olhando da
escada de cima. (T3).

A ATENÇÃO DO Caps ÀS SITUAÇÕES DE


A resposta às situações de crise está relacionada à
CRISE
organização das práticas do serviço, em sua capacidade
de acolhimento e reconhecimento que se constitui como
A capacidade de responder de forma diversa às
alternativa à internação psiquiátrica:
situações de crise se insere nas práticas dos serviços
substitutivos como capacidade cotidiana de sustentar Depende de cada equipe, de como o serviço se orga-
a atenção à crise, pelo exercício do trabalho em equi- niza. (...) Acho que essa é a questão da relação com o
pe, e ao articular tutela, direitos e responsabilidade território, o cara ao invés de ir pra emergência, vem
pro serviço porque ele sabe que pode ser resolvido ali ou
(Nicácio, 2003). acolhido, esse sofrimento foi acolhido e foi conduzido
A complexidade envolvida nas situações de crise de alguma forma. (T4).
demanda a criação de estratégias de contato, pautados
na possibilidade de transformação da intervenção vio- Evidenciou-se que a forma como o Caps lida com
lenta, ressignificando os conflitos em direção à invenção a crise guarda relações com a orientação teórica que
de saúde. A base para tais possibilidades constitui-se na organiza suas práticas e com o movimento de sair para
relação de contrato e de reciprocidade com o usuário, e atuar nos espaços de vida dos usuários.

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104 QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

A RELAÇÃO COM O TERRITÓRIO localizadas no território, estabelecendo parcerias para


venda de trabalhos confeccionados pelos pacientes: “É
O território é o local onde deságuam todas as trans- algo que tá no projeto, mas que na prática precisa de
formações ocorridas no interior do serviço. A interven- disponibilidade pra isso.” (T2).
ção precisa chegar às instâncias reais e imaginárias para O questionamento de que o Caps possui de fato
se disseminar a norma e a exclusão, e passar ao âmbito um trabalho no território se deve ao fato de que a ação
da política, do direito, das legislações, do trabalho e da no território é mais do que a presença física do serviço
cultura. Colocar-se assim em movimento, articulando- na região. O discurso de um profissional chama atenção
se no convívio entre as pessoas, é o que Santos (1988) para uma necessidade de entender o trabalho fora do
chama de “território da vida”, território onde se dão as Caps, a partir da ótica da inserção social, e reconhece que
trocas materiais e simbólicas e as relações sociais. uma atuação nesse sentido ainda é incipiente no Caps.
Para Nicácio (1994), o trabalho territorial é construído
na articulação de ações diretas e indiretas, abrindo espaços O fato de você estar lá fora com eles não significa que
eles estejam integrados. Se a gente só coloca eles pra
para a ressignificação do fenômeno da loucura e o reposi-
vender, não incentiva uma crítica a respeito disso, por
cionamento sociopolítico do paciente na sociedade. exemplo, só vai vender nos fóruns de saúde mental, a
A incorporação da noção de território e o alcance gente não pode achar que isso é o externo propriamente
dito. O externo é o cara poder pôr a barraquinha
das questões que ela implica indicam a assimilação de
dele, ou ser um ambulante como um outro, com as
mudanças concretas ao mesmo tempo na sua dinâmica dificuldades que ele tem. A gente tendo que ajudar da
e em relação à sociedade. forma que ele precisa, mas não estar tão dependente
O entendimento que traz a relação do Caps com o de situações como essas. (T3).
território é apontado na fala de um profissional quando
diz que “A gente tá tentando fazer esses trabalhos mais O trabalho territorial precisa avançar mais, para
externos” (T1). Existe a consciência de que o trabalho chegar à possibilidade de convívio social, fora da pro-
do Caps em articulação com outros atores pode mudar a teção institucional. Trabalha-se para a construção de
percepção que se tem do sofrimento mental, a começar um novo pacto social, que cria campos de troca entre
da própria família. No entanto, é freqüente, nas falas da os diversos segmentos da sociedade, e interfere nos
maioria dos entrevistados, a menção à carência de recursos, processos de exclusão social, além de possibilitar uma
que lhes dificulta sair do ambiente de trabalho, apesar do nova ética, “em cujo espaço seria possível reciclar tudo
reconhecimento de que o Caps deve atuar no território: aquilo que seria descartável na lógica de uma sociedade
excludente” (Barros, 1994, p.103).
É uma cilada também, que os Caps têm que ter o
cuidado de sair, porque o trabalho te toma, né? Tem
casos muito graves que se deixar você fica só dentro do
Caps! E a idéia é estar ocupando espaço no território.
Então esse é um desafio. (T1). CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação com o exterior, no entanto, ainda se Percebe-se, por meio da observação participante,
reduz às iniciativas pessoais de alguns poucos profissio- assim como pelas falas dos profissionais entrevistados,
nais, que procuram trabalhar com algumas instituições que o serviço pesquisado tem-se utilizado tanto de

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva 105

iniciativas diretas como indiretas. São realizadas visitas mentalmente, a luta contra o que fundamenta a insti-
domiciliares, acompanhamento aos pacientes internados tuição, seja ela psiquiátrica ou não. Trata-se de dar voz
em instituições psiquiátricas, viabilização de atendimen- àqueles que tradicionalmente encontram-se na posição
to na rede de saúde, além de passeios, e negociações com de inferiorizados, e lutar pela sua liberação, uma vez que
instituições de lazer, educação, trabalho, e da rede de a desinstitucionalização é, em última instância, “a luta
saúde, como ambulatórios de Saúde Mental da região, pela liberação do homem” (Venturini, 2003, p.165). A
nos casos de referência e contra-referência. desinstitucionalização é o questionamento dos lugares de
No entanto, no Caps pesquisado, a temática da atu- produção de valores da sociedade, é uma luta política.
ação territorial é pouco presente nas discussões dos técni- Faz-se necessário colocar em questão a própria
cos, no cotidiano do serviço, fruto de uma dinâmica insti- normalização do espaço que constitui o Caps enquanto
tucional no qual as atividades encontram-se centradas na instituição. Na grande maioria das vezes, este dispositivo
clínica tradicional. Ao mesmo tempo, algumas atividades vem funcionando como um espaço organizado, de ma-
e críticas ensaiam movimentos de questionamento desse neira procedimento-centrado, de forma em que as práticas
funcionamento. No entanto, não há um envolvimento e as relações interpessoais se localizam no seu interior,
suficiente dos profissionais para criar uma participação numa dinâmica centrada na intervenção medicamentosa
da equipe nos contextos reais de vida da clientela, e que e psicoterapêutica, que tende a produzir uma cronicidade
mobilizem pessoas diversas na articulação de redes sociais, dos próprios profissionais dentro do serviço.
responsabilidades e potenciais de ação. Apesar do tempo de Reforma Psiquiátrica empreen-
Para Basaglia, o território: dida no país, entende-se que a superação do manicômio
não se reduz a uma modernização da assistência, mas se
[é o] lugar da expressão plena das contradições de trata de uma luta contra os mecanismos de controle da
classe, espaço real que tornaria mais clara a própria
população, que precisa ser melhor trabalhado no coti-
colocação e mais natural o resultado das alianças.
(2005, p.242). diano dos atores da Reforma Psiquiátrica. Essa percepção
acerca da capacidade de invenção que um serviço precisa
A partir de então, coloca-se como serviço que convive ter para substituir a lógica psiquiátrica ainda não chegou
com o manicômio e o realimenta, quando suas práticas
ao ponto de transformar suas práticas e construir serviços
não alcançam a reprodução social de sua clientela.
É justamente essa discussão política e estratégica da de Saúde Mental que se coloquem como substitutivo.
relação com o território que se encontra ainda pouco Para Venturini, a presença de usuários, familiares, di-
presente no entendimento do lugar do Caps, conforme versos cidadãos e a construção de um clima de cooperação
observado, instituindo um serviço que se coloca como
intermediário na relação com o hospital psiquiátrico. social “constituem-se em indicadores rigorosos da eficácia
A gente não quer ser chamado de um serviço substitu- da desinstitucionalização” (2003, p.173). Desse ponto de
tivo. A gente tá longe disso. A gente ainda é uma coisa vista, o serviço precisa redefinir sua prática, flexibilizar-se
mais ou menos alternativa, no sentido que a gente
no exercício de seu poder, ao abrir-se para permitir o con-
não substitui o hospital, a gente recorre à internação
com muita freqüência. Então não há essa coisa da flito dos atores e incorporar uma capacidade de negociação
apropriação do espaço. (T3). que considere as necessidades de sua clientela.
A penetração no território acontece quando os ser-
A desinstitucionalização não se restringe à retirada viços se organizam para acolher e trabalhar a pessoa em
de pacientes da instituição psiquiátrica. Ela é, funda- sua existência concreta, o que impulsiona a um trabalho

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106 QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

permanente de inscrição na dinâmica do território, ao Brasil. Ministério da Sáude. Secretaria de Assistência


identificar os atores que estão relacionados às ações de à Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002.
Brasília, DF, 2002.
reconstrução de relações com a loucura e ultrapassando
iniciativas isoladas, como sair em busca de determinada
Campos, F.C.B. O modelo da Reforma Psiquiátrica bra-
parceria para alguma ação pretendida. sileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos.
Da arquitetura hospitalar, que exerce seu poder de 2000. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Mé-
dicas da Unicamp, Campinas, 2000.
controle e de formação de corpos dóceis pela anulação
das possibilidades de existência própria, ao espaço
Dell’acqua, G., Mezzina, R. Resposta à crise. In:
aberto do território, o tema ainda é a convivência com Delgado, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. Santos:
um poder invisível e onipresente, e a ampliação da Resenha, 1991. p. 53-79
capacidade de singularização1 de pessoas e de grupos.
Trata-se mesmo de facilitar rebeldias cotidianas, revo- Giovanella, L.; Amarante, P. O enfoque estratégico
do planejamento em Saúde Mental. In: Amarante, P.
luções moleculares, de refazer territórios de resistência e (Org.). Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica. Rio de
existência, não totalmente imunes à ordem dominante, Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 113-149
mas poder ampliar a função de autonomização dos
grupos, tornando-os mais hábeis quanto Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolítica: cartografias do
desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
à capacidade de operar seu próprio trabalho de se-
miotização, de cartografia, de se inserir em níveis de Minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa
relação de força local, de fazer e desfazer alianças, etc. qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Huci-
(Guattari; Rolnik, 1986, p. 46). tec/Abrasco, 1993.

Em relação a isso, há perseguição dos operadores Nicácio, F. Utopia da realidade: contribuições da


dos serviços substitutivos, chamando de invenção de desinstitucionalização para a invenção de serviços de
Saúde Mental. 2003. Tese (Doutorado) – Faculdade de
saúde e de vida. Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 2003.

__________. O processo de transformação da Saúde


Mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições
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186. 1998. p. 149-170.
1
Por singularização Guattari e Rolnik (1986) entendem a capacidade de captar os elementos da situação, de construir as próprias referências práticas e teóricas,
saindo da dependência total em relação ao poder global, para ler a própria situação e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criação e de autonomia.o
e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criaç, e de ter a capacidadestmento dos tles atores que dele se util

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva 107

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Janeiro: NAU Editora, 2003. p. 157-184

Recebido:maio/2008
Aprovado: ago./2008

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108 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad:


um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma
Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms

Milena Leal Pacheco 1

Luiz Ziegelmann 2

1
Psicóloga com Residência Integrada RESUMO A dependência química envolve aspectos sociais, ocupacionais,
em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde
econômicos, políticos e psíquicos, e necessita, portanto, de diferentes olhares
Mental no Grupo Hospitalar Conceição
(GHC).
sobre a vida dos sujeitos para que haja uma aproximação de um cuidado
milena.lealpacheco@hotmail.com integral. Entretanto, durante muito tempo, os modelos de atenção em Saúde
Mental centraram-se na atenuação de sintomas, deixando em segundo plano
2
Médico psiquiatra do Hospital Nossa
outras questões vinculadas à existência. Neste artigo, objetivou-se refletir sobre
Senhora da Conceição (HNSC) do
GHC.
as possibilidades existentes para a clínica de grupos, dentro de um Centro de
lziegelmann@terra.com.br Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps ad), por meio do relato de
experiência com um grupo terapêutico. Utilizaram-se os conceitos de produção de
subjetividade, clínica, desejo, saúde, cuidado, integralidade e grupo dispositivo
para problematizar alguns relatos dos participantes.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Centro de atenção psicossocial; Psicoterapia


de grupo

ABSTRACT Chemical dependency encompasses social, occupational, economic,


political and psychical aspects and, therefore, it demands numerous views of
people’s life in order to provide full care, as much as possible. However, for a long
time, attention on Mental Health standards focused on diminishing symptoms,
while other issues concerning existence were lagged behind. In this paper, we have
aimed at reflecting on opening up opportunities for group clinic at a Center of
Psychosocial Alcohol e drugs (Caps ad) by means of the report of an experience
with a therapeutics group. We considered the concepts of subjectivity production,
clinic, desire, health, care, integrity and groups of devices with the purpose of
questioning some participants’ speech.

KEYWORDS: Mental Health; Psychosocial care center; Psychotherapy, group

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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma 109

I N T R O D U ç ão usuárias de álcool e outras drogas e a seus familiares. Por


intermédio de cuidados de atenção diária, os Caps ad
possibilitam cuidados integrais à saúde, propondo uma
nova abordagem, ligada ao social, do sofrimento psíqui-
co, distinta do modelo manicomial, que acaba sendo
Este estudo é fruto de uma experiência clínica com gerador de exclusão e estigma social (Brasil, 2004B).
um grupo de adultos que se encontrava em tratamento Embora historicamente a problemática do uso, do
para dependência química1 em um Centro de Atenção abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha
Psicossocial Álcool e Drogas (Caps ad) de Porto Alegre, sido abordada por um modelo médico-centrado, em 2003,
em 2006, durante meu primeiro ano de Residência In- a Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool
tegrada em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde Mental e Outras Drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde.
no Grupo Hospitalar Conceição (GHC)2. Esse documento assinala a necessidade de se facilitar o
O Caps ad do Hospital Nossa Senhora da Conceição acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos
(HNSC) surgiu com o objetivo de oferecer um cuidado profissionais, bem como considerar os processos subjetivos,
contínuo às pessoas, com idade a partir de 12 anos, que as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades
apresentassem graves problemas decorrentes do uso de e diferenças dos sujeitos (Brasil, 2004A).
substâncias psicoativas e/ou do comprometimento sócio Em março de 2006, eu e um colega, psicólogo e
familiar tais quais: intenso sofrimento psíquico, dificul- residente em Saúde Mental, fomos convidados pela
dades no convívio social e familiar, escassez de recursos equipe do Caps ad para coordenar o chamado Grupo de
sociais, políticos e econômicos, entre outros. Inscrito Sentimentos. Com abordagem centrada nos sujeitos e
na proposta de descentralização e territorialização do 3 suas relações, a proposta foi a de criar um espaço coletivo
Sistema Único de Saúde (SUS), esse serviço é destinado onde os usuários pudessem refletir sobre suas vidas além
à população das regiões Norte/Eixo Baltazar, Nordeste do uso dessas substâncias, buscando outros sentidos em
e Noroeste de Porto Alegre/RS, e fornece atendimento suas experiências. O Grupo de Sentimentos foi iniciado
individual e grupal aos dependentes e seus familiares, por com oito homens e quatro mulheres, mas alguns pa-
intermédio de equipes multidisciplinares composta por cientes optaram por deixar o espaço e permanecer nos
profissionais das áreas de Medicina, Psiquiatria, Psicologia, atendimentos individuais em outros grupos de apoio ou,
Serviço Social, Terapia Ocupacional e Enfermagem. mesmo optaram por se desvincularem do Caps.
Os Caps ad são considerados a principal estratégia As falas apresentadas neste artigo são de seis adultos:
da Reforma Psiquiátrica para o desenvolvimento de ser- cinco homens e uma mulher, com idade entre 35 e 60 anos,
viços substitutivos em Saúde Mental. Esses serviços são pertencentes a camadas populares e, com exceção de um dos
voltados às pessoas portadoras de sofrimento psíquico, integrantes, que não estavam empregados no momento.

1
Considera-se dependente químico uma pessoa que faz uso abusivo de álcool e/ou drogas, que apresenta problemas sociais, psíquicos, familiares, ocupacionais,
econômicos e políticos recorrentes e que sente dificuldade em reduzir ou suspender tal uso (Brasil, 2004A).
2
O GHC é uma instituição federal considerada eminentemente pública, uma vez que a população atendida é, em sua totalidade, usuária do Sistema Único de
Saúde (SUS). Atualmente, possui quatro núcleos hospitalares: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina, mais doze Postos
de Saúde Comunitária (Brasil, 2007).
3
O território não é (apenas) o bairro do sujeito ou uma área geográfica, mas o conjunto de referências socioculturais e econômicas que permeiam o cotidiano do
sujeito. É constituído, sobretudo, pelas pessoas que o habitam, com seus conflitos, interesses e relações (Brasil, 2004B).

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No primeiro dia de encontro, após nos apresen- oportunidades durante a vida. Benevides e Joseph-
tarmos, solicitamos que cada um dos presentes fizesse son (2006) localizam, nesse período, o surgimento
o mesmo. Todos os participantes revelaram o nome e de um paradigma enraizado na individualização, no
o tipo de droga que utilizavam. Dissemos a todos que autocentramento e na totalização, denominado modo-
a forma como eles haviam se apresentado “não nos indivíduo. Marcado por uma oposição entre indivíduo
contava quase nada a respeito de suas vidas” e apenas e sociedade, esse modo-indivíduo visa corpos úteis,
mostrava que a existência deles se restringia a uma de- produtivos e objetos de cuidado, determinando certas
terminada substância. Apresentando-se dessa forma, formas de estar, sentir, pensar, desejar e viver o mundo
(re)afirmavam a idéia de que suas identidades eram (Benevides, 1994).
constituídas predominantemente pela dependência de Diferentemente dessa idéia da subjetividade centra-
determinada substância. O grupo ficou surpreso com da no “eu”, as produções de subjetividades, ou modos
tal afirmação, já que, segundo um dos integrantes, de subjetivação, são fabricadas e modeladas no registro
“isso é tudo o que as pessoas querem saber da gente social (Benevides, 1995). Essas produções se iniciam
[...] a única coisa que importa é se eu bebi ou não, às no nascimento e envolvem tudo aquilo que produz
vezes isso acontece até mesmo aqui no Caps”. sentido, como o contato com o ambiente familiar,
A partir dessa experiência e de trechos das falas, a relação com amigos, afetos, música, arte, cinema,
verifiquei o modo como um cuidado que aborda as- política, ou seja, expressam-se através do modo como
pectos além dos sintomas de dependência contribui no os indivíduos pensam, sentem e agem em relação a si,
tratamento, refletindo sobre as aberturas produzidas na ao outro e ao mundo. É tudo aquilo que singulariza
clínica de grupos. Assinalam-se momentos em que o e diferencia e são processadas no encontro do sujeito
grupo buscou compartilhar diferentes situações vividas, com o ambiente social, resultando tanto em marcas
produzir outras subjetividades e desmitificar alguns singulares como em valores compartilhados na cultura,
modos de ser e viver. Este estudo foi fundamentando na história, na política e no coletivo. Segundo Benevides
em idéias, de autores como Birman, Rolnik, Benevides, (2001), tal noção de subjetividade, não-dicotomizante,
Brasil, Naffaf Neto, Foucault, entre outros, que dizem impossibilita uma separação entre o que é do indivíduo
respeito a produções de subjetividade, clínica, cuidado, e o que é do social.
desejo, integralidade na atenção e grupo dispositivo. Miranda (2000) afirma que é possível conceber
as produções subjetivas a partir de dois pólos. No pri-
meiro, os indivíduos apresentam certa passividade em
relação às instituições produtoras de subjetividade como
PRODUÇÕES DE SUBJETIVIDADE a família, o Estado, o trabalho, o sofrimento psíquico,
repetindo suas formas de agir e pensar. No segundo,
O surgimento do Estado moderno, oriundo de os indivíduos e os grupos criam “processos múltiplos e
conjunturas investidoras na anulação das diferenças heterogêneos, que engendram relações livres e criativas”
entre os sujeitos, como o Iluminismo, a Revolução (p. 41) assumindo, dessa maneira, suas existências de
Francesa, a Revolução Industrial e a Psicologia Com- forma singular, criando diferentes valores, novas formas
portamental, inseriu na sociedade a idéia de que de pensar e agir e tornando, por fim, a produção de
todos os indivíduos são iguais e possuem as mesmas subjetividade singularizada.

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Para Benevides (1994) o corpo-indivíduo tornou- vestir, tratar” (Bezerra Júnior, 2001, p. 29) aqueles
se objeto de controle e vigilância, impulsionando a que eram considerados loucos, marginais, bêbados
busca de um cuidado de si. Inspirada em pensamen- e indesejados pela sociedade. Ou seja, nssa época, as
tos foucaultianos, a autora afirma que os modos de intervenções serviam apenas para impedir novas pro-
subjetivação tanto constroem determinados objetos duções subjetivas.
de interesse, como afirmam formas de existir: No caso da Psicologia, Medeiros, Bernardes e
Guareschi (2005) afirmam que ela surgiu com o intuito
a cada momento da história, prevalecem certas re- de “descobrir o que tornava os seres humanos sujeitos
lações de poder-saber que produzem sujeitos-objetos, da razão.” (p. 265), criando uma série de recursos
necessidades e desejos. (p. 28).
para o indivíduo governar a si mesmo. Esses recur-
sos – avaliações, exercícios comportamentais, falar de
Guatarri e Rolnik (1986) assinalam que as subjetivi-
si – eram (e ainda são) utilizados, muitas vezes, para
dades são produzidas também pelas Ciências Humanas,
que o indivíduo soubesse (saiba) quem ele é e enten-
porque são elas que criam, juntamente com a Medicina,
desse (entenda) como e por quê age em determinadas
a possibilidade de investimento em formas de viver a
circunstâncias: “tudo para atentar para as próprias
partir do modo-indivíduo. Essas ciências podem tanto
condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se por
incentivar a manutenção de processos subjetivos homo-
seus atos.” (Medeiros; Bernardes; Guareschi, 2005,
geinizados sem criar saídas para a singularização, como
p. 266). Nesse caso, o foco não está na saúde e sim
investir em modos de subjetivação heterogêneos.
na materialização de uma interioridade do indivíduo
No caso do uso nocivo do álcool e outras drogas, para subsidiar, segundo Bernardes (2007), formas de
mesmo com a implementação da Reforma Psiquiátrica e da poder sobre a vida.
Política Ministerial, o sujeito, nesse caso dependente quí- Para Foucault (1992), a invariância da clínica
mico, é inserido em um registro social que o individualiza aparece na história à medida que os modos de ver e de
– ‘Eu sou alcoolista’ – e o circunscreve em um determinado sentir são mudados, assim como a própria objetividade
território de existência ainda marcado pelo estigma, pelo da doença.
preconceito e pela exclusão. Assim, serviços de atenção à A clínica atual ainda apresenta:
saúde, como os Caps, podem funcionar tanto como meca-
nismos de controle e vigilância, como de auxílio na criação [...] posturas clínicas que reproduzem, acriticamente,
as clássicas dicotomias interior/exterior, consciente/
de subjetividades mais livres, criativas e autônomas.
inconsciente, sujeito/objeto, clínica/política, e tantas
Afinal, como pensar uma clínica produtora de outras, porém procurando ajustá-las aos novos tempos.
subjetividades? (Neves; Josephson, 2001, p. 99).

De acordo com Coimbra (2002), essa clínica se


depara com:
CLÍNICA, CUIDADO E INTEGRALIDADE
[...] histórias e trajetórias que falam de experiências,
aventuras, desventuras, sonhos, utopias, massacres
Durante muito tempo as práticas terapêuticas fo- fraquezas, cumplicidades, omissões, convivências.
ram utilizadas para “remover, excluir, abrigar, alimentar, (p. 19).

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Tudo isso envolve os mais diversos processos sub- As novas concepções de saúde e doença vão ao en-
jetivos. Assim como a contemporaneidade, a clínica é contro da proposta de integralidade, na qual o principal
atravessada pela complexidade e pela desestabilização interesse já não é o sintoma, mas o sujeito e seu contexto
e deve ser entendida, segundo Deleuze (1992) como biopsicossocial. Para Mattos (2001), a integralidade
experiência de desvio, de desestabilização e de crise uma está relacionada ao ideal de uma sociedade mais justa
vez que acompanha a criação de territórios existenciais, e solidária, pois sua atenção diz respeito ao cuidado às
através de um caráter processual. Envolve, também, pessoas, aos grupos e à coletividade em seus contextos
questões individuais e coletivas que interpelam o sujeito históricos, sociais, políticos, econômicos, culturais e
e seus modos de subjetivação. Esses atravessamentos também subjetivos.
ocorrem através de movimentos de territorialização, Nesse sentido, os espaços terapêuticos podem
desterritorialização e reterritorialização do desejo. possibilitar que os sujeitos encontrem novas formas
Desejo, de acordo com Rolnik e Guatarri (1986) para resolver seus conflitos a partir de outras leituras
é uma potência de criação de vida, capaz de inventar e de sua própria vida. Naffah Neto (1994) utiliza o ter-
transformar modos enrijecidos de ser, sentir e pensar. mo “psicoterapia-genealógica” (p. 20) para destacar a
Todo desejo é um devir, que constrói e reconstrói objetos importância de o terapeuta denunciar tudo aquilo que
e seus correspondentes modos de subjetivação (Rolnik, empobrece a vida das pessoas, produzindo, juntamente
2006). Na clínica, a manifestação do desejo se dá no com o paciente, pequenas revoluções no cotidiano. Se-
corpo, é ele que comunica. gundo o autor, psicoterapia significa, etimologicamente,
O surgimento do SUS e seus princípios (uni- o “cuidado pela vida” (p. 21), capaz de desenvolver o
versalidade, eqüidade, hierarquização, integralidade, que Nietzsche chamou de “vontade de potência” (p.
descentralização e participação comunitária) colocou 21): uma “potência autônoma, nos seus movimentos
no cenário da saúde pública outros olhares em relação de expansão/retração, construção/destruição, enchentes,
ao sofrimento e ao sujeito, abrindo possibilidades para contração/consonância” (p. 110). Segundo o autor, a
se dar espaço ao que vem do corpo, ao desejo, ao afeto vida doente é:
e ao impulso para a vida, aspectos esses que, muitas
vezes, são capturados pelas convenções que enrijecem [...] enredada por valores que a intoxicam, obs-
truem, empobrecem, necessitando desenvolvimento,
e doutrinam certos modos de vida ‘indesejados’ para
soltura, liberdade, para recuperar a sua potência
a sociedade. Além disso, a partir da 8a Conferência criadora e produzir novas formas. (Naffah Neto,
Nacional de Saúde, a saúde passa a ser vista não apenas 1994, p. 23).
como ausência de doença ou esbatimento de sintomas,
mas como um encadeamento de interações em vários Assim, tudo aquilo que vem do corpo, os afetos, as
níveis de complexidade interdependentes (Giordan, intensidades, os desejos, as vontades, os movimentos, é
1998). Sendo assim, saúde e doença passaram a não ser reprimido e a vida se torna limitada.
conceitos definitivos ou opostos, pois “dizem respeito à A concepção de clínica acima descrita nos oferece
sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção uma abertura para o conceito de cuidado proposto por
de vida” (Ceccim, 2000, p. 28), estando relacionados às Boff (2000). O autor assinala que o cuidado contri-
condições físicas, psicológicas e sociais; ou seja, o indiví- bui para a reinvenção. Aquele que cuida, no entanto,
duo torna-se um ser tridimensional e biopsicossocial. deve considerar a liberdade do sujeito, sua liberdade e

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capacidade de escolha e seu potencial para estabelecer O uso abusivo de álcool e outras drogas está,
normatizações próprias. Pautado na integralidade, e portanto, relacionado às produções da atualidade:
não na seleção, aquele que cuida de outrem percebe que narcisismo, consumismo e imediatismo. O indivíduo
cada sujeito possui necessidades que atravessam campos busca desesperadamente atingir a plenitude narcísica
múltiplos e singulares; sendo assim, seu olhar precisa ser através de uma poção mágica que inviabilize o reco-
deslocado da doença, atingindo um conjunto de fatores nhecimento de sofrimentos e desilusões inerentes
que envolvem a vida. ao ser humano. Nesse “pacto de morte o valor que
direciona o sujeito é um antivalor” (Birman, 2005, p.
23), pois é o não-saber sobre sua existência, alienan-
do-se da vida e do outro por meio de um objeto que
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA satisfaz e mortifica ao mesmo tempo. Ao encontrar
DEPENDÊNCIA QUÍMICA na substância um alívio imediato (e passageiro) para
angústias, sofrimentos, desilusões, tristezas, entre
A compreensão ampliada do sujeito oferece, de tantos outros sentimentos despertados, o sujeito se
acordo com Birman (2005), instrumentos para a for- volta para si.
mulação de um pensamento crítico sobre o mal-estar da No contexto da dependência química, em que os
contemporaneidade e sua forma de expressão: o narcisis- destinos do desejo ficam autocentrados no indivíduo, é
mo. Segundo o autor, para entender os processos subje- oferecida uma abertura para a discussão do trabalho com

tivos, é necessário investigar os destinos do desejo. grupos como uma possibilidade de produção de modos

Nas últimas décadas, no Ocidente, o ‘eu’ passou de vida, como propõe Benevides (1995):

a assumir uma posição privilegiada na construção de


Às portas do século XXI, quando observamos o crescente
subjetividade. O autocentramento do sujeito no eu, processo de individuação e privatização das práticas
oriundo das noções de interioridade e reflexão cons- sociais e psíquicas, pensar o grupo nos aparece como
truídas no início da modernidade, conjugou-se ao valor uma possibilidade de colocar em questão a problemáti-
ca da economia do desejo, dos processos de subjetivação
da exterioridade e a subjetividade, por sua vez, acabou e, quem sabe, chamar a atenção para a urgência de se
tendo uma configuração criarem laços de solidariedade e alianças de cidadania.
(p. 143).
estetizante, em que o olhar do outro no campo social e
mediático passa a ocupar uma posição estratégica em
sua economia psíquica. (Birman, 2005, p. 23).

Com isso, o exibicionismo e o autocentramento O DISPOSITIVO GRUPO


atingiram o valor da solidariedade/alteridade, impe-
dindo que os sujeitos reconhecessem os outros em suas Os espaços grupais foram utilizados na saúde
diferenças e singularidades. Desse modo, o narcisismo pública durante muito tempo com o objetivo único
torna-se uma forma de subjetivação tributária de uma de atender um maior número de pacientes através da
organização social que incita o consumo desenfreado, o otimização dos recursos humanos. De fato, em um
autocentramento e a necessidade de prazer imediato. grupo abrangemos um maior número de pacientes. No

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114 PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

entanto, é preciso refletir sobre a riqueza desses espaços GRUPO DE SENTIMENTOS:


quando tomados como dispositivos para a saúde. OUTRAS POSSIBILIDADES
Conforme Benevides (1994) o termo dispositivo
indica algo capaz de acionar um processo de decompo- A proposta de trabalho com o Grupo de Sentimentos
sição, produzir novos acontecimentos e romper com o já aparece no campo da Saúde Mental há muitas décadas.
que se encontra impedido de criar, por meio de tensio- Entretanto, em grande parte, apresenta uma conotação vol-
namentos, movimentos e novos agenciamentos. A clí- tada para a individualização do sintoma, o que é recorrente
nica de grupos tem caráter processual. Esse processo de em modelos psiquiátrico-psicológicos voltados para aquilo
mudança não se restringe a uma tomada de consciência, que nós, enquanto coordenadores/facilitadores, questio-
pois essa, muitas vezes, é capturada por sentimentos de návamos. A nossa idéia era intervir tanto no grupo como
culpa e valores morais. Para funcionar como provocador no Caps, problematizando alguns modos de subjetivação
de inquietações, esse tipo de cuidado precisa provocar acerca do tratamento de dependência química.
inquietações, suscitar perguntas e trazer respostas novas Sentávamos em círculo a fim de visualizarmos uns
(Brasil, 1995). Essa experiência pode tirar o olhar do aos outros, em encontros semanais com duração de uma
sujeito de si, de seu lugar. Naffaf Neto (1994) afirma que hora. Entramos em acordo a respeito de as faltas serem
as relações em um grupo terapêutico podem estabelecer comunicadas. A ausência de algum membro, quando
tanto identificações ligadas às representações, ou “formas não notificada anteriormente, geralmente fazia os ou-
extensivas, circunstanciais, históricas, que transpassam tros pensarem que o colega havia tido uma recaída: “O
todos e os fazem sentir no mesmo barco” (p.104), como fulano não está vindo faz tempo. Será que ele recaiu?”.
singularizações. Em relação à abstinência, o único critério colocado
Passos (2005) utiliza-se de Guatarri (1981) para fa- pelo grupo era de que não se deveria comparecer aos
lar das diferenças entre grupo-sujeitado e grupo-sujeito. encontros sob efeito de álcool ou outras drogas. Porém,
O primeiro é o grupo dos estereótipos, da hierarquia, da em duas ocasiões, um paciente compareceu alcoolizado
autoconservação, da exclusão, da unificação, da totaliza- e os demais participantes disseram que aquilo era “uma
ção e verticalização e que estabelece formas específicas falta de respeito com a gente que está levando a sério” e
de ser e de viver. O segundo abre-se para os processos enfatizaram que nós, os coordenadores, deveríamos bar-
criativos de outrem e para a alteridade porque precisa rar a participação dos usuários naqueles dias. Embora os
do diferente; é suporte para diversos modos de expressão pacientes fizessem uma crítica dizendo que “a sociedade
emergentes e diferentes enunciados. só aceita quem não bebe”, eles mesmos esperavam que
Frente a uma situação de conflito trazida por al- cada integrante mantivesse a abstinência. O simples fato
gum dos participantes, perguntávamos com freqüência de eles relacionarem a ausência à uma recaída reforça
para os demais: “Alguém já passou por uma vivência essa idéia. Essa visão da abstinência e da recaída está de
parecida?”. Buscávamos, como aponta Ziegelmann acordo com as idéias de Moraes (2008), que, em um
(2005), outros modelos de saúde que não reduzissem estudo realizado em um Caps ad, concluiu que, tanto
os sujeitos a categorias diagnósticas, mas tomassem as para os usuários como para os profissionais, a abstinên-
formas de viver e os processos de composição de si como cia é o principal objetivo do tratamento e a recaída é
construções coletivas. entendida como um mau comportamento:

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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma 115

Talvez a abstinência seja a expressão máxima de que de seus sintomas repetitivamente na tentativa de se sen-
alguém se encontra em condições de ajustamento e tirem aliviadas, por outro, reproduzem certas práticas
purificação, necessários para serem aceitos socialmente.
hegemônicas tradicionais que direcionam seu olhar à
Mesmo assim, parece que o caráter de vigilância sobre
essas pessoas se manterá permanente [...] uma vez doença e não ao sujeito e sua complexidade.
alcoolista, sempre uma pessoa diferente, em que não O uso abusivo de substâncias psicoativas juntamente
se pode confiar por estar sujeita permanentemente a com a sociedade e seus valores morais que determinam
recaídas e crises. (Moraes, 2008, p.128).
o que é certo e errado, o que é bom ou ruim inibem a
produção subjetiva do sujeito, bem como o surgimento
No início, os participantes se restringiam aos
de outras formas de ser, estar e sentir. A pessoa passa a se
sintomas: “É tudo por causa da maldita da cachaça”.
subjetivar principalmente através da droga: “Meu nome é
Desconheciam que o grupo “pelo potencial criativo
fulano e o meu problema é a bebida”. Se por um lado a
que insere a partir das transversalizações de idéias, sen-
tomada de consciência faz com que o sujeito reconheça a
timento e experiências do outro” (Ziegelmann, 2003, p.
dependência química como um problema, ela também o
9), oferece outras subjetivações e territórios existenciais
captura. Nesse caso, a produção subjetiva é marcada pelo
capazes de ressignificar vidas.
estigma, preconceito, culpa, tristeza e alienação: “Lá em casa
Aos poucos, o grupo foi trazendo outras inquieta-
eu não posso opinar porque eu sou o bêbado”. Apresenta-
ções: “Eu queria que vocês me ajudassem com o meu
vam-se ‘escravos(as)’ do álcool e das drogas, enxergando a
casamento. Eu tenho vontade de sair de casa, mas fico
dependência química como uma marca de sua identidade
com pena das crianças”. Percebíamos que essas pessoas
e a substância, como uma marca de si e um meio de se
tinham uma necessidade de falar sobre diferentes aspec-
relacionar socialmente: “Eu sou o Fulano, eu bebo”.
tos de suas vidas e não apenas aos sintomas relacionados Benevides (1994) afirma que devemos buscar a
à dependência química e buscavam outras respostas desnaturalização:
através de uma experiência coletiva para desconstruir
aquilo que há anos se repete: “Eu lembro do primeiro [...] tentar ver historicamente como se produzem de-
dia em que a gente conversou. Todo mundo só falava terminados efeitos de verdade nos discursos e práticas,
efeitos estes que não são, em si, nem verdadeiros, nem
na droga, como se aquilo fosse a gente”. falsos. (p. 24).
Aos poucos, o grupo passou a desnaturalizar seu
território existencial: Ao questionarmos o modo como cada participante
se apresentava, tentávamos também provocar o surgi-
No início achei que aqui só me perguntariam se eu
tinha bebido ou não. Vi que nesse grupo a gente pode mento de outros territórios, desejos e modos de vida.
falar do que quiser e se não quiser falar nada pode
ficar quieto também, só escutando o outro. A auto-identificação dos sujeitos como ‘dependentes’
parece estar em consonância com um imaginário que
a própria sociedade criou, através dos dispositivos de
De um modo em geral, as pessoas procuram os tratamento que reforçam sua postura de impotência
serviços público de saúde acreditando que devem mani- diante do controle do uso de drogas [...] como se a
festar somente a queixa de seus sintomas, que não podem partir do momento em que esses sujeitos assumissem
a posição de impotência perante a droga, dizendo ‘eu
falar de si, de suas vidas. O tempo de atendimento é sou adicto’, isso tornasse sua condição inquestionável
curto. No entanto, se por um lado essas pessoas falam e natural. (Santos, 2007, p. 195).

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116 PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

De acordo com Brasil (1995), a troca de experiên- Luz (2001) assinala que as relações de solidariedade
cias com o outro propicia a criação de diversos sentidos, renovam a sociabilidade e podem restaurar o tecido
o questionamento de estruturas duras, e a desnatura- social, formando
lização de modos estereotipados de viver, oferecendo
mudanças objetivas e subjetivas. O entrecruzamento de pequenos e múltiplos pontos de resistência ao indivi-
dualismo dominante, colocando a amizade e a coo-
idéias e a coletivização de ações, afetos e pensamentos,
peração no lugar do valor dominante da competição.
algumas vezes, promovem o rompimento das estereo- (p. 41).
tipias paralisantes que dificultam o viver: “Cada um de
vocês é uma força que me ajuda. É um reforço que eu O restabelecimento da confiança no outro faz com
levo comigo”. O confronto com as diferenças facilita que o isolamento seja substituído pela convivência, gerando
o rompimento com as habituais dicotomias existentes otimismo e esperança nos sujeitos. Por outro lado, Naffaf
entre o pensar, o sentir e o fazer, agindo criativamente Neto (1994) escreve que o termo amizade não condiz com
sobre os conflitos e inovando as relações através da a realidade de um grupo terapêutico: “mesmo as grandes
criação de novos vínculos: “Às vezes eu estou em casa amizades sempre preservam um certo pudor, um certo reca-
e me lembro do que um de vocês falou e aí paro de to” (p. 103). Os grupos são mais como laboratórios da vida
pensar bobagens”. social, pois reúnem pessoas que nunca se encontrariam ou
No grupo, os participantes compartilhavam a criariam vínculos um com o outro, mas que nesses espaços
experiência da solidão e do empobrecimento dos vín- aprendem a compartilhar experiências fundamentais.
culos: “Os amigos de bar não são amigos de verdade”. Proposto como dispositivo analítico, o grupo serviu
Falavam de intenso sofrimento psíquico proveniente de para descristalizar posições e papéis a partir dos quais esses
sentimentos de desvalia, solidão, tristeza e exclusão. sujeitos construíram suas identidades: “Antes era tudo por
causa da maldita cachaça”. Quando pensamos os grupos em
Eu queria falar para vocês que eu ando me sentindo
geral com dispositivos, sem separá-los por objetivos clínicos
muito sozinho. A família não tem me procurado mais,
procuram muito pouco. Lá na comunidade o pessoal ou ligados à re-socialização, poderemos habitar em outro
é gente boa, mas não é a mesma coisa. regime de enunciação, no qual clínica e política formariam
um espaço de mútuo engendramento. Transversalizamos,
Ao oferecer um espaço de escuta e de reflexão, o grupo com isso, as questões ditas sociais e políticas bem como as
permitiu que os sujeitos vivenciassem outros sentimentos, chamadas subjetivas ou “íntimas” (Benevides, 2001):
significados, pensamentos, valores, fazeres: “Eu acho que a
gente mesmo acaba fugindo dos amigos de verdade, da fa- Depois que eu comecei a participar desse grupo eu
vi que eu tenho que ir atrás das minhas coisas. Não
mília. Hoje eu sei dar valor para a minha velha”. A proposta
posso ficar só me queixando, querendo que os outros
de clínica grupal dá oportunidade para que se formarem mudem. O tempo está passando e eu vou fazer o que
laços e solidariedade, aliviando sentimentos de vazio, da minha vida?
solidão e desesperança: “Aqui a gente tem cumplicidade e
confiança”. Por terem vivido anos ou décadas escondidos O espaço pode ser visto como um “aprendizado.
atrás de um sintoma, as relações consigo e com o outro A gente precisa de novas idéias, novas experiências para
encontram-se desgastadas, desacreditadas. se reciclar”. Isso ocorre na medida em que trabalhamos

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sob a perspectiva da integração social e da produção de Outro ponto importante foi a percepção de que os
autonomia, incentivando os próprios sujeitos a buscarem resultados alcançados vão além do espaço grupal: “O que
outros modos de existência: “É como eu já disse para a gente vive aqui, leva para lá fora. Quando eu estou
vocês uma vez: não adianta mudar os caminhos, mas em casa eu penso naquilo que a gente conversou aqui”.
sim o jeito de caminhar”. A vivência pode servir para “descristalizações de lugares
Em um dos encontros, um participante do grupo e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói
comunicou seu afastamento devido a uma cirurgia de em suas histórias” (Benevides, 1995, p. 152): “Antes eu
redução de estômago que sofreria: pensava que o meu problema era o maior de todos, só
pensava em mim”.
Eu queria dizer para vocês que eu terei que me afastar Ver o grupo como disparador de novos modos de
do grupo. Eu fui chamado para fazer uma cirurgia de subjetivação, é considerar que as diferenças, e não as
redução de estômago e agora é isso que está me faltan-
igualdades, possibilitam novas formas de existir e signi-
do. Eu quero poder caminhar, andar de ônibus, hoje
eu não caibo nas poltronas do ônibus. Eu quero poder ficar a vida. Em grupo são desenvolvidas as habilidades
comprar roupas, sair, dançar, voltar a trabalhar. Eu interpessoais, o desempenho de papéis designados pela
tenho só 35 anos e quero mais é viver. cultura, a participação nos processos coletivos e as so-
luções para os problemas.
Escutar o desejo desse participante e percebê-lo
“Esse grupo é forte porque aqui a gente fala a
como responsável por sua própria vida é cuidar de forma
verdade. Eu venho aqui porque me faz bem”. Essa força
integral, é tomá-lo como sujeito capaz de ter autonomia
à qual o membro do grupo se refere mostra que poder
para fazer suas próprias escolhas. O rompimento com
falar do cotidiano e de seus diferentes atravessamentos
o paradigma tradicional desloca o objeto de cuidado
é saudável e produz autonomia. O cuidado para além
da doença para o sujeito em sua existência-sofrimento
do sintoma da dependência incentiva o sujeito a buscar
(Alves, Guljor, 2006). outras respostas, a dar novos sentidos aos seus desejos e
Através de trocas, os participantes transformam suas às suas relações libertando-se, assim, dos sintomas. E aí
questões em problemas e realizam novas ações, na tenta- que reside a sua força.
tiva de solucioná-los. A fala de cada um pode convidar Em nossos encontros, os participantes procuravam
o outro a novos entendimentos, ampliando os domínios outras maneiras de viver a vida. Ao invés de usar drogas
de significação: “Ao escutar as outras histórias, eu pude para ‘aliviar’ sentimentos, pensavam na companhia da
rever a minha própria história”. O grupo possibilita a família, dos amigos e, muitas vezes, na companhia de
experiência genuína da alteridade como valor orienta- si mesmo.
dor de vida. Estamos mergulhados em uma sociedade Na metade do ano, os participantes começavam
centrada no indivíduo, onde o outro serve como objeto a chegar um pouco antes do horário do grupo para
de usufruto de cada um. O contato com o coletivo pode conversar entre eles dentro do Caps, sem a presença dos
despertar novos posicionamentos frente a esse modo de ‘doutores’. Era uma conversa informal, ‘mais livre’, de
individualização dominante que perpassa as formas do ‘amigo’. Nos grupos, os participantes mencionavam que
sujeito se relacionar consigo e com os outros: “No início gostariam de se encontrar: “fora do Caps, a gente poderia
eu achava que os meus problemas eram maiores e mais marcar um churrasquinho”. Nesse momento, o grupo
importantes do que os dos outros”. passou a caminhar com mais autonomia ou, segundo

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118 PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

Maturana e Varela (1997), a partir de um andar auto- duziu pequenas rupturas nos modos de subjetivação
poiético. Ainda de acordo com esses autores, o grupo do coletivo em relação ao sofrimento, às relações e às
já funcionava como dispositivo para o desenvolvimento histórias individuais. O desenvolvimento desses atri-
de duas características básicas do viver: a potência de butos produziu nos sujeitos um aumento de algumas
criação de si e sua capacidade de autonomia, produzin- potências criativas e da autonomia, construindo novas
do o aumento progressivo das potências criativas e de composições de si.
autonomia na busca de novas composições de si.

PARA FINALIZAR

Este trabalho, escrito por vários outros além de R E F E R Ê N C I A S


mim, buscou contribuir com a criação de campos de
atuação que reivindiquem a singularidade, a multiplica-
ção de modos de subjetivação, o resgate da criatividade, Alvez, D.; Guljor, A. O cuidado em saúde mental.
In: Pinheiro, R.; Mattos, R. Cuidado: as fronteiras
tomando a clínica como desvio. Tivemos como objetivo
da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/Abrasco,
abrir reflexões acerca de cuidados em Saúde Mental, 2001. p. 221-240.
incentivando mais pesquisadores a criar problematiza-
ções e construir outros saberes. Não tenho a pretensão Benevides, R.D.B. Dispositivos em ação: o grupo.
de fechar a discussão e nem de afirmar que a clínica de In: Lancetti, A. (Org.). Saúde e loucura 6. São Paulo:
Hucitec, 1997.
grupos voltada para a produção de subjetividade seja
melhor ou pior do que outras modalidades de grupo ou ______. Grupo e produção. In: Lancetti, A. (Org.).
da individual, mas procurei mostrar que o modelo de Saúde e loucura 4. São Paulo: Hucitec, 1995.
atenção integral e o espaço grupal possibilitam que os
sujeitos não fiquem tão fragmentados em sua escuta. ______. Grupo: a afirmação de um simulacro. 1994.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Psicologia da PUC,
A ação terapêutica proposta foi a de cuidar da pessoa
São Paulo, 1994.
a partir da escuta de sua vida, com a intenção de produzir
outros modos de existência, potencializando, dessa froma, Benevides, R.D.B.; Josephson, S.C.; Catalán, L.E.G.;
a saúde, a autonomia e a liberdade, mesmo que isso se mos- Mascarenhas, W.F.; Santos, A.D.; Oliveira, F.P. A
trasse desafiante. Foi preciso pensar em uma clínica integral desinstitucionalização da loucura, os estabelecimentos
de cuidado e as práticas grupais. In: Jacó-Vilela, A.M.;
voltada para outras produções subjetivas; um cuidado que Cerezzo, A.C.; Rodrigues, H.B.C. (Org.). Clio-Psyché
considerasse a complexidade de vida dos sujeitos, tomando hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de
o sofrimento psíquico, no caso o consumo de álcool e dro- Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2001.
gas, não apenas como algo provocado pelo indivíduo, mas
Bernardes, A. Restos da existência: articulações entre o
como algo decorrente de uma produção social.
público e a psicologia. Entrelinhas. Revista do Conselho
No desenrolar dessa experiência, pude perceber Regional de Psicologia. Porto Alegre, ano 8, n. 38, p.
que o grupo funcionou como dispositivo quando pro- 3-12, mar./abr. 2007.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008


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Recebido: abr./2008
Aprovado: jul./2008

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 121

Panorama do tratamento dos usuários de drogas


no Rio de Janeiro
An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro

“É muito antes do ópio que minh’alma é enferma”


Fernando Pessoa

Magda Vaissman 1
Marise Ramôa 2
Artemis Soares Viot Serra 3

1
Mestre e doutora em Psiquiatria pelo RESUMO Este artigo reflete sobre a construção de uma rede de assistência
Instituto de Psiquiatria da Universidade
em álcool e outras drogas no Rio de Janeiro durante 1980 a 2004, mediante
Federal do Rio de Janeiro (IPUB/
UFRJ); coordenadora da Unidade de
movimento da Reforma Psiquiátrica e os primórdios da formulação de políticas
Problemas Relacionados ao Uso de públicas no campo. Utiliza-se de abordagem qualitativa, baseada na história
Álcool e outras Drogas (UNIPRAD) do de vida de atores sociais, e sua relação com a implantação de instituições e
Hospital Escola São Francisco de Assis
serviços ligados a este cuidado especializado. Apesar da implantação de um
(HESFA) da UFRJ; médica psiquiatra
desta unidade.
modelo de assistência baseado nos Centros de Atenção Psicossociais, neste período
mvais@terra.com.br permaneceram várias contradições e dicotomias, como se o modelo da Reforma
Psiquiátrica passasse ao largo das práticas efetivamente propugnadas.
2
Mestre e doutora em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde Mental; Dependência química;
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Reforma dos serviços de saúde.
supervisora do Centro de Atenção
Psicossocial para Álcool e outras Drogas
(CAPS ad) Mané Garrincha, do Rio de ABSTRACT This article deals with the reflexion, concerning the installation of
janeiro. a service for the assistance of alcoholics and drug-addicts in Rio de Janeiro, during
ramoalobato@uol.com.br
the period of 1999 to 2004, by means of the Psychiatric Reform movement which
3
Mestre em Serviço Social pela Escola
anticipated the public policy of treatments in the field. It covers a qualitative
de Serviço Social (ESS) da UFRJ; approach based on the history of the social actors and its relations with the
assistente social da UNIPRAD/HESFA/ introduction of services and instructions devoted to this specialized care. Despite
UFRJ.
the implantation of an assistance model based on the psychosocial scope centers,
artemisviot@yahoo.com.br
during the period it was verified a lot of contradictions and dichotomies, like
the Psychiatric Reform model would navigate far from the effectively supported
practices.

KEYWORDS: Assistance to Mental Health; Drug addiction; Health services


reform.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008


122 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

I N T R O D U ç ão O paralelo entre o campo da Saúde Mental e a


organização de serviços de drogas, teve o objetivo de
contribuições para conscientização da necessidade de
consolidação e desenvolvimento de políticas públicas
na área em nosso estado. Em 1980 surgiram os Centros
O estudo é sobre a construção de uma rede de aten- de Atenção Psicossocial (Caps), dispositivos usados
ção ao uso de drogas no estado do Rio de Janeiro. Nos para psicóticos e neuróticos graves, como resposta à
últimos vinte anos foi observada uma discrepância entre ineficácia do sistema ambulatorial em reduzir o núme-
as propostas e implementações de serviços pautados no ro de internações em hospitais psiquiátricos. Mas os
movimento da Reforma Psiquiátrica1, no que se refere dependentes de drogas que se encontravam internados
à assistência à loucura e dependência de drogas. em hospitais psiquiátricos ou que já estavam sendo
O objetivo foi desenvolver um histórico dessa as- atendidos em ambulatórios, com várias reinternações,
sistência e da situação dos dispositivos de tratamento. não foram beneficiados por tal política, a não ser no
Utilizou-se uma abordagem qualitativa com entrevistas caso de comorbidade.
com profissionais representativos do campo e análise O termo ‘dependência química’ apareceu freqüente-
de cadastros de serviços. Neste período, prevaleceu a mente nas falas dos entrevistados referentes a serviços neste
iniciativa privada na oferta de serviços e no treinamen- período estudado. Ressaltando a noção de doença, valori-
to de recursos humanos, devido à ausência de política zando o produto em si e confundindo as várias formas de
pública. Mas, a partir de 2002, o Ministério da Saúde relação do usuário com as drogas, como o uso, abuso e a
estabelece política para o setor2. dependência. A ‘dependência química’ apresenta-se como
Nos primórdios da estruturação deste campo, os objeto dos campos dos saberes médico e jurídico, numa
serviços ambulatoriais ou hospitalares eram privados e ênfase dada à droga, o que pode levar a ações repressivas,
inspirados em experiências pessoais3. Tinham a hipótese com caráter de ‘guerra às drogas’ e à manutenção do
de que a vivência pessoal construiu uma prática bastante desaparecimento do sujeito. No campo do saber médico
solidária4, mas, pouco teorizada, com influências norte- o dependente de outras drogas é visto como doente que
americanas e metodologia pragmática. Nesse período, requer cuidados especializados e no campo jurídico como
existia um profundo debate entre profissionais da Saúde doente e criminoso5. Deve-se pensar em uma assistência ao
Mental, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, referente usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotên-
às noções de doença, de periculosidade e da internação cia e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que
como exclusão social entre outras. o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.

1
No contexto de Reforma, a Psiquiatria difere da Saúde Mental. De acordo com Saraceno (1999, p. 144-145), a primeira se refere ao trato da doença mental
e a segunda coloca no centro da intervenção a dinâmica da saúde-doença, em que, além de tratar o trabalho de prevenção e promoção de saúde também são
imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas.
2
Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, 2003. Portaria 816/GM (30/04/2002) e em maio dispõe sobre as
normas para funcionamento e cadastramento de Caps ad.
3
“na criação de serviços e unidades de tratamento de dependentes químicos sempre estiveram presentes vários atores que têm em comum uma história escrita de muito
suor, sofrimento e sangue”. (Freire, E., comunicação oral).
4
Porém, segundo Richard Rorty (1993), as pessoas são solidárias quando aceitam as diferenças, o que não ocorreria, portanto, num grupo de iguais.
5
A legislação a respeito (1976 a 2001) sempre foi muito confusa, pois um usuário e traficante eram criminalizados e penalizados, pois sempre houve graves
dificuldades de se avaliar essa distinção, visto que muitos usuários, em função da situação de violência nas ‘bocas de drogas’ optam por comprarem grandes
quantidades de substância para uso, mas seriam enquadrados como traficantes, pois o critério usado pela Justiça é o de quantidade.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008


Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro 123

Mas o que houve historicamente para que o campo Paralelamente, realizou-se um levantamento das
tenha se organizado isoladamente da Saúde Mental instituições disponíveis no estado do Rio de Janeiro
e das propostas de políticas públicas, até o final dos até agosto de 2004, a partir de dados organizados pelo
anos 1990? Conselho Estadual Antidrogas, e do cadastro orga-
Um setor da medicina tentou preencher a falta de nizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade
políticas específicas na área, com iniciativas privadas, Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ) em parceria
marcadas pelo isolamento, entendendo a internação com o Nepad/UERJ.
como medida terapêutica ou como o tratamento.
Pensou-se na organização de serviços para usuários
de drogas no campo da Saúde Mental e a possibilidade
de articulação de diversos saberes para a construção de ALGUNS ASPECTOS CONJUNTURAIS
uma prática com os usuários, que se baseie em uma
assistência de âmbito territorial6, na prática possível dos Atualmente vive-se uma pandemia de drogas com
Caps ad e na constituição de uma rede. a explosão do consumo, da criminalidade e da violên-
cia a elas relacionadas a partir da década de 1980. Se
anteriormente, nos anos 1970, o uso de drogas estava
aliado a um enfrentamento político, jovens protestavam
METODOLOGIA contra a política militarista norte-americana no bojo da
guerra do Vietnã e manifestavam seu apoio a Martin
Utilizamos a abordagem de pesquisa social em Luther King pela paz, hoje a relação do sujeito com a
saúde como apreensão da realidade e a estratégia de droga é outra, sendo a droga representada por um ob-
‘história de vida’ (Minayo, 1996, p. 126-129) por ser jeto de consumo, em uma busca desenfreada por prazer
apropriada para ser traçada uma história dos primeiros individualista (Ramoa, 1999).
serviços para dependentes de drogas no Rio de Janeiro O resultado da política de repressão ao tráfico de
e conseqüentemente, sobre impasses e possibilidades de cocaína dos países sul-americanos, estabelecida pelos
construção de uma rede para atendimento de usuários Estados Unidos e Europa, o Brasil torna-se importante
de drogas. rota e parte considerável da produção passa a ser destina-
Foram realizadas seis entrevistas com atores que da ao consumo interno, com conseqüente agravamento
identificamos a partir de nossa vivência no campo da da violência urbana.
assistência, como importantes, os quais atuaram no A partir da década de 1990, o uso de drogas, sua
período inicial de 1980 a 1990. produção e comercialização passaram a representar um
Posteriormente, procedemos à análise qualitativa problema mundial ao lado da Aids, fome, violência e
das histórias de vida contidas nestes depoimentos e foi corrupção. Torna-se conseqüentemente motivo de posi-
desenvolvida uma análise do discurso, o que possibilitou cionamento da Organização das Nações Unidas (ONU)
o levantamento de algumas questões. na 20ª Sessão Extraordinária da Assembléia Geral das

6
Território entendido não apenas como região, mas no sentido de um pulsar das relações entre horizontalidades e verticalidades. As horizontalidades serão dos
domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes
uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (Santos, M.; Silveira, M., 2002.)

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124 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Nações Unidas em 12 de dezembro de 1996, quando existência em sofrimento (Procópio: 1999, p. 70-94;  

foram propostas medidas de cooperação internacional Rotteli; Leonardis; Mauri,1990, p. 17-59). A Reforma
no enfrentamento do problema das drogas. Psiquiátrica traz a preocupação não só com a doença,
Houve também neste colóquio o reconhecimento mas com o sujeito que sofre e foi influenciado pelo mo-
do princípio de ‘redução de demanda’, essencial no vimento de Reforma Sanitária na sua constituição7.
enfrentamento do problema, com o compromisso de
introduzir programas e estratégias nacionais pretenden-
do-se obter resultados significativos e mensuráveis até
2008 (Brasil/Senad, 2001). Assim, em 2001 o Brasil OS SERVIÇOS PARA USUÁRIOS DE DROGAS E
adota em âmbito nacional uma Política Antidrogas que SUA PERIODIZAÇÃO
representa um avanço, ao aderir as diretrizes da ‘redução
da demanda’, ao invés de priorizar somente ações de Há pouco tempo no setor público só havia a re-
cunho repressivo e de segurança e um retrocesso, no clusão nos hospitais psiquiátricos como proposta de
que se refere ao que já vinha acontecendo em termos de ‘tratamento’ para usuários de álcool e outras drogas. Os
política de redução de danos. Em 1998, a Casa Militar serviços psiquiátricos encontravam-se8, em sua grande
da Presidência da República assume a coordenação da maioria, altamente despreparados tecnicamente para
Secretaria Nacional Antidrogas (Ramos, 1998). enfrentar esta questão. Não havia centros de atenção
A proposta de redução da demanda corre o risco de psicossocial especializados, ambulatórios, hospitais-dia,
ser atrelada à idéia de criminalizar o usuário e/ou depen- leitos hospitalares, etc. O primeiro centro de tratamento
dente de drogas e responsabilizar tal parcela da população especializado para usuários de drogas foi o Centro de
pela existência do tráfico de drogas, ao invés de questionar recuperação de dependentes químicos – Credeq9, con-
a necessidade de descriminalização da droga. veniado com o Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu
Porém, a institucionalização e a globalização do na década de 1980 e havia dificuldade para ter acesso ao
narcotráfico na contemporaneidade devem ser levadas mesmo, cujo período de internação era de cem dias, o
em consideração como questões que apontam para a que implicava em baixa rotatividade do leito hospitalar.
necessidade de uma assistência ao usuário de drogas, que Em meados dos anos 1980, a conjuntura epidemioló-
seja pautada em uma prática territorial, visto que deve gica do uso abusivo de drogas era evidente e com isso
pensar em criar condições de enfrentamento do tráfico surgiu uma demanda de atenção médica e psicológica
de drogas a partir de alternativas de lazer, de trabalho mais especializada, visto que o atendimento em hospi-
etc., para que o usuário de drogas e que muitas vezes tais psiquiátricos, desde seu surgimento, trouxe como
se introduz no tráfico para obter a droga, adquira de herança dos hospitais gerais, a visão de filantropia e de
fato e de direito seu lugar de cidadão na sociedade, não atendimento leigo-religioso.
sendo visto como doente ou criminoso, mas como uma

7
Amarante (1995, p. 93-99) apud Silveira da Silva (2000) destaca três momentos da estruturação da Reforma Psiquiátrica Brasileira: 1-Trajetória Alternativa (de
meados de 1970, no movimento contra a ditadura militar); 2-Trajetória Sanitarista (no início dos anos 1980, profissionais reformistas da saúde incorporam-se ao
aparelho de Estado); 3-Trajetória da desinstitucionalização (desconstrução/invenção), que surge na I Conferência Nacional de Saúde Mental, abrindo o caminho
para a mudança do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental para o da Luta Antimanicomial.
8
Ainda hoje a situação não é muito diferente.
9
Credeq – instituição da Assistência Social evangélica.

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro 125

Logo, no Rio de Janeiro, até a década de 1980, ou fundamental e médio no estado. No entanto, em face de
se tinha uma alta quantia para custear um tratamento sua perspectiva filosófica baseada no modelo francês de
especializado ou ia-se para o hospício. Naquele momen- toxicomania na atuação clínica, o Nepad passou a ficar
to era predominante a filosofia de tratamento baseada na solitário em relação a outros núcleos, pois sua área de
exclusão do usuário do contexto social, laboral e familiar. atuação restringia-se às drogas ilícitas, sendo os usuários
A internação em clínica especializada constituía-se como de álcool encaminhados a outros serviços.
a única alternativa de tratamento. Se por um lado o setor público não apresentava
Surgem, então, os primeiros serviços de atenção alternativas ou condições de acesso ao dependente de
a dependentes de drogas na cidade do Rio de Janeiro, drogas, por outro a assistência psiquiátrica mostrava-se
cuja historiografia encontra-se sintetizada no Quadro inadequada e despreparada. Diante deste panorama, o
1 (em Anexo 1)10. setor privado vislumbra a possibilidade de um grande
Nos depoimentos levantados e já mencionados negócio na área da saúde, sem concorrentes. Todavia,
anteriormente é bastante relevante que a história pessoal assume um papel importante e propõe como estratégia
destes precursores com a droga, funcione como um me- de tratamento o modelo chamado Modelo Minne-
canismo propulsor de criação de serviços, podendo levar sota, inspirado nos passos e tradições dos Alcoólicos
a uma posição de maior solidariedade ou de maior difi- Anônimos e que fomentou o surgimento de toda uma
culdade de suporte teórico para as referidas práticas. geração de profissionais e instituições seguidoras de seus
O motivo em se envolver no cuidado aos usuários ensinamentos, a partir de um centro de tratamento para
de álcool e outras drogas deve-se à existência de algum dependentes químicos chamado Vila Serena.
membro com este problema na própria família ou por Esta instituição teve um papel fundamental de
vivência pessoal com esta problemática. A única ex- formação de uma ideologia de tratamento aos usuários
ceção até 2001 é o Núcleo de Estudos e Pesquisas em de álcool e outras drogas e de articulação de uma política
Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado privatista de atenção, não somente no Rio de Janeiro
do Rio de Janeiro (Nepad/UERJ), pois a equipe de como em todo o Brasil. Vila Serena, cujo berço foi no
profissionais que criou este núcleo buscou na psicanálise Estado de São Paulo, se tornou após alguns anos uma
subsídios para sua metodologia de trabalho em atenção ‘franchising’, a primeira no Brasil em termos de trata-
às toxicomanias seguindo o modelo francês em sua fun- mento de ‘dependentes químicos’, e exportou seu mode-
damentação prática e teórica, inclusive sob supervisão lo de atendimento a várias capitais brasileiras e cidades
do psicanalista francês Claude Olievenstein do Centro do interior; sendo inicialmente financiada por grandes
Marmotan de Paris. empresas multinacionais como McDonald’s e a Johnson
Esta instituição foi a primeira de caráter univer- & Johnson para a internação de seus executivos.
sitário no estado, sendo responsável pela formação de Fundada em l983 pelo ex-padre John Burns, o qual
inúmeros pesquisadores deste campo de saber. Desen- trouxe ao Brasil o modelo de tratamento de abordagem
volveu os primeiros levantamentos epidemiológicos norte-americana do confronto com a realidade do adicto
sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino e de práticas psicopedagógicas através de dinâmicas e

10
Cabe ressaltar que na retrospectiva não foi feita uma separação clara entre os setores públicos e privados, pois se sabe que são complementares dentro do SUS,
cabe ao poder público: a regulamentação, normalização, auditoria e controle do sistema como já vigora para o funcionamento de comunidades terapêuticas,
segundo o modelo psicossocial (Resolução - RDC /Anvisa, nº 101 de 30 de maio de 2001).

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126 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Quadro 1 - Principais serviços na área de álcool e outras drogas de 1971 a 2005 no Rio de Janeiro.
Instituição Modelo Tipo Tipo de Atenção
1971- Comunidade S8 1971 Comunidade Filantrópica Internação e
1980 Terapêutica Pós-tratamento
1980- Hospital Pedro Ernesto 1980 Psicossocial Minessotta Universitário Privada Ambulatório
1985 Vila Serena 1983 Psicossocial Pública Internação
Hospital Pinel UTA 1985 Psicossocial Pública (SES) Internação
Hospital Estadual Pedro II * (Santa Cruz) Internação
1985 - Credeq 1985* Minessotta Filant. (SUS) Internação
1990 Nepad (UERJ) 1985 Psicanalista Universitária Ambulatório
OPJ 1987 Day-Top Filantrópica Internação
Clínica Contexto 1989 Minessotta Privada Corporativa Ambulatório
Hospital da PM 1988 Minessotta Universitária Internação
Fundação Osvaldo Cruz 1988 Psicossocial Ambulatório
1990- Clínica Jorge Jaber 1989 Minessota Privada Internação
1995 Clínica Aldeia 1991 Minessota Privada Internação
Casa do Caminho Minessota Filantrópica Internação
1995- Cepral/UFRJ 1995 Psicossocial Universidade Ambulatório
2000 Projad/UFRJ 1996 Psicossocial Universidade Ambulatório
Unidade Certa* 1996 (Casa de Saúde Dr. Eiras) Minessota Privada (SUS) Internação
Centro Vida 1996 Minessota Filantrópico Centro-dia
Projeto Bem-Te-Vi* 1997-1999 Minessota Filantrópico Ambulatório
Santa Casa da Misericórdia (RJ) 1998 Psicossocial Universidade Ambulatório
NAAD 1998 Psicossocial Público (SMS) Ambulatório
Integrarte Petrópolis 1998 Psicossocial Filantrópico Centro-dia
Celeiro da Saúde 1999 Minessota Filantrópico Centro-dia
Caps ad Estadual Centra-Rio 1999 Psicossocial Público Hospital-dia
Rede FIA-1998
1. Criaa UFF (Niterói) 1998 Psicossocial Universitário Centro-dia
2. Resgate (Campos) 1998 Psicossocial ONG Ambulatório
3. Ceata (Duque de Caxias) 1998 Psicossocial ONG Ambulatório
4. AADEQ* (Jacarepaguá)* 2000-2005 Minessota ONG Ambulatório
5. CASA DO LINS* Fundação Simonton IBMR 1999-2005 Psicossocial ONG Ambulatório
6. Reencontro Casa da Vila (S. João do Meriti) 1998 Minessota ONG Ambulatório
7. Gaia (Volta Redonda) Minessota ONG Ambulatório
8. Amai (Campos) Psicossocial ONG Ambulatório
9. Casa de Guaratiba* (Rio de Janeiro) 1998-2000 Minessota ONG Internação
Cead/Deprid (SEAS)1998 Minesota Público Ambulatório
Clínica Michelle de Morais 2000 Minessota ONG (SEAS) Internação
Projeto Nossa Casa (Degase) 2000 Psicossocial Público Ambulatório
Cepuad/UFRJ 2001-2005* Psicossocial Universidade Ambulatório
2001 - Cead Ambulatório Intensivo 2001 Minessota Deprid-SEJ Ambulatório
2005 RecuperandoVidas (Degase) 2001 Psicossocial Público Internação
REVIVA (Barra Mansa) 2001 Psicossocial ONG Internação
Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Psicossocial ONG Internação
Uniprad/UFRJ 2005 Psicossocial Universidade Ambulatório
Caps ad Raul Seixas 2003 Psicossocial Público (SMS) Hospital-dia
Transformando Viver (FIA) 2005 Minessota ONG Centro-dia
Semente do Amanhã (FIA) 2003 Minessota ONG Internação
Clínica Nise da Silveira 2003 Minessota Público (SEAS) Internação
Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001 Minessota Público (SEAS) Internação
Cepuad/UFRJ 2001-2005* Psicossocial Universidade Ambulatório
2001 - Cead Ambulatório Intensivo 2001 Minessota Deprid-SEJ Ambulatório
2005 RecuperandoVidas (Degase) 2001 Psicossocial Público Internação
REVIVA (Barra Mansa) 2001 Psicossocial ONG Internação
Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Psicossocial ONG Internação
Uniprad/UFRJ 2005 Psicossocial Universidade Ambulatório
Caps ad Raul Seixas 2003 Psicossocial Público (SMS)
Transformando Viver (FIA) 2005 Minessota ONG Centro-dia
Semente do Amanhã (FIA) 2003 Minessota ONG Internação
Clínica Nise da Silveira 2003 Minessota Público (SEAS) Internação
Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001 Minessota Público (SEAS) Internação
*Não realizam mais esse tipo de assistência. O Hospital Estadual Pedro II, após participação em curso de atualização na área de álcool e outras drogas, para a zona
oeste, promovido em 2007 pela coordenação de saúde mental do município do Rio de Janeiro, tenta reativar atendimento a dependentes de drogas.
Fonte: Catálogo de Serviços para Dependência Química, 4ª edição, Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen), Prefeitura do Rio de Janeiro; Catálogo de
Serviços Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Nepad/UERJ/UFRJ)

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro 127

palestras baseadas na filosofia dos grupos de mútua- ajuda, seriam justamente os que estariam aptos a tratar
ajuda. Outra forma de atuação deste grupo preconizava dos dependentes – surgem, então, os conselheiros em
a intervenção específica para ‘dependência química’ nas dependência química.
empresas, mais conhecidos como Programas de Assis- Vila Serena trouxe a prática do aconselhamento14,
tência ao Empregado (PAE), através de treinamento ofereceu cursos e palestras a leigos e profissionais inte-
de assistentes sociais e supervisores, que ao identificar ressados em temas de dependência de drogas. Baseada
casos de ‘usuários pesados’11, deveriam encaminhá-los na metodologia da Fundação Halzenden/Minnesota, a
para tratamento interno em Vila Serena. Após a alta da qual valorizava a ponte com os Alcoólicos Anônimos,
internação de 28 dias, em média, os trabalhadores se- o grupo dirigente de Vila Serena sai fortalecido por
riam acompanhados pelas assistentes sociais no setor de membros dos movimentos de mútua-ajuda. Nesse pe-
trabalho nas empresas, sendo que estes grupos nos locais ríodo, com a valorização profissional da metodologia dos
de trabalho foram chamados de pós-tratamento . 12
12 passos, há uma estimulação também de criação de
Em Vila Serena também era ofertado um grupo de Grupos de Narcóticos Anônimos e de familiares (Na-
reflexão e acompanhamento para ex-residentes e que ranon), já que se iniciava o grande ‘boom’ de consumo

fazia parte do chamado pós-tratamento (Burns, 1995, das drogas ilícitas.


p. 25-27). Isto implica na idéia de que ‘tratamento’ se Neste cenário de ambientes de tratamento percebe-
faz sob regime de internação e que o seguimento não se o surgimento de um novo ator na figura do ex-depen-
é tratamento e sim pós-tratamento, ou seja, posterior dente, o qual se prontifica a contar seu drama pessoal a
à exclusão social, em que pese ficar marcada como outro, ainda em fase de recuperação, possibilitando, a
instrumento terapêutico à semelhança do tratamento princípio, que o internado ou residente realize a iden-
moral dado aos loucos de toda sorte dos primórdios da tificação a partir de suas vivências pessoais. Estes conse-
psiquiatria pineliana. lheiros passam a atuar junto da equipe de saúde como
Naquela época, havia uma carência de profissionais agentes de motivação e em certas unidades até mesmo
aptos para o atendimento aos dependentes. Médicos e como figura central em programas de recuperação sob
outros profissionais estavam distantes desta realidade; regime de internação, conforme ainda hoje é adotado
não havia elo de identificação, além da sabida falta na grande maioria das comunidades terapêuticas15 que
total de preparo de profissionais da área de saúde e da oferecem tratamento ‘leigo’ e sem a necessidade da pre-
Saúde Mental. Surge então como proposta de atenção sença de pelo menos um médico clínico/psiquiatra na
aos usuários: utilizar-se daqueles que vivenciaram o equipe, conforme a Portaria Anvisa 101/2001.
processo de uso de drogas e que saíram do ‘pesadelo Esta modalidade de atuação, ‘aconselhamento’,
das drogas’13, através da ajuda de grupos de mútua- até então não existia no escopo de atuação da equipe

11
Termo utilizado por entrevistado.
12
Esta abordagem compreende a questão das drogas como sendo uma doença de caráter exclusivamente orgânico e moral, sendo necessário o reconhecimento
e a reparação do mal cometido a outros pelo uso da droga. O cunho religioso evangélico esteve presente desde a fundação dos Alcoólicos Anônimos (Ramoa,
1999).
13
Termo utilizado por entrevistado.
14
Ocupação muito consagrada nos Estados Unidos e desconhecida até então no Brasil.
15
No estado do Rio de Janeiro, a experiência das comunidades terapêuticas teve pouco êxito. No entanto, a Comunidade S8 em Niterói, criada em 1971, bastou
para formar posteriormente uma forte tradição evangélica de atenção a dependentes. Esta comunidade leiga e de caráter filantrópico foi a pioneira e se mantém
hoje como a mais antiga instituição de tratamento de dependentes .

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128 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

de Saúde Mental. Foi e continua sendo mal interpre- Enfim, em todos os centros (com orientações meto-
tada e sem maiores aportes técnicos e teóricos ou de dológicas diversas) abandonava-se uma postura clínica
representação profissional. Verificou-se, assim, que o baseada na forma hierárquica de cuidado e passava-se
aperfeiçoamento e o treinamento foram desde o início a uma atuação mais horizontal contando-se com uma
uma grande preocupação do pessoal que atuava nesta equipe multidisciplinar.
área. No caso de aconselhamento, contudo, houve um Até 1995, o modelo predominante no Rio de
verdadeiro ‘boom’. Todos se arvoraram de cuidadores de Janeiro foi centrado no hospital e totalmente desar-
dependentes de drogas e houve uma vasta proliferação ticulado com o sistema ambulatorial. Em termos de
de pequenos treinamentos, de modo geral capitaneados seguimento, existia o que se chama ainda hoje de pós-
pelas clínicas privadas para atender a qualquer interessa- tratamento, geralmente um atendimento semanal em
do, sem quaisquer requisitos acadêmicos prévios. grupo, pelo prazo de 12 meses, o mesmo ocorria nos
No período de 1980 a 1989, o papel da equipe de programas financiados pelas empresas. Estas encami-
Saúde Mental e do profissional de saúde ainda tinha nhavam seus empregados às clínicas particulares, que
pouca relevância. Esta situação perdurou até 1990, realizavam um acompanhamento, geralmente dentro
quando se se constataram inúmeros casos de comorbi- da empresa, em grupos de empregados que passaram
dade psiquiátrica . 16
por internação em clínica particular. O próprio ter-
Exceto a necessidade premente de utilização de téc- mo ‘pós-tratamento’ já mostra o quanto se enfatiza
nicas específicas de terapia de família e de outros suportes que o tratamento do dependente de drogas se dá via
psicoterapêuticos, os psiquiatras assumiram naquela internação em um centro de tratamento e em regime
época a liderança de muitas equipes. Mas, começava a de exclusão. Não se falava ainda em reabilitação psi-
se delinear uma psiquiatria diferente na relação com o cossocial e reinserção social, pois pela metodologia dos
poder médico, em que o cuidado é obrigatoriamente 12 passos a abstinência e sua manutenção eram a única
compartilhado com o restante da equipe, frente por um meta no tratamento.
lado, ao pobre arsenal psicofarmacológico disponível, e Outro modelo de assistência aos usuários foi a
por outro, à magnitude do problema ‘drogas’ com suas comunidade terapêutica, mas praticamente não existiu
múltiplas causas e a necessidade de atuação multidisci- modelo de assistência em nosso estado, exceto pela pre-
plinar, assumindo-se, assim, o compartilhamento das sença da Comunidade S8. No entanto, foi largamente
decisões em grupo, seja com relação ao diagnóstico ou adotado em vários estados brasileiros, principalmente
para traçar, em conjunto, as estratégias terapêuticas no por comunidades ligadas às entidades religiosas católicas
plano de trabalho. Negociam-se metas com o próprio e evangélicas17. Realizava acompanhamento de pós-in-
paciente que assume um papel ativo no seu tratamento. ternação por nove meses, o qual envolvia o ambulatório

16
Estudos americanos em epidemiologia de comorbidade de transtornos relacionados ao álcool, drogas e outras desordens psiquiátricas como o Epidemiologic
Cathment Area (ECA) Study mostram que mais da metade dos usuários de álcool e/ou de drogas teriam, pelo menos, uma comorbidade associada. No caso da
cocaína, 76% dos usuários teriam um transtorno psiquiátrico adicional. Assim, existiriam as seguintes prevalências: 15,7% no último mês, 19,5% nos últimos
seis meses e 32,7% ao longo da vida. Em outro estudo importante, o National Comorbidity Survey (NCS) de 1994, estima que 48% de 8.098 entrevistados
entre as idades de 15 a 54, reportaram abuso de substâncias e de álcool e/ou de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. Dos 26,6% que possuíam algum
transtorno ligado ao uso de substância, a metade seria devido ao álcool. Quadro de ansiedade (24,9%) e doenças afetivas (19,3%) respondem pela maioria destes
transtornos. (apud Beeder, A.B; Millman, R.B, 1997)
17
A comunidade terapêutica baseia-se num modelo que busca integrar diversas abordagens: a médica (psiquiatria e clínica médica), a psicossocial (o modelo de
base psicanalítica, terapia familiar) e a cultural (atividades de caráter espiritual, recreativo e intelectual), preconizando um regime de internação muito longa, em
torno de nove meses, com fortes características de incentivo a mudanças comportamentais.

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro 129

de dois meses e a freqüência a grupos de mútua-ajuda. E o setor publico filantrópico e de ONGs (organizações
os trabalhos da Clínica Day Top e Synanon18 dos Estados não-governamentais) consignados no Programa de
Unidos são adotados como sistema de tratamento. Atenção a Criança e ao Adolescente Usuário de Drogas,
No período de 1995 a 2000 inicia-se a inclusão de da Fundação para a Infância e Adolescência, ligada a
novos atores no panorama de assistência aos usuários de Secretaria de Ação Social e Cidadania do estado permi-
álcool e outras drogas no estado, até então dominado tindo uma ampla cobertura a outras cidades do estado
por iniciativas lucrativas. Houve um importante avanço do Rio de Janeiro. Totalizam sete unidades ambulatoriais
e inicia-se o processo de especialização dos serviços em e de internação e três instituições ligadas à prevenção
nossa área, com a criação na Universidade Federal do Rio instaladas e que mantém convênios com a FIA. Os
de Janeiro (UFRJ) do Centro de Estudos e Reabilitação modelos de tratamento são os mais diversos, desde
do Alcoolismo (Cepral) no Instituto de Neurologia serviço universitário como o da Universidade Federal
(INDC) e do Programa de Assistência ao Usuário de Fluminense, aos de cunho religioso e são oferecidos
Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria (Ipub), bem programas a adolescentes ‘infratores ou não’, na área de
como, a implantação na Santa Casa da Misericórdia dos prevenção, internação e ambulatorial.
Programas de Tabagismo e de Alcoolismo. Neste momento histórico surgem duas novas
Finalmente, inicia-se neste período, no âmbito da instituições que trazem um novo paradigma para o
universidade, a consecução de sua missão primordial panorama da assistência pública no estado: o Centro
que é a de treinamento, ensino e pesquisa. São defen- de Recuperação de Adictos (Centra-RIO), o primeiro
didas as primeiras teses universitárias no Rio de Janeiro hospital-dia público na zona sul da cidade criado no final
neste campo de saber. Consolida-se, no Rio de Janeiro, de 1998, que apresentou um crescimento vertiginoso no
uma nova geração de professores e pesquisadores sobre volume de atendimentos aos usuários de álcool e drogas,
dependência de drogas e com grandes perspectivas de atualmente conta com cerca de cem casos novos/mês
criar novas linhas de pesquisas no futuro. No âmbito o que confirma a nosso ver a previsão de que ainda há
privado de ensino criam-se as primeiras pós-graduações uma grande demanda reprimida de pessoas com estes
em dependência química na Universidade Estácio de Sá transtornos que necessitam de ajuda.
e no Instituto Brasileiro de Reabilitação (IBMR) para O segundo momento foi com a implantação do
formar, capacitar e oficializar novos profissionais da área setor de atendimento ao usuário de álcool e outras drogas
de Saúde Mental e afim, desejoso de atualizarem um junto ao Conselho Estadual Antidrogas (Cead). O Cead
conhecimento algumas vezes previamente adquirido na logo assumiu a tarefa do estabelecimento de diretrizes
suas práticas, mas sem a sistematização de um ensino políticas na área de assistência a dependência de drogas.
formal acadêmico. As recomendações preconizadas durante o I Fórum Esta-
Ocorre um verdadeiro boom nesta área, até então, dual Antidrogas, realizado pelo Cead, cuja tarefa foi de
tão carente. Viu-se a instalação maciça de novos serviços organizar as políticas de atuação no setor de prevenção,
e mesmo de novas formas de financiamento do setor tratamento e reabilitação de dependentes, desenhadas
público e foi aberto um amplo leque de parcerias entre naquele encontro. O Cead, através do Deprid, assume

18
Segundo Saád (2001, p. 18), por volta de 1953, surge na Califórnia uma nova modalidade de tratamento, a comunidade terapêutica denominada Synanon.
Seu fundador utilizou conceitos de comunidades terapêuticas psiquiátricas da medicina militar e conceitos de Alcoólicos Anônimos, mas a comunidade tera-
pêutica estava mais compatível com os conceitos de reabilitação psicológica da visão criminal do uso de drogas, exceto que estava empenhada em construir uma
comunidade policialesca como um passo para a redenção dos adictos.

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130 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

a missão de operacionalizar uma política de assistência 1999, localizada no bairro de Santa Cruz no espaço
aos usuários de drogas em nosso estado. Deixa de ser arquitetônico asilar, onde funcionou o Hospital Psiqui-
um órgão meramente consultivo, passando a ocupar um átrico Raimundo Nonato. Em 2001 é implementada
espaço político de ponta, em termos da formulação de a segunda clínica de regime de internação, a clínica
políticas de saúde pública na área de alcoolismo e outras Ricardo Iberê Gilson, em Valença, na qual funcionou
drogas e na assistência ao usuário de drogas. Naquele um reformatório para adolescentes infratores. E a
momento político o governo do estado do Rio de Janeiro terceira clínica Nise da Silveira em Barra Mansa. Tais
assumiria através do Cead uma política de assistência unidades (perfazem o número de três, com proposta de
aos usuários enfatizando o seu vetor social no estado. expansão, tendo cada uma 90 leitos disponíveis) estão
Assim, ao assumir a função de assistência e acolhimento ligadas à Secretaria de Ação e Desenvolvimento Social
aos usuários de drogas e à suas famílias, favorecendo a e relegam ao SUS/Secretaria de Estado da Saúde um
eqüidade e acessibilidade ao cuidado, de forma universal, papel secundário na formulação e implementação desta
modifica drasticamente o panorama da assistência que política, o que tenta ser modificado a partir de uma
no início da década passada estava restrito às clinicas política de Saúde Mental implantada pelo Ministério
privadas, a algumas obras filantrópicas ou ao hospital da Saúde e que privilegia a implantação dos Caps ad.
psiquiátrico. Não se pode deixar de ressaltar o fato de a partir de 2001.
que durante esse período vinham sendo pensadas formas O Ipub/UFRJ, ao criar o Programa de Estudos e
de implantação de uma política pública para o setor, Assistência a Usuários de Drogas (Projad/UFRJ), faz no
no campo da Saúde Mental e que a iniciativa do Cead contexto de tornar-se um centro de referência formador
de implantar um espaço de assistência ocorre de forma de recursos humanos junto ao Ministério da Saúde no
totalmente desarticulada com as propostas divulgadas tocante ao treinamento e capacitação de profissionais
pelas Conferências Nacionais de Saúde Mental, estando do setor público que atuarão nos Centros de Atenção
inclusive, na ‘contramão’ de tal proposta, que privilegia Psicossocial para Álcool e outras Drogas (Caps ad), os
uma assistência pautada no modelo de reabilitação psi- quais seriam implementados a partir de 2003.
cossocial, não se baseando na internação como elemento No campo da Saúde Mental não foi traçado até
primordial de uma assistência. 2001, alguma política oficial específica para a depen-
Na virada do século, ou seja, de 1999 para 2000, dência de drogas ainda que por parte do SUS houvesse
assiste-se a um crescimento de 300% nos atendimentos previsão orçamentária para recuperação dos ‘viciados’19.
no Cead. Pelas estatísticas divulgadas no ano de 2001, Pelo contrário, no Brasil, o foco das políticas públicas de
observou-se um aumento de mulheres dependentes de álcool e outras drogas saíram do âmbito do Ministério
drogas procurando ajuda, a maioria associada ao uso da Saúde e foi para o âmbito do Ministério da Justiça,
indiscriminado de tranqüilizantes. Diante do enorme inicialmente com a criação do Conselho Federal de
incremento de seu ambulatório, o Cead propõe ao Entorpecentes (Confem) em 1987, o qual pautou o
Governo do Estado a implementação da primeira momento de sua atuação no plano governamental nos
clínica popular de internação pública especializada no últimos anos no estabelecimento de políticas ligadas à
estado, a Clínica Michelle de Morais, em dezembro de ações de repressão aos entorpecentes.

19
Artigo 32 § 1ºque diz que metade da receita de que trata o inciso I do artigo um deste artigo, apurada mensalmente, a qual será destinada à recuperação de
viciados.

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro 131

Em 2001, o Brasil adota em âmbito nacional uma partir do saber da mesma e não que estejam defendidos
Política Antidrogas que representa um grande avanço ao em posições rígidas apoiadas em saberes pré-estabelecidos.
aderir às diretrizes da Redução de Demanda, no lugar Ou seja, a criação dessa rede é algo extremamente novo e
de priorizar somente as ações de cunho eminentemente na contramão de propostas como Justiça Terapêutica ou
repressivo e de segurança. Opera a partir de quatro dimen- práticas centradas na internação como modelo de inter-
sões da ação antidrogas: prevenção, repressão, tratamento venção. Foram propostas articulares práticas novas, tais
e recuperação, reinserção social e a redução de danos. como internação domiciliar a programas já existentes de
O Ministério da Justiça ao assumir a liderança na Saúde Mental e de saúde da família, para que se possa a
questão álcool e outras drogas, torna uma questão de partir de demandas produzir mudanças efetivas na vida
estado por força de pressões internacionais. Posterior- de quem sofre ou de quem compartilha do sofrimento
mente, após a 20ª Reunião das Nações Unidas em l998, a associado ao uso indevido de drogas.
Presidência da República extingue o Confem e transfere
suas atribuições ao Gabinete Militar da Presidência da
República com a criação da Secretaria Nacional Antidro-
gas (Senad) e fomenta seus desdobramentos aos níveis
estaduais e municipal na luta antidrogas. Ou seja, o
‘combate’ às drogas passa a ser visto como uma política
de capital importância para a preservação e manutenção R E F E R Ê N C I A S
do estado brasileiro.
É a partir desse contexto histórico apresentado
que se deve entender os impasses para a implantação Amarante, P.D.C.; Torre, E.H.G. História da loucura:
quarenta anos transformando a história da psiquiatria.
de uma nova política para álcool e outras drogas, como
Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, Pontifícia Universi-
proposta pelo Ministério da Saúde quando lança o Pro- dade Católica do Rio de Janeiro, v.13, n. 1, p. 11-26,
grama Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos 2001.
Usuários de Álcool e outras Drogas (Portaria 816/GM,
30/04/2002) e quando dispõe sobre as normas para Basaglia, F. A psiquiatria alternativa: contra o pessi-
mismo da razão, o otimismo da prática. Rio de Janeiro:
funcionamento e cadastramento de Caps ad, bem como
Graal, 1982.
sobre o Programa Permanente de Capacitação para a
Rede de Caps ad (Portaria 305/SAS de 03/05/2002). Beeder, A.B.; Millman, R.B. Patients with Psycho-
Para que se crie uma rede de atenção ao usuário pathology. In: Lowinson,J; Ruiz,P; Langrod, R.M.
de drogas é preciso efetivar a atual legislação em Saúde Substance abuse. 3. ed., New York: Willians & Wilkins,
1997.
Mental, articular os diversos setores produtivos da socie-
dade, para que a mesma possa ser de fato uma sociedade Brasil. Ministério da Saúde. Ato portaria n. 816/GM,
solidária, na qual cuidar do diferente torne-se uma de 30 de abril de 2002. Texto do ministro de Estado da
conduta ética por parte de todos. Para tal é preciso que Saúde. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde,
o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada
ideologias sejam desconstruídas e para isso nada melhor
aos Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília, DF:
do que fazer com que os profissionais de Saúde Mental 2002. Disponível em: <http://www.saudemental.med.
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132 Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 133

Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência


em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família
Tick-men and their women: a report about
Mental Health issue in Family Health Strategy

Ionara Vieira Moura Rabelo 1

Rosana Carneiro Tavares 2

1
Psicóloga do Centro de Apoio RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção psicossocial
Psicossocial (Caps) Beija Flor – SMS
planejada para atender mulheres que estavam usando medicação ansiolítica. Esta
Goiânia; doutoranda em Psicologia
pela Universidade Estadual Paulista
intervenção foi organizada por uma equipe de profissionais do Centro de Atenção
(Unesp). Psicossocial (Caps ii) em conjunto com equipes de saúde da família (ESF). Ao todo
ionaravmr@yahoo.com.br foram realizados dez encontros com diferentes dinâmicas de grupo, desenvolvidas
para o grupo de mulheres e ESF com o objetivo de problematizar o papel da
2
Psicóloga do Caps Beija Flor – SMS
Goiânia; mestre em psicologia.
mulher em conjunto com o significado do remédio na construção desta identidade.
rosana.carneirotavares@gmail.com Constatou-se que o grupo ajudou estas mulheres a entenderem seu sofrimento para
além do sintoma, uso racional, bem como a retirada da medicação.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Gênero; Programa Saúde da Família.

ABSTRACT This paper presents the results of a psychosocial intervention planned


to attend women who were taking anxiolytic medicines. This intervention was
carried out by a professional team from the Mental Health Services (Caps ii)
along with professional groups of the family health strategy. In total, ten weekly
meetings using different group dynamic techniques were accomplished developed
for women and professionals from the family health strategy. These meetings aimed
at discussing the women’s role, together with the meaning of the medicine in the
construction of a identity. It was found that the group helped the participants
to understand their suffering beyond the symptoms, the rational use and the
withdrawal of the medication.

KEYWORDS: Mental Health; Gender; Family Health Program.

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134 RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

I N T R O D U ç ão da especialização, e, portanto, ampliam para fora do


hospital psiquiátrico todas as estratégias de atenção em
Saúde Mental. A partir destas considerações coloca-se
a relevância deste trabalho, a qual propõe relatar uma
experiência realizada no município de Goiânia a partir
A Reforma Psiquiátrica coloca-se como um desa- do ano de 2006, entre a equipe de um Caps II que
fio às ações de Saúde Mental na atenção básica, pois atende a usuários com transtorno mental e duas equipes
confronta a lógica do encaminhamento, bem como de saúde da família.
reafirma a comunidade como o locus para o atendimento Este trabalho iniciou-se a partir de um levanta-
aos transtornos metais. É a partir deste princípio que mento realizado pela equipe de mulheres atendidas
os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) se propõem nesta comunidade que faziam uso continuado de
a trabalhar em conjunto com as equipes de atenção à ansiolíticos. A proposta de busca apenas por mulhe-
saúde da família, atualmente nomeadas como Estratégia res ocorreu em função de estudos que indicam uma
Saúde da Família (ESF), através de diferentes estratégias prevalência de pessoas do sexo feminino como sendo
de atuação em cada região do país. o público que mais faz uso abusivo de ansiolíticos.
Desde as primeiras oficinas propostas pelo Mi- Sendo assim, justificam-se a relevância e a contempo-
nistério da Saúde, realizadas no ano de 2001, para se raneidade deste estudo por avaliar que a consolidação
avaliar a inclusão de ações de Saúde Mental na atenção de novos paradigmas de atenção em Saúde Mental
básica, houve a discussão tanto dos principais proble- depende das possibilidades de reinvenção da atuação
mas e situações de risco em Saúde Mental, bem como, em comunidades.
o direcionamento para estratégias de intervenções
comunitárias conjuntas, estudos de caso, construção
de projeto terapêutico individualizado, evitando as-
sim a lógica do encaminhamento. Percebe-se que a OS ENCONTROS POSSÍVEIS: SAÚDE MEN-
princípio o Governo Federal optou por uma lógica TAL E ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
nomeada como matriciamento (ou apoio matricial)
para a atuação de equipes de Saúde Mental em con- O compromisso com a intervenção nos processos
junto com as ESF. de adoecimento, através de ações localizadas na comuni-
O apoio matricial é uma estratégia que busca co- dade, tem sido um eixo norteador da política de atenção
nhecer e interagir com as equipes de atenção básica em básica em saúde que se fortaleceu com a implantação
seu território; procura estabelecer iniciativas conjuntas da Estratégia Saúde da Família (ESF), anteriormente
de levantamento de dados relevantes sobre as demandas nomeada como Programa de Saúde da Família (PSF).
em Saúde Mental no território; atender conjuntamente Até o ano de 2007, estas equipes totalizaram aproxima-
situações complexas, realizar visitas domiciliares acom- damente 29 mil em todo o território nacional, atingindo
panhadas da equipe e atender casos complexos em cerca de 90 milhões de brasileiros.
conjunto (Brasil, 2007). Porém, percebe-se que essas equipes apresentam
É importante ressaltar que tais estratégias confron- deficiências quanto às atuações em Saúde Mental visto
tam o modelo manicomial, pois rompem com a lógica a hegemonia do modelo biomédico (Filho; Rocha;

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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família. 135

França, 2006). Dessa forma, nota-se a importância na janeiro de 2008. Tal portaria cria os Núcleos de Apoio
reflexão e pesquisa sobre estas novas práticas que se inse- à Saúde da Família (Nasf), compostos por profissionais
rem no processo da reforma sanitária brasileira, elegendo de diferentes áreas de conhecimento com o objetivo
neste instante o núcleo familiar como possibilidade de de apoiar, atuar em conjunto e compartilhar com a
intervenção e manejo do processo saúde e doença. ESF, práticas em saúde nos territórios sob responsabi-
Simultaneamente à implantação e implementação lidade das mesmas. A portaria recomenda a presença
das equipes de saúde da família, o Ministério da Saúde de pelo menos um profissional de Saúde Mental na
totalizou a implantação de aproximadamente 1.100 implementação das equipes dos Nasf, porém, não há
Caps em todo Brasil. exigência que este profissional esteja lotado nos Caps
Para detectar a necessidade de expansão da rede de do território, mas apenas que esteja lotado em uma
Saúde Mental, a proposta do Ministério da Saúde (Bra- das unidades de saúde do território. Tal fato deve ser
sil, 2005) é de um Caps para cada 100 mil habitantes, objeto de discussão dentro de cada município, pois
porém o critério populacional não deve ser o único para ficará a critério do gestor local a escolha da composição
se planejar a rede de Saúde Mental, cabendo ao gestor e lotação das equipes dos Nasf. Esta proposta fomenta
local junto a outras instâncias planejar os dispositivos novos debates, e propõe que profissionais dos Caps
que melhor atendam à população local. Ao avaliar-se fiquem atentos para que as Nasf e os Caps não passem
apenas os Caps direcionados para o atendimento aos a desenvolver atividades paralelas, mas que possam
usuários com transtornos mentais, considera-se que os funcionar em rede para a atenção em Saúde Mental
Caps I dá resposta efetiva a 50 mil habitantes, os Caps no mesmo território.
II dá cobertura a 100 mil habitantes, e os Caps III a 150 Ao mesmo tempo em que novos dispositivos são
mil habitantes, sendo assim, de acordo como Ministério criados, os trabalhadores de Caps e equipes de saúde da
da Saúde, há déficit em todas as regiões brasileiras, pois família já têm construído experiências muito ricas em
atualmente os Caps estão assim distribuídos: região Saúde Mental, mesmo que nomeadas diferente, mas que
Norte com 0,19 Caps; região Nordeste com 0,28 Caps; mantém entre si a lógica do matriciamento, onde são
região  Centro-Oeste com 0,27 Caps; região  Sudeste priorizadas a supervisão, o atendimento compartilhado
com 0,34 Caps e região Sul com 0,41 Caps por 100 e a capacitação em serviço, com o objetivo de aumen-
mil habitantes. tar a capacidade resolutiva das ações de Saúde Mental
Mesmo ao se considerar um mapa com tantas naquele território.
deficiências, para um país de dimensões continentais, A atuação de forma compartilhada permite a
é importante ampliar o debate sobre a Saúde Mental, integralidade das ações e favorece o trabalho de ques-
pois a lógica do território como espaço de relações e tões de forma transversal como o conceito de gênero,
trocas, que permeiam os princípios do Caps e da Saúde o qual é capaz de interligar situações de exploração,
da Família, terminam por contribuir para a conver- discriminação, violência, salientando determinantes
gência de ações apoiadas por um mesmo paradigma sociais e culturais que interferem na saúde de mulheres.
em saúde. Para melhor especificar como o conceito de gênero se
A integração prevista entre os Caps e a ESF passa inscreve de maneira importante no cotidiano de Saúde
a ser discutida sob um novo enfoque quando, o Minis- Mental, são discutidos alguns estudos que abordam
tério da Saúde (2008) publica a Portaria 154 em 24 de esta temática.

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136 RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

INTERFACES SAÚDE MENTAL E GÊNERO de depressão, 78% queixavam-se de sintomas de ansie-


dade e insônia, 39% confirmavam ideação suicida e 24%
Para confrontar o cotidiano excludente das re- iniciaram o uso de medicação ansiolítica após as situa-
lações em sociedade é necessário pensar as relações ções de agressão. Mesmo que tal estudo seja norteado
historicamente construídas de exploração da mulher, pela semiologia psiquiátrica, ele é válido no sentido de
pobre, negra, analfabeta, louca, desempregada que mora apontar como a rede de conflitos sociais que, em alguns
longe e sofre violência física por parte do parceiro. Dar casos configuram-se também como violência intrafami-
nome, cor, sentido, data e hora para o sofrimento, pode liar, é constituinte do campo da Saúde Mental.
possibilitar aos trabalhadores e usuários dos serviços A situação de violência familiar constrói diferentes
construírem reflexões sobre o que estão vivenciando, processos e resistências, porém, pode-se avaliar o quanto
possibilitando a transformação desta identidade nome- crianças, adolescentes e mulheres (mães de crianças,
ada como vítima-doente, podendo ser reposicionada vítimas de abuso sexual) também apresentam conflitos
e não só ceder à mera repetição de uma identidade e sofrimento diante da lei do silêncio imposta pelas
pressuposta pelo outro (Ciampa, 2001). relações de poder (Araújo, 2002).
Ao se procurar estudos que tentam compreender as Pode-se também, encontrar discussões como as rea-
trajetórias e pontos de aproximação e afastamento das lizadas por Maragno; Goldbaum, Gianini e Novaes, em
categorias Saúde Mental e gênero, percebem-se duas que se detectaram diferenças significativas na prevalência
grandes bases teóricas: abordagens epidemiológicas com de transtornos mentais comuns em determinados grupos
base no modelo biomédico e abordagens sociológicas populacionais, sendo maior entre mulheres, idosos e
que tentam compreender os determinantes sociais e as pessoas com menor renda ou de menor escolaridade.
representações compartilhadas que estão presentes no Este estudo foi realizado em regiões periféricas da ci-
fenômeno. dade de São Paulo e demonstra o quanto os processos
Os estudos de base epidemiológica (Nunes Filho; que envolvem o sofrimento psíquico conectam-se aos
Bueno; Nardi, 2000) afirmam que a prevalência de indicadores de vulnerabilidade social.
transtornos mentais leves é maior entre mulheres, Neste cenário de turbulência das relações de violên-
principalmente em áreas urbanas. Com relação ao cia e exploração sociais, é necessário salientar o conceito
transtorno depressivo, ele ocorre três vezes mais em de gênero como categoria que se afasta dos princípios
mulheres que em homens, tais dados avaliam de forma essencialistas ao tentar explicar o ser humano, e tenta
essencialista a Saúde Mental, transformando sofrimento investigar a realidade de maneira plural, histórica e
em adoecimento. cultural (Guacira,1997). Neste sentido, pode-se pensar
Por outro lado, as abordagens sociológicas irão como as experiências vivenciadas por mulheres, que
enfatizar os estudos sobre como as situações de vio- não se igualam sob esta nomenclatura, podem produzir
lência, exploração e gênero interferem no processo ‘sofrimentos psíquicos’ (reforça-se aqui o plural porque
saúde-doença. Como exemplo pode-se citar o estudo de também plural será o sofrer) diante da significação que
Adeodato; Carvalho; Siqueira e Souza (2005), no qual dão e recebem sobre seu cotidiano.
em uma amostra de 100 mulheres que foram agredidas Como exemplo desta perspectiva, cita-se o estudo de
por seus parceiros e fizeram denúncia na Delegacia da Alves (2002) no qual o sofrimento descrito por mulheres
Mulher do Ceará, 72% apresentaram quadro sugestivo idosas, ao narrarem suas histórias de vida, é nomeado

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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família. 137

como ‘nervoso’, ou seja, relatam como uma vida vinculada O Caps E A ESF:
à pobreza e violência gerando experiências de fragilização, CO-AUTORIA EM SAÚDE MENTAL
e tais experiências são objetivadas num sofrimento cultu-
ralmente compartilhado, como relatos do nervoso. O trabalho desenvolvido foi planejado em conjunto
A partir da concepção de que Saúde Mental e gêne- com as enfermeiras de duas equipes de saúde da família
ro tecem fios que podem ser tocados nas relações entre e com os agentes comunitários destas equipes. O pla-
profissionais de saúde e comunidade, pode-se pensar em nejamento em conjunto teve como principal objetivo
tais fios que ao mesmo tempo em que produzem sentidos possibilitar a aproximação da equipe do Caps com as
para as mulheres, também constroem barreiras entre equipes de saúde da família e romper com o estigma de
profissionais e pacientes, na medida em que existam que trabalhar a Saúde Mental é ação restrita de unidades
trabalhadores que não conseguem mais ouvir o sofrer e de Saúde Mental, cuja compreensão coloca a atuação do
o transformam em dor ou querelância, e a resposta para ESF na lógica de encaminhamentos quando se detecta
este problema será a coisificação-medicalização. problemas de ordem psíquica.
Com base no que foi exposto acima, pode-se refletir O planejamento deu-se por meio de reuniões com
o grande investimento que o Brasil tem feito a fim de as equipes de Saúde da Família, a fim de fazer levanta-
criar novos dispositivos de atenção em Saúde Mental. mento da demanda, de quais seriam os problemas viven-
Dessa forma, torna-se essencial que os trabalhadores de ciados pela população do bairro que pudessem indicar a
Saúde Mental estejam envolvidos nesse processo, trans- existência de sofrimento psíquico. Buscou-se nesta fase
versalizando o aparato biomédico com possibilidade de priorizar a atenção à população feminina que estivesse
intervenções que possam enriquecer não só o referencial fazendo uso continuado de ansiolítico ou que estivesse
teórico, mas também as estratégias utilizadas. solicitando à equipe de saúde o uso da medicação. Para
Sendo assim, fundamenta-se a discussão de gênero este levantamento foram feitas buscas em todos os
como um dos prismas que pode transversalizar este ema- prontuários das duas equipes, a fim de detectar aquelas
ranhado, pois esta temática é capaz de tocar diferentes famílias que tivessem mulheres em uso de ansiolíticos
experiências, ao mesmo tempo em que desencadeia e/ou de antidepressivos. Com este levantamento foram
reflexões pertinentes ao viver em comunidade. encontradas nas duas equipes, 53 mulheres com este
A conectividade do sofrimento psíquico às questões perfil (27 de uma equipe e 26 de outra).
transversais da vida em sociedade, como por exemplo, as Após este primeiro levantamento foram planejadas
questões de gênero, torna-se a principal referência para a visitas domiciliares a todas essas mulheres, a fim de
atuação em Saúde Mental. Nessa perspectiva, destaca-se conhecer a história de vida e uso de ansiolíticos. Tais
o trabalho desenvolvido por um Caps de Goiânia, em visitas foram realizadas pelos agentes comunitários de
conjunto com duas equipes de saúde da família, cujo saúde (ACS) e tiveram importante papel para a capaci-
principal objetivo foi retomar o sofrimento psíquico pelo tação em serviço dos ACS, pois constituíram elementos
viés do sofrimento sócio-afetivo relacionado às questões de re-significações do que é adoecimento psíquico e
de gênero, e proporcionar aos profissionais de saúde de como os sintomas aparecem no curso de vida das
da família a ampliação das possibilidades de reflexão e pessoas. Todos os casos visitados foram discutidos em
compreensão do adoecimento psíquico para além dos equipe e propiciaram aos ACS trabalhar com crenças,
aspectos biomédicos dos sintomas. tais como, ‘usam remédio porque não conseguem dor-

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138 RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

mir’; e reelaborar novos significados que permitissem vo do grupo e motivá-las para a participação nos encon-
compreender os sintomas como não desconectados da tros. Foi desenvolvida uma dinâmica de apresentação,
vida e da realidade dessas mulheres. Com os estudos de com gravuras de conteúdos diversos e solicitou-se que
caso a equipe de saúde da família pôde conectar, por cada uma das mulheres escolhesse a gravura que melhor
exemplo, a insônia com a realidade de vida das mulheres, representasse o seu jeito de ser e que permitisse a sua
com relações de poder e com questões sociohistóricas apresentação por meio desta gravura. Essa dinâmica foi
de gênero. suficiente para uma significativa mobilização de algumas
O passo seguinte foi planejar quais seriam as mulheres e permitiu a reflexão quanto à necessidade de
intervenções a serem realizadas. Decidiu-se, assim, or- propor vivências e dinâmicas menos complexas e mais
ganizar reuniões semanais e convidar essas mulheres a lúdicas, a fim de evitar a auto-exposição desnecessária,
participarem. O planejamento das reuniões era realizado mas muitas vezes inevitável, dadas as poucas oportuni-
semanalmente com as equipes de saúde da família. As dades de fala e reflexões que essas mulheres têm no seu
reuniões semanais com as mulheres ocorriam com a par- cotidiano;
ticipação de duas psicólogas do Caps, de uma enfermeira
da equipe de saúde da família e de uma ACS. Após cada • complementação de um pensamento: foi solici-
reunião com o grupo de mulheres foram realizadas reu- tado que cada mulher do grupo completasse a seguinte
niões com todo o restante dos ACS, a fim de apresentar frase: ‘Se eu pudesse, eu trocaria meu remédio por...’.
os conteúdos trabalhados, avaliar o desenvolvimento do O objetivo era possibilitar a reflexão do sentido do uso
grupo de mulheres e planejar o que seria trabalhado na do remédio na vivência de cada mulher, ou seja, buscar,
semana seguinte. minimamente, conectar o sintoma gerador do uso da
Os encontros semanais com as mulheres tinham medicação à realidade vivenciada por cada mulher. Nesta
como objetivo problematizar o papel da mulher na re- dinâmica foi possível emergir conteúdos relativos ao
alidade histórico-social, em conjunto com o significado desejo por estabilidade financeira, à vontade de sentir-se
do remédio na construção da identidade feminina. Fo- feliz, ao desejo de ter novamente a alegria de antes e de
ram desenvolvidas dinâmicas e vivências que pudessem retomar vínculos com familiares, o qual foi colocado por
transportar as mulheres ao núcleo de seus sentimentos algumas como tendo sido perdido, em função do casa-
e sofrimento, como meio de fazer a junção entre os mento, das dificuldades financeiras (muitos familiares
sintomas (que exigiam o uso da medicação) e a realidade moravam em outras cidades ou o marido as impedia de
vivenciada (opressora e impeditiva de rompimentos). vê-los, etc). Foram expressos conteúdos de identidade
De todas as experiências realizadas destacam-se al- de gênero e sua relação com o casamento, o sofrimento
gumas mais provocadoras de reflexões e importantes para de algumas mulheres pelo fato de serem obrigadas a
a compreensão da efetividade do trabalho ora apresenta- romper com o seu núcleo familiar primário e ter de se
do. São descritas a seguir algumas destas dinâmicas: adaptar à cultura imposta pelo esposo;

• apresentação com figuras: no primeiro encontro • recortes de nomes e características: tal dinâmica
foi realizada uma dinâmica de apresentação, cujo objeti- foi planejada, em função dos conteúdos emergentes
vo foi conhecer as mulheres que estavam participando, na dinâmica anterior com relação ao afastamento do
propiciar o conhecimento entre elas, esclarecer o objeti- núcleo familiar primário. Foi solicitado que cada mu-

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lher escrevesse o seu nome e sobrenome em uma folha, e assim sucessivamente. Com essa dinâmica surgiram
destacando cores diferentes para cada nome/sobrenome elementos que possibilitaram trabalhar questões de
e características que pudessem definir cada nome. O gênero relativas ao papel da mulher no casamento, no
objetivo foi trabalhar a construção da identidade destas qual ficou marcado um modelo idealizado de casamen-
mulheres em cada eixo familiar (mãe, pai e esposo). to perfeito e o sofrimento advindo da realidade, ou
Foram emersos conteúdos relativos à formação da iden- seja, da impossibilidade de realização de uma relação
tidade no seio familiar, como por exemplo, a família homem/mulher plena. Foram trabalhados ditados
materna e paterna produzindo preconceito de raça; e como: ‘Quem faz o casamento é a mulher’; ‘por trás
a construção da identidade familiar se contrapondo à de um grande homem há sempre uma grande mulher’.
identidade construída com o casamento. Ou seja, foram Foi constatada a dificuldade das mulheres em abando-
conteúdos que marcaram as contradições vivenciadas narem as escolhas de forma ativa, de sair de relações
por essas mulheres, que ao se casarem renunciavam infelizes sem necessitar ‘fugir’, os rompimentos relata-
a identidade construída em seu núcleo familiar e se dos eram todos sem autonomia. Os conteúdos foram
rendiam à exigência de uma aceitação incondicional da trabalhados buscando refletir a necessidade de que as
identidade da família construída com o esposo (esposa, mulheres construam recursos pessoais e sociais que
mãe, cuidadora). Para o desenvolvimento desta dinâmica permitam os rompimentos necessários ao bem-estar
houve um problema: algumas mulheres não sabiam ler e à Saúde Mental. Dificuldade de lidar com a própria
e escrever. Na reunião de avaliação deste encontro com sexualidade foi outro elemento que emergiu com essa
todos os ACS, estes avaliaram que o ambiente familiar dinâmica e permitiu que fossem, minimamente, dis-
dessas mulheres é opressor e dificulta que os agentes cutidos aspectos relacionados a gênero e sexualidade.
possam intervir. Os ACS refletiram também sobre as Na avaliação com os ACS muitos se identificaram com
especificidades do bairro: distante, tem alto índice de os relatos das mulheres, pois a maioria eram mulheres,
criminalidade que gera preconceito e dificulta o acesso e neles elas puderam refletir suas próprias vidas. Foi
da população masculina a empregos, fazendo com evidente a coincidência do início do uso da medicação
que as mulheres tornem-se arrimo de família. Foram com o confronto e a realidade do casamento infeliz.
reflexões feitas pela equipe de saúde da família que,
concretamente, retiraram o sofrimento como sendo A realização da dinâmica da linha da vida durou três
apenas o sintoma (‘não dorme e por isso toma remédio’) encontros e permitiu amplas reflexões, ressalta-se que o
e possibilitou sua compreensão pelo viés do sofrimento conteúdo mais homogêneo que emergiu dos encontros
sócio-psico-afetivo. entre todas as mulheres que freqüentaram o grupo é a
condição histórico-social da identidade feminina cons-
• linha da vida: foi trabalhada a dinâmica da truída para o casamento perfeito, no qual a mulher se
linha da vida, iniciando-se aos 15 anos e utilizando incumbe do papel de fazer tudo o que o homem solicita
intervalos de cinco anos. Foi solicitado que cada ou deseja; nunca dizer não ao homem; e sempre permitir
mulher representasse em um papel pardo (por meio que o marido sugue todas as energias. Uma condição
de escrita ou qualquer outra expressão gráfica, como que coloca na mulher a posição de impossibilitada de
desenhos ou símbolos) cada período de sua vida, romper com uma relação infeliz e na qual muitas vezes
iniciando-se aos 15 anos e passando pelos 20, 25, 30, não há, inclusive, percepção dessa infelicidade, visto que

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140 RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

culturalmente se o casamento não está bom é porque a anos utilizando a medicação em função de prescrições
mulher está agindo errado. anteriores, requisitavam a continuidade da medicação
Esta condição histórica da mulher de se colocar apenas porque entendiam que este tratamento era o mais
como principal responsável pela felicidade do casamen- adequado, até o momento que perceberam, no grupo
to, aliada à condição do homem de não fazer concessões realizado, que sua relação necessitava de algo mais que
na relação marital impõe à mulher, principalmente abafar quimicamente seu sofrimento. Após estudo de caso
àquela que se encontra em desvantagem socioeconômica com equipe do Caps, os médicos das ESF fizeram novas
e educacional uma postura de não conseguir romper avaliações para hipótese diagnóstica e, contando com
com uma relação infeliz e nem superar os estigmas socio- o apoio do grupo, foi possível a retirada do ansiolítico
culturais. Houve relatos de mulheres que se percebiam em alguns casos, uso racional e troca de medicação em
infelizes na relação, mas não tinham recursos pessoais outros. Algumas mulheres que foram ao grupo em busca
para superar suas dificuldades e romper com essa relação, do medicamento encerraram o processo compreendendo
assim, algumas vezes, sentiam-se obrigadas a conviver melhor os mecanismos geradores de sofrimento e as ha-
com um ‘homem-carrapato’. bilidades sociais para lidar com os mesmos, sem que para
A expressão ‘homem-carrapato’ foi utilizada por isso precisassem silenciar-se com o medicamento.
uma dessas mulheres e é retomada no presente artigo
como sendo a forma mais fidedigna de expressar sua
condição de vida ao lado de um homem que a massacra
e que a impede de viver a própria vida, um homem cuja CONSIDERAÇÕES FINAIS
ação se limita a sugar o sangue da uma mulher presa a
uma situação, cuja condição histórico-social a impede O trabalho desenvolvido entre o Caps e as equipes
de se libertar. de saúde da família, como capacitação em serviço por
Assim, possibilitar a essas mulheres momentos de meio de estudos de caso e realização de grupos de gênero
reflexão e compartilhamento de todo o seu sofrimento, possibilitou às ACS e às enfermeiras das equipes de saúde
advindo muitas vezes de sua própria condição sociohis- da família a compreensão do sofrimento psíquico para
tórica, cria possibilidades de re-significação do sofrimen- além do sintoma, pois inicialmente a associação feita
to e de ampliação de recursos pessoais e afetivos para por esses profissionais era de que o uso de ansiolítico
lidar com o seu sofrimento. Fornece condições, mesmo era devido e justificado por um sintoma específico: a
que minimamente, de reelaborar o papel da mulher na insônia. Ao final, todos os profissionais da equipe de
formação do ‘homem-carrapato’, pois se ela procura de saúde da família demonstraram novas compreensões
todas as formas atender a todos os desejos ou exigências a respeito da insônia como indicando a existência de
do homem, obviamente ele se sentirá muito tranqüilo na um sofrimento socioafetivo, mesmo que ainda não
relação e utilizará de todos os seus potenciais masculinos totalmente declarado.
para manter-se nessa condição. O trabalho em conjunto com as equipes de saúde
Após seis meses, foi realizada avaliação das atividades da família permitiu não só a aproximação das equipes,
no grupo, e encerramento do mesmo. Neste período mas também, a garantia da capacitação em serviço,
foram realizadas reuniões para estudo de caso de algumas haja vista que no decorrer desta atividade, não só as
mulheres que participavam do grupo e estavam há vários mulheres acompanhadas no grupo foram re-avaliadas

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com a possibilidade de se beneficiarem tanto das temá- desta medicação para as usuárias do grupo em
ticas trabalhadas no grupo, bem como, da utilização do acompanhamento na ESF, pois tais medicações não
uso racional da medicação. Por outro lado, entende-se existem nestas unidades. Também com relação ao
que estes estudos de caso funcionam como capacitação prontuário, foi estabelecido que haveria a evolução
em serviço, pois o conhecimento compartilhado entre do prontuário da família (ESF), como forma de pri-
todos os profissionais ultrapassa os casos estudados e vilegiar uma comunicação única, e mesmo que os/as
serve de apoio para manejos em outras situações que se usuários(as) também estivessem em atendimento no
configurem demandas em Saúde Mental. Caps, a equipe de Saúde Mental teria um prontuário
Pode-se considerar que o trabalho em equipe, com na unidade, mas manteria atualizado o prontuário na
relação à estratégia saúde da família, propicia a re-signi- ESF. Tal conduta facilitou o monitoramento do uso
ficação do sofrimento e a ampliação das ações do Caps, de medicamentos, pois o ACS passou, a saber, por
rompendo com a lógica do encaminhamento. Tal ação exemplo, o projeto terapêutico do usuário e apoiá-lo
traz para o profissional da unidade de atenção à família a na implementação do mesmo, seja no uso diário da
condição de ser capaz de intervir efetivamente na Saúde medicação, seja na busca por escolas e atividades de
Mental das pessoas da comunidade de sua abrangência, geração de renda da região.
sem necessitar encaminhar a um serviço especializado Como parte do protocolo, também com relação
uma possibilidade que se dá pela transversalidade das às visitas domiciliares dos técnicos dos Caps, passou-
temáticas trabalhadas em Saúde Mental, como a pro- se a agendá-las com antecedência para que fossem
posta aqui relatada de inserção da categoria gênero para sempre realizadas com ACS e enfermeiras da ESF.
a compreensão do sofrimento psíquico. Tal procedimento fez com que novas redes de suporte
É importante ressaltar que houve uma mudança social começassem a interagir com as famílias com
significativa na percepção dos ACS, pois durante este pro- pessoas com sofrimento psíquico grave. Tal fato foi e
cesso eles começaram a trazer casos novos de pessoas em é crucial na diminuição das internações psiquiátricas
grave sofrimento psíquico, que se encontravam isoladas e manejo das situações de crise, pois a família passa
em casa há vários anos. Este fato chama atenção, pois, a contar com vários atores, e, portanto, não mais
por mais que os ACS já soubessem e trabalhassem com o recorre à lógica crise-doença-internação. Também a
Caps nesta região, ainda assim não conseguiam enxergar equipe de saúde da família passou a compreender o
como situações de Saúde Mental os casos de isolamento sofrimento psíquico conectado com as experiências
como o do exemplo acima. Até mesmo a descrição de vividas, e, sentindo-se mais próxima da equipe do
casos novos quando precisavam solicitar visitas domi- C aps passou a evitar o uso da ambulância (tanto
ciliares com a equipe do Caps, passou a ser detalhada, no sentido literal como no figurado), acreditando e
contextualizada e já com as nuances de vulnerabilidade reinventando estratégias para atender ao sofrer sem
social típicas das vivências em Saúde Mental. necessariamente encaminhá-lo.
A experiência de trabalho em apoio à ESF Novas estratégias para a compreensão do sofri-
também foi essencial para a criação de alguns pro- mento psíquico também foram viabilizadas para a
tocolos para o funcionamento da atenção em rede. equipe do Caps, que na interlocução com a atenção
Com relação à dispensação de alguns medicamentos básica tem conseguido aliar não só novos atores para
psicotrópicos, o Caps passou a garantir a entrega confrontar a lógica asilar, mas também tem encon-

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142 RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

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estabelecer laços contratuais na comunidade, graças de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 Anos
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Ciampa, A.C. A estória de Severino e a história da Severina.


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de-afaa-16149f0aeb6a.aspx. SBMFC, Rio de Janeiro, v.
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janeiro de 2008. Diário Oficial da União. Brasília, DF:
Ministério da Saúde, 2008. Recebido: abr./2008
Aprovado: jul./2008

______. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à


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mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão
2003-2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 143

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde:


o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
Mental Health and primary health care:
the matrix support building a multicentric net

“En medio de la maraña, Dios, la araña”.

Mariana Dorsa Figueiredo 1 Alejandra Pizarnik


Rosana Onocko Campos 2

1
Mestre; doutoranda em Saúde RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Básica
Coletiva pelo Departamento de como uma das necessidades atuais para a continuidade da Reforma Psiquiátrica,
Medicina Preventiva e Social da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve ser feita dentro de uma rede
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usuários. Em
(DMPS/ FCM/ Unicamp). seguida, é problematizado o apoio matricial como arranjo de gestão para organizar
madorsa@hotmail.com as ações de Saúde Mental na Atenção Básica e sua potencialidade como disparador
2 da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
Doutora em Saúde Coletiva;
professora do DMPS/FCM/Unicamp. e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
rosanaoc@mpc.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção básica à saúde; Apoio
matricial.

ABSTRACT In this article, it is argued the insertion of Mental Health in the


basic system, as one of the current necessities for the continuity of the Psychiatric
Reform, considering that the attention to Mental Health must be made inside
an ample and linked net of cares. After that, the matrix support is analyzed as a
powerful management arrangement to organize the actions of Mental Health in
the basic attention and as a trigger for the amplification of the clinic in the health
teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix


support.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008


144 FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

I N T R O D U ç ão disciplinar, por meio de uma rede interligada de serviços


de saúde, a qual permita a articulação das ações que, em
Saúde Mental, é uma necessidade inquestionável.

Uma rede ou um emaranhado?


Durante as últimas duas décadas, a implementação UMA REDE MULTICÊNTRICA
do modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps)
tem sido o principal investimento da política de Saúde Considerando a complexidade das demandas em
Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
desses serviços demonstra a crescente e intensiva difusão sobre a necessidade de articular a assistência prestada
da rede substitutiva de Saúde Mental pelo país, numa nos Caps com outros serviços de saúde, equipamentos
trajetória frutífera de reversão do modelo assistencial cen- sociais e a rede social nos territórios, na construção de
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos
e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de
vínculos sociais.
desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as
Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses
formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na
graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-
lógica sanitária hegemônica (Amarante, 2001), o modelo
cidade de equipamentos como os Caps (Tenório, 2002),
dos Caps ganhou grande visibilidade no decorrer da Refor-
a Atenção Básica tem um importante papel no processo
ma Psiquiátrica brasileira, ocupando um lugar de destaque
de reinserção social, já que está imersa nos territórios e
na reorganização da assistência em Saúde Mental.
é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os
Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,
usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende
ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde
a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

à saúde, resultando num certo descompasso entre as principais problemas de saúde. A questão mencionada
práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua aqui vai além da definição de qual serviço deveria se
acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra- incumbir das demandas de maior gravidade, se os Caps
mentos importantes para o SUS, enquanto sistema ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser
unificado e integral, assim como para a eficácia tanto da construída entre os dois tipos de serviços.
Atenção Básica, quanto dos Caps, devido a dificuldade O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção que um Caps deve:
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, responsabilizar-se [...] pela organização da demanda
e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
seu território e [...] desempenhar o papel de regulador
ticas e de profundas alterações nas estruturas de poder da porta de entrada da rede assistencial. (Brasil,
estabelecidas, instituindo uma lógica do trabalho inter- 2004, p. 126).

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Ora, se os Caps forem considerados ordenadores da miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com o conceito e imagem de uma rede multicêntrica, os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o Caps pode funcionar como agenciador das carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de cuidados contínuos, intensivos (específicos dos Caps).
acordo com o andamento do Projeto Terapêutico de cada Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente (Brasil, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
usuários possuem. entrave ao tratamento, à adesão as práticas preventivas e
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos comuns entre os serviços, ou situações uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos Caps quanto à Atenção se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
Básica. Seria o caso do usuário do Caps, aquele da ou o paciente com câncer que não encontra resistência
região de abrangência de determinada equipe da UBS para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é (Campos, G.W.S., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimento dos diversos atores no Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em questão. dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transtornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e ‘nervosas’, Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio- que 56% das equipes de PSF referem realizar ‘alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do ação de Saúde Mental’ (Brasil, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos, equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconômica vigente. A com as famílias e as comunidades, elas se constituem

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146 FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

num recurso estratégico para o enfrentamento do Ministério da Saúde (Brasil, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico. dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti- ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos nasf são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (Brasil, 2003). É o caso resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar ‘poli-queixosa’,
e que representa uma demanda freqüente para a Aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos, E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
“Onde a brasa mora e devora o breu
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
Como a chuva molha o que se escondeu
dispositivos de atenção, disparadores de produção de O seu olhar melhora o meu”
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(Campos; Nascimento, 2003).
Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
e para propiciar maior consistência às intervenções mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi- que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos, Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003). ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse- tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Mental e outras áreas especializadas na Atenção Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata- mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a intervenção (Campos, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nº 154, na qual o quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

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a implicação da equipe tende a aumentar e as respostas ciplinar. A transdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos estereotipadas. As Equipes por Passos e Barros (2000) é uma das grandes apostas
de Referência, portanto, seriam responsáveis por realizar do apoio matricial.
os projetos terapêuticos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito
Dessa forma, o apoio matricial seria uma ferramen-
de desestabilização [...] da unidade das disciplinas e
ta para agenciar a indispensável instrumentalização das dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica1, subvertendo o modelo
médico dominante que se traduz na fragmentação do A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos, a compor a rede matricial de apoio. Constitui uma linha
muitas vezes desnecessários, às diversas especialidades, de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003). lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio matricial se configura como um suporte romper com o sistema de referência e contra-referência,
técnico especializado (Campos, 1999) que é ofertado a que produzem encaminhamentos consecutivos para as
uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de atuação e qualificar suas ações. Ele pode sabilização pela produção de saúde (Campos, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia- A partir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas estamos tomando aqui a especificidade da a construção de projetos terapêuticos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjetivas venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser visitas domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em toda relação terapêutica. ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção
lidar com os sujeitos em sua complexidade, incorporan- ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjetiva e social do ser humano, mas vida dos sujeitos.
que estejam acompanhados por alguém especializado Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporte para compreender e intervir neste tricial têm uma importante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe- equipes podem aprender in loco a intervir no campo da
cimentos e ações, historicamente reconhecidos como Saúde Mental e se autorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área ‘psi’, são ofertados aos profissionais de cabem nos protocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar são social, violência, luto, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimento psí- não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional ‘psi’ ao campo dos usuário de referência do Caps que está em tratamento na
profissionais de saúde (Campos, 2000), na construção Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis- inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com
1
Campos, G.W.S. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para centrá-la num
sujeito concreto e singular, portador de certa enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeitos em sua tota-
lidade, considerando o biológico como determinante do processo saúde e doença, mas também incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e
cultural como outros determinantes.

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148 FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

quadros psiquiátricos mais graves e o atendimento Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com o apoiador matricial pode proporcionar desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir o preconceito necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura. enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi- a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela transdisciplinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade, lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo Caps da região de abrangência. Pretende-se, com à reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada. do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso, a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa- fissionais não tiverem espaços de reflexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje- matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular. hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de fluxo, evitar práticas que levam à ‘psiquiatrização’ e à desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
‘medicalização’ do sofrimento humano. de captura e impotência.

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FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica 149

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Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo
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matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho
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149.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008


150 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

A crise na rede: o SAMU no contexto


da Reforma Psiquiátrica
The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context

Katita Jardim 1
Magda Dimenstein 2

1
Psicóloga; mestre em Psicologia RESUMO Esta pesquisa investigou as práticas dos profissionais do Sistema de
pelo Programa de Pós-graduação em
Atendimento Móvel de Urgência (Samu) no que diz respeito aos atendimentos
Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN);
psiquiátricos na cidade de Aracaju (SE) e suas possíveis articulações com a Rede de
supervisora clínico-institucional Atenção Psicossocial (Raps). A primeira etapa da pesquisa foi realizada através de
do Centro de Apoio Psicossocial entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do Samu. Os resultados indicam
(Caps) Irmã Augustinha; Membro da
que a concepção de urgência psiquiátrica deles se baseia no conceito de agressividade
coordenação pedagógica da Escola
Técnica do SUS de Sergipe.
e que o tempo gasto nas ocorrências psiquiátricas e a falta de capacitação em
katita.jardim@gmail.com Saúde Mental dificultam o transcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa,
participamos das reuniões de construção do protocolo psiquiátrico do Samu.
2
Psicóloga; doutora em Saúde Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da PALAVRAS-CHAVE: Crise; Urgência; Saúde Mental.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IPUB/UFRJ); docente do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
ABSTRACT This research investigated the professional practices from Samu
magda@ufrnet.br (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city
of Aracaju (SE), Brazil, and its possible articulations to psychosocial services
network. Fieldwork first step was made with Samu workers by semi-structured
interviews. The results indicate that their urgency psychiatric conception is based
on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support
and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The
second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol
for Samu.

KEYWORDS: Crisis; Urgency; Mental Health.

Apoio financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 151

I N T R O D U ç ão serviços substitutivos. Tais serviços passam a operar como


meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de
passagem, visto que no momento de maior necessidade
‘devolvem’ o louco ao manicômio. Por isso, se faz neces-
sária uma discussão acerca da atenção à crise não somente
pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões
Com o avanço da luta pela consolidação da Refor- inter-redes, envolvendo também a Reue e outras.
ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi-
da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor- gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da
tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial. Política Nacional de Atenção às Urgências, o Serviço
Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), frente às
Luta Antimanicomial (MNLA) e da Reforma Psiquiá- ocorrências psiquiátricas, bem como as articulações desse
trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os serviço com a Raps do município de Aracaju (SE).
caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise.
Se o intuito da Reforma Psiquiátrica é questio-
nar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o Algumas definições
hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença, Antes de começarmos a falar sobre o histórico do
preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral Samu, é importante conceituarmos urgência e emergên-
e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo
posicionamento adotamos diante de uma pessoa em serviço. As várias definições destes termos ainda não são
crise. É importante mencionar que as situações de crise claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as
são um dos principais motivos de internação psiquiátrica usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,
no Brasil atualmente (Jardim, 2008). vamos delimitar o sentido em que estamos utilizando
Isso porque, nesses momentos, a Rede de Atenção esses termos para fins de esclarecimento do leitor.
Psicossocial (Raps) que deveria se responsabilizar também Urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à
pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à Rede saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador
de Urgência e Emergência (Reue). A Reue é uma das necessita de assistência imediata” (Fernandes, 2004, p. 2).
mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da Portanto, a urgência se caracteriza por uma situação em
estrutura de rede pensada para organizar o Sistema Único que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem
de Saúde (SUS), a Raps e a Reue têm linguagem, timing e risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con-
aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos, siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica
chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo. da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com
Assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências necessidade de imobilização e crises de asma. É no âmbito
(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem da Urgência que se localiza o atendimento psiquiátrico.
regular a demanda diretamente para dentro dos grandes Já a emergência é definida como a constatação de
hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou condições de agravo à saúde que implicam em risco
comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera- de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,
damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos normalmente caracterizadas por declaração do médico

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152 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

assistente. Os exemplos seriam as hemorragias, ataques segundo regulação médica concernente à gestão dos
cardíacos, amputamentos etc. (Fernandes, 2004). A fluxos de ofertas de cuidados médicos, triando as ocor-
escolha dos conceitos foi feita mediante comparação rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos
de algumas definições de urgência e emergência (Con- públicos (Brasil, 2002; Brasil, 2003). É a regulação
selho Federal de Medicina, 1995; Sterian, 2002; médica que interliga o Atendimento Pré-hospitalar
Fernandes, 2004 e Campos, 2005), que nos levaram (APH) ao hospital. A função do médico é:
à constatação de que, salvo algumas divergências, elas
convergem para o exposto. julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar os
recursos necessários ao local, monitorar e orientar o
Em 1986, foi criado no Rio de Janeiro o Grupo de
atendimento realizado por outro profissional de saúde
Socorro e Emergência (GSE) que finalmente contava [...] ou [...] por um popular. Define e aciona o hospital
com uma equipe composta por médico e enfermeiros de referência ou outro meio ao atendimento necessário.
da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros. (São Paulo, 2001 apud Campos, 2005, p. 16).
Foi nesse contexto que o Samu foi instituído no Brasil,
mais especificamente na cidade de São Paulo, através de A partir do recebimento de uma chamada na central
um acordo bilateral com a França. O Samu brasileiro é reguladora, atendida por um Tarm, que deve acalmar o
estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se solicitante e preencher um formulário eletrônico com a
em muitos conceitos do modelo americano para seus localização da vítima, dados detalhados do local, pontos
treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma de referência e o motivo da chamada. A partir de então,
Life Suport (PHTLS)1. o Tarm passa a ligação para o médico regulador que
Só em 2002, com a instauração da Política Nacional avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de
de Atenção às Urgências, que o Samu deixou de ser um mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação
serviço opcional existente em algumas cidades, passando médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a
a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já
pré-hospitalar de urgência. O serviço foi regulamentado que há dois tipos de ambulância no Samu: as Unidades
através da Portaria 1864 GM de 29 de setembro de 2003 de Suporte Básico (USBs), que contam com uma equipe
(Brasil, 2002; Brasil, 2003). de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as
Deste modo, conta com uma equipe composta por Unidades de Suporte Avançado (USAs) com uma equipe
médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma- formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor
gem, condutores veiculares e aqueles responsáveis pelo veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de
suporte na central de regulação2, Técnicos Auxiliares de Tratamento Intensivo (UTI). Depois disso, o médico
Regulação Médica (Tarms) e rádio operadores. O Samu decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será
atende urgências e emergências clínicas, traumáticas, direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para
gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona receber o usuário.

1
Prehospital Trauma Life Support Committee and the National Association of Emergency Medical Technicians in cooperation with the Committee on Trauma
of the American College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospital trauma life support. 4a ed. St. Louis.
2
A regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de Atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, quali-
ficando o fluxo dos pacientes no Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos,
avaliados e hierarquizados. (Brasil, 2001, p. 1).

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 153

Hoje em dia, a rede nacional do Samu conta com Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men-
112 unidades implantadas. No total, 924 municípios tal e as capacitações realizadas no serviço. O segundo
são atendidos pelo Samu, cerca de  92,4 milhões de roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de
pessoas. Algumas das capitais brasileiras que possuem a enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam-
estrutura do Samu são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte, bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional
Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, For- de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, além da
taleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá, formação técnica e das participações nos atendimentos
Natal, Palmas, Porto Alegre, Porto Velho, Recife, Rio psiquiátricos. Neste momento, abriu-se espaço para
Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo, relatos de experiências.
Teresina e Vitória3. Levando-se em consideração que o funcionamento
do Samu se dá através de protocolos nos quais são cir-
cunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada

UM ENSAIO METODOLÓGICO tipo de ocorrência atendida, o fato de o Samu não possuir


um protocolo psiquiátrico constitui um problema.
A pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos
em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro serviços responsáveis pelo atendimento às urgências
do mesmo ano. A primeira etapa teve como corpus de psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo
análise dez profissionais vinculados ao Samu de Aracaju, operativo, o que fazer com essa situação. Geralmente,
sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade quem lida com isso tende a colocar a ‘crise do paciente’
entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar
quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi- as necessidades e demandas excessivas da clientela que
pe eram auxiliares de enfermagem, três eram médicos o próprio serviço pode estar colapsando (Dell’Acqua;
reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções Mezzina, 2005). Nesse ínterim, o Samu decidiu lidar
de coordenação: um enfermeiro também coordenador com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:
e uma assistente social gerente (contabilizando quatro criando um protocolo específico, uma normatização, que
gestores). Escolhemos informantes de influência direta serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que
nos atendimentos psiquiátricos4, na gestão das capa- não é de todo negativo, pois é necessária a construção de
citações e na regulação médica, pontos fundamentais um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria
para a prática. A coleta de dados foi realizada através problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas
de entrevistas semi-estruturadas gravadas. e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimento
Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro técnico e, por fim, mortificando as relações.
deles, feito para os médicos e gestores, era composto Assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de
por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/GM maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha-
e às Urgências Psiquiátricas. Abordava, além disso, a mento das reuniões para a construção do protocolo psi-

3
Boletim: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=23745&janela=1. Acesso em 6 de março de 2007.
4
Tendo em vista que os profissionais que realizam o atendimento às ocorrências psiquiátricas no Samu de Aracaju são os médicos (indiretamente, por telefone),
os auxiliares de enfermagem e os condutores veiculares (diretamente, no local).

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quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos A concepção de urgência psiquiátrica foi associada
junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo, de forma unânime pelos entrevistados a ‘agressividade’.
abordaremos somente as reuniões de protocolo. É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos
As reuniões intersetoriais contaram com uma psi- de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com
cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental, alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva
dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que
serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de
coordenador clínico do Samu de Aracaju e da Urgência defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma
Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São postura de medo, que acaba gerando omissão do cui-
José, órgão responsável pela regulação da demanda de dado. Assim, ambas as posturas geralmente progridem
Saúde Mental na Reue, e o coordenador clínico do para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,
Samu estadual. Nas reuniões foram observados a relação o Samu conta com o auxilio do Corpo de Bombeiros,
entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava cordas e muitas ataduras.
para idealizar esse instrumento. Além disso, a nossa Além das práticas in loco, a concepção da urgência
participação constituiu uma intervenção, tendo em psiquiátrica ligada à agressividade também influencia
vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,
pelas ambulâncias do Samu, geramos discussões a partir organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou
dos casos assistidos e da literatura esquisada. Além da não uma ambulância para o caso e é responsável pelo
nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde
2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns fixo. Dessa forma, os reguladores acabam por selecionar
dos participantes: uma médica sanitarista, responsável a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti-
pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na Atenção lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos
Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento pelo Samu são aqueles que não podem ser transportados
de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro- num carro comum, ou seja, os casos que precisam de
fissionais do Samu, quanto a sua regulação e abordagem um aparato específico para imobilização. Com isso, o
no local de ocorrência, o coordenador clínico do Samu Samu reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento
de Aracaju e do UCM e a psicóloga representante da psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais
coordenação de Saúde Mental. em seus atendimentos.
Outra questão importante é a do tempo. Os ser-
viços de urgência têm de funcionar da maneira mais
A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência, breve possível. Quando falamos em casos referentes à
tempo, capacitações e o protocolo Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um
A primeira etapa da pesquisa de campo foi cons- dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os
tituída por intermédio de entrevistas. Os dados mais atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro
relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a
concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam
questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em
e a ausência do protocolo psiquiátrico. realizar os atendimentos; entendem que uma garota com

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asma precisa muito mais de uma USB do que um louco se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um
surtando e isso acaba fortalecendo o estigma. grande problema do que de uma solução.
Apesar de o Samu ter um Núcleo de Educação Configurar um serviço dessa forma não seria em-
Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é perrar os fluxos?
ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte- Será que, em lugar de enxergarmos esse ‘não saber
ceram em 2004. Os gestores afirmaram que a falta de o que fazer’ como uma grande questão a ser extirpada o
capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade
sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta de afirmação vital?
de interesse dos profissionais. Muitos técnicos afirmaram Ao final dessa primeira experiência, percebemos que
que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri- somente entrevistas focadas na legislação5, na concepção
cos; quando perguntamos o motivo, responderam não de urgência psiquiátrica e nas capacitações não levariam
saber como agir nesses casos. É importante ressaltar a discussão muito longe, porque poderia desvelar pro-
que o Samu é um serviço que funciona com base em blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções
protocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade
eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as à pesquisa de campo com a segunda etapa, que problema-
ocorrências. Por isso, a falta de protocolo psiquiátrico tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi-
foi apontada como um item negativo, um agravante quiátricas realizadas pelo Samu de Aracaju, mas também o
desestabilizador do funcionamento do serviço. movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo
Atualmente, está sendo desenvolvido o protocolo psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de
da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de Ara- 2007 e não chegou à sua conclusão até então).
caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM Tendo em vista essa proposta, o espaço do Samu,
e com a gestão clínica dos Samus estadual e municipal. como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões
Esse protocolo busca delinear quais critérios deverão levantadas, configurando o ponto de partida para se dis-
ser usados na regulamentação para guiar os médicos cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento
a respeito dos procedimentos que devem ser seguidos dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade
no caso de ocorrências psiquiátricas. Delinear esses premente de se organizarem estratégias que dêem conta
procedimentos é importante para o funcionamento do da atenção à Saúde Mental, o Samu decidiu construir o
Samu no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra protocolo psiquiátrico. Assim, a nossa análise foi feita
o paciente psiquiátrico definitivamente no hall dos casos a partir do acompanhamento das reuniões do grupo
atendidos e com alta resolutividade. operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação
Entretanto, há a necessidade de segurança e, por do atendimento aos casos que entram nesse circuito pelo
isso, busca-se o controle em tudo que se faz. A estabili- Samu e desembocam na Urgência Clínica e Mental do
dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba São José. Escolhemos esse destino com base na conexão
por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. A entre os dois serviços: o Samu como a porta de entrada
saúde é a fluidez desse processo. Assim, a formatação de da demanda e a UCM de São José como regulador do
prática rígidas, como as propagadas pelo Samu quando fluxo das urgências psiquiátricas na rede.

5
A Portaria 2048/GM e a Política Nacional de Saúde Mental.

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Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões que fazia parte da equipe, deixou de ser plantonista e
de construção do protocolo psiquiátrico passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia
Em maio de 2007, o Samu fervilhava em meio a e checar todos os internos. O caso é preocupante. Alguns
uma crise decorrente de um processo que se arrastava pacientes com diagnóstico prévio de transtorno psiquiátri-
desde a abertura do serviço, quando a Portaria 1864/ co com intercorrências clínicas que foram encaminhados
GM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a
(Brasil, 2003). A Portaria, que institui o Samu como óbito graças à falta de estrutura do serviço.
dispositivo móvel da Política Nacional de Atenção às Geralmente, nos casos em que o solicitante atesta
Urgências (Brasil, 2002), estrutura um serviço capaz que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui-
de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não
mal-estar nos lugares mais distantes, ainda que houvesse existe conexão direta ou indireta nem encaminhamentos
a necessidade de os profissionais ficarem pendurados para a Raps ou para um núcleo de Atenção Básica: o
numa corda de rappel para um salvamento vertical atendimento delegado à Reue começa e termina em si
ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. Os mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um
técnicos do Samu devem se tornar agentes preparados circuito mortificado.
para enfrentar qualquer situação, com ‘nervos de aço’ O primeiro passo para o ‘tratamento’ da crise em
construídos sob um considerável alicerce identitário. ambos os serviços foi programado para ser a construção do
Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um protocolo. No entanto, o que poderia dar, de fato, corpo
serviço como o Samu, mas a comoção gerada pelas ur- à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói
gências psiquiátricas levantava questões todos os dias. Os ao longo desse processo: a aproximação dos gestores a fim
médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia- de se formar uma rede de apoio social, a familiarização
res de enfermagem tinham medo de serem assassinados com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes
durante os atendimentos, o relacionamento com a UCM de dar suporte aos trabalhadores e aos usuários.
era complicado e com os Caps, inexistente. Surgiu, então, Problemas de articulação da rede surgiram aos mon-
a necessidade de se idealizar um protocolo psiquiátrico. tes. O Samu não entendia porque os Caps têm carros
Nesse sentido, ficou decidido que o delineamento próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um
desse protocolo seria feito em conjunto pela Saúde de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. A
Mental e pela UCM, o que contribuiria para conectar prioridade do Samu é atender pessoas que estejam nas
a rede. Entretanto, estavam sempre lidando com uma ruas, pacientes encaminhados de algum outro serviço
linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar ficam em segundo lugar na escala de prioridade. A gestão
na simples criação de uma normalização para diminuir do Samu justifica que pacientes nos serviços estão mais
a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,
inquietos com as suas incertezas. podendo, dessa forma, esperar para serem transportados.
Não era só o Samu que estava em crise. A UCM tam- Quando, em uma das reuniões, os representantes dos
bém dava seus sinais. A sua atribuição de urgência clínica Caps compareceram, a questão de que eles não têm como
foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso, atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com
todos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento urgência da ajuda do Samu, pois nem sempre seus carros
foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral, estariam à disposição ou mesmo funcionando.

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Surge, então, uma questão crucial: a falta de res- Raps se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da Reue
posta aos episódios de crise dos usuários dos Caps e de que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente
outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos medicalizada. Tendo em vista que tanto a Raps quanto
principais fatores que contribuem para o fortalecimen- a Reue compõem o SUS, mas, não conversam muito
to da lógica manicomial, exatamente por direcionar entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível
essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda vira uma agressão à vida da pessoa.
se mantêm fortes por serem consagrados pela própria A construção do protocolo será muito eficaz para
rede substitutiva como o serviço indicado para atender o Samu funcionar, mas em nenhum momento foi ques-
prontamente a crise do usuário por meio de internações tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen-
e intervenções medicamentosas. temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de
Enquanto ambulatório que acompanha longitudi- um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios
nalmente um usuário constante, essa realidade do Caps tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma
pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu- simplificação diante da complexidade da vida. A crise,
niões de construção do protocolo, de que o médico é o vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações
profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto de supressão: a medicação e a internação compulsórias.
que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias Tendo isso em vista, questionamos: a quem serve
se sustenta na grande maioria das vezes por conta das esse protocolo? O que significa um protocolo nesse
crises. Da mesma forma, a falta de preparo dos profis- contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças
sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento em protocolos?
intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar O trabalho na urgência requer uma sensibilidade do
na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir
fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se sentido para o que está acontecendo, buscar informações
fazer é conter o paciente. do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades
Essa posição centrada no médico, principalmente dele. Apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,
no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,
os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos estamos lidando com pessoas em momentos de intenso
principais argumentos utilizados como justificativa para sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua
a não-atenção à crise nos Caps é a falta de psiquiatras na diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela
rede. Muito ainda gira em torno do psiquiatra quando identidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça
nos reportamos à crise. Apesar disso, nós já tivemos vá- a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma
rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem norma, favorecendo a violência simbólica.
psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS
Mental (Lancetti, 2006).
6
(integralidade, eqüidade e humanização), importantes
Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen- norteadores de uma prática ampla. A ‘integralidade’ con-
tral da captura da loucura. A crise é o momento em que a siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas

6
Para um maior aprofundamento sobre isso consultar Lancetti, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005; Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D.
Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001.

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as suas necessidades e, para isso, é importante que haja A acomodação e convencionalização de uma verdade,
integração das ações, pressupondo a articulação da saúde a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz
com outras políticas públicas que tenham repercussão na voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.
área e na qualidade de vida dos indivíduos. A ‘eqüidade’ Esse imperativo por constantes criações e movimen-
tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se tações é a grande inspiração dos movimentos antimani-
em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de- comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e
siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem propiciem uma fluidez da vida em todas as direções, e não
precisa de menos (Cunha; Cunha, 1998). A ‘humaniza- a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e
ção’ é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no precipitadas. Por isso, o nosso campo de atuação tende a
processo de produção de saúde (Brasil, 2004). se expandir e a se reinventar todos os dias.
Com base nisso e nos princípios da Reforma Assim, focar o Samu, um serviço altamente medica-
Psiquiátrica é que defendemos uma flexibilização do lizado que, para alguns, não é compatível em nada com
protocolo, que deve servir como um dispositivo para os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização
disparar ações consoantes com a necessidade imediata do da Reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que
sujeito, transformando-o em agente ativo no processo, nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali-
fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à dades ainda não exploradas. A nossa pesquisa, em suas
própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado. inúmeras idas e vindas, percorreu caminhos inter-redes
O Samu, em vez de servir como um mero transporte para conhecer o trabalho dos técnicos do Samu, pensar
com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva em suas possíveis articulações a fim de problematizar a
e que contemple as diretrizes da Reforma Psiquiátrica. atenção e a resposta à crise na cidade de Aracaju.
Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun- Apesar de o Samu ter um histórico de hesitações no
cionar com uma lógica oposta a que está acostumado. atendimento a casos psiquiátricos, o que inclui uma falta
Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,
se constituindo enquanto analisadoras do Samu de uma de acordo com atribuição da Portaria 2048/GM de 5 de
maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi- novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará
mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de
que não pensarmos em estratégias que humanizem o aproximarem-se da Raps a fim de construir o protocolo.
Samu de forma que todas as ocorrências possam seguir, Esse momento é especialmente importante, a despeito
de maneira palpável, as diretrizes do SUS? de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa
a gerar frutos; na última reunião para a construção do
protocolo, realizada em meados de novembro, alguns
gestores da Raps e da Reue decidiram que, após quase
À GUISA DE UMA CONCLUSÃO um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de
compartilharem essas questões com todos os trabalha-
A Reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por dores de ambas as redes.
buscar a descontrução de uma instituição secular, como Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte-
é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez ceu o I Encontro Inter-Redes de Atenção à Pessoa em
mais estratégias de guerra e um caminhar constante. Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-

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cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico-
protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de mial. Por isso, impera um incômodo, um movimentar
se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni- incessante e criativo que rodopia no caos da vida. As
cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades
encontro de muitos outros já planejados. que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade
Além disso, o Samu se mostrou um serviço com pos- de essência podem conferir um território confortável
sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo-
os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento, vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à
o que viabiliza a inclusão da família no processo, bem própria morte. Vivemos numa guerra constante contra
como a rapidez no atendimento que, feito no momento a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera
propício, pode evitar internações e permitir encaminha- uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.
mentos mais eficazes e potentes. Deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades
O acolhimento se mostrou a principal força para o que podem ser criadas com o intuito de despertarmos
estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em para a transitoriedade potente e criativa da vida.
crise na produção de sentido. Assim, a crise pode ser rein- A necessidade de preparar os técnicos de ambas
ventada como potência transformadora, momento para as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum
engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu- é necessário. As oficinas virão com esse propósito, mas
tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a não podem ser a única tentativa. Além da programa-
comunicação como fundamento e os afetos como direção, ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria
ele se torna ‘improtocolável’, aberto, totalmente flexível significativo intercambiar os profissionais para que
para se adequar às situações que se apresentarem. conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da
Isso nos remete a uma discussão que já começa a rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é
se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os importante haver prudência ao aproximá-los. No que
gestores da Saúde Mental: o papel dos Caps na atenção diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,
à crise. Com a recusa dos Caps ao atendimento à crise seria interessante que pessoas fossem estrategicamente
e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis-
vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio- sionais serviriam como aproximadores, disseminadores
nalização dos serviços mais emblemáticos da Reforma de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam
Psiquiátrica. A estratégia que deveria abrir caminho incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar
para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado alguns fluxos previamente estabelecidos.
demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos Precisamos nos aventurar em outros mundos
para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter-
serviço fechado cheira a manicômio. nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica
Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é
sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida a questão da crise e de quais significados ela pode as-
e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos
passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra- nos responsabilizar. Os movimentos antimanicomiais
balho que procuramos realizar são atos de forte cunho ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios

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160 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua trabalho (Samu). Dissertação (Mestrado em Ciências da
operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e Saúde) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
cabe a todos nós levá-las a diante.
Este trabalho é uma convocação, um chamado para
Conselho Federal De Medicina. Resolução nº 1451
uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de de 10 de março de 1995. Define Urgência e Emergên-
nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um cia, equipe e equipamentos para os primeiros socorros.
Diário Oficial da União. Seção I, p. 3666. Brasília, 1995.
convite à experimentação e à invenção de outros mundos
Disponível em http://www.cremesp.org.br/library/mo-
possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto dulos/legislacao/versao_impressao.php?id=2989. Acesso
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Campos, R.M. Satisfação da equipe de enfermagem do Recebido: abr./2008


serviço de atendimento móvel de urgência no ambiente de Aprovado: ago./2008

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008


ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 161

A construção de um serviço de base territorial: a experiência


do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
The construction of a territorial base service: the experience of the Centro
Psiquiátrico Rio de Janeiro

Alexandre Keusen 1
Andréa da Luz Carvalho 2

1
Médico psiquiatra; doutor em RESUMO O artigo relata a trajetória do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria
(CPRJ), centro de atenção à saúde mental pertencente à Secretaria Estadual de
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); diretor do Centro
Saúde do Rio de Janeiro, no atual contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ) de A partir das políticas estaduais e municipais de Saúde Mental, que orientam a
1998 a 2006; atualmente funcionário do substituição de hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços de saúde mental
setor de Terapia de Família do Instituto
de base comunitária, o CPRJ vem se transformando em um serviço territorial
de Psiquiatria da UFRJ.
keusen@globo.com
cada vez mais voltado a atender às necessidades da clientela do seu território de
forma complexa, incluindo o desafio de acompanhar clinicamente pacientes com
2
Psicóloga sanitarista; mestre em Saúde transtornos mentais graves e moradores de rua.
Coletiva pelo Instituto de Medicina
Social da Universidade Estadual do PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria Comunitária; Reforma Psiquiátrica; Saúde
Rio de Janeiro (IMS/UERJ); analista Mental; Política de Saúde; Serviços de Saúde Mental; Reforma dos Serviços
de Gestão em Saúde da Diretoria de
de Saúde.
Planejamento Estratégico da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz).
andreadaluz@fiocruz.br ABSTRACT The article states the trajectory of the Centro Psiquiátrico Rio de
Janeiro, a center of attention to mental health belonging to the State Clerkship
of Health of Rio de Janeiro in the current context of the Brazilian Psychiatric
Reform. Starting from the state and municipal politics of Mental Health, that
gives orientation to a replacement of psychiatric hospitals for a net of services of
Mental Health of community base, Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro have been
transformed throughout years into a territorial service of complex assistance focused
on the needs of the patients, including the challenge of following-up patients with
serious mental disorders and homeless people.

KEYWORDS: Community Psychiatric; Psychiatric Reform; Mental Health;


Health Policy; Mental Health Services; Reformulation of Health Services.

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I N T R O D U ç ão a experiência das modificações ocorridas na assistência


de um hospital psiquiátrico que procurou aproximá-lo
cada vez mais dos modelos comunitários atualmente
preconizados pela política de Saúde Mental.

A partir do final da década de 1970, um movimento


político que questionou o tratamento hospitalocêntrico
de doentes mentais (Amarante, 1995) e criou as bases BREVE HISTÓRICO DO CENTRO
das políticas e técnicas na área da Saúde Mental do PSIQUIÁTRICO RIO DE JANEIRO
final da década de 1980 e da década de 1990, ajudou a
fundar o conceito de Reforma Psiquiátrica atualmente O Centro Psiquiátrico Rio De Janeiro (CPRJ) é
já absorvido no dia-a-dia de gestores, profissionais da um centro de atenção integrado de Saúde Mental sob a
Saúde Mental e usuários. administração da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de
A Reforma Psiquiátrica1 consiste em um conjunto Janeiro (SES/RJ). Criado em agosto de 1998, a partir da
teórico e prático de transformações nas áreas da política transferência do Posto de Atendimento Médico (PAM)
de saúde, da clínica e da cultura, que tem como pres- Psiquiátrico localizado na Avenida Venezuela (antiga
suposto e critério ético a inclusão do doente mental emergência psiquiátrica que, nos anos 1970, centralizava
na sociedade, bem como o seu tratamento em serviços todas as internações dos pacientes segurados do Instituto
de base comunitária e a sua inscrição social como um Nacional de Previdência Social, INPS), caracteriza-se
cidadão de direitos2. por um serviço com emergência psiquiátrica que conta
A redução dos leitos psiquiátricos e a expansão com uma Enfermaria, dispõe de 18 leitos psiquiátricos
de uma rede de serviços comunitários têm sido uma (oito femininos, sete masculinos e três extras), um am-
das estratégias implantadas pelo Ministério da Saúde a bulatório e um hospital-dia.
partir da década de 1990, que visa à inclusão social do A missão do CPRJ tem sido desenvolver projetos e
doente mental e o seu tratamento prioritário em servi- ações voltados à clientela com transtornos mentais, em
ços abertos como, por exemplo, os Centros de Atenção especial àqueles com quadros mais graves e dificuldades
Psicossociais (Caps). nas relações sociais. De 1998 a 2006, foi concebido
Este artigo pretende relatar a história da transforma- em adequação às Políticas Públicas voltadas para a
ção de um hospital psiquiátrico em um Centro Integrado Reforma Psiquiátrica desenvolvidas pelo Ministério
de Saúde Mental. Hoje, considerando-se a política que da Saúde (MS), SES/RJ e pela Secretaria Municipal de
privilegia a implantação de uma rede comunitária, é de ex- Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ). Atuando de forma
trema importância se pensar no que pode ser feito com os integrada, os serviços do CPRJ buscavam atender essa
equipamentos hospitalares psiquiátricos públicos. É nesse clientela em situações de crise e de acordo com suas
sentido que o artigo pretende acrescentar algo: relatando demandas cotidianas.

1
O conceito de reforma psiquiátrica no Brasil sofreu a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Europa e EUA, mas principalmente teve como
inspiração o modelo de reforma italiano (ver Desviat, 2001 e Rotelli; Leonardis; Mauri, 1990).
2
A lei 10.216/2001 (Brasil, 2004A) regulamenta os direitos dos doentes mentais e os tipos de internação. As repercussões clínicas e políticas desta legislação
são analisadas por Delgado (2001).

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No início, em 1998, era como um hospital psi- família devem ser considerados relevantes para o trata-
quiátrico; possuía 15 leitos para curta permanência nos mento dos transtornos mentais.
quais era feita a avaliação da internação psiquiátrica e, É nesse sentido que a sua clientela alvo, prioritária
quando necessário, o encaminhamento de pacientes para acompanhamento no ambulatório e hospital-dia,
para clínicas privadas contratadas do SUS. Possuía, é a residente na área do centro do município do Rio de
também, um ambulatório predominantemente de Janeiro e adjacências (área programática 1.0). No entan-
psiquiatras e um hospital-dia incipiente. Seu papel era to, ele ainda permanece como um dos quatro pólos de
ser mais um hospital psiquiátrico que concentrasse os emergência psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro5,
recursos e a clientela de todo o município e estado do oferecendo atendimento 24 horas e sendo responsável
Rio de Janeiro. Com o avanço das Políticas Públicas pela avaliação da necessidade de internação. Seus leitos
voltadas à abertura de serviços territoriais que dessem são regulados desde maio de 2003 pela Central de Re-
conta das demandas da clientela em seu entorno, como gulação da SMS/RJ.
os Centros de Atenção Psicossociais (Caps), a política de É importante destacar, ainda, os projetos voltados
controle e regulação dos leitos psiquiátricos3 bem como a especificidades de determinadas clientelas. O aten-
o início das discussões entre os serviços do entorno do dimento à população de rua com transtornos mentais
hospital através do Fórum de Saúde Mental da Área realizado no hospital-dia, em parceria com o Instituto
Programática 1.0 (a partir do segundo semestre de
4
de Psiquiatria/UFRJ, e o projeto Pater, desenvolvido
2006), o CPRJ realizou transformações em seu projeto no ambulatório e voltado para a população idosa tam-
terapêutico institucional no sentido de caminhar para bém portadora de transtornos mentais, são exemplos
o perfil de uma unidade assistencial em Saúde Mental desses projetos.
mais engajada em responder às necessidades e demandas Ressalta-se que o projeto terapêutico da insti-
da população adscrita ao hospital. tuição é oferecer serviços (internação, atendimento
É preciso ressaltar que, na área de Saúde Mental, a mutiprofissional na emergência e consultas em diversas
oferta de recursos mais próximos do local de moradia dos especialidades tais quais: psiquiatria, psicologia, assis-
pacientes e o sentido de responsabilização das equipes tência social, enfermagem, terapia ocupacional, oficinas
pelo seu acompanhamento é o modelo que traz melhores terapêuticas, atendimento à família, grupos terapêuticos
resultados em relação à diminuição na necessidade de se e atividades artísticas) para a clientela com transtornos
utilizar a internação, que geralmente é um recurso que mentais, levando-se em consideração o quadro clínico
onera o sistema de saúde e não deve ser utilizado como e a situação social dos pacientes. O desafio do CPRJ é
único recurso terapêutico. Outro ponto importante a criar projetos que respondam às diversas necessidades
ser destacado, é que os contextos do paciente e da sua de sua clientela.

3
A partir de maio de 2003, a SMS Rio de Janeiro passou a regular todos os leitos psiquiátricos públicos e privados contratados da Cidade do Rio de Janeiro.
O CPRJ, junto com os outros três pólos de emergência psiquiátrica (Hospital Municipal Jurandyr Manfredini (HMJM), Instituto Municipal Philippe Pinel
(IMPP) e Instituto Municipal Nise da Silveira), passou a integrar esse processo de regulação, configurando-se como avaliadores da internação psiquiátrica da
cidade (solicitantes e executantes de internação psiquiátrica). Seus leitos eram preferencialmente reservados à sua clientela.
4
O CPRJ está localizado na Praça da Harmonia, no bairro Saúde, na área programática 1.0. Essa área possui uma projeção da população para 2007 de 228.549
habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro). Os bairros oficiais que compõem esta AP são: Centro, Saúde,
Gamboa, Rio Comprido, São Cristóvão, Santa Tereza, Mangueira, Paquetá, Santo Cristo, Cidade Nova e Caju.
5
Os outros três pólos psiquiátricos são o HMJM, o PAM Rodolpho Rocco e o IMPP, sendo que o HMJM e o IMPP são também hospitais psiquiátricos.

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Na época da mudança do antigo PAM Venezuela, O ambulatório é aberto preferencialmente aos


o centro se encontrava em clara decadência, sendo des- pacientes que residem na área programática 1.0 do
crito como uma ‘pocilga’ pelo coordenador de saúde município do Rio de Janeiro, mas mantém assistência
do Ministério da Saúde em 1987. Já o seu processo de a todos os pacientes de outras regiões do município e
transformação foi avaliado duas vezes pelo Programa Estado do Rio de Janeiro que já se encontravam em
Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH) acompanhamento na Unidade.
(Brasil, 2004A) como a melhor unidade do Estado do O hospital-dia acompanha preferencialmente
Rio de Janeiro. novos pacientes, moradores da área programática 1.0
Neste texto relataremos a evolução desta experi- do município do Rio de Janeiro, e pacientes antigos de
ência, avaliando o ano de 2006 em comparação com outras regiões do município e Estado do Rio de Janeiro.
o período de 2000 a 20056, através da compilação Esse é um dos poucos serviços no Estado que possuem
de indicadores da assistência e outros relatos sobre as um projeto terapêutico para o acompanhamento de
mudanças dos serviços que objetivavam construir um população de rua.
serviço de Saúde Mental de base territorial. As equipes realizam reuniões semanais internas
para discussão dos casos e dos problemas dos serviços;
seus coordenadores reúnem-se semanalmente com a
Direção para que haja maior integração entre os vários
O FLUXO DE PACIENTES NO CPRJ serviços. As equipes também fazem reuniões entre si
para discutir casos.
Como já dito anteriormente, o CPRJ se configura
como um dos quatro Pólos de Emergência Psiquiátrica
no Município do Rio de Janeiro, responsável pela ava-
liação da necessidade de internação. A porta de entrada INDICADORES DA ASSISTÊNCIA
para os seus diversos serviços como enfermaria, ambu-
latório e hospital-dia é a emergência que funciona 24
horas, sete dias por semana.
Caso haja necessidade do paciente permanecer in- Emergência e enfermaria
ternado, ele é encaminhado à enfermaria, onde a equipe Houve um aumento nos atendimentos feitos na
realiza uma avaliação sobre a sua permanência ou solicita emergência e no ambulatório no período de 2000 a
à Central de Regulação um leito para a sua transferência. 2005, sendo que registrou-se uma diminuição no nú-
Essa decisão é feita com base em diversas variáveis como mero de atendimentos na emergência nos anos 2000
o local de moradia do paciente, acompanhamento do e 2001, enquanto no ambulatório manteve-se um
paciente por algum serviço do CPRJ e, sobretudo, sua aumento em todo o período. Em 1999, o ambulatório
situação clínica. realizava 14.996 atendimentos; em 2005 esse número

6
O CPRJ começou a desenvolver um sistema próprio de registro de informações desde a sua inauguração, em 1998. Todos os pacientes que entram na emergência
são registrados nesse sistema. No decorrer desses oito anos, foram feitas discussões com as equipes dos diversos serviços nas reuniões semanais de Direção visando
integrar suas informações, ou seja, que o registro do paciente poderia ser visualizado em todas os departamentos de ações terapêuticas no hospital. Tal sistema
permitiu também a realização de estudos sobre a reinternação dos pacientes para uma melhor formulação dos projetos terapêuticos das equipes. A partir do ano
2000, o sistema passou a ser alimentado com informações mais contínuas.

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cresceu em 95% (29.257 atendimentos). Já no ano relação aos números anteriores, que variavam entre
2006, houve uma diminuição de 12% nos atendimentos 10.000 e 12.500 atendimentos anuais. Em 2004, houve
de emergência em relação a 2005 (Gráfico 1). 16.059 atendimentos e em 2005 esse número subiu
Dentre os fatores para a diferença no desempenho para 17.125. Destacamos que no segundo semestre de
da emergência e do ambulatório, destacam-se: a análise 2005, houve a transferência de uma das Emergências
da demanda que chega ao CPRJ e que, em grande parte, Psiquiátricas do Instituto Municipal Nise da Silveira para
reflete a oferta ainda insuficiente de serviços de saúde o PAM Rodolpho Rocco. Esse acontecimento causou
mental na Cidade do Rio de Janeiro; as dificuldades de alguns transtornos para a clientela, já acostumada ao
articulação entre os diversos serviços em uma cidade atendimento feito pelo Instituto Médico Nise da Silveira
de aproximadamente seis milhões de habitantes e com já que foi feita uma distribuição desta clientela entre os
uma história marcada pela presença maciça de hospitais outros três pólos de emergência.
psiquiátricos na resolução dos problemas de quem sofre A diminuição no número de atendimentos em
de alguma desordem psíquica. 2006 pode estar relacionada a alguns fatores internos
O desafio da implantação da Reforma Psiquiátrica e externos ao funcionamento do CPRJ. Os fatores ex-
na Cidade do Rio de Janeiro está não só no aumento ternos dizem respeito a uma tendência, que se iniciou
de serviços extra-hospitalares que se responsabilizam em 2003 e acelerou durante esse ano, dos serviços a se
pelo acompanhamento de determinada clientela, mas responsabilizarem preferencialmente por suas clientelas
também na elaboração de processos de trabalho que mais adscritas, visando o seguimento desses pacientes
estejam mais direcionados à necessidade da clientela inclusive com ações em seu território de moradia; ou-
de ser considerada em sua integralidade e no fato de o tro fator importante foi a ação da Assessoria de Saúde
recurso da internação ser utilizado com critério técnico Mental da SES/RJ no auxílio aos municípios do Estado
definido por uma equipe multidisciplinar. do Rio de Janeiro para organizar suas portas de entrada.
De 2004 a 2005, houve um aumento significativo Já os fatores internos dizem respeito à rigorosa avaliação
dos atendimentos feitos pela emergência do CPRJ em dos pacientes no CPRJ pela equipe que, neste período

Gráfico 1 - Distribuição de atendimentos na emergência e no ambulatório no CPRJ de 1999 a 2006

60000

50000

40000
Emergência
30000 Ambulatório
Total
20000

10000

0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006

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de oito anos, tornou-se multidisciplinar, inibindo cada Como já constatado, esses leitos foram inseridos na
vez mais a distribuição de receitas (prática usual nas Central de Regulação da SMS/RJ em maio de 2003,
emergências em geral) fazendo com que, dessa forma, o quando os leitos psiquiátricos começaram a ser regu-
paciente se engajasse em um tratamento contínuo. lados na cidade do Rio de Janeiro. O CPRJ é uma das
Um dos indicadores que ajuda a acompanhar o quatro portas de entrada que avaliam a necessidade de
desempenho das equipes de emergência é o percentual de internações psiquiátricas sendo que os 18 leitos da Enfer-
atendimentos na emergência que se tornam internações. maria de Curta Permanência são disponibilizados para o
Como já foi dito anteriormente, esse indicador reflete próprio CPRJ; quando há necessidade de transferência,
o esforço do CPRJ em tornar mais complexo o atendi- o hospital solicita um leito à Central de Regulação.
mento em sua porta de entrada, de forma que a decisão Segundo dados do Datasus/MS, o faturamento das
acerca da internação seja um critério técnico consentido internações em um período de seis anos (2000 a 2005)
pelo médico juntamente com o psicólogo e o assistente têm sido em média R$ 95.638,83, o que representa uma
social. Os dados apresentados no Quadro 1 mostram a média de 836 Autorizações de Internações Hospitalares
relação entre o número de atendimentos na Emergência (AIH) por ano. Chamamos a atenção para o fato de que
Psiquiátrica do CPRJ e o número de internações. o faturamento da AIH corresponde ao pagamento das
Nesse período, a média percentual de internações internações de 24 horas e que muitas vezes o paciente
girou em torno de 16%. A partir de 2002, houve uma tem alta em menor período.
tendência de queda mais expressiva com estabilização Na enfermaria, há um esforço da parte da equipe em
entre 2004 e 2005 e nova queda em 2006. Analisando-se tornar essa internação o mais breve possível com a finali-
os números absolutos de atendimentos na emergência e dade de inserir o paciente em serviços extra-hospitalares.
o número de internações, percebemos, no entanto, que A enfermaria conta com uma equipe multidisciplinar
houve uma queda significativa das internações em com- formada por médicos psiquiatras, enfermeiros, técnicos
paração aos anos de 1999 e 2006 (com uma diferença em enfermagem, auxiliares de enfermagem, terapeutas
de 943 internações, ou seja, queda de 41%). ocupacionais e assistentes sociais. A estada do paciente
Chama-se atenção para o fato de o CPRJ ter uma no CPRJ não se limita à permanência no leito e à ad-
enfermaria dispondo de leitos de curta permanência. ministração de medicamentos; a equipe multidisciplinar

Quadro 1 - Percentual de atendimentos da emergência psiquiátrica do CPRJ que se tornaram internações de 1999
a 2006
Anos Número de atendimentos Número de internações %
1999 12.050 2.295 19,05
2000 10.130 2.205 21,77
2001 10.572 2.114 20,00
2002 11.956 2.051 17,15
2003 12.679 1.881 14,84
2004 16.059 1.967 12,25
2005 17.125 2.106 12,30
2006 11.882 1.352 11,38
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006

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deve qualificar a assistência, oferecendo atividades no vidas em projetos de atividades, houve a possibilidade de
pátio interno da enfermaria, e realizar grupos diários oferecer a toda a clientela do CPRJ, independentemente
com as famílias dos pacientes internados. Dessa forma, do local do atendimento, a possibilidade de envolvê-la
acredita-se que o que faz diminuir o tempo de interna- com programas de atenção específica, seja em termos
ção é a interlocução da equipe multidisciplinar com os de terapia ocupacional, musicoterapia, arte-terapia,
recursos apresentados para cada paciente visando, em projetos vocacionais, entre outros. Isso, juntamente
muitos casos, a sua intensificação e articulação. com as transformações pelas quais a enfermaria passava,
O caminho para o setor é assumir integralmente apontava para o encaminhamento do projeto do CPRJ
toda a clientela de seu território, tendo-se inclusive como uma unidade de atenção territorial no campo da
ampliado o número de leitos voltados ao atendimen- Saúde Mental.
to, e não à transferência dos pacientes do território, e De acordo com os dados apresentados no Quadro 2,
procurar encaminhar os pacientes de outras localidades as médias dos indicadores hospitalares (taxa de ocupação
para os outros pólos. Durante o ano de 2006, a equipe e tempo médio de permanência) aumentaram no
da enfermaria começou a dar prioridade ao atendi- período de 2000 a 2005. Esses valores (principalmente
mento a essa clientela, não mais transferindo aqueles o tempo médio de permanência) expressam, em parte,
que morassem na região, fortalecendo os laços com resultados do incremento das atividades na enfermaria
o hospital-dia e com ambulatório. Uma dificuldade nesse período.
evidente, em função da limitação de recursos para se O Quadro 2 mostra, também, uma diferença
lidar com os pacientes de outras regiões, ocorria espe- de 23 pontos entre as médias na taxa de ocupação de
cialmente em relação à clientela feminina que possuía 2000 e 2006. Esse aumento pode estar relacionado às
poucas alternativas de leitos disponíveis na cidade do dificuldades de obtenção de leitos femininos na cidade
Rio de Janeiro. do Rio de Janeiro. Principalmente em 2005, houve uma
Em 2005, iniciamos um processo de discussão no drástica combinação de suspensão e redução de leitos
CPRJ que resultou em uma nova organização denomi- devido aos vários processos de auditoria e interdições
nada de Setor de Atividades. O hospital-dia foi dividido em hospitais psiquiátricos privados contratados pelo
em um setor de atividade e um setor terapêutico, com SUS realizados pela Vigilância Sanitária da SES/RJ e
o objetivo de se organizar a demanda dos projetos tera- SMS/RJ. Em 2006, houve a suspensão de internações
pêuticos da clientela. Na enfermaria a equipe do ‘pátio’, na Clínica Valência, que oferecia 200 leitos ao sistema.
desde 2003, iniciara atividades no ambulatório com a Essa medida resultou na modificação dos leitos psiqui-
clientela da sala de espera e com atendimentos progra- átricos públicos que passaram a atender mais mulheres
mados. Em 2006, com a fusão de todas as equipes envol- do que homens, já que há uma oferta maior de leitos

Quadro 2 - Taxa de ocupação e tempo médio de permanência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período
de 2000 a 2006 – médias
Indicadores hospitalares 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Taxa de ocupação 71% 79% 82% 80% 89% 85% 94%

Tempo médio de permanência (dias) 2 2 2 2 3 2,3 3,9


Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006

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masculinos nas clínicas privadas contratadas pelo SUS estrutura e funcionamento dos hospitais psiquiátricos,
na cidade do Rio de Janeiro. o CPRJ deve ter uma estrutura de pouca complexida-
Em 2006, o CPRJ registrou em cinco meses (ja- de atender às ocorrências clínicas. Observa-se que a
neiro, março, abril, maio e setembro) taxas de ocupação maior parte das causas de morte esteve relacionada à
maiores que 100%. Os tempos médios de permanência dificuldade de tal paciente ser inserido e acompanhan-
nos leitos femininos (6,6 dias) sempre foram, em média, do clinicamente pela rede de saúde em geral e não à
maiores do que os masculinos (1,6 dias). desordem psiquiátrica.
No entanto, ao analisar as altas dadas no período
(com exceção daquelas devido a óbito, transferência e
evasões), percebe-se que este indicador vem aumentando Ambulatório e hospital-dia
gradativamente, podendo estar relacionado, mais uma O ambulatório do CPRJ oferece atendimento indi-
vez, ao trabalho da equipe da enfermaria. O Quadro 3 de- vidual e em grupo por médicos psiquiatras, psicólogos e
monstra que a média percentual de altas dadas pela equipe assistentes sociais, para pessoas maiores de 18 anos. Nos
da enfermaria em relação à média do total de internações últimos quatro anos, definiu-se que a clientela de primeira
no período aumentou significativamente, havendo uma vez deveria ser moradora dos bairros localizados na área
diferença de 15 pontos entre 2005 e 2006. programática 1.0 do Município do Rio de Janeiro, mas
Houve apenas 11 óbitos no período de 2000 a há ainda pacientes de outras áreas programáticas do mu-
2006: dois no ano de 2000, um em 2001, um em nicípio e da Baixada Fluminense que são acompanhados.
2002, dois em 2003, dois em 2004, três em 2005 e um Essa escolha se deu devido a um grande número de faltas
em 2006. Segundo portaria do Ministério da Saúde n o
às consultas marcadas de pacientes de áreas mais distantes
251/2002 do Programa Nacional de Avaliação do Siste- e, também, para que o serviço pudesse utilizar melhor
ma Hospitalar (PNASH) (Brasil, 2004B) que orienta a toda sua capacidade. De acordo com o Quadro 4, houve

Quadro 3 - Internação e alta hospitalar no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias
Indicador hospitalar 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Internação 187 176 176 158 159 175 113

Altas hospitalares 36 36 43 42 43 39 42

% 19% 20% 24% 27% 27% 22% 37%

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006

Quadro 4 - Atendimentos de primeira vez e subseqüentes no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
– período 2000 a 2006
Tipo de atendimento 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Inicial 1.651 1.565 2.545 1.839 1.782 1.300 1.012*

Subseqüente 18.901 19.705 22.768 28.577 28.832 30.523 27.736*

Total 20.552 21.270 25.313 30.416 30.614 31.823 28.748*


* Não está contabilizado o mês de janeiro
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Ambulatorial 2000-2006

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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro 169

um aumento de 55% nos atendimentos do ambulatório arte, marcenaria e culinária. Esse serviço oferece
no período de 2000 a 2005. alimentação para pacientes que freqüentam o serviço
O ambulatório do CPRJ desenvolve um projeto em regime integral. O hospital-dia do CPRJ possui,
especial voltado para a população idosa (projeto Pater), também, uma associação de familiares, a Associação dos
que realiza avaliação neuropsicológica de pacientes com Familiares, Usuários, Amigos e Funcionários do Centro
suspeitas de demência e Mal de Alzheimer; dessa forma, Psiquiátrico do Rio de Janeiro (Afaucep), que apóia as
projetos terapêuticos específicos para estas clientelas famílias e pacientes do hospital-dia. O Quadro 5 mostra
podem ser elaborados. o aumento de 22% nos atendimentos feitos no hospital-
Outro projeto desenvolvido no ambulatório foi a dia do CPRJ, comparando-se os anos 2000 e 2006.
formação do núcleo de Psicanálise, com reuniões dos Segundo dados do Datasus/MS apontados no Quadro 6
técnicos de vários setores semanalmente. Essa equipe houve também um crescimento no faturamento do
ampliou de forma significativa o atendimento psico- hospital-dia no período 2000 a 2005.
terápico na Unidade e, com sua discussão, influenciou O hospital-dia ainda realiza parcerias com as áreas
projetos na emergência e no hospital-dia. sociais da SES/RJ, da SMS/RJ e com o Instituto de Psi-
O hospital-dia do CPRJ é voltado ao atendimento de quiatria da UFRJ para o cuidado e acompanhamento de
pacientes com transtornos mentais graves e persistentes pacientes com transtornos mentais graves e persistentes
cujos laços sociais encontram-se esmaecidos. É também em situação de moradores de rua, em especial aqueles
composto por uma equipe multidisciplinar: psicólogo, que moram no centro da cidade e adjacências. Essas
médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente parcerias implicam no abrigamento desses pacientes em
social, auxiliares de enfermagem e oficineiros. Além das albergues e hotéis; a contrapartida dada pelo CPRJ é o
tradicionais consultas realizadas por profissionais de nível tratamento destes pacientes. Esse projeto foi incluído
superior, o hospital-dia oferece atividades que visam à entre as dez experiências bem sucedidas na III Confe-
reinserção psicossocial de pacientes como oficinas de rencia Nacional de Saúde Mental.

Quadro 5 - Número de atendimentos de pacientes e familiares no hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de


Janeiro – período de 2000 a 2006
Clientela atendida 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Pacientes 8.626 10.523 10.006 11.135 12.656 11.852 11.799

Familiares 1.227 849 698 592 420 270 271

Total 9.853 11.372 10.704 11.727 13.076 12.122 12.070

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Hospital-dia 2000-2006

Quadro 6 - Valores totais anuais, em reais, de faturamento do hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
– Período 2000 a 2005
Unidade 2000 2001 2002 2003 2004 2005

CPRJ 180.421,7 205.837,4 222.553,6 172.012,8 210.219,4 195.396,5

Fonte: DATASUS/Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares 2000-2005

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170 KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM SERVIÇO DE também, serviços terapêuticos para moradores de rua


SAÚDE MENTAL TERRITORIAL NO MEIO com transtornos mentais graves e persistentes e que
DO CAMINHO7 não têm onde morar.
Analisando-se o modelo assistencial desenvolvido
Destacamos que, ao final desses quase dez anos, pelo CPRJ de 1998 até o momento, pode-se dizer que
o CPRJ têm ampliado sua produção em todos os seus esse modelo está em processo de transição, ou seja,
serviços, procurando qualificar a assistência em Saúde ao longo deste período o hospital foi agregando à sua
Mental de acordo com os princípios da Reforma Psi- função de avaliação da internação psiquiátrica outros
quiátrica, ou seja, garantir os direitos dos pacientes e serviços como ambulatório e hospital-dia, serviços que
um tratamento humanizado, inserindo-o no social para se responsabilizam pelo acompanhamento de clientelas
romper preconceitos. e tornam o CPRJ uma instituição mais complexa vol-
A arte adquiriu um papel especial como instru- tada ao seguimento da população residente nas áreas
mento terapêutico e elemento de enfrentamento do próximas ao hospital.
processo de exclusão e da luta contra o estigma dessa Esta apresentação de uma experiência vivenciada
clientela. Destacamos o projeto, chamado Convivendo no CPRJ destaca que seu atual modelo assistencial se
com a Música, que gerou o grupo musical Harmonia aproxima mais das funções de um Caps tipo III8 (Bra-
Enlouquece composto pela clientela e técnicos da sil, 2004C), ou seja, uma unidade de Saúde Mental
Unidade, que já lançou dois CDs e vem se apresen- voltada à população com transtornos mentais graves e
tando em eventos públicos de importância social e persistentes e que tenham dificuldade em estabelecer
Casas de Espetáculos no projeto Loucos por Música e laços sociais. A grande diferença é o fato de que o CPRJ
outros, no Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Brasília e ainda possui uma emergência psiquiátrica e ainda cum-
Porto Alegre. No projeto Convivendo com a Música, pre a função de avaliação da internação psiquiátrica
semanalmente, a clientela se reúne para ouvir e tocar para a cidade do Rio de Janeiro.
música; pelo menos uma vez por mês eles recebem um Isso nos permite demarcar a possibilidade de haver,
músico convidado: já foram recebidos um violinista da nas grandes cidades, um desenvolvimento de serviços
Sinfônica de Sttugart, uma banda punk de meninas que possam atuar de forma integral e ser integrado à
do Rio de Janeiro, uma banda de forró entre outras rede, atendendo de forma territorial a clientela, seja
participações. Além da música as artes plásticas, poesia, na crise, em sua demanda cotidiana ou no processo
teatro e outras expressões artísticas foram vivenciadas de reabilitação.
durante este período no CPRJ. Por fim, ressalta-se que as modificações realizadas
Em 2006, o hospital começou a desenvolver pro- em seu modelo assistencial relacionam-se às necessi-
jetos de visitas domiciliares sistemáticas para pacientes dades e negociações junto às Secretarias Estadual e
que residem da área do entorno do hospital, mas que Municipal de Saúde do Rio de Janeiro com o intuito
não conseguem aderir a nenhum dos seus serviços e, de se implantar a política da Reforma Psiquiátrica.

7
Este título se deve ao fato de que o CPRJ, apesar de todas as modificações apresentadas o aproximarem de um serviço territorial, sua posição no Cadastro
Nacional de Estabelecimentos de Saúde ainda é de hospital psiquiátrico.
8
Um Caps tipo III se constitui como um serviço de atenção psicossocial de base territorial que funciona 24 horas e possui no máximo cinco leitos para internação
psiquiátrica exclusiva de seus pacientes em acompanhamento.

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Ao mesmo tempo, todo o processo de construção da Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstituciona-
diversidade de atividades só foi possível por causa do lização, uma outra via: a Reforma Psiquiátrica italiana
no contexto da Europa e dos ‘países avançados’. In:
engajamento de técnicos, usuários e seus familiares que,
Nicácio, F. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec,
através de debates públicos, assembléias e reuniões de 1990. p. 17-59.
equipe, procuraram encontrar soluções para a melhoria
da assistência dada pelo CPRJ. Recebido: abr./2008
Aprovado: ago./2008

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_______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n.


251, de 31 de janeiro de 2002. In: Legislação em Saúde
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_______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n.


336, de 19 de fevereiro de 2002. In: Legislação em Saúde
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Delgado, P.G.G. No litoral do vasto mundo: lei 10.216


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Desviat, M. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro:


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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008


172 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Articulando planejamento e contratos de gestão na


organização de serviços substitutivos de Saúde Mental:
experiência do SUS em Belo Horizonte
Linking planning and management contracts in the organization
of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte,
Minas Gerais

Serafim Barbosa Santos-Filho 1

1
Médico sanitarista; mestre em RESUMO Neste artigo aborda-se a experiência de articulação de um conjunto
saúde pública e epidemiologia pela
de instrumentos de gestão subsidiando a organização dos serviços substitutivos
Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); consultor do Ministério
de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas
da Saúde, atualmente realiza Gerais há cerca de dez anos. Enfatiza-se o modo de aporte das diretrizes do
acompanhamento/apoio aos Serviços planejamento e dispositivos agregados, para avançar num modelo de co-gestão dos
de Saúde Mental do Sistema Único
processos locais de trabalho. Além da utilidade na organização interna dos serviços,
de Saúde (SUS) em Belo Horizonte
e Região Metropolitana na área de
explicita-se o potencial dessas ferramentas de gestão na organização da rede e no
planejamento e gestão. desenvolvimento de ações articuladas. O aprofundamento dessas aproximações
serafimsantos@terra.com.br pode contribuir para a consolidação dos processos coletivos de trabalho em Saúde
Mental e potencializar a integração da rede.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Planejamento; Gestão; Rede.

ABSTRACT In this article it is approached the articulation experience of a


set of management tools subsidizing the organization of substitutive Mental
Health services of the Single Health System (SUS) of Belo Horizonte (Minas
Gerais), in about ten years. The emphasis is in the mode of intake of the planning
guidelines and aggregated tools to improve a model of participating management.
In addition to the utility in the services internal organization, it is clear that
these tools potential for managing the organization’s network and development
of coordinated actions. It is suggested that these approaches deepening can do
much to the consolidation of the collective work processes’ in Mental Health and
to enhance the network integration.

KEYWORDS: Mental Health; Planning; Management; Network.

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte 173

I N T R O D U ç ão ao que tem sido apontado por Campos (2000, 2003,


2006) como inovações nos modelos de gestão, atualmen-
te enfatizando-se a metodologia de ‘apoio institucional’,
como estratégia de assessorar os coletivos na discussão e
enfrentamento de situações, compartilhando e fazendo
Historicamente, no âmbito dos serviços tradi- ofertas, inclusive de ferramentas.
cionais de Saúde Mental não eram utilizados recursos Nesse eixo, trabalhar com ferramentas de planeja-
de planejamento focados nos processos de trabalho e mento e de avaliação abre caminhos para repensar per-
organização da atenção. A aproximação das diretrizes manentemente ‘o quê’ (metas) está sendo alcançado, com
e instrumentos de planejamento estratégico e outras quais ‘estratégias’, em quais ‘direções’, atinando-se para
ferramentas de gestão no campo da Saúde Mental é algo um acompanhamento avaliativo das ‘mudanças’ propostas
que vem ocorrendo recentemente, a partir das mudanças e esperadas com o serviço. Esse processo ajuda na refle-
no paradigma da atenção, especialmente com a Refor- xão contínua sobre a proposta de desinstitucionalização,
ma Psiquiátrica e proposta dos serviços substitutivos sobre o que ela traz como objetivos e quais componentes
(Amarante, 1992). (‘indicadores’) realmente delimitam o caráter ‘substitutivo’
A apropriação dos referenciais do planejamento, dos serviços, isto é, faz pensar sobre os objetivos e o que
atrelados à uma concepção de gestão participativa, con- está efetivamente sendo posto em prática.
tribui não somente para articular a dinâmica dos serviços No presente artigo, esses e outros aspectos são
em torno de sua missão e metas, mas sobretudo para levantados e analisados, tendo-se por base um ‘projeto
fomentar o exercício da construção coletiva de objeti- de intervenção/apoio’ que começou com uma série de
vos, processos e viabilidade para os projetos desejados. oficinas de planejamento ocorridas em um Cersam/
O planejamento pode, portanto, ser exercitado em um Caps do SUS/BH, no início de seu funcionamento,
caráter pedagógico, de aprendizagem coletiva. em meados dos anos 1990. Essas oficinas propiciaram
Nesse sentido, nossa aproximação sistemática em a orientação do processo de trabalho no serviço, avan-
curso há cerca de 10 anos, inicialmente com um dos çando em discussões que extrapolam a tessitura do seu
Centros de Referência de Saúde Mental (Cersam/Caps) modus operandi, abrigando importantes questões nessas
do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/ direções que acabamos de mencionar, no sentido de fo-
BH), pautou-se exatamente por essa linha, fomentando mentar o protagonismo da equipe na co-construção do
a perspectiva de um ‘jeito’ compartilhado de conduzir ‘sentido’ daquele serviço substitutivo que se inaugurava.
serviços, marcando a importância do envolvimento efe- A pergunta que sempre levantamos para inquietar: ‘a
tivo de todos os atores na produção do seu próprio fazer que viria um serviço substitutivo?’ E, quais ‘frentes de
e das práticas de atenção, jeito que sugeria a importância ação’ poderiam ser construídas para corresponder à nova
da atitude de co-responsabilização em torno de ‘planos missão que se colocava.
de ação’, planos sempre cuidadosamente revistos, e vistos A seguir, são sintetizadas algumas reflexões sobre
não numa perspectiva burocrático-protocolar, mas como os movimentos desencadeados com o serviço que foi
norteador dos movimentos considerados necessários mencionado, agregando também nossas outras experi-
para a consolidação dos serviços. Essa sistemática de ências, estendidas aos demais serviços da rede do SUS/
aproximação e acompanhamento dos serviços alinha-se BH e outros municípios mineiros.

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174 Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

A demanda pelo ‘planejamento’ e os rumos da e adesão ao modelo proposto; (III) os relacionados ao


interlocução estabelecida processo de trabalho, mostrando a inexistência ou insu-
O primeiro serviço que nos foi demandado para ficiência de definição ou clareza de papéis, atribuições,
contribuir com a organização no início de sua estru- arranjos para o trabalho em equipe, rotinas operacionais
turação foi o Cersam/Caps Noroeste. Esse Cersam foi e fluxos; (IV) as dificuldades de viabilizar algumas pro-
criado no final de 1995, a partir da reestruturação de postas previstas no modelo, especialmente as do âmbito
um ‘grande’ serviço ambulatorial ligado ao Instituto da reabilitação psicossocial; (V) e as questões estruturais
Nacional de Previdência Social (Inamps), no processo inicialmente trazidas como uma percepção de limitação
de municipalização de serviços. Os gestores do Sistema, de recursos materiais e humanos.
no qual o Serviço estava inserido, articularam um grupo Seguindo na problematização das situações, mais
de apoio à sua reorganização, incluídos como assessores do que ações sistemáticas para superação dos problemas
para a discussão de seu planejamento. A participação levantados, o planejamento passou a ser uma estratégia
deu-se, então, desde o ‘planejamento’ das estratégias para da equipe para a construção de um ‘projeto diretor’
‘desconstruir’ o serviço instituído (Inamps), caminhando do Cersam/Caps. Clareou-se para a equipe a dimen-
para ajudar em todas as etapas de sua estruturação como são político-instrumental implicada no planejamento
Cersam/Caps. estratégico, possibilitando entender a necessidade de
No Cersam/Caps em sua nova missão e organização uma permanente atitude de participação e negociação,
como serviço substitutivo seria um serviço de curta per- não somente na definição de uma ação/projeto, mas
manência, devendo estar articulado a uma rede ambula- principalmente para assegurar a sua operacionalização.
torial para acompanhamento após o período de crise. Vislumbrou-se a dimensão político-decisória implica-
Após o início de funcionamento, a equipe do ‘novo’ da no ato de planejar, envolvendo interesses, desejos,
serviço manifestou interesse em discutir sistematicamen- recursos físicos e mobilização de poderes dos diversos
te os problemas que estavam sendo observados, expressos atores implicados.
no processo de trabalho, nos resultados das atividades As principais ações propostas englobaram aspectos
e principalmente nas insatisfações que começavam a que contemplavam desde a necessidade de discussões
despontar no grupo. continuadas e ampliadas em torno do projeto institu-
A partir de uma reunião inicial e co-validação da cional da Saúde Mental, até a estruturação de rotinas ad-
demanda que se apresentava, delinearam-se os pos- ministrativas para o serviço. Permeando esses extremos,
síveis movimentos a serem disparados, enfatizando e o processo de trabalho foi o alvo central do enfoque,
explorando especialmente o interesse e mobilização criando-se critérios e fluxos organizadores do trabalho da
dos envolvidos na construção de um possível ‘projeto’ equipe e para articulação com outros órgãos e serviços,
para o serviço. problematizando-se a idéia de rede.
Como grandes grupos de problemas pode-se citar: Os momentos da construção das matrizes operacio-
(I) aqueles que tocavam na dificuldade de compreensão, nais concluíram uma primeira fase do planejamento do
de forma coletiva, das diretrizes centrais do projeto ins- Cersam/Caps, desenhando o que era preciso ser explo-
titucional da Saúde Mental dentro de um novo modelo rado mais minuciosamente. A conclusão dessa fase foi
assistencial; (II) os relacionados a recursos humanos, ligada diretamente ao estabelecimento de cronogramas
principalmente quanto ao desenvolvimento, qualificação de trabalho, constando de subprojetos e atividades a

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte 175

serem desenvolvidas no âmbito interno e nas articulações E nesses movimentos, o serviço/equipe foi cres-
com órgãos externos. cendo em seu potencial de inventar rumos e buscar a
consolidação dos apoios considerados necessários como
desafios. Do ponto de vista do planejamento, havia que
Para além de uma abordagem instrumental de se exercitar esse apoio com direcionamento cuidadoso
planejamento: contribuição das oficinas e movimentos dos problemas levantados, principalmente para não
de planejamento na ampliação das discussões correr o risco de enviesar ou supervalorizar as dimensões
Vale ressaltar uma dimensão de ações que naquele mais ‘aparentes’ dos problemas ou as que apareciam
momento foi de vital importância para o Serviço, ou como ‘sintomas’ mais diretos, a exemplo das situações
seja, a preocupação em se demarcar como uma das de ‘demanda excessiva’ ou das ‘várias faltas estruturais’,
pautas prioritárias a discussão da (nova) clínica que queixas que já naquele momento eram largamente
se desejava fazer e que já se experimentava no próprio manifestadas.
exercício de um aprendizado coletivo. Na medida Portanto, a necessidade de ajudar a tratar dos
em que foram se desenvolvendo as oficinas de plane- problemas trazendo-os para o âmbito do ‘processo de
jamento, inicialmente no âmbito da exploração dos trabalho’, processo complexo por se pretender como
problemas gerais (‘organizacionais’) e, depois como inovador e em ruptura (ou superação) com os modelos
desdobramento dessas, outros assuntos emergiam do tradicionais de fazer. Por outro lado, o cuidado também
próprio cotidiano de experiências, vivências, desafios na perspectiva propositiva, ajudando a equipe a encon-
que se apresentavam em meio a muitas inquietações, trar rumos, mas sem passar a idéia de que as soluções dos
inclusive, pela própria novidade e intensidade do problemas passavam por um eixo de ‘total organização’,
que estava sendo construído. As oficinas, portanto, de modo acrítico, com o risco de se criar uma visão ‘dura’
contribuíram funcionando como um cenário no qual de um processo de planejar; risco de tentar responder
se acolhia e provocava a discussão das demandas e com estruturas rígidas, ‘protocolos’ e ‘fluxos’ inflexíveis
ofertas do Serviço – a ‘clientela-alvo’, os ‘produtos’ a às situações que na verdade eram revestidas de outros
lhes serem ofertados, o ‘modo de ofertar’, as marcas desafios e necessidades.
(‘qualidade’) a serem impressas nessas ofertas/ações, Na verdade, o mais importante era provocar e
e as ‘respostas’ esperadas com esses ‘investimentos’. inquietar a equipe para perceber o processo de plane-
Como isso era efetivamente o cerne do trabalho, na jamento e organização atrelado à perspectiva da clínica
medida em que se ia aprofundando a discussão sobre que é o caminho pelo qual se apresentam, e são reveladas
o ‘fazer’ e conduzir os ‘casos’, foi sendo observado as necessidades reais dos sujeitos/usuários.
ou reforçado a necessidade de tratar dessas questões Portanto, é no âmbito da clínica que se conhece
também em outra esfera, ampliando os loci de sua a necessidade e se direciona a ação; e é nesse contexto
problematização. Nesse momento, despontou e que essa necessidade e essa ação poderiam ser debati-
fortaleceu-se na própria equipe a demanda por ati- das, ‘organizadas’, sistematizadas, direcionadas, à luz
vidades de supervisão clínica. É interessante lembrar de um planejamento – planejamento que viria ajudar
que essa demanda se apresentou como uma operação a pensar critérios, prioridades, fluxos, constituição de
colocada em um dos planos de ação da equipe, a partir equipes, papéis, etc, mas tudo em torno de um objeto
das primeiras oficinas de planejamento. claro/esclarecido (necessidades, demandas, prioridades).

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Evidentemente, a potência do planejamento se estende situações (baseadas nos ‘casos’ e na vida do serviço)
quando se pensa que tudo isso está na perspectiva de que, ora podem ser da ordem de discussão em fóruns
rede, uma vez que os ‘casos’ (as necessidades, demandas) ‘específicos’ (supervisão), ora devem ser ampliadas, na
circulam em vários pontos de uma rede, para tal carecen- ótica da gestão (também em sentido ampliado), para
do de bons (e pactuados) arranjos e fluxos. Mas, tudo resultar em revisão dos modos de funcionamento e
na perspectiva do que são exatamente as necessidades em intervenções e respostas mais eficazes e satisfatórias
(compreendidas no âmbito da clínica ampliada) dos (tanto para usuários quanto para os trabalhadores/
sujeitos-usuários da saúde mental. Pode-se notar que o equipe, e para a instituição/gestão). É importante
que se nomeia como dispositivo de ‘projetos terapêu- observar o quão interessante (e coerente) tem sido a
ticos’, em um sentido, ocupam esse lugar de necessária pauta dos seminários regulares que o Cersam Noroeste
indissociação entre ‘clínica’ e ‘planejamento’ e entre vem fazendo bianualmente, cujos temas vêm a refletir
1
‘atenção’ e ‘gestão’ . exatamente essa interlocução entre clínica e eixos de
Ressalta-se a importância atual dessas reflexões, planejamento/gestão.
inclusive porque não é incomum os serviços/equipes de Acredita-se, e há esse retorno a partir de nossas
Saúde Mental em início de funcionamento ou em fases atividades de acompanhamento, que a máxima amplia-
de reorganização ‘solicitarem’ planos/intervenções em ção de espaços de discussão possibilita não somente a
certa dureza na concepção de organização, como que ampliação de alternativas, mas também gera ‘desesta-
‘sufocados’ por problemas e ‘crentes’ em sua solução, por bilizações’ interessantes, provocativas. As discussões
meio de arranjos apenas estruturais, formais, ‘externos’, ampliadas ajudam a não cristalizar a prática, a não se
como que externos à clínica, ao objeto mais central colocar apenas em função da demanda, a refletir sobre
nesses/desses serviços. uma série de pontos críticos do processo e relações de
Ainda no rastro dessa reflexão enfatizada é pertinen- trabalho, enfim, fazendo aparecer e/ou fortalecer estra-
te a perspectiva de um desenho de ‘apoio’ aos serviços, tégias que têm coerência com as práticas substitutivas.
compondo-se de momentos regulares de supervisão Possibilitam, com diferentes olhares e questionamentos,
clínica (realizadas por um supervisor específico) e de tocar em ‘indicativos’ que estariam refletindo a eficácia
momentos de ‘oficinas’ em uma ótica mais ampliada na gestão e resultados dos serviços.
de planejamento. Observa-se que em determinados Esses novos serviços de caráter substitutivo (ao
momentos isso é benéfico para os serviços. Essa alter- modelo manicomial), na medida em que se consolidam,
nância de espaços de problematização, cada um com acenam cada vez mais a desafios em torno do processo e
suas especificidades e jeitos próprios, foi experimentada metas para o enfrentamento dos modelos tradicionais.
no Cersam Noroeste e também vivenciada ou sugerida Por um lado, podem ser elencados vários indicadores
em outros serviços. Deve ser vista não exatamente como de resultados satisfatórios, como por exemplo, os casos
uma complementaridade de abordagens, mas como progressivos de desospitalização dos pacientes, a redução
espaços de levantamentos, explorações e condução de nos índices de reinternação ou de primeiras internações,

1
O aprofundamento dessa discussão, em diferentes direções, tem sido feito por Gastão Wagner Sousa Campos (Campos, 2000, 2003, 2006) e tem sido retomada
suas bases na formulação das diretrizes e dispositivos do Humaniza SUS/Política Nacional de Humanização. Para maior conhecimento sobre o marco teórico-
político do Humaniza SUS, bem como seus dispositivos, recomenda-se uma consulta aos materiais disponibilizados no site do Ministério da Saúde: www.saude.
gov.br/humanizasus

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a ampliação de acesso e outros. Por outro lado, no coti- em prol da legitimidade dos planos’ (Onocko, 2003).
diano dos serviços, os profissionais têm convivido com Isto implica,
problemas de diferentes ordens, de âmbito estrutural e
de processos de trabalho, resultando em desgastes com assumir uma perspectiva mais descentralizada de
mundo, trazendo à tona o mundo social dos atores para
múltiplos fatores em seu entorno – vêm acarretando
além da fria compreensão do planejamento enquanto
uma sobrecarga diária aos profissionais, traduzida no tecnologia (Onocko,2003),
desgaste que é vivido para se conseguir levar adiante o
projeto proposto. o que potencializa sua relevância enquanto ação comu-
Essas questões acenam para a necessidade de apro- nicativa.
fundar a discussão da organização dos serviços nesse Considerando as dimensões técnica e política do
momento de consolidação. E para isso é importante o planejamento e da atuação intersetorial, deve-se enfatizar
aporte de referenciais que ajudem a problematizá-los, o seguinte:
isto é, dando visibilidade aos resultados (indicadores
quanti-qualitativos), evidenciando as falhas no pro- O trabalho não se restringe, portanto, a um simples
preenchimento de planilhas e corresponde a uma
cesso e sugerindo caminhos para correção de rumos
verdadeira análise do ‘estado da arte’ em termos do
e viabilização de novas frentes. A apropriação de conhecimento e da tecnologia disponível para o en-
ferramentas de planejamento e de avaliação assume frentamento do problema selecionado, ao tempo em
relevância especial no âmbito do movimento e de- que liberta a imaginação dos participantes para que
possam pensar em formas inovadoras de organização
sempenho dos gestores (e equipes), que muitas vezes das atividades previstas, com os recursos disponíveis.
expressam a sua limitação quanto a habilidades em (Teixeira; Paim, 2002).
conduzir os processos cotidianos. Mais do que um
caráter instrumental, esses aportes são um arsenal Se tais princípios valem para o setor saúde em geral,
importante para efetivar o processo coletivo da ges- destaca-se aqui sua pertinência na área da Saúde Mental,
tão, ampliando e consolidando dispositivos de gestão considerando os desafios para ampliação e consolidação
participativa, como os colegiados/fóruns de decisão e dos seus novos serviços e práticas (serviços e práticas
condução dos serviços. inovadoras) e a estruturação de projetos intersetoriais.

Ilustrando o potencial do planejamento participativo


O PLANEJAMENTO PERMEANDO A AÇÃO na ampliação de ações intersetoriais em Saúde Mental
INTERSETORIAL EM SAÚDE MENTAL À luz do planejamento participativo, as ‘situações’
que se apresentam como situações-problema – objetos de
A intersetorialidade pode ser vista como ‘estra- intervenção – são realidades a serem conhecidas, reconhe-
tégia de reorganização das respostas aos problemas, cidas e exploradas pelos diversos sujeitos que as vivenciam.
necessidades e demandas sociais dos diversos grupos da O ponto central que se destaca nesse eixo é o reconhe-
população’ (Teixeira, 2002), refletindo em projetos e cimento dos ‘outros’ atores na articulação desejada para
planos efetivos de ação; e o planejamento como meio de propostas de solução (construção de alianças para atuação
‘revalorizar as estratégias de negociação e de cooperação, e solução). No atual momento da Reforma Psiquiátrica,

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178 Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

tanto no plano mais ‘macro’, como na esfera local de Em um seminário da rede de serviços de Saúde
implementação de ações, é indiscutível a necessidade Mental da criança e do adolescente, tendo como tema
de potencializar a ‘reunião’ dos diversos sujeitos/agentes central a Intersetorialidade, foi possível contribuir
envolvidos nesse ‘assunto’, no intuito de possibilitar a no aprofundamento da discussão sobre a construção
manifestação de suas diferentes percepções e interesses, e de ações articuladas com diferentes atores sociais. Os
disparar movimentos de intervenção. No plano local, por desdobramentos desse seminário levaram à revisão
exemplo, deve-se refletir sobre até que ponto se avançou dos marcos de organização da atenção à criança e do
no envolvimento do ator ‘família/familiares’ na dinâmica adolescente, sendo um dos produtos desse movimento
dos novos serviços; indo mais longe: até que ponto foram a elaboração de um documento/projeto de construção
disparadas ações para envolvimento da comunidade local. compartilhada, envolvendo a coordenação, equipes de
Por outro lado, deve-se refletir permanentemente sobre o trabalhadores e gestores locais (dos serviços), abrindo-se
grau de articulação que se tem conseguido efetivar entre para o envolvimento de outras áreas. Reafirma-se com
os próprios serviços de saúde, buscando sempre manter isso a potência do trabalho construído em parcerias.
em pauta a discussão sobre ‘rede’. O esforço para a realização de um trabalho con-
De outro lado, numa perspectiva bastante am- junto é por si mesmo um indicador de aprendizagem
pliada, exemplos recentes da Saúde Mental podem na perspectiva da atuação integrada, desafio que deve
ser tomados para ilustrar experiências efetivamente levar em conta as diferenças reais existentes (de objetos,
inovadoras no âmbito de um plano intersetorial. É o de saberes, de momentos, de gerência, etc.) entre os
caso da iniciativa de propiciar aos usuários atividades diferentes serviços que compõem a rede, o que torna
como visitas/entradas nos cinemas da cidade, mobili- fundamental a premissa de ‘flexibilidade’ para buscar
zando, para isso, diferentes setores, incluindo a rede de integração, inclusive numa perspectiva que pode ser
empresas de cineclubes. Isso demonstra a incorporação chamada político-pedagógica. Especialmente o ‘momen-
e intercâmbio de desejos, interesses, saberes e recursos to estratégico’ do planejamento deve ser terreno fértil,
distintos, bem como de operações táticas desencadeadas como salienta Onocko (2003), para, nesses contextos, a
para viabilizar essas ‘intenções’, essas ações. E, é um ‘equipe se confrontar com as perguntas: Quem somos?
exemplo de situação que deve ser colocada em análise, Quem são os outros? Estamos imaginando o mesmo
nos espaços do cotidiano de trabalho, para delas serem futuro? Desejamos as mesmas coisas?’. Desponta nesse
extraídas as ‘lições’ como experiência pedagógica, de contexto uma importante problematização de ‘sentidos’,
aprendizado no aporte de habilidades e instrumentos de interesses e de espaços de governabilidade, que pode
de planejamento/negociações. Certamente essa é uma apontar para desafios maiores, como reflexão sobre a
dentre várias outras experiências, e foi aqui destacada (re)construção coletiva de objetivos, produtos esperados
por permitir demarcar de forma muito pertinente à e processos de trabalho, estimulando a mobilização,
‘coerência entre o que se propõe como projeto inovador motivação, criatividade e assunção de responsabilida-
(âmbito da inclusão social efetiva dos sujeitos), o exer- des, como a atitude política. A implicação no processo
cício de uma clínica ampliada (contemplando recursos passa a ir além da assunção ou delegação de funções e
ampliados nos projetos terapêuticos) e a perspectiva competências restritas ao plano técnico. Acredita-se que
organizativa (do planejamento) contribuindo para isso’. a democratização das relações e intensificação das ações
(Comentário do autor) comunicativas (entre dirigentes, técnicos e usuários, e

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte 179

interserviços em rede) deve-se constituir como um dos Cersams e Coordenação de Saúde Mental. O início
produtos dos instrumentos de gestão, firmando espaços desse processo deu-se a partir de uma nova série de
para mudanças das práticas institucionais (Campos, oficinas chamadas pelos próprios serviços (gestores)
2000; Teixeira; Paim, 2002). e coordenação, para discussão de problemas gerais
No momento atual da Saúde Mental, a exploração no funcionamento dos serviços e articulação da rede.
de todas essas perspectivas pode potencializar em muito Ao serem levantadas coletivamente algumas questões,
o desenho, abrangência e ‘invenção coletiva’ de ações. foi proposta a continuação do debate canalizando-o
Vale ressaltar que alguns dos serviços substitutivos, de forma a apontar e direcionar, coletivamente,
como os centros de convivência, vêm demonstrando, metas e estratégias de ação (para enfrentamento dos
segundo sua própria percepção, que não há limites problemas identificados), definindo e negociando as
para disparar experiências inovadoras, muito para além metas possíveis de serem alcançadas, considerando a
de abordagens tecnicistas. E quanto mais sistemáticas realidade de cada serviço e dentro de prazos julgados
forem as interlocuções, subsidiadas por arranjos/planos pertinentes. Assim seriam trabalhados com metas
político-instrumentais é possível aumentar o alcance e que norteariam o acompanhamento e avaliação de
qualidade dessas iniciativas e seus resultados. desempenhos, conforme acordos firmados entre
partes (Coordenação e Gestores Locais). Os pró-
prios instrumentos avaliativos seriam negociados e
definidos de forma compartilhada. Apesar de terem
AVANÇANDO NO APORTE DE FERRAMENTAS sido envolvidos cerca de seis meses nesses primeiros
DE GESTÃO: APOSTANDO NOS movimentos (de problematização, definição e pactu-
DISPOSITIVOS DE CONTRATUALIZAÇÃO, ação de metas), esse processo foi apenas iniciado e,
‘CONTRATOS DE GESTÃO’, PARA aqui, é importante ressaltar tal movimento enquanto
CONSOLIDAR A REDE DE SAÚDE MENTAL potencial que se apresenta para ajudar na consolidação
da rede de Saúde Mental do SUS/BH. Destacam-se
Até a presente discussão, foi enfatizada a aborda- duas vertentes capazes de abrigar a riqueza desse
gem dos instrumentos de planejamento e organização processo de contratualização e o que efetivamente
de serviços em seu potencial de abrir campo para pro- ele pode potencializar.
blematizações e negociações. E na intenção de explorar
ao máximo essa perspectiva do compartilhamento dos
processos, das metas e do fazer cotidiano, pautam-se Quanto ao alcance do método/dispositivo
agora os chamados ‘contratos de gestão’, dispositivos A perspectiva da ‘contratualização’ está atrelada à
que têm sido enfatizados a partir da Política Nacional de efetivação de um processo de ‘co-gestão’, extrapolando
Humanização (PNH) (Brasil, 2006) e que possibilitam uma compreensão de ‘contrato’ no sentido formal,
avanços nos modos de definir coletivamente os modos normativo ou mesmo jurídico. No âmbito que mais
de fazer e os rumos de um projeto, serviço ou da rede. interessa ao presente artigo, contratar significa, então,
Parte-se de uma situação concreta que começou a capacidade de estabelecer contato, criar conexões,
a se experimentar na rede de Saúde Mental do SUS/ redes – uma estratégia de pôr as ações, os serviços,
BH mais recentemente, envolvendo todos os Caps/ para funcionar de outro modo; para alterar os modos

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180 Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

de relação e os modos de gerir o/no trabalho. Em Quanto aos conteúdos previstos nos contratos e seu
termos instrumentais, os contratos devem-se compor ‘acompanhamento avaliativo’
de metas discutidas e definidas coletivamente, pelas As metas que foram contempladas nos ‘contratos
partes envolvidas no processo, co-construindo pro- internos de gestão’ refletem pautas ampliadas, nas quais
jetos, encadeando-se co-análises e co-elaboração de se pode observar o avanço do projeto de Saúde Mental
propostas viáveis. Em sua metodologia, é importante no SUS/BH, sobretudo dando passos para ajudar a
serem desencadeados movimentos simultâneos em ampliar/consolidar um trabalho em rede, com esforços e
duas direções: em uma, o movimento de oficinas en- instrumentos mais sistemáticos para viabilizar e sustentar
volvendo gestores dos serviços e coordenação central; articulações e pactuações entre os serviços. Por outro
em outra, um desdobramento e aprofundamento de lado, e ao mesmo tempo, mostram-se claros os diferentes
discussões entre gestores e suas equipes, não somente momentos de cada serviço/Cersam, cada um apontando
repassando ‘informes’, mas criando-se espaços efetivos suas metas específicas, seus ‘jeitos’ e seus tempos para
de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando desencadear processos (para isso podendo-se proceder a
sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e uma ‘decomposição’ das metas a serem programadas de
ajustamento coletivo de metas no nível local. forma gradativa num cronograma de implementação).
Em ambas as direções, o eixo fundamental é O respeito aos diferentes perfis, momentos e especifi-
o de abertura a processos de pactuação, com co- cidades de cada serviço é uma diretriz cara ao âmbito
responsabilidade em torno de metas não-definidas de dos contratos de gestão. É um dos seus diferenciais de
modo apenas externo, mas de forma compartilhada. outros instrumentos de definição de metas, comumente
Nesse eixo, deve-se valorizar também a perspectiva de estabelecidas de modo prescritivo e unilateral. O que
formação dos gestores quanto à capacidade de gestão poderia parecer apenas um processo de programação,
baseada na escuta; quanto ao aprimoramento de uma ganha outra relevância, de âmbito político e de rede de
das funções do gestor como apoiador institucional, a compromissos.
de fazer ‘ofertas’, provocando e estimulando inovações Uma estratégia fundamental do processo de contra-
no trabalho, sustentando os processos e movimentos. tualização é instituir um método de ‘acompanhamento
A essa ótica atrela-se a perspectiva pedagógica de forta- avaliativo’, cuidando para que as metas sejam aferidas
lecimento dos gestores (e da gestão) quanto ao aporte (em seu cumprimento), não no sentido de uma ‘fiscali-
de conceitos, ferramentas e instrumentos de gestão, zação de seu alcance absoluto’, mas no que se concebe
que podem ser mais sistematicamente utilizados no como ‘avaliação formativa’, capaz de ir ‘incluindo’ as ra-
dia-a-dia, envolvendo os trabalhadores em práticas zões que explicam seu maior ou menor êxito, subsidian-
institucionais de planejamento, avaliação, contratua- do ‘regulações’ no processo e repactuação de metas.
lizações (com base em metas), ampliando a capacidade Vale destacar as metas/iniciativas que foram aponta-
de intervenções de toda a equipe. Esse aspecto ‘for- das, buscando-se cada vez mais efetivar o funcionamento
mativo’, na própria prática, é um aspecto que deve ser dos serviços na perspectiva de uma atuação transdisci-
ressaltado inclusive pela necessidade e compromisso plinar, crescendo em sua proposta de se constituir como
institucional com a atualização dos gestores, alguns serviço inovador, produtor de conhecimento, de uma
novos na rede, e com pouco conhecimento das áreas ‘clínica feita por muitos’ (utilizando uma expressão da
de planejamento, gestão e avaliação. área e que serviu como mote de um dos grandes seminá-

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte 181

rios bianuais que se organizou com o Cersam Noroeste). ______.Um método para análise e co-gestão de coletivos
Tudo isso vai de encontro ao que se quer enfatizar no a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a de-
mocracia em instituições: o método da roda. São Paulo:
âmbito da missão dos serviços de saúde, marcando seu
Hucitec, 2000.
compromisso com a produção de serviços (âmbito da
atenção), mas também com a produção de sujeitos, Onocko, R.C. O planejamento no labirinto. 1. ed. São
conhecimento, aprendizagem no coletivo (âmbito da Paulo: Hucitec, 2003.
gestão) (Campos, 2000; 2003; 2006). A democratização
Teixeira, C.F; Paim, J.S. Planejamento e programação
das relações e intensificação das ações comunicativas
das ações intersetoriais para a promoção da saúde e da
entre dirigentes, técnicos e usuários deve-se constituir qualidade de vida. In: Teixeira, C.F. (Org.) Promoção e
como um dos produtos desses instrumentos de gestão, vigilância da saúde. Salvador: ISC, 2002.
instituindo-se como espaço para mudança das práticas
Recebido: abr./2008
institucionais.
Aprovado: out./2008

R eferências

Amarante, P.D.C. A trajetória do pensamento crítico


em Saúde Mental no Brasil: planejamento na descons-
trução do aparato manicomial. In: Kalil, M.E.X. (Org.).
Saúde Mental e cidadania no contexto dos sistemas locais
de saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. p.103-119.

Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Hu-


manização (PNH): documento base para gestores e
trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde,
2006.

Campos, G.W.S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas:


teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em
saúde. In: Campos, G.W.S.; Minayo, M.C,S.; AkermaN,
M.; Júnior, M.D.; Carvalho, Y.M. (Org.).Tratado de
saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.

______. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008


182 Documento Histórico / Historical Document

SAÚDE MENTAL
Condições de assistência ao doente mental*

Comissão de Saúde Mental dos C e b e s

O quadro sabidamente distorcido da assistência médica no Brasil, com a perversa tendência à privatização e ao
abandono pelo Estado da responsabilidade pela assistência médica da população, delegando essa obrigação social aos
grupos privados, é consideravelmente mais grave na área de cuidados ao doente mental.
Se é verdade que a tendência à privatização é um fenômeno geral atingindo os mais variados segmentos da as-
sistência médica, ou fora dela, não é menos verdadeiro que a previdência conta com alguns hospitais de conhecida
eficiência técnica, não raro os mais procurados nas diferentes especialidades por seu reputado padrão de qualidade e
que, se não atendessem ao universo de segurados, devido ao seu número aquém do mínimo necessário num Estado
estruturado para atender às necessidades mínimas de todos os setores sociais, constituir-se-iam um serviço modelo,
a partir do qual os particulares seriam medidos, num sistema em que o controle de qualidade sobre os serviços con-
tratados fosse efetivo.
Essa possibilidade, todavia, nem mesmo é possível na psiquiatria, especialidade da sem nenhuma unidade
hospitalar oferecida pela Previdência, deixando a totalidade da assistência entregue aos hospitais particulares
através da compra de serviços. Não resta, pois, à Previdência, a possibilidade de controlar a qualidade dos ser-
viços comprados, medida por comparação com a assistência diretamente prestada, como é exeqüível noutras
especialidades.
Desse modo, é de se estranhar que a psiquiatria seja o setor da assistência médica onde as denúncias sobre as
distorções, a eficiência e o baixo padrão tenham se tornado lugar comum, motivo que faz dela assunto permanente

* Texto extraído de: “Condições de assistência ao doente mental”. In: Assistência psiquiátrica no Brasil: setores públicos e privados. Revista Saúde em Debate, Rio
de Janeiro, n.10, p. 49-55, abr./jun. 1980.

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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental 183

nas páginas dos jornais. Uma nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em
setembro de 1978, já apontava a necessidade de:

1. Denunciar que o modelo assistencial psiquiátrico em funcionamento é ineficaz, cronificador e elitista. Ineficaz, já
que o índice de recuperação é insignificante e a prevalência de doença mental na população só tem aumentado. Croni-
ficador porque elege métodos que, usados isoladamente, provam ser francamente nocivos, como a segregação de doentes
em hospitais, com internações repetidas. E elitista, porque deliberadamente exclui o acesso das camadas mais amplas
da população a técnicas mais eficazes, como a psicoterapia.
2. Denunciar que tal distorção permite florescer uma verdadeira “indústria da loucura”, constituída por gigantescos
hospitais, os quais têm na eterna reinternação de doentes mentais, tornados crônicos, uma fonte inesgotável de lucro,
financiada principalmente pela previdência Social.

Temos razão para acreditar que a alarmante situação, denunciada há cerca de um ano, não mostra sinal algum de
mudança. Pelo contrário, a desativação dos próprios da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), o incremento
da política de credenciamento, o vertiginoso crescimento do setor privativo e a diminuição das oportunidades de
preparação de recursos humanos pintam com cores mais sombrias a situação do setor. A seguir, serão feitas conside-
rações sobre o quadro atual da atenção ao doente mental com base na cidade do Rio de Janeiro, observando-se como
se articulam a atuação do Ministério da Saúde, da Previdência Social e o setor privado.

A atuação do Ministério da Saúde

A Dinsam, órgão do Ministério da Saúde, antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais, foi criada com o objetivo
de prestar assistência médica ao doente mental e ditar a política de saúde do setor. Uma das poucas áreas em que o
Ministério da Saúde ocupa-se de parte do atendimento médico assistencial às pessoas, a Dinsam parece passar por
um processo irreversível de deterioração.
Criada em 1941, essa Divisão orientou as políticas do setor e estimulou a construção de frenocômios por todo
o país, sendo que o setor público deteve a responsabilidade maior por essa parte especializada da assistência. Além
da fixação das políticas e da parte normativa, a Dinsam desincumbiu-se da prestação direta da assistência no antigo
Distrito Federal através da Colônia Juliano Moreira, do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Engenho de Dentro, do
Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, e, posteriormente, do Hospital Pinel. Com a transferência da Capital para
Brasília e com a criação do Estado da Guanabara, os hospitais permaneceram sob a administração do Ministério da
Saúde, situação diferente das verificadas nas demais unidades da federação.
Embora devesse oferecer um atendimento de padrão modelar, próprio para uma instituição que normatiza a
assistência, a verdade é que a assistência prestada se caracterizou, com breves e escassas exceções, como retrógrada,
ineficaz e aquém do padrão mínimo aceitável.
O Hospital Pinel, talvez por estar localizado na Zona Sul carioca e prestar pronto-socorro a uma camada social-
mente privilegiada da população, funcionou desde a sua criação em moldes mais modernos, oferecendo uma assistência
de melhor qualidade. Tanto foi assim que logo se transformou em um dos principais centros de formação de recursos

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184 Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

humano, acolhendo estagiários de todo o país; essa situação perdurou até o último ano. No Centro Psiquiátrico do
Engenho de Dentro, no curto período de 1972 a 1974 ocorreram experiências bastante interessantes tanto do ponto
de vista técnico, com a introdução de novas formas de tratamento, quanto do ponto de vista de formação profissional,
com a instituição da residência médica e o incremento das possibilidades de aperfeiçoamento técnico para as diversas
categorias profissionais que atuam nos programas de atenção ao doente mental. Tais experiências não tiveram, po-
rém, longo fôlego. Experiências promissoras em seu início, dotando a Dinsam de atividade acadêmica, propulsora de
melhorias no padrão de atendimento, elevando o conceito dos profissionais e da população beneficiaria dos hospitais
do Engenho de Dentro, não foram adiante. Injunções políticas, interferências na orientação técnica adotada e mma-
cartismo fizeram com que esses hospitais regredissem a uma época que se acreditava estar ultrapassada. As técnicas
mais liberais e eficazes de tratamento, com psicoterapia, o atendimento familiar, a comunidade terapêutica, e mesmo
o internacionalmente conhecido Museu do Inconsciente, considerados subversivos pela maior liberdade e participação
que propiciavam ao interno e foram substituídos pelo encarceramento sumário e pela brutal opção do eletrochoque,
além das altas doses de medicamentos.
Deve-se lembrar, a bem da verdade, que o padrão de atendimento do Hospital Pinel relativamente razoável – por
comparação – e esses fugazes ventos inovadores no Engenho de Dentro em nenhum grau transportaram as sementes
modernizantes à Colônia Juliano Moreira com seus milhares de internos, insignificante número de técnicos, deixa-
dos ao longo do caminho, entregues à própria sorte. Para se ter uma vaga idéia do desamparo a que foram relegados
esses infelizes, um grupo de médicos, assistentes sociais e psicólogos, contratados em 1974 como estagiários, foram
encarregados de fazer um levantamento sobre o número e a situação dos pacientes ali internados2. Para a perplexidade
desses técnicos, dentre os inúmeros absurdos constatados, descobriu-se que o número real de internos era bem maior
do que a capacidade a instituição, doentes (?) sem registro, sem prontuário nem tratamento. Para citarmos apenas
mais um dado, tendo em vista o número exaustivo de problemas apontados, boa parte dos pacientes não via um
médico havia mais de dez anos, o que da indícios do descaso da instituição em relação à recuperação dos pacientes.
Isso nos permite, ainda, fazer uma dramática interferência sobre os índices de recuperação naqueles hospitais, posto
que a Dinsam não divulga dados sobre período de internação e índice de altas.
O fim da residência médica no Engenho de Dentro e a repressão às formas mais modernas de tratamento, não
sustaram os programas de estágio, que prosseguiram no Hospital Pinel, foram estendidos ao Engenho de Dentro e,
em menor grau, à Colônia e ao Manicômio Judiciário. Entende-se isso, em primeiro lugar, pela dramática carência
de profissionais nesses hospitais, o que poderia ser minimizado pela ampliação do número de estagiários não remu-
nerados ou bolsistas sub-remunerados, mas se tornaria mais oneroso com a utilização de profissionais regularmente
contratados; em segundo lugar porque, com o afastamento da direção que implementara inovações, estimulando a
participação de técnicos e pacientes na condução do tratamento, novos técnicos foram então admitidos para trabalhar
“com rédeas curtas” e mantendo o mesmo controle sobre os pacientes. Os técnicos que para ali se dirigiram, em geral
recém-formados e em busca de aprimoramento e experiência, acharam-se usados como mão-de-obra substitutiva,
farta e barata, nem ao menos recebendo em troca a especialização procurada.
Estiolou-se a formação, subverteu-se a experiência, e o estágio para profissionais e estudantes foi oficializado atra-
vés de concursos para as “bolsa de saúde mental”, com verbas da Campanha Nacional de Saúde Mental, expediente
que ao mesmo tempo sub-remunerava o profissional utilizado como mão-de-obra para sanar a crônica deficiência

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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental 185

de técnicos (o último concurso para o provimento de cargos data de 1957), e mascarava o processo de exploração
existente por não reconhecer o vínculo trabalhista, expediente típico de lesão aos direitos do trabalhador assalariado,
perpetrado por instituições públicas ou privadas nesses 15 anos de regime autoritário.
A partir de então, o peso maior da responsabilidade com a assistência caiu predominantemente nos ombros de
estudantes e profissionais denominados estagiários ou “bolsistas”, fórmula mágica através da qual o Ministério da
Saúde desconhecia os direitos trabalhistas de mais de duas centenas de trabalhadores. Para evitar discussões estéreis,
julgamos relevante ressaltar que não se tratava, absolutamente, de cursos de especialização ou de estágios de treinamento
profissional, como demonstravam a inexistência de um programa de ensino, a falta de supervisão e, até mesmo, a
assunção de cargos com responsabilidade de chefia por esses trabalhadores que, ademais, cumpriam função de ensino
ao orientar a prática dos estudantes que faziam Internato no Hospital Pinel. Não restam dúvidas, pois, tratar-se de uma
forma de velar a relação de emprego, escamotear a legislação trabalhista e lesar os direitos desses trabalhadores3.
Naturalmente, a progressiva mobilização de amplos setores da sociedade civil e dos trabalhadores, em particu-
lar, em prol da reconquista dos direitos usurpados a partir de 1964, teve forte ressonância entre os profissionais da
Dinsam4. Alargada a tomada de consciência do esbulho aos seus direitos e criadas as condições para sua organização e
mobilização, com a criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, esses trabalhadores,
após insistirem na regularização de sua situação trabalhista e na melhoria da assistência, razões pelas quais se viram
acuados por ameaças e punições diversas, até a concretização de demissões, paralizaram suas atividades; foi única
maneira encontrada para deixar clara a discordância da parte deles com o tipo de atendimento que vinham sendo
obrigados a prestar, especialmente no Engenho de Dentro e na Colônia Juliano Moreira, e exercer legítima pressão
no sentido de ver tal situação regularizada. Na ocasião, foi enviado um documento à direção da Dinsam e ao Ministro
da Saúde, Sr. Almeida Machado, do qual, entre outras reivindicações, destacamos:

1. Reconhecimento do vínculo trabalhista conforme prevê o cap. V – decreto 60.252, que cria a Campanha Nacional
de Saúde Mental, para os técnicos funcionalmente denominados “bolsistas” [...]
2. Regularização da situação trabalhista, conforme determinada a Lei 3.999 de 15 de dezembro de 1961, para os
técnicos funcionalmente caracterizados como estagiários, que cumpram carga horário semanal mínima de 20 horas e
que tenham tempo de serviço superior a 6 meses. O art. 3º da referida Lei dispõe sobre a remuneração para os médicos
ditos estagiários e acadêmicos internos após cumprido esse prazo.
3. Regularização da situação trabalhista dos demais técnicos em saúde mental, em conformidade com o disposto
na CLT.
4. Criação da Residência Médica em Psiquiatria, oficializada junto ao MEC, e de acordo com as normas da Associação
Nacional dos Médicos Residentes.5

Na realidade, em sua “luta pela dignidade profissional e melhores condições de atendimento à população”6,
esses trabalhadores exigiam tão somente o cumprimento da legislação em vigor, tornada letra morta pelo próprio
poder público.
Data daí o ritmo acelerado de deterioração, até agora irreversível, do atendimento psiquiátrico prestado pela
Dinsam, bem como a paralisação dos programas de aperfeiçoamento de recursos humanos levados a cabo, princi-
palmente no Hospital Pinel, e que deixaram seqüelas de extrema gravidade mesmo com a contratação de alguns
profissionais pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), pequeno número, considerada a popu-

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186 Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

lação de internos e o volume de atendimentos outrora prestados nos ambulatórios que até hoje continuam à mostra,
desafiando uma solução. Essas seqüelas, conseqüências da irresponsabilidade da direção da Dismam e do Ministério
da Saúde, podem ser assim resumidas:

1. Extinção do atendimento psicoterápico à população infanto-juvenil, sem recursos para tratamento particular;
2. Extinção do Ambulatório de Crise do Hospital Pinel, para prevenção de suicídios e atendimento a problemas
emocionais prementes;
3. Paralisação do Centro de Informação Toxicológica (CIT) do Bloco Médico – Cirúrgico do Engenho de
Dentro;
4. Comprometimento da qualidade do trabalho assistencial dos demais setores, pela sobrecarga de trabalho
sobre os trabalhadores que permaneceram incapazes de arcar com as duas centenas de serviços que, mesmo contando
com as duas centenas de demitidos, era demasiado7.

Não é à toa que o Ministério da Saúde, órgão normativo da assistência médica e que deveria prestá-la em nível
modelar, oferece à população uma assistência que, para evocarmos uma palavra que designava certo tipo de doente
mental, é sórdida. A Colônia Juliano Moreira, com seus 4.000 internos, parece estar situada fora do tempo, cuja marcha
parece ignorar, e cumprir seu inexorável destino de campo de concentração8. O Centro Psiquiátrico do Engenho de
Dentro está com seus ambulatórios desativados, pavilhões semi-abandonados e internos assistidos por um número
insuficiente de técnicos. O Hospital Pinel, outrora disputado campo de treinamento profissional e dotado de serviços
de conceituada reputação, encontra-se semi paralisado.
Os hospitais do Ministério da Saúde são hoje, mais do que nunca, baluarte da psiquiatria mais retrógada. Brioche
para os ideólogos da privatização; prova da incapacidade da privatização; prova da incapacidade do poder público em
prestar assistência médica à população.

A Previdência Social e a solução asilar

Ao contrário do que ocorre na área do Ministério da Saúde, onde a assistência é prestada diretamente através da
Dinsam, na área previdenciária, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) arca com
apenas parte do atendimento ambulatorial, oferecendo a grupos privados, e outros, toda a assistência hospitalar.
O destaque, para efeito de exposição, da assistência previdenciária privativista, por equívoco, não marca como
poderia uma oposição ao Ministério de Saúde. Pelo contrário, somos levados a acreditar em uma complementaridade
entre as duas áreas: na medida em que parece ocorrer uma progressiva e intencional atrofia do Ministério da Saúde,
tem-se como conseqüência a retração de sua área de atuação na assistência psiquiátrica direta, ocorre simultaneamente,
grande crescimento da oferta de atenção médica por terceiros, através da venda de serviços à Previdência. Ou seja, a
retratação do Ministério da Saúde na prestação de serviços, no Rio de Janeiro, coincide com a hegemonia absoluta
da atenção previdenciária, entregue a terceiros. Faz-se necessária a pergunta: quem lucra com essa política de saúde?

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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental 187

Parece que a resposta está diante dos olhos de quem quer enxergar. Isso não quer dizer (desfaçamos logo qualquer
equívoco) que apoiemos ou façamos apologias à psiquiatria asiliar prestada pelo Ministério da Saúde ou por quem
quer que seja. O problema é que a progressiva desmobilização dos próprios do Ministério da Saúde, longe de repre-
sentar uma diminuição no índice de reinternação no Rio de Janeiro, apenas mudou o locus, situado agora no hospital
privado, cujo objetivo é o lucro e onde o paciente é apenas um meio para isso, uma mercadoria. Bem entendido, a
retração da atenção psiquiátrica pelo Ministério da Saúde determinou apenas um repasse do paciente ao lucrativo
setor privado.
Esse modelo assistencial adotado pela Previdência, entregando a terceiros a responsabilidade pela assistência,
proporcionou um verdadeiro boom psiquiátrico, representado pelo vertiginoso crescimento do número de leitos
psiquiátricos e, em seu rastro, da população asilar. Seria o resultado do surgimento de demanda reprimida, consti-
tuída por pessoas até então sem acesso aos hospitais? Parece tratar-se de algo diferente, todavia. Não temos notícia,
pelo menos neste século, de pacientes psiquiátricos sem tratamento por ausência de vagas em hospital. Ao contrário
de outras especialidades, em que existem até mesmo filas de pacientes aguardando vagas para tratamento clínico ou
cirúrgico em regime de internação, na psiquiatria, os leitos existentes, já no período anterior à adoção da linha priva-
tizante, davam conta da assistência a ser prestada. Apesar disso, entretanto, o credenciamento de leitos foi crescente,
fazendo-nos supor que isso era realizado sempre diante da demanda. Coloca-se, então, a pergunta: Qual a natureza
dessa demanda?
Pergunta difícil de ser respondida, dada a inexistência de estudos mais aprofundados nesse campo; dificuldade
essa, acrescida inclusive pela imprecisa delimitação do conceito de doença mental. Isso, porém, não nos impede de
adiantar a seguinte hipótese, plausível a nosso ver: o sistema político e econômico, implantado neste país nos últimos
15 anos, pelo que vem provocando de opressão, exploração e miséria, constitui-se como um fator permanente de
exclusão do tecido social ao elevar a criminalidade, a morbidade e a marginalização em geral a índices inimagináveis.
As instituições de saúde, a psiquiátrica em especial, ao tomarem para si esses marginalizados, enquanto doente, exime
a sociedade da responsabilidade de sua produção. Ou seja, o processo de desenvolvimento adotado no país, alienante
e excludente, deixa à sua margem uma parcela de indivíduos que não suportaram o peso da marcha. A instituição
médica, ao medicar o problema, psiquiatrizá-lo ao inseri-lo nas classificações nosográficas, esconde a relação causal
existente, prestando-se ao papel ideológico de escamotear a questão da produção social da doença. A contrapartida
da dissimulação ideológica oferecida ao sistema está representada nos ganhos que aufere, em decorrência da linha
privatizante adotada, tendo o Estado abandonado sua função de produtor de direto aos serviços de saúde.
Para que não restem dúvidas: estamos falando da cumplicidade entre o Estado, que deveria representar a todo
heterogêneo da sociedade, e a parcela dominante desse todo, representada aqui, nesse setor específico do sistema,
pelos empresários da saúde. De um lado, o Estado ao adotar um modelo político-econômico marginalizador de
mais de 70% da população em relação aos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico, possibilita um
aumento econômico, possibilita um aumento dos índices de morbidade e, com ele, de doenças mentais, ao mesmo
tempo em que privatiza a assistência; de outro, esses setores privados, beneficiados pela linha privatizante e que, em
contrapartida, isenta a organização social imprimida pelo Estado, pela responsabilidade da produção das doenças, ao
medicar ou psiquiatrizar o problema.

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188 Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

Para se ter uma idéia a respeito da produção desse tipo especial de marginalizados9, o doente social e o papel
ideológico de encobrimento da medicalização, vale consultar o ensaio Assim enlouquecem nossos operários10, publicado
recentemente, que aponta como alternativa para fugir da fome e da miséria, “a loucura como estatuto”, isto é, uma
condição que permite ao trabalhador receber o benefício doença da Previdência e fugir da exploração do trabalho.
Ainda sobre a natureza desse tipo de marginalização continuam ou autores:

Ele está alienado do controle social e do controle da produção, produz sem prazer e sem nenhum outro ganho secundário
de origem psicológica, só é motivado pela permanente necessidade imediata de sobrevivência. É máquina submetida a
stress contínuo, a desgaste oriundo das massacrantes jornadas de trabalho, o que ganha não dá nem para a alimentação
e, portanto, não há a mínima possibilidade de lazer, as férias são vendidas em troca de um salário extra, a vida é um
imenso e doloroso cansaço.

Insistindo ainda na caracterização dessa demanda, para que não pairem dúvidas sobre a cumplicidade que de-
nunciamos, entre Estado e empresários da saúde, citamos uma matéria, publicada no último boletim informativo do
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro11, sobre a região de Paracambi (RJ) que, diante do
fechamento de sua maior indústria e o aumento extraordinário do índice de desemprego e miséria:

assiste à expansão de um hospital psiquiátrico, que lentamente vai absorvendo, no seio acolhedor da medicina mental,
os desempregados e suas famílias: o hospício substitui a fábrica; o desemprego e a miséria se acomodam no diagnóstico
psiquiátrico.

Considerada assim a natureza da demanda12, entende-se o que significa o crescimento do número de leitos psi-
quiátricos enquanto pólo de atração para essa massa de marginalizados sociais, feitos doentes, e que encontram no
Estatuto do Doente Mental uma forma de subsistência, através do benefício-doença. A internação representa, para o
paciente, a prova da gravidade de seu estado de saúde e a garantia do recebimento do auxílio e, para o hospital, lucro
certo e garantido no ato do credenciamento com a Previdência.
Acusada a linha privatista vigente e caracterizada a demanda, faz-se mais claro o predomínio asilar em detri-
mento do tratamento ambulatorial, implantado nos últimos anos, embora sabiamente ultrapassado e mais oneroso.
Ultrapassado porque, ao invés de contribuir para o ponto restabelecimento do paciente, contribui justamente para
institucionalizá-lo ao cronificar as suas mazelas; e oneroso porque comparado ao custo do tratamento realizado em
caráter ambulatorial (mais eficaz inclusive e, por isso, menos interessante do ponto de vista econômico) é o que conta
dentro da lógica capitalista para as empresas médicas13. Estas exercem, através da Federação Brasileira de Hospitais
(FBH), uma influência na fixação das linhas políticas para a saúde, sem a contrapartida da influência do segurado.
Daí a orientação vigente, nitidamente privativista e empresarial, autocrática e antipopular, no sentido que, se atende
às pressões dos setores empresarias, não responde às necessidades de saúde da população. O próprio Ministério da
Saúde aponta o quadro da assistência psiquiátrica no Brasil da seguinte forma:

1. O sistema assistencial brasileiro, baseado na solução custodial, que consiste na internação em massa dos pacientes
em hospitais psiquiátricos, está inteiramente superado, pois seu abandono vem sendo preconizado há cerca de trinta
anos.

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2. As internações em hospitais psiquiátricos do país são feitas, em proporção apreciável, de modo indiscriminado sem
a devida triagem especializada.
3. As despesas com hospitais psiquiátricos alcançam 90% dos custos operacionais totais, havendo Estados que não
utilizam recursos em serviços estra-hospitalares.14

O Ministério da Saúde reconhece, pois, a natureza anômala e indefensável da tendência asilar da assistência psi-
quiátrica ao privilegiar o asilo, em detrimento do ambulatório e ao estimular o uso abusivo do leitor hospitalar. Dessa
forma, o índice de internação em relação ao número de consultas efetuadas superam qualquer estimativa técnica. Para
se ter uma noção em números, prova irrefutável de que o interesse do segurado ou de que os parâmetros ditados por
estudos idôneos ficam em segundo plano diante da lógica empresarial, confrontamos a estimativa da Organização
Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual “o percentual de admissão hospitalar deverá atingir 3% das consultas
psiquiátricas”, com a estimativa da Previdência que calcula em 13,7% as consultas psiquiátricas que resultaram em
internações em 1975 e em 36% o cálculo referente apenas ao Estado de São Paulo em 197315.
Ao menos no que diz respeito a discursos, publicações, mensários estatísticos, etc, não têm o Ministério da Saúde
ou a Previdência como negar a índole perversa de um modelo voltado exclusivamente a interesses alheios à recuperação
da saúde do segurado. No que diz respeito à prática, entretanto, aliam-se na cumplicidade ao estimularem a medici-
na de mercado, omitirem-se na apuração das denúncias às distorções apontadas e propiciarem o credenciamento de
crescente número de leitos hospitalares construídos com financiamento do Fundo de Apoio Social, recurso público,
portanto. Em dados de 1973, tímidos para refletir a aberração de hoje, as ações de saúde do Ministério da Previdência,
quanto a gastos, se realizam em mais de 90% através do setor privado, dos quais 80% em hospitalização16. Atualizem-se
esses dados, considerando a privatização crescente e, ademais, considere-se que nessa área especializada a Previdência
não conta com nenhum próprio e teremo, na devida dimensão, o caráter perverso, anacrônico e cúmplice, que os
setores público e empresarial conferem ao modelo assistencial. Essa característica, nesse setor especializado, reflete
e complementaridade e adequação entre o sistema político-econômico alienador-enfermizante e a prática médica
psiquiatrizante.
Não seria acaso necessário perguntarmos: a existência de instituições que acolham em seu seio esse marginalizado
social, diagnosticado como doente mental, encobrindo com o manto de seu reconhecimento científico e a reivindi-
cação da propriedade de sua intervenção técnica, os mecanismos socioeconômicos da marginalização? Não integrará,
organicamente, um sistema calcado na defesa de interesses particularistas e na repressão e marginalização daqueles
que se lhes opõem? É justamente a confirmação da existência da organicidade dessa relação, que estivemos discutindo,
que faz do modelo assistencial o que ele é hoje.
Indicada a inclinação estrutural da assistência – perversão estrutural – e de como se dá nele a inserção da insti-
tuição psiquiátrica, faz-se necessária, ainda que em rápidas pinceladas, uma observação sobre o papel desempenhado
pelos técnicos de saúde mental e suas condições de trabalho.
Como se sabe, o modelo capitalista de desenvolvimento impôs não apenas uma alienação do trabalhador em
relação aos instrumentos de produção e ao produto de seu trabalho, mas também determinou um rumo na evolução
das relações de produção, no sentido de uma socialização cada vez mais ampla da atividade produtiva. Ora, julgando
ter ficado claro o exposto até aqui, se a prática médica é organizada em termos empresariais e obedecendo à lógica

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190 Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

do mercado, nenhuma estranheza deve causar a verificação de que uma evolução no mesmo sentido tenha ocorrido
na medicina17. De fato, o predominante no cenário da assistência médica são as clínicas, hospitais, etc, geridos como
empresas, voltadas para o lucro como qualquer empresa capitalista, transformando o médico e demais técnicos em
trabalhadores assalariados. Empregado, trabalhará cumprindo orientação da empresa, atribuindo prioridade ao lucro
financeiro do patrão, o que significa aumentar o período de internação, efetuar internações desnecessárias e outros
expedientes, sem contar aqueles que correm o risco de serem sumariamente dispensados18. Não é por outra razão que
o total de intervenções em psiquiatria no país, na área previdenciária, chegou a 305 mil quando a estimativa da Pre-
vidência ficava em 105 mil, calculando-se em bilhão o gasto desnecessário, no ano de 197719. Como desvincular esse
tipo de distorção do processo de aviltamento da dignidade do profissional acuado diante da pressão dos empresários,
sob a angustiante necessidade de garantir o emprego?
Assim se explicam as condições de exploração a que os profissionais estão submetidos e que, por sua vez, está inti-
mamente relacionada com o tipo da assistência prestada: 1) o empresário, dispondo de forças de trabalho em excesso,
sustentado pela proliferação indiscriminada de escolas médicas, impõe sua lei ao mercado, explorando o médico e
interferindo em seu trabalho. Impõe critérios de admissão, altas, tratamentos e etc, que visam ao lucro e não à cura;
2) o padrão de atendimento, em conseqüência, é o pior possível, com o tratamento sofrendo a intervenção de fatores
extra técnicos, não raro danosos ao paciente; 3) o médico, impotente, é aviltado: primeiro, na sua autonomia técnica,
ao se ver constrangido a adotar critérios com os quais não concorda, cassada sua liberdade de escolha do tratamento
adequado, independentemente do fato de a empresa receber mais ou menos por ele; segundo, em sua condição de
trabalhador, ao ver freqüentemente desrespeitados os direitos trabalhistas elementares.
Quando o profissional mostra discordância com o papel que lhe obrigam exercer, invariavelmente perde o
emprego. E os casos de demissão, sobretudo nesses dias em que, depois de anos de severa repressão, os médicos
e demais técnicos voltam a discutir a questão da assistência psiquiátrica e a reivindicar melhores condições de
trabalho, são cada vez mais freqüentes. Situam bem o problema das demissões e ameaças diversas, aqueles que as
consideram como:

investida dos empresários da loucura contra aqueles que se negam a compactuar com as condições vergonhosas de tra-
balho e com o precário atendimento dispensado aos pacientes.20

Diante desse quadro sombrio, onde se combina o desrespeito aos direitos e à dignidade do profissional, o trata-
mento repressivo aos pacientes e o super-faturamento das empresas, a Previdência cruza os braços, abdicando à sua
responsabilidade, a não ser que atribuamos seriedade e eficácia aos relatórios que locupletam as gavetas dos burocratas,
ou as prosaicas ‘incertas’ do atual titular da pasta.
O mal de que sofre o modelo médico assistencial e, em particular, a assistência psiquiátrica, é estrutural. Não se
trata apenas de evitar distorções, recuperar ou aperfeiçoar o atual modelo. A perversão estrutural que denunciamos
tem seu ponto de partida na abdicação, pelo Estado, à prestação de um serviço básico: o serviço de saúde, direito
inalienável do homem. Ao delegar sua prestação a terceiros, o Estado mostra, na área específica da saúde, a feição
particularista que vem assumindo nos últimos quinze anos.

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NOTAS*

1. Jornal do Brasil, 2/9/78.


2. Dados obtidos com profissionais que fizeram parte desse grupo de trabalho. O relatório final desse levanta-
mento foi arquivado pela Dinsam.
3. Para melhor caracterização da situação dos profissionais denominados “bolsistas”, consultar o artigo Subem-
prego na Dinsam, publicado no Sinmed, abril de 1978. p. 6 (RJ).
4. Ver documento enviado pelos “bolsistas” e estagiários, datado de 6/6/78, ao Diretor da Dinsam, exigindo
a readmissão de três colegas demitidos, por denunciarem as precárias condições da assistência e a irregularidade do
vínculo trabalhista. A resposta a este documento foi a demissão imediata de mais 80 profissionais.
5. Documento enviado ao Ministro da Saúde em julho de 1978.
6. Idem.
7. Nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em O Globo, setembro
de 1978.
8. Jornal do Brasil, 23/9/79.
9. A marginalização social gerada pelo modelo de desenvolvimento a que o país vem sendo submetido a partir
de 64 se manifesta ao aumento da criminalidade, dos menores abandonados, uso de drogas, etc. A doença mental
representa apenas uma das formas de marginalização.
10. Revista Rádice, pág. 21, nº 10, ano II, jul-agost, 1979.
11. Boletim Informativo do M.T.S.M., nº 5, agosto de 1979.
12. A caracterização da demanda, feita aqui superficialmente, está a exigir estudos mais aprofundados. Tornado
doente mental pelo trabalho ou excluído do processo de produção, marginalizado e acolhido numa instituição psi-
quiátrica, essa diferença não tira a validade da nossa argumentação.
13. “Que o setor privado mantenha a situação pela recusa em investir em ambulatórios compreende – se facilmente
porque a consulta médica que irão vender ao Inamps custa Cr$ 86.00 e o leito hospitalar 5.000 ao mês. Apesar disso,
em alguns Estados como Pernambuco e São Paulo, um sistema ambulatorial privado começa – se a estruturar, Talvez
nesses casos o ambulatório e hospital psiqiátrico estejam se retro alimentando não tem que prove aos empresários
que os ambulatórios podem ser lucrativo”. Santana, S. A Situação da Assistência Psiquiátrica no Brasil. III Encontro
Nacional de Assessores de Psiquiatria do Inamps/MPAS, Porto Alegre, RS, outubro de 1978, mimeografado.
14. Brasil, MS. Política Nacional de Saúde, Brasília, 1973.
15. Gentile de Mello, C. A Irracionalidade da Privatização da Medicina Previdenciária. Revista Saúde em Debate,
nº 3, 1977, SP.
16. Gentile de Mello, C. Perspectivas de Medicina da Previdência Social, Ver. Paulista de Hospitais, 21(12):540-
46, dez. 1973, SP.

* As citações do presente documento foram mantidas na formatação da publicação original.

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17. Na psiquiatria a socialização do trabalho é favorecida ainda mais por ser a assistência desempenhada por uma
equipe multidisciplinar.
18. Sinmed, jun-jul., 79, pág. 13, RJ.1
19. Gentile de Mello, op. Cit., 1973.
20. B. I. do M.T.S.M., op. Cit., nº 5.

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ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE 193

A crise de dominação no sistema público de saúde


The domination crisis in the Brazilian public health system

Arlene Laurenti Monterrosa Ayala 1

1
Mestre em Saúde Pública pela RESUMO A crise atual das instituições públicas de saúde é evidenciada pela
Universidade Federal de Santa Catarina
freqüência sempre crescente com que surgem notícias, veiculadas na imprensa
(UFSC); enfermeira da Secretaria
Municipal de Saúde de Joinville,
escrita, manifestações de insatisfação dos usuários e trabalhadores da saúde.
(SMS). Procurando compreender melhor essas manifestações, este artigo examina o
alayala@bol.com.br enfraquecimento dos mecanismos de dominação/controle dessas instituições sobre
os trabalhadores de saúde e população. Em segundo lugar, apontam-se as formas
de coerção adotadas por essas instituições em situação de oposição e conflito. E,
finalmente a necessidade de um controle verdadeiramente democrático sobre o
setor é reafirmada. Foram utilizadas como prova da situação atual de crise no
setor, notícias de jornais de difusão nacional e regional.

PALAVRAS-CHAVE: Dominação-subordinação; Participação social; Sistemas


de saúde; Setor público.

ABSTRACT The current crisis in the Brazilian public health institutions becomes
evident through the users’ and healthcare workers’ manifestations of dissatisfaction
shown in the increasing number of news in the press. Aiming at understanding
those manifestations, this paper analyzes the institutions’ weakening of the control/
domination mechanisms over healthcare workers and the population. The ways of
coercion adopted by some institutions in situations of conflict and opposition are
herein pointed out. Finally, this paper also reinforces the need of a true democratic
control over the health sector. As a means of highlighting the current situation,
news printed in both local and national newspapers were used.

KEYWORDS: Dominance-subordination; Social participation; Health systems;


Public sector.

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I N T R O D U ç ão escrita às quais, muitas vezes, não damos nenhuma


importância e sequer percebemos as manifestações de
uma crise ali explicitadas.

O trajeto problemático do setor de saúde


Como pode a 8ª Conferência Nacional de Saúde e
Durante o percurso de organização do setor saúde
o movimento pela Reforma Sanitária dos anos 1970 e
no Brasil, a função da participação na definição das
1980 ter tido sucesso em identificar um modelo teórico
políticas de saúde foi alienada dos setores da sociedade
de atenção à saúde com base em premissas e diretrizes
e transferida para as instituições públicas. Assim, essas
da universalidade, integralidade, equidade, descentrali-
instituições adquiriram o poder de aglutinar os traba-
zação e participação da sociedade, mas não nas formas
e modalidades de transição para que tais premissas e lhadores de saúde e setores da sociedade num padrão

diretrizes fossem alcançadas? hierárquico estrutural e funcional segundo um critério

É tarefa de uma teoria de transição articular as que define a maior ou menor participação no controle
questões específicas do processo social em andamento, e definição dessas políticas.
identificando com precisão suas limitações. Desse modo, A centralização do poder de decisão nos níveis
as restrições da teoria da Reforma Sanitária com relação centrais de comando e a arrogância dos especialistas em
aos problemas da transição hoje se afirmam, primor- planejamento e gestão em saúde não têm sido capazes de
dialmente, pela ausência de uma estrutura organizativa, imprimir a eficácia, no sentido de controlar o número de
composta por indivíduos livremente associados capaz pessoas que vêm adoecendo e morrendo diariamente.
não só de negar a ordem dominante, mas também de Práticas determinadas em tais bases têm privado os
exercer as funções de participação na efetivação dos ide- trabalhadores do setor e usuários, de participar efetiva-
ais da Reforma Sanitária. A participação, como resultado mente na definição das políticas de saúde, o que vem
de tradições culturalmente estabelecidas na sociedade ampliando consideravelmente a incapacidade do setor
no intercurso material, é o elemento estratégico para em responder às necessidades básicas de saúde dos indiví-
a reestruturação dos rumos da tão desejada Reforma duos e da coletividade. A prova disso é a crise estrutural
e retomada do compromisso com os valores de uma da saúde, que já vem ocorrendo há algum tempo e, a
sociedade produzida na própria realidade. cada dia, aprofundando-se, ainda que sua intensifica-
Hoje, somos testemunhas da atual crise pela qual ção não assuma a forma de “grandes confrontações”. A
o setor público de saúde vem passando. Tal crise, nem seguir, mostraremos trechos de manchetes publicadas
preciso dizer, vem violando o direito mais elementar dos em jornais que explicitam a crise.
indivíduos: decidir sobre sua própria existência.
Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e
A leitura de jornais com informações sobre o nosso bebês são transferidos
dia-a-dia pode constituir uma fonte importante para a A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
explicitação da crise e dos embates políticos contempo- fechou, ontem de manhã, a Maternidade Leila Diniz,
em Jacarepaguá, onde um bebê morreu no início do
râneos do setor da saúde. Nessa perspectiva, procurou-se
mês e outros três foram contaminados, supostamente
mostrar um olhar sobre o nosso cotidiano e uma leitura por uma bactéria. [...]. Há um ano, outros cinco bebês
mais atenta das informações veiculadas pela imprensa também adoeceram por causa de uma bactéria e três

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deles morreram, após inundações na maternidade Ironicamente, porém, a padronização do trabalho


(Albuquerque, 2005). intelectual ‘no topo’ das hierarquias técnicas, o mono-
pólio da informação e decisão à ‘democracia represen-
Outra notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo
tativa’ através da institucionalização e cooptação dos
expõe a gravidade da situação atual. Em nome da neces- Conselhos Municipais de Saúde, entre outras questões
sidade de racionalização, estuda-se de que forma poderá e o acesso limitado dos indivíduos ao acesso universal,
ser negado aos pacientes com quadro clínico grave o trazem consigo uma ‘bomba social’ em forma de uma
acesso a tratamentos que poderiam salvar suas vidas. constante insatisfação da parte dos usuários em gran-
Constata-se que, na tentativa de resolver o problema do de escala, à medida em que o sistema não consegue
déficit do número de leitos de UTI, o governo propõe a absorver as demandas por serviços e que as formas de
restrição do acesso aos pacientes, sem que em momento organização, saídas da lutas autônomas, começam a se
algum faça referência às reais necessidades de ampliação submeter às formas de organização da classe gestora,
do número de leitos. Segundo o presidente da Associação sendo os representantes do corpo social transformados
de Medicina Intensiva Brasileira (Amib): em novos gerentes da instituição.
A contradição é estabelecida entre a forma vigente
existe oferta de 21,5 mil leitos de UTI em todo país, de controle e a perda dos comandos centrais do setor
no entanto, seriam necessários no mínimo 26 mil
do controle e da dominação, dado o funcionamento
vagas, embora o número ideal, segundo recomendação
da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de no problemático do setor, que produz um padrão de
mínimo 44 mil. (apud Colluci, 2005, p. C1). atendimento desumano e com baixa resolutividade aos
grupos populacionais.
Governo federal quer restringir UTI a doentes com
A prática de dominação do setor saúde vem en-
chances de recuperação
O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam contrando resistência da população, que mostra sua
selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de insatisfação através da imprensa, em função do difícil
UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades acesso às tecnologias em saúde, desde as mais simples
de terapia intensiva das redes públicas só pacientes com
até as mais complexas; do outro lado, há uma resistência
chances reais de recuperação. Para isso, serão estabeleci-
dos indicadores de prognóstico, baseados em evidências por parte dos trabalhadores de saúde, em conflito com
científicas, utilizadas tanto na internação como na alta as formas de organização do trabalho impostas pela
[...] (Colluci, 2005, p. C1). estrutura central de comando, que exigem vários pressu-
postos operacionais e técnicos; destaca-se, sobretudo, o
O absurdo, na notícia acima referida, é a delega- pressuposto de perseguição de eficiência, num contexto
ção de responsabilidade, imposta pelos burocratas aos de pouca valorização dos trabalhadores e sobrecarga de
médicos, de condenar à morte. Essa delegação desloca trabalho.
a responsabilidade do setor de salvar ou melhorar a O insucesso dos programas de saúde reflete na
vida para os profissionais médicos. Desses exemplos, prática das unidades de saúde responsáveis pelo atendi-
que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente mento aos indivíduos e à coletividade. A superlotação
que não se poderia chegar a outra conclusão que não dos prontos atendimentos dos hospitais e os agravos à
a da possibilidade de esta crise ser posta como o limite saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam
da própria vida. ser prevenidos, e exigem tratamentos mais agressivos,

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196 AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

podem ser um indicativo da baixa resolutibilidade desses nal de saúde, a responsabilidade pela ‘leviandade’ ao
programas. afirmar que o mesmo só presta concurso público para
Igualmente significativo é o modo persistente com ‘testar seus conhecimentos’, distorcendo a verdade. Essa
que esses gestores acreditam que novos programas de resposta não pode identificar as reais causas do não-
saúde, contempladores dos efeitos dissociados de seus preenchimento das vagas disponibilizadas. Uma delas,
determinantes, possam resolver os problemas de saúde a falta de atratividade pela remuneração do trabalho, já
da população sem que sejam consideradas as dimensões é vista como resultado da política de não-priorização
geradoras do adoecimento: a econômica, a política e a da saúde nas ações dos governos. Assim, se evita não
social. Ou ainda, como se pode constatar na manchete apenas enfrentar as causas, mas simultaneamente essa
a seguir, atribuir a culpa da ineficácia do sistema ao evasiva torna-se uma conveniente ‘justificada’ perante
fato de os especialistas médicos realizarem concursos a população.
em instituições públicas simplesmente para testar suas
capacidades profissionais, ignorando que, para esses
profissionais, os salários oferecidos pelo sistema público Repressão ao dissenso
estão aquém do mercado. Para Pierantoni (2001), essa Quando o setor de saúde não consegue enfrentar
remuneração desloca esses profissionais para setores manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, impor sua
ligados à assistência supletiva à saúde. ‘tolerância repressiva’, entra em cena a defesa deliberada
da repressão. A concretude dos fatos evidenciados nos
Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde leva a abordar com especial atenção uma pequena parte
[...] A mãe de Pablo, de um ano e um mês, deveria da história dos trabalhadores de saúde da instituição
levar o filho a cada 30 dias no médico para acompa- na qual a autora trabalha há tantos anos, sobretudo em
nhar a doença do filho, que sofre de sopro no coração.
Desde janeiro, porém, ela não consegue vaga no posto razão de práticas dessa instituição pública, que têm como
de saúde da Vila Nova.[...]. Desde o início do ano, base uma determinada forma de resposta ao dissenso na
apenas uma especialista está atendendo a população qual a dominação deve sempre prevalecer.
do bairro na parte da manhã.
A atitude de expor a situação, de certa forma re-
Gerente se justifica
Por lei, não podemos renovar os contratos, temos de presenta uma fonte de dados e, espera-se que, com esse
chamar médicos aprovados no concurso público de procedimento, seja possível esclarecer que o episódio
2004. A gerente complementa: ‘Há quem faça o ocorrido no final do ano de 2003 e durante o ano de
concurso só por fazer, da mesma maneira que pres-
2004 teve substancial importância no que diz respeito
tam vestibular para testar a própria capacidade’ [...]
(Weber, 2005, p. 6). ao estudo do tema proposto. As manchetes de jornal
a seguir, ilustram muito bem o que hoje vivenciamos

Vista de outra forma, a justificativa explicitada aci- no setor:

ma no jornal do município de Joinville, Santa Catarina, Perseguição e política


A Notícia, deixa claro que o setor público de saúde nem Uma das fiscais que prestou depoimento ontem
sempre representa uma alternativa profissional atrativa na CEI que investiga denúncias contra o setor de
vigilância sanitária, da Secretaria de Saúde de
e, por isso, não logra sucesso no preenchimento de seus
Joinville, disse que foi vítima de perseguição por
quadros. A resposta dada pela gerente dissimula a falta parte do chefe hierárquico, Domingos Alacon [...]
de atratividade, jogando, mais uma vez, ao profissio- (Neves, 2003, p. 8).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008


AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde 197

Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da saúde trabalhadores de saúde1, relaciona-se à legitimação de
[...] A secretária municipal de saúde, Tânia Eberhardt, tais práticas por meio da sujeição desses trabalhadores
admitiu ontem ter conhecimento de que o ex- chefe da
a processos disciplinares.
vigilância à saúde, engenheiro Domingos Alacon, era
sócio de uma empresa que poderia ter afinidade com o
setor que ele dirigia [...]. Nos depoimentos anteriores,
dois fiscais disseram sentir-se constrangidos ao autuar Ação política como expansão do setor privado
empresas que eram clientes do Centro de Assistência
As matérias jornalísticas a seguir expõem, de forma
Integral ao Trabalhador (Cait), empresa de Alacon.
‘Todos sabemos que as pessoas, às vezes, procuram dire- reveladora, que as formas de controle indireto das deci-
tamente as instâncias superiores, mas isso não é nenhum sões são obrigadas, em função dos grandes interesses de
crime’, disse a secretária, sobre o fato de empresários não expansão dos setores privados, a permitir um controle
quererem falar com os fiscais, mas diretamente com o
ex-chefe do setor [...] (Junges, 2003, p. 5). direto, através de representantes de grandes empresas
aos mais elevados postos políticos do executivo, ou ain-
Os fatos ocorridos na Secretaria Municipal de Saúde da, por intermédio das instituições de direito privado,
de Joinville despertaram na autora uma profunda inquie- denominadas de Organizações Sociais (OS). Portanto,
tação a respeito das questões dos interesses explicitados a política atualmente nada mais é que a aplicação de
pelos gestores de saúde, indignação com a injustiça e a medidas utilizadas como instrumento de manipulação
opressão para com os trabalhadores de saúde que tive- do corpo social em detrimento de seu desenvolvimen-
ram a coragem de denunciar o uso da estrutura pública to, sendo também de sua responsabilidade responder
pelos setores privados e, tristeza em relação aos 1.700 sistematicamente às crises do sistema.
trabalhadores de saúde e Conselho Municipal de Saúde Vejamos outra manifestação da mídia na qual as
que se omitiram, permanecendo em silêncio e alheios estratégias de ocupação privada das macroestruturas
perante os acontecimentos da época. afinada com os princípios de expansão encontram seu
Tais acontecimentos sugerem uma análise inquie- equivalente também nas microestruturas.
tante, primeiro por tratar-se de uma tentativa de colocar
Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar
as instituições públicas a serviço dos setores privados e,
repasses ilegais
segundo, por tornar-se evidente que o fato foi totalmente [...] o prefeito de Itabuna, Geraldo Simões (PT), foi
ignorado pelos setores representantes da população, acusado pelo Ministério Público de efetuar repasses
principalmente pelo Conselho Municipal de Saúde e ilegais (no total, R$ 7 milhões) para a Aias (Associação
Itabunense de Apoio à Saúde). [...] ‘As transferências
pela Comissão Municipal de Saúde do Trabalhador, são ilegais e configuram, em tese, ato de improbidade
esta última composta por sindicatos de trabalhadores. administrativa, que causa prejuízo ao erário’, escreveu
Isso nos leva a concluir que esses setores não possuem o procurador [...]. Segundo o promotor, a irregulari-
dade está no fato de uma entidade privada, sem fins
um projeto político voltado para o interesse coletivo, ou
lucrativos, gerir recursos do governo [...] (Martinez,
talvez que não possuam projeto político nenhum ou po- 2003, online).
dem estar sendo cooptados pelos interesses dominantes
no poder. Por último, pode-se constatar que a defesa da O modo como a ação política tem sido utilizada
intolerância institucionalizada, na forma de punição dos para a expansão do setor privado é ainda mais revelador,

1
Os três trabalhadores de saúde que denunciaram as irregularidades na Secretaria Municipal de Saúde foram transferidos e respondem ou responderam por
processo administrativo interno. Um deles sofre de distúrbios psiquiátricos e se encontra em tratamento.

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198 AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

mesmo quando tais ações são desvirtuadas e apresentadas A necessidade de um controle social
como interesse da sociedade. Na manchete a seguir cons- Se há necessidade de retornar aos princípios origi-
tatamos esta revelação, à medida que o atendimento das nais da Reforma Sanitária é imprescindível uma análise
reais e prioritárias necessidades da população não se cons- da forma como se instituiu o controle social do Sistema
titui pré-condição para o financiamento das empresas do Único de Saúde (SUS). A lei 8.142 de 28 de dezembro
setor privado, prestadoras de atendimento em saúde. de 1990 instituiu os conselhos e as conferências como
instâncias de controle social do SUS (Radis Dados,
Governo Lula cria programa de apoio financeiro 2005). Ao analisar esse importante aspecto da proposta,
para os planos de saúde
deparamo-nos com grandes dificuldade por entender-
O governo Luiz Inácio Lula da Silva prepara medi-
das de socorro financeiro para as empresas de planos mos que a instituição de uma entidade jurídica não ga-
e seguros de saúde, o polêmico setor que reúne 1.797 rantirá o controle social, e pela completa transformação
operadoras e responde pela assistência a 40,1 milhões dos ideais da Reforma Sanitária em uma realidade que
de brasileiros. A intenção é criar duas linhas de cré-
substitui a participação coletiva dos indivíduos livre-
dito, ambas com recursos do mercado financeiro, a
princípio de duas instituições estatais[...]. Uma das mente associados pela participação forçada de homens
linhas servirá para estimular fusões e aquisições. [...] governados por uma força política que lhes é alheia, na
Se aprovada, ela poderá criar monopólio no mercado, forma dos Conselhos Municipais e Locais de Saúde.
diz Arlindo de Almeida, presidente da Abramge[...].
Segundo Cardoso, os principais grupos de setor, o de Sob tais circunstâncias, cabe ao movimento pela
operadoras e seguradoras de saúde, perderam clientes Reforma Sanitária refletir se a institucionalização do
nos últimos quatro anos, [...] (Leite, 2005, p. C1). controle social tem levado à sustentação e legitimação
das aspirações da sociedade ou do sistema. Estamos
A medida acima, proposta pelo atual governo, visa convictos de que as aspirações do corpo social só podem
equilibrar as enormes perdas do setor privado. Conse- ser plenamente estabelecidas se as condições para sua
qüentemente, ela prescreve a transferência de subsídios realização forem expressas concretamente, na própria
públicos a esses setores. Essas medidas políticas têm realidade.
servido, portanto, para responder às crises das institui-
ções privadas e aos ditames do Capital Monopolista,
numa freqüência crescente. Não há dúvidas de que no
sistema atual se desenvolve uma crise estrutural em sua CONSIDERAÇÕES FINAIS
totalidade, hoje manifestada através do crescente e con-
tínuo distanciamento entre os interesses da maioria da Quando a sobrevivência dos indivíduos está ame-
população e das estruturas do sistema, de maneira que açada, e de fato está, pela estrutura pública ineficiente,
as perturbações acentuam-se e a observação a ser feita ineficaz, corrupta e pela administração, das instituições
refere-se ao fracasso evidente das instituições públicas e públicas e privadas, inadequada e descomprometida com
privadas no enfrentamento dos problemas da socieda- o bem-estar da sociedade, a saída é a mudança das regras
de. E isso nos faz evidenciar a necessidade urgente de do jogo social; é colocar os indivíduos no controle dos
um controle social que garanta uma maior eficácia do seus interesses. Reconhecer essa necessidade significa
sistema público de saúde e, portanto, a melhoria das não ser condescendente com as políticas atualmente
condições de vida dos indivíduos e da coletividade. praticadas pelas instituições, que privilegiam o capital e

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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde 199

utilizam medidas manipuladoras e repressivas, além de Junges, L.S. Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI
imporem a penúria, a falta de alternativas, a humilhação da Saúde: secretária defende sanitarista acusado de
improbidade em depoimento a vereadores. A Notícia,
e a miséria aos indivíduos, descumprindo, com rigor,
Joinville, p. 5, 17 de dezembro, 2003.
o seu objetivo.
E isso nos faz retornar ao corpo de nosso trabalho. Leite, F. Governo Lula cria programa de apoio finan-
Caracteriza-se aqui que no passado, os defensores da ceiro para os planos de saúde. Folha de São Paulo, São
Paulo, p. C1, 24 de abril, 2005.
Reforma Sanitária discursaram em prol de uma política
antiliberal. Agora, precisam retomar,com o mesmo vigor
Martinez, M. Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de
a análise da conjuntura atual. Deve-se considerar aspec- realizar repasses ilegais. Folha de São Paulo, Agência Fo-
tos que nos limitamos a simplesmente mencionar, como, lha Salvador, 20 de maio 2003. Disponível em: <http://
por exemplo, emancipar as ações coletivas dos interesses www1.folha.uol.com.br >. Acesso em: 10 maio 2005.
econômicos e conceber programas e instrumentos de
Neves, A. Perseguição e política. A Notícia, Joinville,
ação sóciopolíticos elaborados pela própria realidade.
Cadernos AN Cidade, p. 8, 13 de dezembro 2003.
Assim, as instituições não devem ser definidas em de-
talhe antes que sua articulação prática aconteça, mas Pierantoni, C.R. As reformas do Estado, da saúde e re-
devem ter como pressuposto as necessidades e, portanto, cursos humanos: limites e possibilidades. Ciência & Saúde
a flexibilidade das demandas sociais. O último ponto Coletiva. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 341-60, 2001.
a enfatizar é o controle social, que deverá incorporar o
Radis Dados (Reunião, análise, difusão de informação
poder político de decisão com o corpo social, dando sobre saúde). Crise da saúde acende alerta no SUS. Jornal
origem a uma ação política determinada pelos interesses do Radis, Rio de Janeiro, 33, p. 10, 2005.
coletivos da sociedade.
Weber, B. Está difícil conseguir vaga nos postos de
saúde: desfalque de médicos se arrasta desde dezembro,
quando venceram os contratos. A Notícia, Joinville,
Cadernos AN Cidade, p. 6, 9 de abril, 2005.

Recebido: maio/2008
Aprovado: nov./2008

R E F E R Ê N C I A S

Albuquerque, R. Prefeitura fecha maternidade alagada:


grávidas e bebês são transferidos. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 24 abril 2005.

Colluci, C. Governo federal quer restringir UTI a do-


entes com chances de recuperação. Folha de São Paulo,
São Paulo, p. C1, 11 de abril, 2005.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008


200 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

François Dagognet, por uma nova filosofia da doença


François Dagognet, for a new philosophy of disease

Sabira de Alencar Czermak 1

1
Psicanalista; mestranda em Saúde RESUMO O texto pretende apresentar o filósofo, psiquiatra e epistemólogo francês
Coletiva no Instituto de Medicina
François Dagognet, ainda pouco conhecido no Brasil apesar de sua vasta obra
Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ).
transdisciplinar que compreende mais de cinqüenta livros com temas diversos e
sabira@alternex.com.br de grande importância, na atualidade. Aluno de Georges Canguilhem, Dagognet
retoma problemáticas tais como normal/patológico, corpo/vivente, distanciando-se
em alguns pontos de seu mestre por estar inserido em um novo contexto de progresso
científico e tecnológico, com novas pautas de discussões. Sempre atento à aplicação
dos saberes (médico, jurídico, filosófico, estético) na realidade, esse pesquisador
traz imensa contribuição para o campo da saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Vitalismo; Normatividade; Epistemologia; Corpo.

ABSTRACT This article aims to present the French philosopher, psychiatrist


and epistemologist François Dagognet, still unknown in Brazil despite his
transdisciplinary work that includes more than fifty books and a wide variety of
important nowadays themes. As he was Georges Canguilhem’s student, Dagognet
recovers issues such as normal/pathological, body/living beings, but disagrees with
the master for he was in a new context of scientific and technological progress, with
new kinds of subjects on the agenda. He turned his attention to the application of
knowledges (medical, juridical, philosophical, aesthetical) in the current reality,
bringing precious contributions for the health field.

KEYWORDS: Vitalism; Normativity; Epistemology; Body.

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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença 201

I N T R O D U ç ão de François Dagognet. Filósofo e médico desde os pri-


mórdios da psicofarmacologia e da época em que ainda
não existia raio X, completa 84 anos de idade e ainda
agita o cenário francês com seus elogios ao Prozac, à
instrumentação médica, ao transtorno (trouble), com sua
Georges Canguilhem foi, para muitos, um grande briga pela homoparentalidade e pelo direito à fecundação
mestre, um teórico que deu o que falar em sua época, post-mortem3. Trata-se de um teórico eclético visto que seu
tecendo críticas severas à tradição filosófica e médica ou interesse se estende da geologia à química, passando pela
mesmo incentivando atos políticos de importância históri- epistemologia, neuropsiquiatria, direito, sociologia, psi-
ca. Sua filosofia de vida foi um divisor de águas na tradição canálise e por onde mais a contemporaneidade exigir.
da medicina. O livro O normal e o patológico, concluído A proposta deste artigo é apresentar a leitura que
em 1966, é a sua obra mais conhecida e a principal repre- Dagognet faz do pensamento de Canguilhem, de quem
sentação de seu pensamento. Quase meio século depois, a se distancia em algum ponto de sua trajetória.
discussão central do livro ainda é um valioso argumento
crítico em relação às perspectivas reducionistas que sempre
assolaram as velhas discussões no terreno das patologias:
como as definir, de onde vêm e o que se faz com elas. DAGOGNET, ALUNO DE CANGUILHEM
Canguilhem formou um número importante de
intelectuais franceses, sobretudo nos anos 1960. Dentre Georges Canguilhem e François Dagognet são
seus pupilos, esteve Michel Foucault, seu orientando reconhecidos como dois grandes mestres no domínio
na elaboração de A história da loucura na idade clássica da filosofia da Medicina. O primeiro, nascido em 1904
(1961). Foucault afirma em um artigo escrito em 19851, em Castelnaudary, sul da França, lecionou em várias
no qual homenageia o mestre, que, sem Canguilhem, instituições acadêmicas francesas como filósofo. Sua tese
diversos debates não teriam sido tão bem compreendi- de doutorado, porém, foi defendida no curso de Medi-
dos. E acrescenta: cina sob o título O Normal e o patológico, com diversas
atualizações de seus argumentos até ser publicada como
Este homem, cuja obra é austera, voluntariamente a sua obra-prima. Vinte anos mais jovem e nascido em
bem delimitada, e cuidadosamente devota a um do- Landres, também no sul da Franca, François Dagognet
mínio particular numa história das ciências que, de
seguiu os passos do mestre. Assim como Georges Can-
todo modo, não se faz passar por uma disciplina de
encenação aparatosa, encontrou-se de certa maneira guilhem, cursou Filosofia e depois Medicina. Trilhou
presente nos debates em que ele próprio tomou bastante um percurso teórico marcado pela epistemologia de
cuidado de nunca aparecer. (p. 763)2.
Bachelard, de quem também foi aluno e amigo. Exerceu,
durante dez anos (na década de 1950) atividade clínica
É nesse sentido, entre outros motivos, que se enfa-
e reivindica a tradição francesa de René Laennec e René
tiza a importância de um pensador com a experiência
Leriche (Dumas, 2005, p. 261).

1
La vie: l’expérience et la science
2
Tradução da autora.
3
Para mais informações, consultar Questions interdites (2002) e Penser le vivant: l’homme, maître de la vie? (2003) de Dagognet.

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202 CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

É possível perceber a reciprocidade entre os dois a Ao desacreditar que a vida é redutível a seus proces-
partir das referências mútuas nas obras de um e outro, sos químico-físicos e acreditar que é algo mais do que
como se vê nos livros La Raison et les Remèdes (1964), de a soma de todos os seus aspectos, Canguilhem reincide
Dagognet e O Normal e o patológico, dois clássicos escri- em um vitalismo epistemologicamente contraditório,
tos na mesma época. Em 1983, Canguilhem organizou mas compreensível, tendo-se em vista os efeitos éticos
o primeiro colóquio sobre a obra ainda em construção que o objetivismo da época devia engendrar. De alguma
de Dagognet, em Saint-Julien-en-Beaujolais, cidade de maneira, para ele a vida se tornou inobjetivável. Por
Claude Bernard. Nessa data, Dagognet havia concluído isso a pretensão da Medicina em objetivar a questão do
treze dos mais de cinqüenta livros que escreveu até hoje. patológico e do normal deveria ser combatida.
Em 1997, o autor publicou o primeiro estudo sobre o Vale lembrar que nenhum estudioso da década de
conjunto da filosofia de vida proposta por Canguilhem, 1940 fazia as experiências que atualmente se fazem, na
dando origem ao livro Georges Canguilhem: philosophe tentativa de manipular a vida. Houve com freqüência,
de la vie. nesse período crítico da história, experimentos de cunho
Entre suas teorias acerca da normatividade, eugenista e de efeitos sociais devastadores. Hoje, conhe-
das normas, da máquina, da evolução, de Auguste cemos o código genético, fazemos experiências entre
Comte, Claude Bernard ou Gaston Bachelard, o eixo espécies e a Medicina, sem dúvida, foi muito beneficiada
central do legado deixado por Canguilhem é, sem com tais avanços. A idéia da vida artificial passa a ter
dúvida, o vivente (vivant). Em Georges Canguilhem: um sentido que na época não existia. Os limites entre
philosophe de la vie, Dagognet retoma a perspectiva o artificial e o natural hoje estão cada vez mais turvos.
canguilhemiana para expor seu pensamento funda- Se as idéias de Dagognet parecem mais pragmáticas que
mental, confrontá-lo a novos impasses e, acima de as de Canguilhem, é preciso que seja lembrada a época
tudo, apontar a busca de Canguilhem pela essência em que foi escrita a sua obra-mestre. O próprio autor
da vitalidade (Dagognet, 1997, p. 167). Talvez seja reconhece que suas idéias se modificaram enormemente
nesse ponto que se encontra a crítica mais importante desde La raison et les remedes (1964).
de Dagognet ao mestre: a tese central de Canguilhem No prefácio de Georges Canguilhe: philosophe de la
traz os equívocos da tradição médica bem como sua vie, uma questão importante introduz as discussões do
incapacidade de reconhecimento de situações de fato livro: por que o jovem filósofo teria escolhido, sem in-
e valor na clínica. Como nos esclarece Dagognet, na tenção de exercê-la, o domínio da Medicina? Dagognet
denúncia epistemológica a respeito da ambigüidade sugere que isso tenha se dado pelo interesse inicial do
que acompanha o termo ‘normal’, geralmente dedutí- mestre por Auguste Comte, pela insatisfação que sentia
vel para o uso do conceito de patologia, Canguilhem diante das idéias de ordem e progresso que atravessavam
termina deslizando no mesmo erro: parece acreditar o século 20 e, ainda mais, pela relevância que as inves-
ter encontrado um ‘finalismo’ para a vida, ou seja, um tigações sobre o corpo vivo tinham para ele. Contra o
princípio que explicaria a organização biológica dos positivismo da época, Canguilhem defende a concepção
seres vivos por um fim ao qual eles seriam destinados, de corpo como uma ‘potência criativa’ que contém sua
uma espécie de adaptação a uma ordem universal normatividade vital. A vida, para ele, tem sua base na
advinda de um princípio ou de uma vontade superior idéia de normatividade, conceito que usa contra as ins-
à própria vida. tituições que queriam ‘discipliná-la’ ou contra os saberes

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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença 203

objetivistas e reducionistas que tentavam controlá-la. A mantém suas diferenças ao mesmo tempo em que as
Medicina parece ter sido fundamental para o esclareci- integra. Dagognet acolhe uma noção semelhante do
mento do positivismo experimental do conhecimento corpo dialetizado, ou seja, é um todo que não deixa de
(através do hospital e do laboratório) e seus limites, ou se fracionar para melhor atender ao conjunto e torná-lo
seja, o esquecimento do corpo doente e da experiência mais rico em sua diferenciação. As partes do corpo, no
da doença à qual o sujeito resiste e através da qual se re- entanto, só podem funcionar se o conjunto, aquele que
nova. Nessa época, marcada pela tradição positivista, era as integra e recompõe, não estiver alterado (Dagognet,
como se coubesse apenas ao filósofo lembrar o médico 1997, p. 174).
da questão essencial: interrogar-se sobre o que significa De acordo com Dagognet, foi Canguilhem quem
estar doente (Dumas, 2005, p. 263). introduziu no campo da Medicina a idéia de um corpo
que não cessa de emitir todo tipo de sinal. Dagognet o
Esse rebelde escolheu a Medicina porque, de um lado, chamará de corpo ‘semafórico’. A partir de O Normal
ele precipita o começo de uma importante cisão entre
e o patológico, os corpos doentes ganham outra impor-
a saúde e aqueles que dela tratam; de outro, percebe
no fundo desse problema a filosofia maior do corpo, tância; o pathos irá preceder o logos e, conseqüente-
da existência e da liberdade. Enfim, essa disciplina mente, a clínica passará a ser soberana. O autor não só
lhe permite abordar uma questão que lhe é essencial,
seguiria de modo fiel esse princípio, como o ampliaria
a da técnica, da instrumentação e da aplicação real.
Ora, o médico valoriza a eficácia. (Dagognet, 1997, afirmando que “ao médico caberá a tarefa de aprender
p. 51). e colher os menores sinais que o corpo entrega. A ele
cabe saber questioná-lo e interpretá-lo” (Dagognet,
Como era de se esperar, o livro privilegia esse con- 1997, p. 179).
ceito central do projeto canguilhemiano de normativi- Provavelmente pelo fato de ter permanecido vivo
dade, mostrando como essa noção tornou-se complexa ao longo de tantas transformações, o saber clínico
e foi enriquecida ao longo de sua obra (sobretudo com para Dagognet em muito se beneficia das técnicas que
as contribuições do campo da genética) em oposição a sofisticam o olhar e a escuta do médico. Dagognet se
outras perspectivas. Trata-se de uma nova filosofia do preocupa em mostrar o quanto a clínica progrediu com
corpo, como afirma Dagognet, diferente do reducio- os aparelhos de captura, de gravação e visualização em
nismo da teoria molecular e de toda Medicina clássica, tela, tornando mais claro aquilo que antes precisava ser
construída sobre três eixos complementares: um corpo dissecado. Se também para Canguilhem o corpo emite
dialetizado, um corpo semafórico e um corpo rebelde. sinais que devem ser minuciosamente colhidos e inter-
Canguilhem sugere que o corpo não advém de pretados, Dagognet escancara um elogio à tecnologia
uma única extensão e, portanto, não pode ser reduzido médica e à instrumentação que permite dispensar o
a um objeto composto por várias partes que se somam dilaceramento do corpo para aperfeiçoar a leitura mais
entre si. O corpo só pode ser compreendido em uni- acurada e objetiva de suas perturbações. Por mais que a
dade e somente através dessa concepção holística é exteriorização possa parecer objetivação, Dagognet não
possível entender a potência integradora, compensadora deixar de frisar que a doença cardíaca, por exemplo,
e regeneradora da totalidade que comanda as partes nunca poderá ser reduzida a um simples traço elétrico,
e as absorve. O teórico parece ter ultrapassado uma ou a um eletrocardiograma. Mesmo que o laboratório
concepção uniformizada do corpo mostrando que ele seja indispensável, não há razão para que se exclua a

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008


204 CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

‘subjetividade’. De acordo com a idéia canguilhemiana, filosofia entre um lado obscuro, irredutível à razão, e o
é exatamente devido à existência de doentes que existe poder analítico que exige inteligência ou racionalidade
uma doença e não o contrário. O doente é bem mais para ser alcançado.
do que sua estrutura físico-química. Mas, para equili- Encantado como é pela química, Dagognet defen-
brar a valorização da instrumentação e retomar a lição de outra idéia de organismo. O corpo não é, para ele,
do mestre, Dagognet profere um elogio ao periférico, rebelde à razão, tampouco o corpo doente é inacessível,
acreditando não haver afecção grave que não possa se pois permanece idêntico em sua impermanência:
projetar na pele.
É em relação ao corpo rebelde que o caminho des- [...] não só seus principais constituintes oscilam apenas
dentro de limites bastante estreitos [...] mas, sobre-
ses dois filósofos parece se bifurcar. Em seus primeiros
tudo o código matricial, aquele que marca ou sela
trabalhos, Canguilhem opõe a potência afirmativa e fundamentalmente o ser, permanece o mesmo. Não
singular do corpo a tudo aquilo que a captura para, mudamos. (Dagognet, 1997, p. 268).
dessa forma, inseri-lo nas normas. Ele se faz advogado da
‘vitalidade transbordante do corpo’ em oposição à lógica E é por isso que a razão deve ser astuta ao criar meios
corretiva e normalizante dos profissionais da saúde, dos de, sem trair a si própria, entrar nessa lógica do corpo vi-
educadores e higienistas. A relação de conflito que há vente que se auto-constitui ao lutar contra os obstáculos.
entre a normatividade não submetida às normas disci- Isso não significa, para Dagognet, desqualificar a expe-
plinares está, para Dagognet, no centro das contradições riência do doente. Estar doente é perder a sua liberdade
do campo médico. Ele não compactua com essa idéia, e viver na dependência. “A doença é a dor, eu percebi
mas defende justamente que as normas disciplinares de que como filósofo eu não tinha nenhuma idéia da dor,
Canguilhem muitas vezes servem à normatividade, e da morte e do sofrimento” (Dagognet, 1996, p. 21).
não parece concordar que a Medicina seja uma réplica Para ele, a enorme adesão às idéias de Foucault acentua
da vida. A fundação da Medicina para Dagognet parece o vitalismo rebelde da filosofia de Canguilhem.
sim estar na vida, mas não deixa de estar na ciência, na
política, no social, na filosofia.
Canguilhem toma partido do ser vivo em seu
caráter resistente e reativo ao examinador que quer POR UMA FILOSOFIA DA DOENÇA
compreender as razões do seu comportamento. Ele se
posiciona contrário às técnicas de dosagem e aos exa- Dagognet não se propôs a refletir sobre a doença,
mes numéricos da época em prol de uma singularidade mas a partir da doença e de seus efeitos. Em Pour une
que transcenderia a qualquer tabela de medidas. Claro philosophie de la maladie (1996), ele contextualiza o
que ele não se opõe a uma abordagem racional da cor- campo do saber, criticado na primeira parte de O normal
poreidade, mas à rigidez dogmática de uma razão que e o patológico. Explica, ainda, que a filosofia da Medici-
submeteria o corpo a teorias pré-existentes. A crítica de na existe desde Hipócrates, no século 4 antes de nossa
Dagognet é justamente que Canguilhem, como filósofo era, e que a tradição hipocrática influenciou por muito
da vida, mobiliza a razão, purifica-a de seu positivismo, tempo pensadores, como Auguste Comte, e clínicos,
mas termina propondo uma espécie de ‘vitalismo racio- como François Broussais, quanto ao entendimento da
nal’. Esse oximoro reflete bem a tensão presente nessa doença e quanto à sua filosofia.

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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença 205

Desde o fim do século 19, duas escolas principais tornava cada vez mais sofisticada e eficaz, os problemas
se desenvolveram. De um lado, a escola de fisiologia também ganharam complexidade e fizeram com que se
alemã, sintonizada com os trabalhos de François Ma- repensassem a essência do ato médico e a velha relação
gendie e Claude Bernard, que denunciava a necessidade médico-paciente. No âmbito da filosofia da doença,
de hospitais e laboratórios, apoiava o diagnóstico e Dagognet descreve a luta que sempre existiu entre suas
seus instrumentos. A doença aqui é objetivada tanto correntes de pensamento.
quanto possível. De outro lado está a Medicina hospi- Ainda nesse livro (1996), o autor descreve Can-
talar, escola dos grandes clínicos (onde se encontram guilhem como o fortalecedor da tradição francesa
René Laennec e Xavier Bichat), que prioriza o olhar do neste campo, aquele que mostrou a instrumentação e
médico, a decifração dos sinais, a tomada da história as análises biológicas da técnica reportadas ao corpo
do doente. Esta última, qualificada como humanista, do doente. Dagognet posiciona O normal e o patológico
desenvolveu-se com mais força na França após a Revo- enquanto marca dessa perspectiva humanista e ressalta
lução Francesa (1789-1799) e se manteve até o século a crítica canguilhemiana dirigida a uma concepção
20, por exemplo, com René Leriche. Segundo Dagognet, ontológica da doença e da saúde contrapondo-a ao
Leriche revolucionou a cirurgia ao abrir espaço para a foco sobre a normatividade individual presente tan-
instrumentação sem se afastar do doente (Dagognet, to no estado patológico quanto no estado de saúde.
1996, p. 12-13). Apesar da crítica que faz ao vitalismo de Canguilhem,
Trata-se de um confronto entre a escola instrumen- esses conceitos continuam sendo centrais em todo o
talista dos técnicos, que desvaloriza o olhar médico e a seu percurso. Também concorda com a contraposição
escuta do doente em prol de sua objetivação, e a escola que o mestre sugere à visão puramente quantitativa
semiológica, que prioriza a leitura dos sinais. Dagognet da doença e sua descentralização em partes do orga-
questiona para que lado é preciso pender para que se nismo, falando sobre o caráter histórico e singular de
defina e compreenda realmente a patologia. A maior toda doença. Propõe que o corpo seja colocado entre
parte dos objetivistas se fixou na doença e deixou de a clínica e a instrumentação, ou seja, considera-se
lado o doente. Observa-se, no entanto, com alguma partidário da Medicina objetivada, mas sem deixar de
complacência, que foi um momento importante para reconhecer seus limites.
a anatomia patológica, para a bioquímica e para a Com relação ao status ontológico da doença,
parasitologia, ainda que o sujeito tanto quanto o seu questão filosófica que dividiu o pensamento médico
lado social (a maneira de se viver, o meio, os riscos) desde a Antigüidade, o discurso médico oscilou entre
fossem minimizados. Esse frenesi tecnicista, como ele duas concepções distintas. Uma que se propunha a
chama, de importância em certo aspecto, atingiu seus reificar a doença e outra chamada tradicionalmente
limites. Então, foi preciso voltar a atenção ao subje- de ‘dinâmica’ ou, depois do século 19, de ‘fisiológica’.
tivo. Daí surgem questões fundamentais como: onde Dagognet acredita que tais concepções não consti-
situar a fronteira entre a irregularidade (a anomalia, a tuem uma real oposição, mas uma espécie de conluio
singularidade) e a anormalidade (o patológico), assim entre a idéia segundo a qual o estado de doença é
como outras que giravam em torno da oposição entre eminentemente individual e a versão científica da
o objetivo e o subjetivo, o resultado cifrado e a dis- Medicina. Em síntese, o que esse pensador propõe
função. No século 20, à medida em que a Medicina se é que o estado da doença não seja compreendido

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206 CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

unicamente a partir da relação da Medicina com o Dumas, R. François Dagognet lecteur de Georges Can-
indivíduo doente, visto que a mediação da sociedade guilhem. In: Chazal, G.; Salomon, C. (Org.) François
Dagognet, médecin et philosophe. Paris: L’Harmattan,
será sempre fundamental.
2005.
Para concluir, vale reforçar que além da riqueza
histórica e teórica que as filosofias desses dois grandes Foucault, M. La vie, l’expérience et la science (1985).
pensadores apresentam, a importância de ressuscitar In: Dits et écrits 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994.
v. 4.
tais discussões está em se pensar o processo terapêu-
tico, seja ele de que ordem for, no sentido de uma
______. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon,
recuperação da normatividade, diferente da orientação 1961.
de normalidade que o presente nos traz preponde-
rantemente. A normatividade existe na saúde ou na Recebido:abr./2008
Aprovado: out./2008
doença, e esta última não pode mais ser compreendida
simplesmente como um mal a ser erradicado. Apesar
das contradições apontadas por Dagognet no vitalismo
materialista canguilhemiano, não há dúvida de que
valorizar a normatividade e não a normatização é a
melhor opção para os agentes de saúde, ou melhor, os
intérpretes da vida, quanto aos efeitos éticos, morais
e clínicos de tal perspectiva.

R E F E R Ê N C I A S

Canguilhem, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de


Janeiro: Forense, 1995.

Dagognet, F. Georges Canguilhem: philosophe de la vie.


Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, 1997.

______. Pour une philosophie de la maladie. Paris: Tex-


tuel, 1996.

______. La raison et les remèdes. Paris: Presses Univer-


sitaires de France, 1964.

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ARTIGO INTERNACIONAL / INTERNATIONAL ARTICLE 207

Modelo de salud colombiano: exportable, en función


de los intereses de mercado
Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market

Mauricio Torres Tovar 1

1
Médico, Salubrista Ocupacional, RESUMEN Este artículo describe los aspectos relacionados con la estructura,
Coordinador de la Región Andina financiación y funcionamiento del modelo de salud colombiano y los resultados
de la Asociación Latinoamericana de
sanitarios que ha producido luego de 14 años de implementación. La información
Medicina Social (Alames), Vocero
Político del Movimiento Nacional presentada es principalmente secundaria, proveniente de fuentes institucionales y
por la Salud y la Seguridad Social de académicas del país y el análisis hace parte de los procesos de reflexión académica
Colombia. y política que impulsa el Movimiento Nacional por la Salud y la Seguridad
maot99@yahoo.es
Social. Se revela la acción devastadora del modelo de salud colombiano sobre las
estructuras y funciones públicas de la salud y la violación sistemática del derecho
a la salud de la población.

PALABRAS-CLAVE: Sistema de Salud; Derecho a la salud; Mercado;


Colombia.

ABSTRACT This article describes the aspects related with the structure, financing
and operation of the Colombian health model and the sanitary results after 14
years of implementation. The information presented is mainly from secondary
institutional and academic sources of the country. The analysis is part of an
academic and political reflection which promotes the National Movement for
Health and the Social Security, from witch the author is the political spokesman.
It will also show the devastating action of the Colombian health model over its
public health functions and structures, and the systematically violation of the
health right.

KEYWORDS: Health System; Right to health; Market; Colombia.

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208 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

I N T R O D U ç ão namentales y d) la descentralización de los servicios


gubernamentales.
Bajo esta égida Colombia, en su reforma Cons-
titucional de 1991 definió la salud como un servicio
público permanente (sin reconocimiento explícito de
Colombia fue una de las naciones latinoamericanas su condición de derechos humanos), que puede ser
más juiciosas en acoger e impulsar, desde comienzos de prestado por el Estado o por los particulares; base cons-
los años 1990 del Siglo XX, el conjunto de orientaciones titucional sobre la que se reestructuró administrativa y
dadas por el Banco Mundial en materia de reformas financieramente la Seguridad Social en el país a través
económicas, sociales y políticas, en el marco de la glo- de la Ley 100 de 1993.
balización neoliberal que propuso la liberalización del La imposición de la nueva organización de la salud
mercado y el ajuste estructural del Estado. en Colombia no se dio sin previa lucha. Para avanzar
En este sentido, Colombia impulsó un conjunto de en este modelo, la tecnocracia colombiana, formada
reformas tanto del aparato estatal (reforma judicial y admi- principalmente en Harvard y puesta al servicio de la
nistrativa), como del sector económico y social (reformas política privatizadora de salud, desarrolló una batalla
tributaria, educativa, laboral, de seguridad social y de sa- de ideas para ganar terreno ideológico en el campo de
lud) y avanzó en una reorientación del Estado llevándolo la salud, esgrimiendo el argumento de que hay recursos
a un papel más de regulador de mercado que de oferente insuficientes para grandes demandas de salud, por lo
directo de servicios . Esto produjo cambios profundos en
1 cual se requería un modelo regulador, y el mejor para
la esfera del mundo del trabajo generando flexibilización ello es el mercado, en la lógica de la oferta y la demanda
laboral con efectos de precarización de las condiciones de que regula el consumo, distribuye adecuadamente y con
trabajo, mayor desempleo, crecimiento importante de la calidad el servicio, y hace uso eficiente de los recursos.
economía informal, arrastre hacia la pobreza y la miseria Estas tesis permitieron que los empresarios de la
de amplios sectores de la población y pérdida de soportes salud ganaran en la batalla de ideas un asunto fun-
de protección social con los que se contaba. damental que ha logrado que el modelo de salud en
En el campo específico de la seguridad social en Colombia continúe incólume luego de 14 años, a pesar
salud, Colombia acogió la orientación de reforma a de sus efectos devastadores: hacer entender y creer que
este sector propuesta por el Banco Mundial (Banco la salud es un bien privado de consumo que se resuelve
Mundial, 1993), que tenía como eje central la reforma individualmente en un mercado de servicios de atención.
del financiamiento de los servicios de salud en cuatro Así, se despojó a la salud de su condición de derecho
aspectos básicos: a) el cobro de tarifas a los usuarios humano fundamental, deber de Estado.
de servicios estatales, b) la provisión de seguros frente Para reafirmar la experiencia como un modelo de
a los riesgos económicos relacionados con la atención salud que enfrenta adecuadamente los problemas de
médica, c) el empleo eficiente de recursos no guber- ineficiencia, baja calidad e inequidad, se han adelantado

1
Esta orientación internacional respondió a la necesidad de la recomposición del modelo de acumulación capitalista, en lo cual los servicios públicos se empe-
zaron a ver como un campo para explorar y explotar por el mercado, lo que implicó reconocer al Estado de bienestar, ya no como un salvador sino como un
gran competidor. Tal fue el entendimiento de fondo, que llevó a que de manera específica en el sector Salud, el aseguramiento y la prestación de los servicios de
atención a la enfermedad fueran incorporadas en la lógica de mercado.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 209

diversas estrategias, una de las mas sobresalientes fue la sabilidad directa de los individuos, quienes acceden
de haber ubicado a Colombia en el informe mundial a ella a través de un mercado de servicios, en donde
de salud del año 2000 como el país con mayor equidad el Estado, a través de una política de focalización de
financiera en salud en el mundo (Organización Mun- subsidios, incorpora a los miembros de la comunidad
dial de la Salud, 2000). Si estos son los resultados, que no tienen capacidad económica. Esta política que
pues es claro que se debe acoger la experiencia exitosa y ha orientado la salud en el país durante los últimos 14
debe impulsarse en muchos países, como efectivamente años ha consolidado la concepción de salud como una
viene ocurriendo . El modelo así, ha ganado legitimidad
2
mercancía, alejando las políticas públicas de la compren-
exportable. sión de la salud como un derecho humano que debe
En este escrito y bajo una postura de deber ético, se ser garantizado por el Estado a todos los ciudadanos
describe la estructura del modelo de salud colombiano y (Torres; Paredes, 2005).
sus impactos, que evidencian por que este modelo de salud
no debe ser acogido por los pueblos de América Latina
y el mundo, dada su acción devastadora sobre las estruc- Organización
turas y funciones públicas de la salud y por su violación El Sistema General de Seguridad Social en Sa-
sistemática del derecho a la salud de la población. lud (SGSSS) se organiza en la lógica de un seguro
popular de salud, que implica una vinculación a él
vía aseguramiento individual a través de una cuantía
que se paga (cotización), bien por lo cual se tiene
EL MODELO DE SALUD COLOMBIANO capacidad de pago o que se recibe un subsidio para
el pago. Esto implicó que el seguro público de salud
En desarrollo del mandato de la Constitución fue sometido a una desintegración en sus compo-
Política de 1991, se adelantó el proceso de reforma a nentes de administración y prestación de servicios,
la seguridad social que llevó a la expedición de la Ley para lo cual se creó un mercado para administrar este
100 de 1993 mediante la cual se creó el Sistema de seguro y articularlo con el de prestación de servicios.
Seguridad Social Integral, con cuatro componentes: A su vez, implicó la generación de mecanismos de
pensiones, salud, riesgos profesionales y servicios regulación de mercado para facilitar un desarrollo
sociales complementarios. Este sistema optó por un armónico de tales mercados (Grupo Economía De
modelo de aseguramiento individual como vía para La Salud, 2002).
alcanzar la universalización de los servicios de salud y Para esto, el SGSSS generó una organización de la
por la creación de un mercado de servicios de atenci- oferta de los servicios del aseguramiento y de la prestaci-
ón para superar los problemas de calidad y eficiencia, ón de los servicios de atención con criterios de mercado
bajo la lógica de regulación de mercado vía oferta y y separó las funciones de afiliación, administración, pres-
demanda. tación y regulación. Esto implicó el surgimiento de un
A la Ley 100 de 1993 subyace una comprensión conjunto de actores o agentes de mercado responsables
de la salud como un bien de consumo privado, respon- de estas funciones:

2
El caso de República Dominicana y recientemente México.

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210 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• las aseguradoras denominadas Empresas • por el régimen contributivo, si se tiene capa-


Promotoras de Salud (EPS), bien del Régimen Con- cidad de pago, bien como trabajador formal, servidor
tributivo (EPS-C) o del Régimen Subsidiado (EPS-S) público, pensionado o trabajador independiente,
quienes están encargadas de realizar la afiliación de los afiliándose a las EPS-C, recibiéndose un paquete de
asegurados, administrar los recursos del aseguramiento servicios del régimen contributivo (POS-C) a través
y contratar la prestación de los servicios de atención. En de las IPS;
este sentido las EPS hacen una función de articulación
entre los usuarios que se aseguran con las instituciones • por el régimen subsidiado, a través de las
que les prestan los servicios; EPS-S (antes denominadas Administradoras del Ré-
gimen Subsidiado – ARS), mediante el subsidio del
• las Instituciones Prestadoras de Servicios de Estado (subsidio a la demanda) que se recibe por la
Salud (IPS), quienes prestan los servicios de salud defini- condición socioeconómica de pobre, atribuido por
dos en un paquete denominado POS (Plan Obligatorio un sistema de identificación de beneficiarios (Sisben),
de Salud), según grados de complejidad de la atención subsidio que puede ser completado si clasificado en
(desde el primer nivel el menos complejo, hasta el cuarto el nivel 1 o 2 del Sisben o si un subsidio parcial esta
el más complejo); clasificado en el nivel 3 de Sisben. Reciben un paquete
de servicios de régimen subsidiado (POS-S) si es sub-
• las Empresas Sociales del Estado (ESE), hos- sidio completo o reciben atención a las enfermedades
pitales de carácter público que debieron convertirse crónicas (denominadas enfermedades de alto costo) a
en empresas autosostenibles financiera y administra- través de las IPS y ESE;
tivamente, para lo cual como cualquier IPS venden
servicios y compiten en el mercado por los contratos. • cuando las personas no pueden acceder al régi-
Cuando muchas de ellas no resistirán a la competencia, men contributivo por su incapacidad de pago y han sido
se quebraron, por lo que el patrimonio público que el identificados como beneficiarios por el Sisben pero no
Estado y la sociedad conservaban en salud, han venido alcanzan los subsidios para cobijarlos, quedan en con-
pasando a manos privadas (Paredes, 2000); dición de población pobre no asegurada (inicialmente
llamada vinculada) y son atendidos por los municípios
• al Estado se le asignó la función de coordinación a través de las Empresas Sociales del Estado (ESE) o por
y modulación del sistema, de promover la incorporación IPS privadas que tengan contrato con los municípios,
de las personas que no pueden pagar su seguro y de realizar con los recursos del subsidio a la oferta en salud (subsi-
acciones de impacto colectivo que poseen externalidades dios dados directamente por el Estado a los municipios
(es decir aspectos que no controlan el propio sector sa- para los contratos con los hospitales públicos);
lud), inmersas en el Plan de Salud Pública (anteriormente
conocido como Plan de Atención Básica, PAB). • hay un grupo de personas que pertenecen
a regimenes de excepción, es decir que cuentan con
La incorporación al SGSSS se hace vía afiliación al su propio sistema de seguridad social. Estos sectores
aseguramiento según la condición socioeconómica de son de las fuerzas militares y el sector público de la
la persona a través de varias vías: educación.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 211

Hay una franja poblacional que el SGSSS no tiene degenerativas, que demandan altos recursos para su
en cuenta, que en el lenguaje popular se le ha denomi- atención).
nado población ‘sandwich’, por no tener capacidad Las EPS reciben un pago por la garantía del POS al
adquisitiva para vincularse al régimen contributivo, asegurado denominada unidad de pago por capitación
pero que no son lo suficientemente pobres para obtener (UPC), que es un pago anual por persona dependiente
el subsidio, y por lo tanto no reciben ningún tipo de del ciclo vital de ella, siendo mayor, por ejemplo, cuando
beneficio por parte del SGSSS, a no ser que lo paguen hay mayor riesgo de enfermar como en el caso de la
completamente de su bolsillo. Esta población es com- población infantil, de la población adulta mayor, o de
puesta principalmente por personas de clase media las en mujeres en edad fértil.
desempleadas, grupo que viene creciendo dado las En este aspecto de beneficios del SGSSS se expresa
reestructuraciones laborales y los cambios en el mundo de manera clara parte de las inequidades que genera,
del trabajo en Colombia. en tanto a la población afiliada al régimen contribu-
En relación al componente de beneficios que brin- tivo le brinda un paquete de servicios que es mayor
da el SGSSS, el cotizante y su núcleo familiar reciben en comparación al que recibe la población afiliada al
un paquete de servicios en salud denominado POS, lo régimen subsidiado, y ni que decir en relación al que
cual es diferenciado, siendo más amplio para el régimen recibe la población con subsidio parcial (que recibe
contributivo que para el subsidiado y más restringido un pequeñito POS como popularmente se le viene
para los que reciben el subsidio parcial. diciendo).
El contenido del POS se define teniendo como Hay otro conjunto de acciones que las EPS deben
criterio el perfil epidemiológico de la población co- garantizar relacionadas con promoción de la salud y pre-
lombiana, el ciclo de vida, la disponibilidad tecnoló- vención de la enfermedad (PyP), acciones no relaciona-
gica para su atención y el costo de efectividad de los das directamente con la atención de la enfermedad y que
tratamientos. buscan precisamente mantener la salud de las personas.
El POS incluye servicios de promoción, pre- Estas acciones han entrado en la lógica de mercado, por
vención, atención de la maternidad y la enfermedad lo cual son reconocidos que lo desarrollado en PyP es
general, diagnóstico, tratamiento, rehabilitación física muy débil y lo pago por ello se convierte más bien en
y provisión de medicamentos esenciales en su presen- un rubro de ganancias para las EPS, como lo mostró la
tación genérica. Para el régimen contributivo incluye Defensoría del Pueblo al evidenciar el incumplimiento
intervenciones en los tres niveles de atención en salud, de las Aseguradoras en estos aspectos (Defensoría del
mientras que el POS para los afiliados al régimen sub- Pueblo, 2003).
sidiado sólo incluye intervenciones del primer nivel de Para garantizar la prestación del POS, las EPS
atención, excepto para mujeres embarazadas y niños contratan con las IPS o ESE a través de mecanismos de
menores de un año cuyas intervenciones incluyen todos mercado. Entonces, se establecen relaciones contractu-
los niveles de complejidad. Para aquellos que reciben ales entre ellas, en las cuales se observa una lógica, por
subsidio parcial el POS se restringe a la atención a un la cual las EPS buscan sacar el mejor partido. En ese
grupo de enfermedades de alto costo (enfermedades sentido las EPS han incorporado variantes para la con-
catastróficas como las denomina la Ley 100, referidas a tención de costos como la contratación por capitación
un conjunto de enfermedades principalmente crónico (se contrata la atención de un número determinado

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212 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

de personas por un monto fijo de dinero, mecanismo respondiente a cada uno de sus afiliados y son los que
a través del cual le traslada el riego a las instituciones administran el plan de salud para estos mediante la
prestadoras de servicio); glosan los servicios, es decir prestación directa o la contratación de servicios con otros
no aceptan las condiciones en que las prestadoras han agentes. Las EPS actúan en el marco de un contrato
brindado un servicio y por lo tanto no le reconocen el público, son delegadas por el Fondo de Solidaridad y
pago; lentifican el flujo de pago (pueden pasar más de Garantía (Fosyga) y hacen parte de un mercado alta-
seis meses para que se les pague los servicios prestados mente regulado en el cual lo producto (POS), el precio
a las IPS y ESE). Esto lleva a su vez a que las IPS y ESE (UPC) y ciertas pautas de la entrada y operación en
generen barreras de acceso para contener costos y evitar el sistema están determinadas por normas (Grupo de

asumir el riesgo3. Economía de la Salud, 2002).


Complementario a las acciones del POS se define Es claro que el SGSSS es un modelo de asegu-
un conjunto de acciones establecidas en el Plan de Salud ramiento público, lo cual separa las funciones de
Pública (antes PAB). Este plan aborda un conjunto de aseguramiento, prestación y regulación, que genera un
intervenciones dirigidas a la colectividad o a los indivi- conjunto de actores de mercado para estas funciones
duos pero que tienen altas externalidades, o sea asuntos y que establece un conjunto de mecanismos de regu-
que no son de exclusivo control del sector salud, tales lación del mercado, establecidos por el aseguramiento
como la información pública, educación y fomento de la obligatorio, el POS, la UPC, el Fosyga, la prohibición
salud, el control de consumo de sustancias psicoactivas, de la selección del riesgo por parte del asegurador; la
complementación nutricional, planificación familiar, prohibición de la selección adversa por parte del paciente
control de vectores, entre otras. por medio de los tiempos mínimos para beneficios; y el
La organización del SGSSS en Colombia descrita control del riesgo moral por parte de los usuarios por
respondió a un enfoque llamado pluralismo estructurado medio de las cuotas moderadoras denominados Copagos
o como otros mencionan de competencia o mercado (Hernández, 2003A).
regulado, bajo el precepto y la comprensión que la salud Bajo esta concepción y modelo se asume entonces
es un bien privado de consumo que debe regularse en que el mercado regulado distribuye eficientemente la
una oferta de mercado, lo que garantiza su distribución provisión de servicios individuales, mientras el Estado
adecuada, su calidad y el uso eficiente de los recursos. incorpora a los pobres al mercado a través de los subsi-
Producto de este modelo se organizó el SGSSS en tor- dios, vigila el cumplimiento de las reglas de mercado y
no a cuatro funciones básicas: articulación, prestación, dispensa los servicios estrictamente públicos, es decir,
financiación y modulación, por lo cual se procura la con altas externalidades ubicados en el denominado
integración de todos los agentes en torno al suministro Plan de Salud Pública (Hernández, 2003B).
del plan único de salud (POS), financiado con un pago Tal separación, sustentada en la teoría económica
por capitación UPC (Frenk; Londoño, 1997). neoclásica, deja a los servicios de atención de enferme-
En este modelo, las EPS son el centro financiero dades en calidad de bienes privados (los individuos están
al recaudar la cotización, descontar la capitación cor- dispuestos a pagar por ellos ya que satisfacen sus necesida-
3
Tal situación en gran medida es responsable por el denominado paseo de la muerte, en donde una persona en una condición crítica de salud solicita atención y
empieza a ser llevada de una a otra institución, que niegan el servicio por que no demuestra quien paga o que lo que se paga por ella no es suficiente para cubrir
la condición clínica que se debe atender, hasta que se presenta una atención tardía o simplemente no se da, y la persona fallece. Paseos de la muerte que no son
situaciones aisladas, y sí vueltos constantes, y son otros indicadores de la lógica mercantil de la política de salud.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 213

des particulares) y a las acciones colectivas de salud como El régimen subsidiado se financia mediante cuatro
bienes públicos (son bienes que satisfacen necesidades de fuentes de recursos que fueron definidos por la Ley 60
muchas personas al mismo tiempo, es decir, tienen altas de 1993 y luego ajustado por la Ley 715 de 2001, el
externalidades y las personas no están dispuestas a pagar sistema general de participaciones (que incluye la suma
por ellos, por lo cual deben ser financiados con recursos del situado fiscal y la participación de los municípios en
públicos y ejecutados por el estado descentralizado), lo los ingresos corrientes de la nación), los recursos de soli-
que genera un proceso estructural de fondo impidiendo daridad del Fosyga, el esfuerzo propio de las entidades
una acción integrada e integral del SGSSS y lleva a que territoriales y los recursos de las cajas de compensación
no se garantice la salud como derecho humano para todas familiar.
y todos (Hernández, 2003B). Lo dinero del régimen subsidiado es administrado
bajo un esquema de subsidio a la demanda, que se con-
creta vía una política de focalización, la cual identifica
Financiación al beneficiario y le asigna el subsidio que le da ingreso
En el SGSSS coexisten articuladamente, para su a la EPS-S y recibe un POS-S.
financiamiento y administración, un régimen contribu-
tivo de salud y un régimen de subsidios en salud, con
vinculaciones mediante el Fosyga.
El financiamiento del régimen contributivo se basa CONSOLIDACIÓN DE INEQUIDADES E
en un esquema de aporte obrero patronales debiendo INJUSTICIAS EN SALUD PROPIAS DEL MER-
cubrir los costos del POS para todos los afiliados y sus CADO
beneficiarios, y, además, realizar una contribución so-
lidaria para la financiación del régimen subsidiado. El En términos de los resultados sanitarios y sociales
monto actual de la cotización, ajustado por la Ley 1.122 que ha ocasionado este modelo neoliberal de salud
de 2007, es del 12.5% del ingreso base de cotización durante estos 14 años de implementación, se eviden-
(IBC); en el caso de los trabajadores dependientes, el cian un conjunto de efectos entre los que se destacan
8.5% lo paga el patrón y el 4% el trabajador; y en el (Torres, 2003):
caso de los independientes, éstos pagan el 12.5% del
IBC que declaren.
El manejo de los recursos financieros está a cargo No se logró la Universalidad
del Fosyga, el cual esta adscrito al Ministerio de la La ley 100 de 1993 estableció que para el año 2001
Protección Social y se maneja mediante un encargo existiría cobertura en salud para toda la población, con
fiduciario. Posee cuatro cuentas: compensación, solida- igualdad de benefícios.
ridad, promoción y eventos catastróficos. En la cuenta Según las cifras de aseguramiento presentadas por
de compensación se administra el régimen contributivo el Concejo Nacional de Seguridad Social en su informe
y su saldo se determina por la diferencia entre los apor- de 2007 al Congreso de la República, se refiere que
tes de los cotizantes, descontando 1.5 que se trasfiere hay 37.3% de la población total asegurada al régimen
al régimen subsidiado, y el valor de la UPC que debe contributivo, 46.9% asegurada al régimen subsidiado,
reconocerse a las EPS por todos los afiliados. 4.5% en regímenes especiales y 11.3% de la población

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214 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

no tiene aseguramiento. Cabe distinguir que del por- dificultades económicas para la mayoría de estas insti-
centaje de población asegurada en régimen subsidiado, tuciones, llevando a muchas de ellas incluso al cierre
el 9.4% son subsidios parciales (Concejo Nacional de (por mencionar como ejemplo vergonzoso el cierre del
Seguridad Social en Salud, 2007). hospital emblemático de mayor nivel de formación
Hay una diferencia ostensible entre cobertura académica en el país, el Hospital San Juan de Dios de
de aseguramiento y acceso real a los servicios. Estar Bogotá), desestructurando de esta manera la red hospi-
asegurado no es garantía de acceder a los servicios, por talaria pública, base de la protección social en salud para
el conjunto de barreras que el sistema ha desarrollado extensos sectores de la población colombiana.
de carácter administrativo, geográfico, económico y de
información (Restrepo; Echeverry; Vásquez; Rodrí- La salud de la gente se deterioró
guez, 2006). La situación de salud debe ser la manera adecuada
Parte del problema de no lograr la cobertura uni- para medir los impactos de una política de salud. Aun-
versal obedece a que el aseguramiento se soporta sobre que al modelo se le pueden atribuir el mejoramiento en
el empleo formal y Colombia tiene un escenario de indicadores tradicionales, como el de mortalidad mater-
desempleo del 13.6% (Dane, 2007) y de informalidad na y infantil de manera global4, el énfasis del modelo en
y subempleo que supera el 60%. la atención a la enfermedad ha reducido el componente
de salud pública, dejándolo contenido a un plan (PAB,
Lo privado se ha favorecido a costa de lo público ahora plan territorial de salud pública), que esta en la
Uno de los efectos positivos más destacado por los misma lógica del paquete de servicios.
defensores del modelo está en relación con el incremen- Esto ha llevado a debilitar programas de promoción
to de los recursos financieros para el sector salud, que y prevención tan importantes como los relacionados con
sin lugar a dudas es cierto; pero también es cierto que la prevención y atención a la fiebre amarilla, la tubercu-
estos recursos han servido para enriquecer las arcas de losis y la malaria, enfermedades estas que han tenido un
las intermediadoras (EPS). crecimiento importante en el país (entre 1995 a 2000
Es claro que hay un incremento de los recursos para la fiebre amarilla reportó un total de 21 casos; la tasa
el sector salud, lo cual no redunda en aumentos suficien- promedio anual de tuberculosis pulmonar fue de 12 por
tes de la cobertura de salud, ni en resultados positivos 100.000 y el promedio anual de casos de malaria llegó
para la salud, lo que esta en relación con la evidencia de casi a los 100.000).
que 30% de estos recursos quedan en la administración El componente de inmunización se ha debilitado
de la intermediación que hacen las aseguradoras y 5% completamente, según información del Ministerio de la
va para infraestructura (Leguizamón, 2007). Protección Social en 2003, 15 de los 32 departamentos
El cambio central del esquema de financiamiento en el país no lograron alcanzar las coberturas promedios
pasando del subsidio de oferta al subsidio a la demanda del 90% para ninguna de las vacunas del plan ampliado
exigió a los hospitales públicos a generar sus propios de inmunizaciones; en 2006 la cobertura en vacunación
recursos para sostenerse económicamente a partir de fue de 86.5% para polio, 86.1% para DPT, 88.2% para
la venta de servicios, lo que acarreó un aumento de las BCG, 86.1% para HEPb; 86% para HiB y 88.3% para

4
Si, por que en quinquenio 2000 a 2005 la tasa de mortalidad infantil nacional fue de 19 por 1.000 nacidos vivos, pero en el área rural fue de 24, de madres con
educación superior fue 14, en madres sin educación fue 43, en estratos ricos 14 y en estratos pobres 32 (Encuesta Nacional de Demografía y Salud, 2005).

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 215

TV (Ministério de la protección Social/ Organiza- Asunto que se constata con el resultado de la inves-
ción Panamericana de la Salud, 2007). Coberturas tigación de tutela en salud de la Defensoría del Pueblo
no útiles de vacunación, lo que ha generado la reemer- que arrojó un resultado impactante revelando que en
gencia de enfermedades infectocontagiosas. Para citar el país se presentan 60.000 tutelas en salud anuales.
un ejemplo, en estos momentos en Colombia se vienen La mayoría de acciones de tutela fueron interpuestas
presentando casos de rabia humana, un indicador que por negación de servicios, por falta de oportunidad
evidencia que la salud pública con este modelo de salud en el tiempo para la atención y por la no entrega de
entro en la debacle. medicamentos, aspectos del POS por el que las EPS
reciben pago a través de la UPC; lo que evidencia la gran
Las inequidades en salud se incrementaron vulneración general del derecho a la salud ocurriendo
Los datos muestran que el sistema colombiano en Colombia, con sus obvias consecuencias para la sa-
aumentó las inequidades en salud, es decir que quienes lud, la vida y la integridad de la población colombiana
más necesitan menos reciben y quienes más tienen más (Defensoria del Pueblo, 2007).
reciben. Según estudio hecho por el Observatorio de
la Seguridad Social de la Universidad de Antioquia en Precarización de las condiciones laborales de los
junio de 2003 al desagregar la distribución porcentual trabajadores del sector salud
del subsidio en salud por condiciones socioeconómicas El modelo de salud llevó a que el ejercicio de las
se encontró que el decil 1 (los más pobres) recibían el profesiones del área de la salud se rija por la lógicas de
de 4.8%, mientras que para el decil 9 era del 12.8% mercado, por lo cual las aseguradoras y las prestadoras
y para el decil 10 (los más ricos) era del 14%. Al ob- interpretan el acto terapéutico como un componente
servar los denominados gastos de bolsillo se observó del negocio y por lo tanto ejercen sobre él las técnicas
también discriminaciones de índole económica ya administrativas para que sea lo más rentable posible
que mientras los hogares donde los jefes pertenecían (Torres, 2006A).
a regímenes especiales gastan el 5.7% de su ingreso, El sector de la salud también entró en el proceso de
los del régimen subsidiado gastan el 14% y los que no flexibilización laboral. Miles de trabajadores despedidos
están afiliados el 12.4% (Grupo de Economía de la por la liquidación y reestructuración de las instituciones
Salud, 2003). públicas de salud, contratación temporal que se hace a
En relación con el uso efectivo de los servicios de través de cooperativas intermediadoras precarizando
salud las razones más frecuentes para no acudir a éstos las condiciones de trabajo y disminuyendo el monto
tiene que ver con los costos que generan, bien por las salarial. La situación es tan grave que para cientos de
cuotas moderadoras y los Copagos en el régimen con- trabajadores formales del sector público se ha vuelto
tributivo, o por el pago porcentual que se deben hacer común que pasen meses sin recibir salario. Esta situación
del costo de los servicios en el régimen subsidiado. es reflejo de la lógica de mercado que contiene costos
y aumenta ganancias también por la vía del manejo de
Quejas, reclamaciones y tutelas en salud por doquier lo laboral.
Son miles de casos de violación al derecho a la salud, Un alto porcentaje de la fuerza de trabajo de salud
muchos de los cuales se evidencian en el conjunto de tu- pasó a ser contratado por las aseguradoras y prestadoras
telas (recurso de amparo) para proteger este derecho. en modalidades temporales y de subcontratación (en ge-

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216 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

neral a través de una figura perversa llamada cooperativas quidadas. Por supuesto se entiende claramente que lo
o asociaciones de trabajo que desvirtúa la esencia del que acá ha primado son los grandes flujos de capital
cooperativismo) y desde esta relación laboral subordi- que atraviesan a estos sectores y que el sector privado
nada se imponen condiciones en aspectos básicos de la se los viene apropiando. No es gratuito que algunas
relación del profesional de la salud con el paciente. de las EPS privadas estén ranqueadas dentro de las
Esta situación ha implicado que las aseguradoras 100 empresas más grandes de Colombia, con un
y las prestadoras definan la forma como se contrata el crecimiento financiero para el año 2003 del 18.26%,
talento humano de salud, la manera como debe trabajar cinco veces superior al promedio nacional que fue del
en términos de tiempos y ritmos, que tipo de conductas 3.74% (Informe Especial, 2004).
terapéuticas pueden o no pueden desarrollar y el monto
de pago de sus honorarios. Esto explica la imposición
sobre la mano de obra médica de ver un volumen alto de Ruptura del tejido social
paciente por hora (por lo cual los tiempos de consulta se El modelo esta fijado sobre una base de focalización
redujeron, sin tener en cuenta los estándares internacio- de subsidios para incorporar sectores pobres de la po-
nales) y de imponer ahorro de gastos por diversas vías: blación al aseguramiento, y ha generado disputas entre
solicitud del mínimo de exámenes clínicos y prescripción sectores sociales por el acceso a estos subsidios llevando a
del menor número de medicamentos. rupturas dentro de las comunidades e incluso al interior
Esto a su vez ha llevado a un deterioro de la calidad de organizaciones sociales, asunto que ha sido denun-
de los servicios asistenciales. Los casos de iatrogenia ciado por las propias organizaciones, especialmente del
ahora son múltiples. campo y del sector indígena.

Degradación de la institucionalidad pública de la


seguridad social
Este modelo desestructuró la institucionalidad LOS AJUSTES DE TUERCA A LA POLÍTICA
pública en seguridad social con que contaba el país. La PRIVATIZADORA DE SALUD
Caja Nacional de Previsión (Cajanal) que cubrió la se-
guridad social de los trabajadores oficiales fue liquidada Durante estos años de implementación de la políti-
hacia finales del año 2000. El Instituto de los Seguros ca de estado en salud en Colombia a través de la puesta
Sociales (ISS) se fue desmontando paulatinamente y en en escena de la Ley 100 de 1993, los gobiernos de turno
el año 2003 solo tenía tres millones de afiliados estando han buscado profundizar el modelo privatizador, que
en 1996 con diez millones, asunto que fue inverso para de entrada no lograron, dada la resistencia de sectores
las EPS privadas (Torres, 2006B) y en 2007 se le dio la progresistas en el país.
estocada final a partir de separar sus áreas administrativas Como estrategias para avanzar en esta vía se han
de las de prestación y empezarse a liquidar esas áreas de utilizado principalmente tres herramientas. De un lado,
prestación. En este año de 2008 se dará el proceso de la orientación del Banco Mundial de impulsar la nueva
liquidación completo del ISS. concepción de protección social derivada del deno-
Al caso de Cajanal y el ISS, se suma al caso de minado manejo social del riesgo, que lleva a impulsar
otras empresas del Estado que fueron vendidas o li- programas de transferencias en efectivo condicionadas

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 217

para los más pobres, junto con reformas estructurales ciudadanos demostrar capacidad de pago para acceder
de los sistemas de salud hacia sistemas de aseguramien- al aseguramiento, definiendo un conjunto mínimo de
to individual con subsidio a la demanda para pobres. intervenciones en salud (POS), cambiando la concepción
Modelo acogido por Colombia y que viene impulsando de salud pública al restringirla al desarrollo de acciones de
el país a través del programa de familias en acción y del bajo costo y alto impacto a partir de la lógica de factores de
régimen subsidiado de salud. altas externalidades y un cambio en los subsidios estatales
De otro lado, la suscripción de un tratado de libre pasando de los de oferta a los de demanda, entregados
comercio con Estados Unidos, que busca en el compo- a través de una política de focalización que incorpora al
nente de salud profundizar la privatización del sector al aseguramiento a sectores sociales marginales (Carmona;
ahondar la concepción de la salud como bien privado Molina; Casallas, 2003).
de consumo, ampliar el mercado de servicios de salud La implementación de este modelo de salud de
a las multinacionales farmacéuticas, de aseguramiento corte neoliberal ha venido instalando un conjunto de
y de prestación de servicios tanto de atención, como de conceptos y procesos en el país en contra vía de la ga-
educación en salud, alejando a la salud de su realización rantía del derecho a la salud, entre los que se destacan
como derecho humano y bien público. Este Tratado de (Hernández, 2003A; Carmona, 2006):
Libre Comercio (TLC) de ser firmado (afortunadamente
se detuvo su firma en el Congreso de Estados Unidos), • se naturaliza que la salud es un bien privado de
será sin lugar a duda un ajuste de tuerca en el proyecto consumo al satisfacer necesidades individuales por las
neoliberal de privatización de sectores como el de la que se esta dispuesto a pagar;
seguridad social y la salud (Torres, 2006C).
Por último, por las presiones políticas de diversos • se separa la atención individual de la enfermedad
sectores se impulso una reforma a la Ley 100 dada sus de la atención colectiva. Los campos de la salud pública y
limitaciones y efectos negativos, la cual quedo normada la promoción de la salud son marginados y disminuidos
en la Ley 1.122 de 2007, la cual mantuvo el modelo de en su potencial transformador de la situación de salud. En
aseguramiento e intermediación, garantizando el juego de esta lógica de mercado promocionar y prevenir la salud
los actores privados tanto en el componente de asegura- no es rentable, el negocio esta en la venta de servicios
miento como de prestación de servicios a la enfermedad, individuales de atención a la enfermedad;
sin resolver los problemas de fondo que derivan de una
política con este tipo de orientación (Torres, 2007). • se producen exclusiones e inequidades propias
del mercado: hay una salud para ricos (medicina priva-
da); una salud para sectores asalariados (aseguramiento)
y una salud para pobres (redes públicas de salud);
CONCLUSIONES
• se produce una serie de barreras administrativas,
La Ley 100 de 1993 instauró en Colombia un siste- económicas, geográficas y culturales para el acceso a los
ma de aseguramiento individual en salud que modificó el servicios, como mecanismos de contención de costos
papel del Estado en la prestación de estos servicios dando para el aumento de las utilidades del actor de mercado
mayor participación al sector privado; imponiendo a los más beneficiado: las aseguradoras (EPS) privadas;

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218 Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• el modelo de salud es homogenizador, no re- Carmona, L.D. (Org.). Ley 100: balance y perspectivas.
conoce las diferencias en términos de territorio, clase, Bogotá: Movimiento Nacional por la Salud y la Seguri-
dad Social y Corporación para la Salud Popular Grupo
etnia, género, diversidad sexual;
Guillermo Fergusson, 2006.

• el modelo se entroncó perfectamente con la Carmona, L.D.; Molina, N.; Casallas, A.L. La �������
des-
nueva orientación de comienzo de milenio del Banco protección social. En: Paredes, N. (Org.). El embrujo
autoritario: primer año de gobierno de Álvaro Uribe
Mundial denominada manejo social del riesgo, que
Vélez. Bogotá: Ediciones Antropos Ltda., 2003.
promueve el enfrentamiento y resolución de las diversas
contingencias sociales, sanitarias y económicas a que están Concejo Nacional de Seguridad Social en Salud.
expuestas las personas desde el ámbito individual y fami- Informe Anual del Concejo Nacional de Seguridad So-
liar, reforzando que la protección social es un asunto de cial en Salud a las Comisiones Séptimas de Senado de
la República y Cámara de Representantes 2006 – 2007.
mercado donde el Estado es regulador de este y asignador Bogotá, 2007.
de subsidios.
Departamento Administrativo Nacional de Eesta-
Las orientaciones y resultados del modelo de salud dística. Informe público. Bogotá, 2007.

en Colombia que se han descrito, permiten decir que no


Frenk, J.; Londoño, J. L. Pluralismo estructurado: ha-
puede ubicarse como un modelo exitoso y con legitimidad
cia un modelo innovador para la reforma de los sistemas
exportable y que más bien se ve la urgente necesidad de de salud en América Latina. En: Fundación Mexicana
establecer una política que coloque el bienestar y la pro- para la Salud. Observatorio de la salud: necesidades,

moción de la salud en el centro y razón de ser del modelo servicios, políticas. México: Funsalud, 1997.
de salud, en una perspectiva universal y pública, y no
Grupo de Economía de la Salud. Resultados
�������������������
económi-
como un asunto subordinado a la lógica de los intereses cos de la reforma a la salud en Colombia. Observatorio
particulares del mercado, lo que debe permitir concretar de la seguridad social, Medellín, v. 3, n. 7, 2003.
la realización del derecho a la salud y constituirse en un
componente de un modelo de protección social integral ______. La regulación en el sistema de salud colom-
biano. Observatorio de la seguridad social, Medellín,
que enfrente y supere el conjunto de inequidades sanita-
n. 6, 2002.
rias y sociales presentes en el país.
Hernández, M. El debate sobre la Ley 100 de 1993:
antes, durante y después. En: Agudelo, S.F. (Ed.). La
salud pública hoy: enfoques y dilemas contemporáneos
en salud pública. Bogotá: Universidad Nacional de
Colombia, 2003A.

______. Neoliberalismo en salud: desarrollos, supuestos


B I B L I O G R A F Í A y alternativas. En: Restrepo, D. (Ed.). La falacia neoli-
beral: crítica y alternativas. Bogotá: Ediciones Antropos
Ltda., 2003B.
Banco Mundial. El financiamiento de los servicios de
salud en los países en desarrollo: una agenda para la re- Informe especial sector económico. Revista Semana,
forma. Washington: 1993. Bogotá, n. 1.147, 2004.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado 219

Leguizamón, G.B. Cuentas de salud de Colombia 1193- ______. El TLC entre Colombia y Estados Unidos:
2003: el gasto nacional en salud y su financiamiento. ajuste de tuerca en la reforma privatizadora de la
Bogotá: Ministerio de la Protección Social, 2007. ley 100 de 1993. En: Cardona, L.D. (Org.). Ley
100: balance y perspectivas. Bogotá: Ediciones
Ministério de la protección Social/Organización Antropos, 2006C.
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grave. Una visión desde los derechos humanos. Bogotá: Aprovado: out./2008
Ediciones Antropos, 2000.

Programa de Salud. La tutela y el derecho a la salud:


período 2003 – 2005. Bogotá: Defensoría del Pueblo,
2007.

______. Evaluación de los servicios de salud que brindan


las empresas promotoras de salud: índice de vulneración o
cumplimiento de los diferentes componentes del dere-
cho a la salud en el esquema de aseguramiento. Bogotá:
Defensoría del Pueblo, 2003.

Restrepo, J.H.; Echeverry, E.; Vásquez, J.; Rodríguez,


S. El seguro subsidiado y el acceso a los servicios de salud:
teoría, contexto colombiano y experiencia en Antioquia.
Medellín: Centro de Investigaciones Económicas Uni-
versidad de Antioquia, 2006.

Torres, M. Plan Nacional de Salud Pública ¿Respuesta


a situación de la salud? UN Periódico, Bogotá, n. 107,
2007. p. 10.

______. Ejercicio médico en Colombia: de la práctica


profesional liberal a la neoliberal. Le Monde Diplomati-
que, Bogotá, n. 48, 2006A.

________. ISS: Crónica de una muerte anunciada.


Desde Abajo, Bogotá, n. 116, 2006B.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008


220 AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGEMENTS

A revista Saúde em Debate agradece a cooperação dos Consultores


ad hoc que colaboraram no processo editorial das revistas n.76/75/77
e n.78/79/80
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ANA MARIA COSTA MÁRCIA CAR
ANA MARIA MALIK MARIA HELENA MACHADO
ANDRÉA GUERRA MARIA HELENA MENDONÇA
ANNA CHIESA MARIA ISABEL BALTAR DA ROCHA
ÁQUILAS MENDES MARIA LUIZA HEILBORN
ASSIS MAFORT MARIA TERESA S. SOARES DE BRITO E ALVES
CÉLIA MARIA DE ALMEIDA MARIANA BARCINSKI
DULCE MARIA SENNA MARTA MARIA ALVES DA SILVA
ELIANE GONÇALVES MYRNA COELHO
EMIKO EGRY NINA ISABEL SOALHEIRO
ESTELA AQUINO PATRÍCIA DORNELLES
EVERARDO DUARTE NUNES RENATO VERAS
FÁTIMA CORRÊA OLIVIER ROBERTO PASSOS NOGUEIRA
FERNANDO FREITAS ROSANA ONOCKO CAMPOS
GREICE MENEZES SARAH ESCOREL
GUILHERME CASTELO BRANCO SILVIO YASUI
IANNI REGIA SCARCELLI SIMONE GONÇALVES
IZABEL PASSOS SIMONE MONTEIRO
JOSÉ AUGUSTO C.BARROS SONIA BARROS
JOSÉ JUSTO STERZA SONIA FLEURY
JOSÉ LUIS TELLES TERESA SEABRA
JUAN STUARDO ROCHA THOMAS JOSUÉ SILVA
JUAREZ PEREIRA FURTADO TÚLIO FRANCO
KAREN GIFFIN VICTOR VALLE
KATHIE NJAINE VOLNEI GARRAFA
LUCIA C. DOS SANTOS ROSA WALTER OLIVEIRA
LUCIENE KANTORSIKI WANDA ESPIRITO SANTO
LYGIA MARIA FRANÇA PEREIRA WILZA VILLELA

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 220, jan./dez. 2008


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alta qualidade, em preto-e-branco e/ou escala de cinza, em rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) Participar da
folhas separadas do texto, numerados e intitulados correta- aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é neces-
mente, com indicações das unidades em que se expressam sário que se assine a seguinte Declaração de Autoria e de
os valores e fontes correspondentes. O número de quadros Responsabilidade:
e gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo.
d. os autores citados no corpo do texto deverão estar escritos “Certifico que participei de forma suficiente na concep-
em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando- ção deste trabalho para tornar pública minha responsabilidade
se a norma da ABNT NBR 10520:2001 (disponível em pelo seu conteúdo. Certifico que o manuscrito representa
bibliotecas). Ex.: Conforme Mario Testa (2000). um trabalho original e que nem este manuscrito, nem outro
e. as referências bibliográficas deverão ser apresentadas, com conteúdo substancialmente semelhante de minha au-
no corpo do texto, entre parênteses com o nome do toria foi publicado ou submetido a apreciação do Conselho
autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando Editorial de outra revista, quer seja no formato impresso ou
de citação direta, da indicação da página. Ex.: (Miranda no eletrônico.”
Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15).
Conflitos de interesse
As referências bibliográficas deverão ser apresentadas Os trabalhos encaminhados para publicação deverão
no final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR conter informação sobre a existência de algum tipo de con-
6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exemplos: flito de interesse entre os autores. Os conflitos de interesse
financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao
Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio
pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do vínculo empregatício.
Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta
do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112. Ética em pesquisa
Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da
município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR), Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa
n. 38, p. 90-93, 1993. que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de
Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele,
incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser
Extensão do texto encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo
O artigo deve ser digitado no programa Microsoft® Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada.
Word, ou compatível, em página padrão A4, com fonte No caso de instituições que não disponham de um Comitê
Times New Roman tamanho 12 e espaçamento entre linhas de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo
de 1,5. CEP onde ela foi aprovada.
Fluxo dos originais submetidos à publicação Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encami-
Todo original recebido pela secretaria do Cebes é nhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho
encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer).
pertinência temática e observação do cumprimento das No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser
normas gerais de encaminhamento de originais. Uma vez encaminhados em até três meses.

aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a Ao fim desse prazo, e não havendo qualquer manifesta-
ção dos autores, o artigo será considerado como retirado.
dois membros do quadro de revisores (pareceristas) da
O modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico
revista. Os pareceristas serão escolhidos de acordo com o
está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br
tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros
que não sejam do mesmo estado da federação que os auto-
Envio do artigo
res. Os conselheiros têm um prazo de 45 dias para emitir
Os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial
o parecer. Ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido
devem ser enviados através do site da revista: www.saudee-
enviado, o consultor será procurado e a oportunidade de
mdebate.org.br.
encaminhamento a outro conselheiro será avaliada. O
formulário para o parecer está disponível para consulta no Endereço para correspondência
site da revista na Internet. Os pareceres sempre apresenta- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
rão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação; CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)
aceito para publicação (com sugestões não impeditivas); Tel.: (21) 3882-9140
reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modi- Fax: (21) 2260-3782
ficações sugeridas; recusado para publicação. E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
INSTRUCTION FOR AUTHORS - SAÚDE EM DEBATE
The magazine Saúde em Debate, created in 1976, is a Documents and declarations
publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Papers referring to themes of historical or conjectural
directed to Public Policies in the health field. Published every four interest will be accepted under the criteria of the Editorial
months, in April, August and December, it is distributed to all of Board.
the associates in regular situation with Cebes’ treasurer’s office.
It receives unpublished works under the form of original SECTIONS OF THE PUBLICATION
articles, book reviews of academic, political and social interest
and declarations. The magazine is structured with the following sec-
The texts that are sent for publication are of total and tions:
exclusive responsibility of the authors. Editorial
The total or partial reproduction of the articles is permit- Presentation
ted, as long as identified the source and authorship. Thematic articles
The publication of papers is conditioned to the opinions Free theme articles
of the Editorial Board Ad-Hoc established for each issue of the International Articles
magazine. Occasional suggestions of alterations in structure Reviews
or content, from the Board, will be previously resolved with Declarations
the authors. Additions or modifications will not be admitted Documents
once the works have been delivered for composition.
TEXT PRESENTATION
MODALITIES OF TEXTS
ACCEPTED FOR PUBLICATION Sequence of text presentation
The articles may be written in Portuguese, Spanish or
Original articles English.
Research: articles that present final results of scientific The texts in Portuguese and Spanish must contain the
researches, between 10 and 15 sheets. title in the original language and in English. The texts in
Assays: articles containing a critical analysis about a English must contain the title in English and in Portuguese,
specific subject of relevant interest for the health policies and it must express the content of the article clearly.
conjuncture in Brazil, between 10 and 15 sheets. The presentation sheet must have the author’s full name
Review: articles with a critical review of literature about and, at the footnote, the professional references (containing
a specific subject, between 10 and 15 sheets. institutional affiliation and title) and e-mail for contact.
Experience report: articles containing descriptions of When the article is a result of financed research, cite the
academic, attendance and extension experiences, between financing agency.
10 and 15 sheets. Present the abstract in Portuguese and English, or Span-
ish and English, so that a summary of the purposes, methods
Reviews used and main conclusions of the paper is clear with the
Book reviews of interest for the health public policies minimum of three and maximum of five keywords, without
field will be accepted under the criteria of the Editorial Board. exceeding the total of 700 letters (approximately 120 words).
The texts must present a notion about the content of the For the keywords, use the terms presented in the structured
paper, of its theoretical purposes and of the public to which vocabulary (DeCS), available on http://decs.bvs.br. In case the
it is directed in two or three sheets.
keywords related to the theme of the article are not found, it Text extension
is possible to indicate terms or expressions commonly used. The article must be typed on Microsoft® Word software,
After, the article itself is presented: or compatible, in pattern page A4, font Times New Roman,
a. the footnote markings must be superscribed. Ex: Sani- size 12 and 1,5 between lines.
tary Reform1
b. for words or extracts of the text that stand out under the Declaration of authorship and responsibility
author’s criteria, use simple quotation marks. Ex: ‘front According to the criteria of authorship of the Interna-
door’. tional Committee of Medical Journal Editors, the authors
c. boards and graphs must be sent in high quality print- must contemplate the following conditions: a) to contrib-
ing, black and white and/or gray scale, in sheets that ute substantially for the conception and planning, or data
are apart from the text, numbered and correctly en- analysis and interpretation; b) to contribute considerably for
titled, containing indications of the units in which are the elaboration of the draft or critical review of the content;
expressed the correspondent values and sources. The c) to participate in the approval of the final version of the
number of boards and graphs must be, at most, five per manuscript. For that, it is necessary to sign the following
article. Declaration of Authorship and Responsibility:
d. the authors that are cited in the text must be written in
small letters (only the first one is capital), observing the “I certify that I have participated sufficiently for the
ABNT NBR 10520:2001 norm (available in libraries). conception of this paper to make public my responsibility
Ex: According to Mario Testa (2000). for its content. I certify that the manuscript represents an
e. bibliographical references must be presented in the text, original paper and that not this manuscript nor any other
in parenthesis, with the name of the author in capital with a substantially similar content of my authorship has been
letters followed by the year and, in the case of a direct published or submitted to the analysis of an Editorial Board
quotation, the indication of the page. Ex: (Miranda from another magazine, printed or electronic”.
Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15).
Conflicts of interest
Bibliographical references must be presented at the end The texts sent for publication must contain information
of the article, observing the ABNT NBR 10520:2001 norm on the existence of any kind of conflict of interest among the
(available in libraries). authors. The conflicts of financial interest, for instance, are
not only related to the direct financing of the research, but
Examples: also to the employment bond itself.

Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade Ethics in research


pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do For researches initiated after January 1997 that involve
Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta human beings under the terms of the incise II, Resolution
do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112. 196/96 of the Health Councils (research that individually
Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular or collectively involves the human being, directly or indi-
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do rectly, in its totality or partially, including the management
município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR), of information or materials), a document of approval of the
n. 38, p. 90-93, 1993. research by the Committee of Ethics in Research from the
Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. institution where it was developed must be sent. In the case
of institutions that do not have a Committee of Ethics in In case there is a divergence in reports, the article will
Research, an approval by the Post Office Region where it has be sent to a third counselor to decide (the Editorial Board is
been approved must be presented. allowed, under its criteria, to emit a third report). In the case
of alteration requirements in the article, they can be sent in
Flow of originals submitted to publication up to three months.
Every original received by Cebes’ office is forwarded to the At the end of this deadline, and if there is no mani-
Editorial Board for the evaluation of thematic pertinence and festation from the authors, the article will be considered as
the observation of the fulfillment of general rules for directing
cancelled.
originals. Once they have been accepted for analysis, the originals
The model of the report used by the Scientific Council
are forwarded to two members of the reviewer’s board (report-
is available on http://www.saudeemdebate.org.br.
ers) of the magazine. The reporters will be chosen according
to the expertise and the theme of the article, giving priority to
Sending the article
counselors who are not from the same State of the federation
The work to be analyzed by the Editorial Board must be
as the authors. The counselors have 45 days to emit the report.
sent by the magazine’s website: www.saudeemdebate.org.br.
On the deadline, if it has not been sent, the consultant will be
informed and the opportunity to forward it to another counselor
will be analyzed. The form for the report is available for consulta- Mail address
tion in the website of the magazine in the internet. The reports Avenida Brasil, 4.036, sala 802
will always present one of the following conclusions: accepted CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)
for publication; accepted for publication (with non restraining Phone: (21) 3882-9140
suggestions); present again for new evaluation after making the Fax: (21) 2260-3782
suggested modifications; refused for publication. E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Saúde em Debate REVISÃO DE TEXTO, PROOFREADING
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DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009) A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral
Zeppelini Editorial Zeppelini Editorial
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EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR IMPRESSÃO E ACABAMENTO PRINT AND FINISH
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2O Suplente Lenaura Lobato (RJ) CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL
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Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ) Ligia Giovanella (RJ) Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro This publication was printed in Rio de Janeiro on november,
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v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm

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ISSN 0103-1104
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A Revista Saúde em Debate é
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associada à Associação Brasileira
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Saúde em Debate v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008 Cebes
ISSN 0103-1104

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