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FATO TÍPICO

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A primeira característica do crime é ser um fato típico, descrito, como tal, numa
lei penal. Um acontecimento da vida que corresponde exatamente a um modelo de fato
contido numa norma penal incriminadora, a um tipo.

Para que o operador do Direito possa chegar à conclusão de que determinado


acontecimento da vida é um fato típico, deve debruçar-se sobre ele e, analisando-o,
decompô-lo em suas faces mais simples, para verificar, com certeza absoluta, se entre o
fato e o tipo existe relação de adequação exata, fiel, perfeita, completa, total e absoluta.
Essa relação é a tipicidade.

Para que determinado fato da vida seja considerado típico, é preciso que todos
os seus componentes, todos os seus elementos estruturais sejam, igualmente, típicos.

Os componentes de um fato típico são a conduta humana, a conseqüência


dessa conduta se ela a produzir (o resultado), a relação de causa e efeito entre aquela
e esta (nexo causal) e, por fim, a tipicidade.

O objetivo, neste capítulo, é estudar cada um desses elementos do fato típico,


inclusive decompondo, cada um deles, em outros caracteres mais simples ainda, e
estes, quando possível, em outros componentes.

8.1 CONDUTA

Ao longo dos anos, os estudiosos do Direito Penal construíram várias teorias,


procurando explicar a ação, em sentido amplo, ou conduta, o primeiro elemento do
fato típico.

O tema é da mais alta importância, pois do conceito de conduta adotado


decorrem profundas e diversas conseqüências para o tratamento de importantes
questões penais práticas.

Não se trata de divergências de natureza meramente acadêmica, sem qualquer


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

reflexo na vida prática, como poderia parecer. Ao contrário, do conceito de conduta


adotado decorre a própria orientação do Direito Penal vigente em determinado país,
como se verá a seguir.

8.1.1 Teoria causalista

A teoria causalista ou naturalista da ação, de BELING e VON LISZT, incorpora ao


conceito de conduta as leis da natureza; daí o seu nome. Os adeptos da teoria causalista
ou naturalista – até pouco tempo atrás a que imperava no Brasil, e que, ainda hoje,
infelizmente, tem adeptos entre juízes e integrantes de certos tribunais – entendem que
a conduta é um puro fator de causalidade.

Segundo eles, a vontade é a causa da conduta e esta é a causa do resultado. Em


outras palavras: a conduta é efeito da vontade e causa do resultado. A vontade causa a
conduta, que dá causa ao resultado.

Para o causalismo, a conduta é um comportamento humano voluntário que se


exterioriza e consiste num movimento ou na abstenção de um movimento corporal.
Essa teoria considera imprescindível que a conduta típica seja um comportamento
voluntário, impulsionado pela vontade do homem, que se concretiza, torna-se real,
material, por meio de uma ação positiva ou negativa.

Existe conduta na atitude de Cláudio que se levanta da cama e vai até o


banheiro, para escovar os dentes, tropeça e derruba seu filho que, na queda, fratura o
braço. O movimento voluntário das pernas de Cláudio dentro de seu quarto – o andar,
tropeçando – causou a fratura do braço de seu filho. A vontade de Cláudio impulsionou
seu comportamento, que deu causa ao resultado.

Igualmente, é conduta o comportamento de Jorge, impulsionado por sua


vontade, que consiste em atirar, com a mão, uma pedra em direção ao corpo de Mário,
ferindo-o.

Os causalistas, ao examinarem a conduta de uma pessoa, não realizam qualquer


valoração acerca do fim pretendido pelo agente. Para eles, basta analisar a
voluntariedade do comportamento – se o agente queria movimentar-se ou abster-se de
um movimento – e se há nexo de causa e efeito entre o comportamento e a
conseqüência dele advinda.

Não se importam – quando examinam a conduta – com o conteúdo da vontade


do agente. Não perguntam se Cláudio, ao derrubar seu filho, desejava ou não feri-lo,
nem se Jorge, ao atirar a pedra, queria ou não atingir e ferir o corpo de Mário.

Para a teoria causal, essas são questões que não se resolvem no âmbito da
Fato Típico - 3

conduta, do fato típico, momento em que basta verificar-se a voluntariedade do agente


e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado.

A finalidade, o conteúdo da vontade, diz o causalismo, não são temas para


serem abordados no momento da análise da tipicidade do fato. Devem ser estudados
quando se for verificar a culpabilidade, que é a terceira característica do crime.

8.1.2 Teoria finalista

Contra o causalismo levantaram-se críticas importantes, falhas cruciais.


Imaginem-se três fatos da vida:

Fato A: João, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra Márcio,


causando-lhe um ferimento na perna direita.

Fato B: Pedro, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra Paulo,


causando-lhe um ferimento na perna direita.

Fato C: Antônio, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra


Sérgio, causando-lhe um ferimento na perna direita.

Nos três fatos, as três condutas consistem em três ações voluntárias de pressionar
a tecla do gatilho da arma de fogo, disparando-a em direção a outra pessoa. As
conseqüências das três condutas, os resultados, são absolutamente idênticos nos três
fatos: lesão do corpo do sujeito passivo.

Em qual tipo legal de crime se ajusta cada um dos três fatos? Seriam três “lesões
corporais”, dolosas, como definidas no art. 129 do Código Penal? Ou seriam três
“lesões corporais”, culposas, de que trata o § 6º do mesmo art. 129? Ou poderiam os
três fatos caracterizar-se como três tentativas de homicídio?

O adepto da teoria causalista não pode, neste momento, responder a essas


indagações, porque, segundo ele, não importa, no âmbito do fato típico, o conteúdo da
vontade do agente. De conseqüência, só poderá responder quando for analisar a
culpabilidade.

O primeiro funcionário público encarregado de tomar contato com um fato


definido como crime é o delegado de polícia, a quem incumbe investigar como
aconteceu, onde, quando, quem foi, como foi, por que foi e, após registrar tudo isto,
num documento denominado inquérito policial, o encaminhará ao juiz, que o mandará
ao promotor de justiça, cuja missão é, se considerar necessário, pedir ao juiz a
condenação do infrator da norma penal.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

O inquérito policial é o alicerce sobre o qual se vai construir um conjunto de


outros atos procedimentais, reunidos organizadamente naquilo que se chama processo
penal, instrumento de busca da verdade, pelo qual, ao final, o julgador decide sobre o
que lhe foi colocado: condena ou absolve o acusado da prática do fato definido como
crime. Essas noções de processo penal não são objeto deste estudo, por isso só são
feitas aqui referências bastante rudimentares, para que o neófito possa entender apenas
o necessário para o objetivo aqui proposto.

Como fará o delegado de polícia “causalista” encarregado de instaurar o


inquérito policial, diante daqueles três fatos? Em qual artigo do Código Penal
indiciará João, Pedro e Antônio?

É indiscutível que ele precisa verificar o que se continha na vontade de cada um


dos agentes, para definir em qual tipo legal de crime sua conduta se ajusta. Sem essa
análise, é impossível afirmar se como e quando um fato da vida é típico.

Para se dizer que no fato A houve tentativa de homicídio, é necessário que se


analise o conteúdo da vontade de João e se conclua que ele desejava matar Márcio, não
conseguindo porque, errando, só atingiu a perna, região não letal.

No segundo fato, B, para se afirmar que houve uma lesão corporal dolosa, é
indispensável que, analisando-se o conteúdo da vontade de Pedro, se conclua pela
certeza de que este queria apenas e tão-somente ferir Paulo.

E no terceiro fato, C, terá havido lesão corporal culposa, quando se chegar à


conclusão de que Antônio, ao disparar voluntariamente sua arma, não desejava nem
matar, nem ferir Sérgio, mas, apenas, brincar com seu revólver.

O indiciamento dos três agentes em inquérito policial deve ser o mais próximo
da realidade. As conseqüências são da mais alta importância, bastando lembrar que os
indiciados por lesão corporal simples dolosa (art. 129, caput) ou culposa (art. 129, § 6º)
poderão não ser presos em flagrante, mas colocados em liberdade, como manda o art.
69 da Lei nº 9.099/95, que trata do processo por crimes de menor potencial ofensivo:

“A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo


circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do
fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais
necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo,
for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele
comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.”

Já os presos em flagrante indiciados por tentativa de homicídio só poderão ser


libertados mediante o pagamento de fiança arbitrada pelo juiz, nunca pelo delegado.
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Essa é apenas uma das conseqüências práticas do correto indiciamento, que


decorre da exata tipificação de um fato concreto, possível apenas quando se analisa não
só a aparência do fato, mas, principalmente, o conteúdo da vontade do agente.

A distinção entre uma lesão corporal intencional, uma lesão corporal causada por
negligência e uma tentativa de homicídio em que a vítima sai ferida está no conteúdo
da vontade dos três agentes, na finalidade da vontade do agente dos três fatos, posto
que o resultado é idêntico nas três hipóteses.

HANS WELZEL, estudando a conduta nas primeiras décadas do século passado,


verificou que o elemento diversificador dos fatos típicos não está em seu resultado, mas
na ação. A ação do homem que mata outro com vontade de matar é punida mais
rigorosamente que a conduta do homem que mata outro sem vontade de matar, apesar
de o resultado ser o mesmo nas duas situações (morte de um homem), porque o Direito
deseja censurar mais severamente aquele que teve vontade de causar o mal a outrem. Ao
Direito importa distinguir entre o que quis um resultado e o que não o quis, mas, por
descuido, o causou.

Com base nessas observações, WELZEL estruturou a Teoria Finalista da Ação ou


Teoria da Ação Final, que diz ser toda ação uma atividade humana final, ou o exercício
da atividade finalista.

Todo e qualquer comportamento humano é um acontecimento finalista e não


puramente causal, pois o homem, enquanto ser consciente das leis naturais, de causa
e efeito, pode prever as conseqüências de seu comportamento e tem condições de
dirigir sua atividade no sentido da produção de um ou de outro resultado. E, sempre
que age, ele o faz com determinada finalidade.

Toda vontade tem um conteúdo, que é o fim. A teoria causal, quando prescinde da
análise do conteúdo da vontade, está fraturando o conceito de ação, que é um
fenômeno uno. A vontade que impulsiona a conduta tem um conteúdo que não pode
ser separado dela.

A diferença, portanto, entre as duas teorias é que, para os causalistas, a ação é um


puro processo causal, ao passo que o finalismo demonstrou que a conduta é um
processo causal dirigido a determinada finalidade.

Não importa, neste primeiro momento, qual seja a finalidade, mas que ela exista
sempre. Em algumas situações, essa finalidade é dirigida à produção de um dano a
algum bem jurídico, noutras o fim pode ser a obtenção de um resultado permitido ou
não proibido. Mas, sempre, haverá uma finalidade, sempre a vontade humana terá um
conteúdo, não importa com qual natureza.
6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Segundo WELZEL, a direção final da ação realiza-se em duas fases: internamente,


na esfera do pensamento, quando o homem se propõe realizar alguma coisa e,
externamente, quando concretiza, materializa esta sua vontade, por meio da colocação
em marcha de um processo causal, dominado pela finalidade, para alcançar o fim
proposto.

Na proposição da realização da conduta, estão incluídas a escolha do fim, a seleção


dos meios e a aceitação dos efeitos secundários da realização da ação.

Isso quer dizer que a finalidade da ação engloba não somente o fim escolhido, mas
também os meios utilizados e os efeitos desta utilização.

Por exemplo, quando alguém decide viajar de Brasília para Salvador, por via
terrestre, conduzindo seu veículo, durante um final de semana, integram a direção final
da conduta: (a) chegar a Salvador, um objetivo lícito; (b) viajar por rodovia, dirigindo o
veículo (meios); (c) a possibilidade de atropelar um animal ou uma pessoa na pista ou
colidir com outro veículo, enfim, toda e qualquer conseqüência secundária, decorrente
da colocação do processo causal dirigido à finalidade estabelecida inicialmente.

A conclusão indiscutível é de que somente analisando o conteúdo da vontade é que


se pode afirmar a realização de um tipo legal de crime, já que a finalidade é parte
integrante da conduta, dela inseparável. Essa é a essência do finalismo.

8.1.3 Teoria social da ação

Alguns importantes estudiosos do Direito Penal, como JESCHEK e WESSELS,


entenderam que o finalismo de WELZEL seria insuficiente para conceituar a conduta,
porque esquecia uma característica essencial de todo comportamento humano, que é
seu lado social.

Nem o causalismo, nem o finalismo, segundo eles, conseguem explicar a ação,


pelo que acresceram ao conceito de conduta a idéia de relevância social; assim, ação é
um comportamento humano socialmente relevante, questionado pelos requisitos do
Direito e não pelas leis naturais.

Segundo essa teoria, para se verificar a tipicidade de uma conduta é


indispensável conhecer não apenas seus aspectos causais e finalísticos, mas também
sua nota social. Seria relevante do ponto de vista social a conduta que fosse capaz de
afetar o relacionamento do indivíduo com o meio social.

“A teoria social da ação (...) vê na relevância social do fazer ou da omissão


humanos o critério conceitual comum a todas as formas de comportamento.
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Engloba o agir como fator sensível da realidade social, com todos os seus
aspectos pessoais, finais, causais e normativos.”1

Dois grandes penalistas, DAMÁSIO E. DE JESUS e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO


formularam severas críticas que, parece, fulminam essa teoria.

Para o primeiro,

“ela não deixa de ser causal, merecendo os mesmos reparos que a doutrina faz
à teoria mecanicista: não resolve satisfatoriamente o problema da tentativa e
do crime omissivo. Por outro lado, se ação é a causação de um resultado
socialmente importante, como se define a conduta nos crimes de mero
comportamento? Esta teoria, como a causal propriamente dita, dá muita
importância ao desvalor do resultado, quando o que importa é o desvalor da
conduta. Se a ação é a causação de um resultado socialmente relevante, então
não há diferença entre uma conduta de homicídio doloso e um comportamento
de homicídio culposo, uma vez que o resultado é idêntico nos dois casos”2.

Já o segundo, acerca do conceito de “relevância social”, ensina que

“pela vastidão de sua extensão, se presta para tudo, podendo abarcar até os
fenômenos da natureza, pois não se há de negar ‘relevância social’ e jurídica à
mudança do curso dos rios, por ‘ação’ da erosão, com repercussão sobre os
limites das propriedades; à morte, causada pela ‘ação’ do raio, com a
conseqüente abertura da sucessão hereditária; e assim por diante. (...) Isso
mostra, a nosso ver, que a relevância social não é um atributo específico do
delito, mas antes uma característica genérica de todo fato jurídico, tomado
este em seu sentido mais amplo. Sendo assim, se, de um lado, não se pode
negar ‘relevância social’ ao crime, de outro, é fora de dúvida que essa é uma
qualidade que lhe advém da circunstância de pertencer à família dos fatos
jurídicos, estes sim portadores originários de um indefectível aspecto social”3.

Incluir, no conceito de crime, a idéia de relevância social em nada ajuda a


explicá-lo. Além disso, o finalismo esclarece com suficiência o conceito de ação.

1WESSELS, Johannes. Direito penal: parte geral. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1976. v. 1, p.
20.

2 JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 204.
3 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 105.
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8.1.4 Teoria jurídico-penal

O mesmo FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, após entender que causalidade e


finalismo não esgotam o vasto conteúdo do agir humano – já que na maior parte dos
casos o agente atuaria por instinto ou por costume –, propõe abandonar o conceito pré-
jurídico, ontológico, proposto por HANS WELZEL, com o regresso a um conceito
eminentemente jurídico, que assim formulou:

“Ação é o comportamento humano, dominado ou dominável pela


vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem
jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem
jurídico.”4

Esse conceito em absolutamente nada colide com o conceito finalista de ação.


Na verdade, equivale a dizer que ação é o comportamento humano voluntário dirigido
a um fim. DAMÁSIO E. DE JESUS formula-o: “Conduta é a ação ou omissão humana
consciente e dirigida a determinada finalidade.”5

O conceito formulado por ASSIS TOLEDO não se distingue do finalista, mas


apenas o detalha. Onde o finalista escreve: “ação ou omissão humana consciente”,
detalhou: “dominado ou dominável pela vontade”, o que equivale à voluntariedade.
Onde o finalismo diz: “dirigido a determinada finalidade”, o novo conceito foi mais
pormenorizado: “dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico,
ou, ainda para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico”. A idéia,
confessada por seu formulador, é retornar ao que é jurídico, e explicar, ainda, a conduta
culposa. É certo que não há esta necessidade, pois trata-se, em primeiro lugar, de
conceituar a conduta, e isto o finalismo fez com propriedade e, sobretudo, simplicidade.

Claro que, no segundo momento, a tarefa do estudioso é verificar a qualidade da


conduta, em face dos tipos construídos pelo legislador e, conquanto tenha ele criado
tipos dolosos e tipos culposos, toda e qualquer conduta, para ser típica, ou será dolosa,
ou será culposa.

Para conceituar conduta, não é necessário explicar suas duas qualidades que,
como se verá adiante, são antagônicas e se repelem; daí a impossibilidade e
desnecessidade de se obter um conceito de ação, com a inclusão de suas qualidades
típicas, dolosa e culposa. A não ser que tal conceito careça do rigor científico, como,
aliás, reconheceu o próprio ASSIS TOLEDO, quando enunciou o seu.

4 Op. cit. p. 109.


5 Direito penal. Op. cit. p. 199.
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8.1.5 Conclusões

A teoria finalista é a que melhor atende aos interesses do Direito Penal, até
porque é a teoria que consegue explicar a conduta com base no próprio direito positivo.
Basta verificar-se que, mesmo antes de sua formulação por HANS WELZEL, a lei já criava
duas espécies de crimes: os crimes dolosos – em que o agente deseja alcançar o
resultado ou, mesmo sem o querer aceita-o – e os crimes culposos – cujos resultados
são alcançados sem vontade, mas por negligência, ou por descuido.

Isso significa que só são definidas como crime duas espécies de condutas
voluntárias: aquelas em que o agente deseja ou assume o risco de violar a norma e
aquelas em que a viola por desatenção, por não estar atento a seus deveres gerais de
cuidado com a vida.

Logo, toda e qualquer conduta definida como crime é valorada, qualificada, na


própria definição legal do crime, no próprio tipo.

O conceito finalista da ação esgota integralmente todo e qualquer


comportamento humano, que em toda e qualquer hipótese está, sempre, dirigido a um
fim, ainda quando se possa pensar que o agente atue por hábito, ou costume.

A circunstância de alguém realizar, costumeiramente, habitualmente, a mesma


atividade, o mesmo movimento, ou a mesma abstenção de um movimento não tem o poder
de retirar a finalidade de seu atuar. Desde que haja vontade, há finalidade.

Apenas em movimentos involuntários é que se pode verificar a ausência da


finalidade, mas estes, é evidente, não constituem conduta, como se verá adiante. Em
síntese, a conduta é o comportamento voluntário do homem dirigido a um fim,
proibido ou não.

Só constituem condutas os comportamentos corporais voluntários externos dos


humanos, consistentes em fazer alguma coisa ou em deixar de fazer alguma coisa.

As atitudes puramente internas, exclusivamente psíquicas do homem – como


desejar o mal ao próximo, sonhar com a morte do desafeto, rezar para que o mal
aconteça com seu inimigo – não constituem condutas. Podem interessar aos deuses,
aos religiosos e às religiões, ao Direito Canônico, não ao Direito Penal.

A conduta estrutura-se em dois elementos: um ato de vontade dirigido a uma


finalidade e a atuação dessa vontade no mundo exterior, vontade essa que, segundo
WELZEL, abrange o fim pretendido, os meios usados e as conseqüências secundárias.
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8.2 AUSÊNCIA DE CONDUTA

Só existe conduta quando houver vontade do agente.

A experiência da vida mostra algumas situações em que o homem, sem vontade,


movimenta-se ou abstém-se de movimento, dando causa, com uma dessas atitudes, a
alguma lesão a um bem jurídico penalmente protegido.

Um exemplo: em certo hospital, à meia-noite, a enfermeira Sandra deve


ministrar, ao paciente Juarez, determinado medicamento, sem o qual o doente,
inevitavelmente, morrerá. Suponham que, dez minutos antes, Joaquim, desejando a
morte de Juarez, após entrar no hospital, consegue subjugar a enfermeira, conduzindo-
a a um quarto, onde a amarra com cordas e a amordaça com fitas adesivas de primeira
qualidade, mantendo-a atada a uma das colunas do prédio, de tal modo que lhe é
impossível gritar, grunhir, sair, soltar-se, enfim, realizar qualquer movimento com o
corpo ou, simplesmente, com a boca.

Aos dez minutos do novo dia, o paciente, sem o medicamento indispensável,


morre.

A enfermeira omitiu-se? Deixou de cumprir seu dever de ministrar o


medicamento ao paciente? Houve, de sua parte, um comportamento humano, negativo,
uma abstenção de um movimento final?

É evidente que não. Só há conduta quando há vontade. No exemplo, a força


imprimida contra a enfermeira impedia-lhe de ter vontade de agir. Era-lhe fisicamente
impossível agir. Mesmo que desejasse – e é certo que ela assim quis –, com todas as
suas forças, soltar-se das amarras, e dirigir-se ao quarto do paciente, para aplicar-lhe o
medicamento, não lhe era possível fazê-lo. É claro que ela deixou de cumprir um dever.
Aconteceu uma inação, uma omissão, mas essa abstenção do movimento do corpo não
foi voluntária, não foi impulsionada pela vontade humana; logo, não constituiu uma
conduta.

Ela não teve vontade de omitir-se, não teve vontade de deixar de movimentar-
se. Sem vontade, não há conduta.

Situações como essa são chamadas de “ausência de conduta”.

Dá-se a ausência de conduta quando ocorre a lesão de um bem jurídico, em


conseqüência da atitude do homem – positiva ou negativa – sem, contudo, ter havido,
da parte dele, vontade. É uma situação em que ocorre a lesão de um bem jurídico, com
a interferência do homem, sem que tenha havido, contudo, conduta, por inexistir a
vontade. São três os casos possíveis.
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8.2.1 Coação física absoluta ou força irresistível

Como no exemplo da enfermeira, em algumas situações, incide sobre alguém uma


força física externa irresistível, a qual, atuando materialmente sobre ele, não pode ser
repelida, de modo a não lhe deixar qualquer opção de movimento corporal.

Trata-se de uma força absoluta, a que não se pode resistir.

Nesses casos, o homem deixa de movimentar-se, deixa de realizar um


comportamento positivo, de fazer alguma coisa, sem vontade alguma de abster-se, mas
em virtude da irresistibilidade da força externa que sobre ele atua. Essa força é tão
forte, que elimina, totalmente, a possibilidade de o homem ter vontade. Nem vontade
de omitir-se.

A força deve ser física e absoluta, deve atuar materialmente, concretamente,


sobre o corpo do homem e não apenas sobre sua mente, e deve ser de tal intensidade,
que seja impossível a ele contrapor-se, de modo a, pelo menos, neutralizá-la ou
diminuí-la, tornando-a resistível.

Só haverá coação física absoluta sobre aquela enfermeira, se as cordas que a ataram
tiverem sido suficientemente fortes, estiverem devidamente ajustadas, pois, se tiver sido
amarrada com lacinhos de fita, ou cordas frouxas, a força não seria irresistível.

Havendo a chamada vis absoluta, não há vontade, não há conduta e, de


conseqüência, não há fato típico, e por isso o fato não é crime.

8.2.2 Movimentos reflexos

Em movimentos do corpo ditados pelos reflexos naturais, também não se pode


falar na existência de vontade.

Imaginem a situação: João, vendo Joana sentada ao lado da parede da sala de


aula, e estando por ela apaixonado, resolve abordá-la, dirigindo-se a sua frente, onde
pretende declarar seu amor. Ao se aproximar da amada, encosta seu braço à parede
que, por um defeito da fiação elétrica interna, emite um choque elétrico que atinge, com
grande intensidade, o corpo de João. Este, num movimento reflexo, impensado,
indesejado, move bruscamente o braço, atingindo o rosto de Joana, bem no olho
direito, causando-lhe equimoses.

Esse fato revela um movimento corporal de João que, todavia, não constitui
conduta, posto que não houve, da parte dele, qualquer vontade de movimentar o braço.
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

O que houve foi um movimento corporal instintivo, impensado, indesejado, mas


determinado pela dor sofrida e que gerou um comando cerebral dirigido a João no
sentido de que ele movesse seu braço, livrando-o do choque elétrico. Não houve
vontade e, por isso, não houve conduta. Sem conduta, não há fato típico, não há crime.

8.2.3 Estados de inconsciência

O primeiro caso revelou a inexistência de vontade, pela ação material externa


imprimida contra o agente. Ali existe consciência do fato, mas não há vontade. No
movimento reflexo, não há nem consciência acerca do fato e, de conseqüência, não
pode haver vontade. Nos chamados estados de inconsciência, não existe, simplesmente,
a consciência. O agente encontra-se absolutamente privado da possibilidade de saber
qualquer coisa. É como se ele estivesse cego, surdo, mudo e em sono profundo. Logo,
não pode querer.

Durante o sono, no sonambulismo, na embriaguez letárgica, não se pode


afirmar que o agente tenha agido, porque, em qualquer dessas hipóteses, não se pode
concluir pela existência de mínima vontade.

Nos casos em que o agente se tenha colocado, voluntariamente, num estado de


inconsciência, para realizar o fato típico, chamados actiones liberae in causa, o direito
vai considerar relevante a atitude anterior, realizada com consciência. Esse assunto é
tratado no item 11.2.3.

Ausente, pois, a consciência, ausente a vontade e, de conseqüência, a conduta,


ainda que dessa situação decorra qualquer lesão a qualquer bem jurídico. Não havendo
conduta, não há fato típico, e sem este não há o crime.

8.3 FORMAS DE CONDUTA

Conduta é o comportamento humano voluntário dirigido a um fim (final), positivo


ou negativo. A expressão conduta é sinônima de ação, em seu sentido amplo, que
engloba a conduta positiva e a conduta negativa. A conduta positiva é chamada ação,
em sentido estrito, e a conduta negativa é chamada omissão.

8.3.1 Ação

Ação, em sentido estrito, também chamada comissão, ou conduta comissiva, é a


que se realiza por meio de um movimento do corpo dirigido a uma finalidade. Existe
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uma vontade, um querer, e a manifestação dessa vontade, sua concretização, por meio
de um movimento do corpo. São exemplos de ações: disparar um tiro de revólver,
empurrar o corpo de uma pessoa, cortar com uma faca um objeto, levar o copo ou o
garfo à boca.

A grande maioria dos tipos legais de crime descreve condutas – “matar alguém”,
“subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, “constranger mulher à
conjunção carnal...” – que se realizam por ações em sentido estrito, de movimentos
corporais, o que não impede possam algumas delas realizar-se por meio de
comportamento oposto, da abstenção de movimentos corporais, a omissão, como se
verá a seguir.

8.3.2 Omissão

A omissão, ou conduta omissiva, é a que se manifesta por abstenção do


movimento do corpo, dirigida a uma finalidade.

A omissão não é simplesmente deixar de fazer alguma coisa, mas deixar de realizar
um comportamento que deveria ser realizado e que o omitente poderia ter concretizado
– “a omissão é a não-realização de um comportamento exigido que o sujeito tinha a
possibilidade de concretizar”6.

8.3.2.1 Omissão pura

Omissão pura ou omissão própria, que dá lugar aos chamados crimes omissivos
próprios, é a abstenção de um comportamento determinado por uma norma penal
incriminadora.

Para existir a omissão própria, é necessário que exista um tipo legal de crime
descrevendo uma conduta omissiva, como, por exemplo, no art. 269 do Código Penal:
“Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é
compulsória.”

Como se vê, o tipo descreve uma omissão, uma inação, a abstenção de um


movimento, pelo que a norma manda o sujeito realizar um movimento do corpo, uma
ação, em sentido estrito: deve o médico denunciar à autoridade pública a doença, deve
realizar um comportamento positivo.

6 JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 208.
14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Não realizando o comportamento exigido pela norma incriminadora, quando lhe


era possível fazê-lo, o sujeito realiza o fato típico omissivo próprio.

São exemplos de tipos de omissão pura os seguintes, do Código Penal:

a) definido, no art. 135, como omissão de socorro (Deixar de prestar assistência,


quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à
pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir,
nesses casos, o socorro da autoridade pública);

b) no art. 244, o abandono material (Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência
do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de
ascendente inválido ou valetudinário, não lhes proporcionando os recursos necessários
ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou
majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente
enfermo);

c) no art. 246, o abandono intelectual (Deixar, sem justa causa, de prover à instrução
primária de filho em idade escolar).

Os comportamentos omissivos são bem revelados nas locuções verbais


utilizadas na descrição das condutas: “deixar de”, “não pedir”, “deixar”, “não lhes
proporcionando”, “faltando ao pagamento” etc.

Como se verifica, nos referidos tipos não se exige que da omissão resulte algum
dano a quem quer que seja, bastando, para caracterizar o fato, que o sujeito não realize o
comportamento exigido e que ele podia realizar. Omissão é não realizar o devido e
possível.

8.3.2.2 Omissão imprópria

A omissão imprópria, também chamada comissão por omissão, e que dá lugar


aos delitos omissivos impróprios ou comissivos por omissão, ou, ainda, comissivos
omissivos, é a abstenção de um movimento corpóreo final que o sujeito devia e podia
realizar para impedir a produção de um resultado lesivo de um bem jurídico.

Para a definição desses crimes, não existe uma norma penal incriminadora que
mande o sujeito agir, como na omissão pura.

Ocorre um fato típico de crime omissivo impróprio quando, existindo norma


penal impondo a determinado sujeito a obrigação de agir para impedir a ocorrência de
resultados lesivos – conferindo-lhe, portanto, uma obrigação de realizar um
comportamento positivo de modo a evitar que um bem jurídico seja atingido –, ele,
Fato Típico - 15

podendo, não o realiza, em razão do que ocorre o resultado que deveria ter sido evitado.

Deixando de realizar a ação exigida e, em conseqüência dessa inação, ocorrendo


o resultado, o sujeito que devia e podia agir responde pelo evento acontecido, como se o
tivesse cometido.

Veja-se o exemplo: João, à beira da piscina de sua casa, vê seu filho menor
afogando-se e não tenta salvá-lo, podendo fazê-lo. O filho morre afogado.

Do ponto de vista mecânico, meramente causal, não se pode dizer que João
matou seu filho, uma vez que ele não realizou um comportamento destinado a obter o
resultado morte. Não realizou uma ação. Não cometeu algo, não agiu. Ocorre que a lei
ordena ao pai que proteja o filho, impedindo a ocorrência de qualquer mal com o menor.
Manda-o agir para impedir todos e quaisquer resultados lesivos a seu filho.

Ao manter-se inerte, diante do perigo representado pelo afogamento, o pai,


podendo movimentar-se para evitar o mal, viola a norma, e por isso responderá pelo
resultado, como se o tivesse produzido. É como se ele tivesse cometido o crime de
homicídio, por omissão. Daí o nome de comissão por omissão.

A omissão imprópria, portanto, não pode ser realizada senão por certas pessoas,
aquelas que têm o dever de agir para impedir o resultado.

O § 2º do art. 13 do Código Penal estabelece:

“A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para


evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação
de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado.”

Essas pessoas estão obrigadas a agir para evitar que o resultado ocorra. Se,
podendo agir, não realizam uma ação, stricto sensu, a fim de impedir a ocorrência do
resultado, serão consideradas, por força da norma, causadoras dele. É claro que só se
pode considerá-las causadoras do resultado do ponto de vista normativo, por força da
norma, e não do ponto de vista físico, natural, causal, já que o que mata o filho afogado
é a ingestão de água nos pulmões e a asfixia que se segue etc.

Quem mata o filho que está pendurado num barranco ou num galho de uma
árvore e cai no despenhadeiro não é o pai que, podendo, não o socorre, mas o
traumatismo craniano decorrente do choque do corpo com o chão. Fisicamente, é isso,
mas, do ponto de vista do Direito, da norma jurídica, quem tinha o dever de agir para
impedir o resultado lesivo será considerado seu causador e por ele responderá.
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Assim, o pai, natural ou por adoção, o curador, o tutor, o carcereiro, o diretor do


presídio, são pessoas que têm, por dispositivo legal, a obrigação de cuidar dos filhos,
protegê-los e zelar por eles, pelos curatelados, tutelados e presos, respectivamente.

Estando qualquer desses diante do risco de uma lesão, aqueles, seus garantes,
estão obrigados a agir para impedir que a lesão ocorra.

Se a pessoa, mesmo não tendo o dever legal de proteção, guarda ou vigilância,


assumir, contratualmente, a responsabilidade de impedir o resultado, também estará
obrigada a agir. Não é necessária a existência de um contrato, e tampouco escrito, mas
que a pessoa se coloque numa posição de garantidora, de protetora.

É o caso do guia de turismo, da babá, do enfermeiro, em relação ao turista, à


criança e ao doente. Entre eles há uma relação de confiança, em que os primeiros se
obrigam a prestar uma atenção especial. Por isso, na situação em que se pode prever a
possibilidade de um resultado indesejado, lesivo, de um bem jurídico, o garante deve
agir para impedir o resultado. Se não o faz, podendo, e o resultado ocorre, por ele irá
responder, pois que assumiu a responsabilidade de evitá-lo.

A última situação é a da pessoa que, com um seu comportamento precedente, cria


o risco de que o resultado venha a ocorrer. Por exemplo, João coloca fogo em pastagem
de sua propriedade, costume da região Centro-oeste do país, e o fogo, em razão dos
ventos do Planalto Central, ultrapassa os limites de sua propriedade, atingindo um
galpão situado no terreno de seu vizinho Alfredo, onde estão guardados bens de sua
propriedade, máquinas agrícolas, alguns animais, e até crianças brincando.

O risco da ocorrência de um resultado lesivo a qualquer dos interesses dos


vizinhos de João foi criado por seu comportamento voluntário de atear fogo na
vegetação de sua propriedade. É certo que sua vontade não era de causar prejuízo a
seus vizinhos; todavia, o fogo ultrapassou os limites de sua propriedade, e foi gerar
perigo de lesão para interesses de terceiras pessoas.

João tem o dever jurídico de, podendo, agir para impedir a ocorrência de quaisquer
lesões a quaisquer bens jurídicos de quem quer que seja, pois foi o responsável pela
criação da situação que os colocou sob o risco de sofrer qualquer lesão.

Essas pessoas – as que têm o dever legal de proteção, guarda e vigilância, as que
de outra forma assumiram a responsabilidade de impedir o resultado, e as que, com
comportamento antecedente, criaram a situação de risco de ocorrer o resultado – são
denominadas garantes, e estão obrigadas a agir para impedir que o resultado aconteça.
Se, podendo, não agem, vale dizer, omitindo-se, respondem pelo resultado como se
tivessem dado causa a ele. É essa a norma penal.
Fato Típico - 17

A única possibilidade de se eximirem de responder pelo resultado, de não verem


suas condutas tipificadas como comissivas por omissão, ou de omissão imprópria, é
demonstrarem absoluta impossibilidade de agirem. Por exemplo: não pode impedir a
morte do filho que se afoga na piscina o pai que se encontrava em outra cidade no
momento em que a criança se atira na água.

Apesar de ter o dever legal de proteção, guarda e vigilância, o pai encontrava-se


trabalhando em outro local, e, mesmo tendo o dever de agir para impedir o resultado,
não lhe era possível fazê-lo, até por não ter conhecimento da necessidade de agir, e,
mesmo que avisado, não lhe era possível evitar o resultado.

De conseqüência, só responde pelo delito comissivo por omissão aquele que tem o
dever, legal ou jurídico, de agir para impedir o resultado e, podendo fazê-lo, omite-se.

8.4 DOLO

O Direito Penal não poderia considerar crime o simples comportamento


humano, a conduta, positiva (ação) ou negativa (omissão), independentemente da
formação da vontade do sujeito.

Longe se vai, na história, o tempo em que se punia pela simples relação de causa e
efeito entre o comportamento do homem e o resultado lesivo. Um Direito Penal
democrático só pode considerar crimes comportamentos humanos voluntários que
poderiam ter sido evitados.

Importa muito saber qual a atitude interna do homem quando se comporta de


modo a causar dano a um bem jurídico alheio. Agiu com vontade de matar? Agiu com
displicência?

O que ocorre na esfera do pensamento humano, no interior da consciência do


sujeito, no momento em que ele movimenta seu corpo ou abstém-se do movimento que
devia realizar? A resposta a essa indagação é imprescindível para se determinar a
existência de um crime.

Não é crime qualquer causação de um resultado lesivo de um bem jurídico. Há


mortes inevitáveis, como a causada por um raio que cai sobre a cabeça de um homem.
Só serão considerados crimes resultados que poderiam ter sido evitados.

Estabeleceu-se que os fatos definidos como crime serão dolosos ou culposos. Os


primeiros constituem a regra e serão punidos mais rigorosamente, porque constituem
comportamentos merecedores de maior resposta penal.
18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Logo, somente haverá conduta típica dolosa ou conduta típica culposa. Por isso,
é necessário entender tanto o conceito de dolo quanto o de culpa, em sentido estrito,
que qualificam as condutas, respectivamente, de dolosas e de culposas.

8.4.1 Teorias do dolo

Várias são as teorias que procuram explicar o que seja esta importantíssima
categoria do Direito Penal, o dolo. Basta estudar as três mais importantes, a teoria da
vontade, a da representação e a do assentimento ou do consentimento.

8.4.1.1 Teoria da vontade

A teoria clássica, elaborada por Carrara, dizia que dolo é a intenção mais ou
menos perfeita de praticar um fato que se conhece contrário à lei.

Age com dolo, segundo a teoria da vontade, quem tem, como objetivo, a prática
de um fato definido como crime. Em outras palavras, é dolosa a conduta em que o
agente tem vontade de alcançar o resultado, de conseguir que ocorra, se materialize a
conseqüência de seu comportamento.

É doloso o comportamento de quem tem consciência do fato, de seu significado


e, ao mesmo tempo, a vontade de realizá-lo.

Exemplo: João tem consciência de que, se deixar cair uma pedra pesada, de
aproximadamente 20 quilogramas, sobre a cabeça de Maria, sua mulher, que dorme,
poderá matá-la. Desejoso de ficar viúvo, já que não consegue viver com sua mulher e
está apaixonado por Mariana, desfere, contra sua mulher, o golpe violento com a
pesada pedra, acabando por matá-la. Agiu, a toda evidência, com dolo, com consciência
de que, realizando aquele comportamento, causaria a morte de Maria, e com vontade
de produzir esse resultado.

Significa dizer que João tinha consciência e vontade de realizar o fato definido
como crime no art. 121 do Código Penal. Tinha consciência dos fatos e vontade de dar
causa ao resultado proibido.

Quem assim agir, segundo essa teoria, age dolosamente. É quem consegue
representar o futuro resultado, quem o prevê e, simultaneamente, deseja alcançá-lo.
Dolo é, portanto, previsão do resultado e, a um só tempo, vontade de alcançá-lo. Dolo é
consciência (previsão) e vontade.
Fato Típico - 19

8.4.1.2 Teoria da representação

Uma segunda teoria entende o dolo de forma bem distinta. Não é necessário que
o agente tenha vontade de alcançar o resultado, bastando que o preveja, que o
represente.

Se o agente antevê o resultado e não se detém, realizando uma conduta que dá


causa ao resultado, mesmo não tendo desejado alcançá-lo, terá agido dolosamente, por
tê-lo representado, porque o previu.

Quem, dirigindo seu veículo por uma avenida movimentada – avistando à


frente alguns transeuntes próximos da pista, que aparentam querer atravessá-la, e
prevendo a possibilidade de uma travessia e possível atropelamento, com seu veículo –,
continua, apesar da previsão do atropelamento, no percurso, sem se deter, e acaba por
atropelar alguém, causando-lhe ferimentos, só por ter previsto a possibilidade do
resultado, só por tê-lo representado, só por isso, já teria agido com dolo.

Para essa teoria não é necessário que o agente tenha vontade de produzir o
resultado, basta que o tenha previsto. Dolo seria a representação do resultado.

8.4.1.3 Teoria do assentimento ou do consentimento

Esta teoria, tanto quanto a teoria da vontade, exige que o agente tenha
consciência do fato, tenha previsão do resultado, mas não exige que ele queira alcançar
o resultado, bastando que o aceite, que nele consinta, caso ele aconteça.

Em outras palavras, para essa teoria é dolosa a conduta de quem, prevendo o


resultado, não o deseja, mas dá seu assentimento, se o resultado, eventualmente,
acontecer.

Exemplo: João numa caçada, avistando um animal e próximo dele um homem,


desejando atingir a caça, prevê que, se errar o tiro, poderá atingir o homem a quem não
deseja matar. Fazendo a previsão, João, apesar disso, pensa: “não quero atingir o
homem, mas se o atingir, tudo bem, não posso fazer nada”. Em seguida, atira e atinge
o homem, em vez da caça. Nesse caso, para esta teoria, João agiu com dolo, porque,
apesar de não querer o resultado, aceitou-o.

8.4.1.4 Dolo no Código Penal brasileiro

Das três teorias, a da representação não pode, em nenhuma hipótese, ser aceita,
pois não pode ser tido como doloso o simples “prever um resultado”, que não é
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

comportamento, mas um puro acontecimento psicológico, não revelando nenhuma


atitude, nem mesmo interna do sujeito, mas um simples pensamento, uma simples
constatação, aliás, absolutamente indemonstrável.

Quem apenas prevê o resultado não pode ser tratado igualmente ao que, além
de prever, deseja alcançá-lo. É certo, portanto, que o dolo não pode ser apenas
previsão.

Não se pode esquecer que aqui se trata da construção de um elemento


indispensável para considerar uma conduta como típica, merecedora de uma pena
criminal, aliás, a mais severa das sanções jurídicas.

Devem ser consideradas delituosas as condutas realizadas com deliberada


vontade de realizar a figura típica, alcançando o resultado nela previsto. Aquele que age
com a intenção de causar um dano a um bem jurídico deve merecer a maior
reprovação. Com razão, pois, a teoria da vontade. Dolo deve ser consciência do fato e a
vontade de produzir o resultado.

Por outro lado, dolo não pode ser apenas consciência e vontade, previsão e
vontade de alcançar o resultado, uma vez que a atitude daquele que, mesmo não
desejando o resultado, aceita-o, se ele ocorrer, é tão grave que merece quase tanta
censura quanto a do que quer o resultado.

Quem, após prever um resultado, não se detém e age, com a atitude interna de
aceitação da lesão, de indiferença em relação ao bem jurídico alheio, deve ser
equiparado ao que busca realizar a lesão, alcançar o resultado. A atitude interna de não
respeitar o bem jurídico alheio daquele que não deseja, mas aceita sua lesão, deve
merecer, se não idêntico, pelo menos muito próximo tratamento, e ser equiparada à do
que a deseja, pois que, apesar da diferença, significam, praticamente, o mesmo para os
bens jurídicos colocados sob a proteção do Direito Penal.

Nenhum dos agentes se detém diante da previsão do resultado lesivo. Um


porque o deseja, o outro porque o aceita. As duas atitudes internas devem ser
consideradas, igualmente, dolosas. Nenhum deles evita a conduta que o pode gerar,
porque não está preocupado com a possibilidade da lesão. E as duas condutas
provocam a lesão. A diferença entre querer e apenas aceitar não é suficiente para impor
tratamento diferente às duas condutas. Por isso, o Código Penal brasileiro adotou as
duas teorias, a da vontade e a do assentimento, no art. 18, I: “Diz-se o crime: I – doloso,
quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.”

É dolosa a conduta quando o agente “quis o resultado”, e é também quando,


mesmo sem querê-lo, o agente “assume o risco” de sua produção, o que significa
Fato Típico - 21

“aceita-o, se ele ocorrer”. Não se deve afirmar que age com dolo o agente que arrisca
um comportamento, mas o que aceita o risco de sua produção. Aceitar ou assumir o
risco não tem o mesmo sentido do popular “arriscar”, que significa, sim, um
comportamento perigoso, arriscado, mas que não quer dizer, necessariamente, que o
agente aceita o resultado lesivo, se ele vier a acontecer.

8.4.2 Natureza e elementos do dolo

Para os clássicos, o dolo, além da consciência do fato e da vontade de alcançar o


resultado, conteria outro elemento, de caráter normativo, que seria a “consciência da
ilicitude”, pelo que só agiria com dolo o sujeito que, além de ter previsão do resultado e
vontade de alcançá-lo, soubesse que sua conduta era proibida, ou ilícita.

Para a teoria finalista, o dolo, porém, é natural, não contendo esse elemento
normativo que é a consciência da ilicitude. Dolo é só consciência do fato – previsão – e
vontade. A consciência da ilicitude é um elemento normativo que se situa no âmbito da
terceira característica do crime, a culpabilidade.

Quando do exame da culpabilidade, será demonstrada com precisão a coerência da


teoria finalista a respeito da natureza do dolo, e a impossibilidade de colocar, entre seus
elementos, a consciência da ilicitude. Essa demonstração não pode ser feita neste
momento.

Assim, são elementos estruturais do dolo: a consciência e a vontade.

O elemento intelectual do dolo é a consciência do fato, da conduta, do resultado


e do nexo de causa e efeito que deve existir entre a conduta e o resultado.

A vontade é o elemento volitivo, que impulsiona a conduta em direção ao


resultado.

Um atirador, no stand de tiro ao alvo, do clube de tiro, que atinge alguém que
passa por detrás do alvo, matando-o, não tem consciência do fato, nem vontade de
alcançar o resultado. Não agiu dolosamente.

O caçador que, avistando um vulto na selva, pensando tratar-se de uma caça,


atira e verifica, depois, ter atingido um homem, igualmente age sem dolo, pois não tem
nem consciência de que está atirando numa pessoa, nem vontade de atingi-la.

O dolo, segundo HANS WELZEL, abrange não só o fim pretendido, mas também os
meios utilizados e as conseqüências secundárias vinculadas ao emprego dos meios.
22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.4.3 Espécies de dolo

O dolo direto, ou determinado, é aquele em que o sujeito busca alcançar um


resultado certo e determinado.

Contrariamente, diz-se que o dolo é indireto ou indeterminado, quando a


vontade do agente não se dirige a um resultado certo, preciso, determinado.

O dolo indireto pode ser alternativo, quando o sujeito quer um ou outro


resultado, por exemplo, matar ou ferir seu desafeto. Sua vontade dirige-se a qualquer dos
resultados, não a um deles especificamente. Se acontecer o primeiro, estava na vontade
do agente. Se acontecer o segundo, do mesmo modo, era resultado almejado.

A outra espécie de dolo indireto é o dolo eventual, em que o agente não deseja o
resultado previsto, mas o aceita, se ele, eventualmente, acontecer. Ocorre quando o
agente, mesmo não querendo o resultado, assume, aceita o risco de sua produção. Sua
vontade não se dirige ao resultado, mas, se este acontecer, será aceito pelo agente.

Com vontade de alcançar o resultado ou apenas aceitando-o, a conduta é dolosa,


o fato é doloso, igualmente. Assim, no que diz respeito à verificação da correspondência
entre o fato natural e o tipo legal de crime, nenhuma diferença faz ter sido o dolo direto
ou indeterminado. Já disse o doutrinador, o dolo eventual e o dolo direto são as faces
de uma única moeda.

8.4.4 Conceito de dolo

A noção de dolo apresentada até aqui – a consciência do fato e a vontade de


causar o resultado, ou, em duas palavras, consciência e vontade, ou, simplesmente,
vontade de causar o resultado – é insuficiente, pois somente se aplica aos tipos legais
de crimes que descrevem, além da conduta, a produção de um resultado, como no
homicídio simples, do art. 121, caput, do Código Penal, “matar alguém”.

DAMÁSIO E. DE JESUS faz severa crítica a esse conceito, mostrando que “o dolo
deve abranger todos os elementos da figura típica”7.

É preciso ver, também, que muitos tipos legais de crime descrevem pura e
simplesmente um comportamento humano, sem exigir a produção de qualquer
conseqüência, como, por exemplo, “deixar o médico de denunciar” doença de
notificação compulsória.

Esse tipo legal de crime só pode ser cometido com dolo. Dolo, nesse exemplo,

7 Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 249.


Fato Típico - 23

não pode ser definido como “previsão” e “vontade” de alcançar o resultado, pois o tipo
referido não descreve qualquer resultado. Dolo, nesse caso, é a vontade que deve ter o
médico de não denunciar a doença. Noutras palavras, para realizar esse fato típico, o
médico deve ter consciência de que a doença que não denunciou era de notificação
compulsória e que assim se conduziu com vontade de não denunciar.

Dolo, no caso, é a vontade de realizar o tipo, a descrição da conduta proibida.

Por isso, melhor dizer que “dolo é a consciência e vontade de realizar o tipo
objetivo de um delito”8.

8.5 CULPA, EM SENTIDO ESTRITO

O Direito Penal deveria preocupar-se apenas com os comportamentos dolosos,


que efetivamente representam uma atitude interna do homem que deve ser proibida e
ter como conseqüência a severa sanção penal. Deveria ser assim, não fosse o Direito
Penal o protetor dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves, que
devem ser punidas, ainda que o fim pretendido por seus causadores seja outro.

Modernamente, vêm ocorrendo cada vez mais lesões graves de bens jurídicos
importantíssimos, causadas por comportamentos humanos não dolosos. É claro que
pessoas morrem ou são feridas por causa de condutas humanas em que não se queria,
nem se aceitava a lesão, mas em muitos casos elas poderiam ser evitadas se o agente
tivesse tomado um pouco de cuidado.

Principalmente a partir do final do século passado, a vida das pessoas tornou-se


extremamente perigosa, nas cidades abarrotadas de automóveis, nas indústrias com
suas máquinas velozes e potentes, no dia-a-dia do contato com materiais e elementos
químicos antes desconhecidos.

O número de mortes e danos à integridade corporal ou à saúde das pessoas,


causados por comportamentos humanos não dolosos tem aumentado
consideravelmente. O Direito Penal não poderia ignorar a existência desses ataques,
razão por que, ao lado da conduta dolosa, se passou a punir também o fato chamado
“culposo”, praticado com “culpa, em sentido estrito”.

8.5.1 Conceito e elementos da culpa, em sentido estrito

8 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 57.
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Os doutrinadores ensinam que não existe um conceito perfeito de culpa, em


sentido estrito, mas que, com base no enunciado no art. 18, II, do Código Penal (diz-se
o crime culposo quando o agente deu causa ao resultado, por imprudência,
negligência ou imperícia), se poderia dizer que culposa é a conduta voluntária que
produz resultado ilícito, não desejado, mas previsível, e excepcionalmente previsto,
que podia, com a devida atenção, ser evitado9.

A culpa, em sentido estrito, ou negligência, expressão mais técnica e precisa e


que evita confusões desnecessárias, é a falta de cuidado do agente, numa situação em
que ele poderia prever a causação de um resultado danoso, que ele não deseja, nem
aceita, e às vezes nem prevê, mas que, com seu comportamento, produz e que poderia
ter sido evitado.

Desse conceito extraem-se os elementos que integram a culpa, em sentido


estrito: (a) conduta voluntária; (b) inobservância do dever de cuidado objetivo; (c)
resultado lesivo indesejado; (d) previsibilidade objetiva; (e) tipicidade.

8.5.2 Conduta voluntária

Só haverá culpa, stricto sensu, e, de conseqüência, fato culposo, se nele


estiverem reunidos todos os seus indispensáveis elementos. Ausente um deles, o fato
não é culposo e, de conseqüência, não haverá crime culposo.

Só interessam ao Direito Penal as condutas voluntárias. Por isso, para que haja
culpa, a conduta, positiva ou negativa, deve ser voluntária e dirigida a determinada
finalidade.

De notar que, no fato culposo, a conduta não se dirige à produção do resultado,


não se destina à realização de um tipo legal de crime, pois, se assim fosse, haveria dolo.
A conduta é, todavia, final e dirige-se geralmente a um fim perfeitamente lícito,
permitido pelo Direito.

Se não for voluntária, não haverá conduta, mas ausência de conduta e o fato não
será típico. Logo, não será crime.

8.5.3 Inobservância do dever de cuidado objetivo

Este é um mundo farto de complexidade nas relações humanas. Os indivíduos

9 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 137.
Fato Típico - 25

vivem seu dia-a-dia intensamente. A moderna sociedade ocidental exige muito dos
indivíduos, em todos os setores de sua vida.

O mundo vive uma guerra constante, em que todos desejam alcançar o sucesso,
vida digna, felicidade, paz, prosperidade, tranqüilidade, prazer, realização pessoal,
profissional, afetiva, enfim, todos querem ser felizes, e essa tal felicidade está sempre
num ponto onde – tudo leva a, quase sempre, acreditar – o braço não alcança, a vista
não divisa, as pernas não conseguem levar o corpo, ou o barco não aporta. Talvez, por
isso, as pessoas não se contentam com o que têm e estão, sempre, apesar dos perigos e
dos riscos, e, quase sempre, sem considerar conseqüências indesejáveis, procurando o
impossível, com comportamentos impensados, perigosos, arriscados.

Apesar da competição em que todos estão lançados, os homens devem


comportar-se de modo a não causar prejuízo às outras pessoas. O direito posto na
sociedade determina a todos o dever de agir de modo a respeitarem os bens e os valores
dos outros indivíduos.

Se há pressa de chegar em casa, deve-se, todavia, evitar pisar os pés das


pessoas que estão à frente, empurrá-las, derrubá-las, sujar-lhes as roupas, enfim,
deve-se realizar o objetivo, chegar ao destino, sem, contudo, causar, a quem quer que
seja, qualquer dano, qualquer prejuízo, qualquer lesão, ainda que não tão grave.

Se todos vivem apressadamente, perigosamente, em busca do sucesso, não


podem, contudo, esquecer-se de que não haverá sucesso algum às custas da desgraça
alheia.

Se é importante e lucrativo para o empresário da construção civil que o engenheiro


e o arquiteto consigam construir um edifício ao mesmo tempo belo, moderno, eficiente
e com um custo reduzido, de modo a ser vendido por preço competitivo, que supere em
muito o valor de seu custo, devem eles levar a cabo esse objetivo com o cuidado de não
utilizarem materiais incompatíveis, inservíveis ou imprestáveis, desaconselhados pela
boa técnica, e que possam, no futuro, comprometer as condições de segurança da obra,
colocando em risco a saúde e a vida de seus moradores.

O cirurgião, na ânsia de realizar um número maior de cirurgias num só dia, e,


com isso, obter maior remuneração, não pode esquecer nenhum dos procedimentos
recomendados pela técnica que aprendeu e conhece, e tampouco descurar na execução
de cada um dos atos do procedimento, para que nenhum órgão ou tecido manipulado
venha a sofrer lesão capaz de lhe comprometer as condições de funcionamento ou, até
mesmo, a existência. Se o obstetra deve realizar a “cesariana”, não pode, por descuido,
ou em razão da pressa, ferir o corpo do ser humano em formação, nem permitir que o
26 – Direito Penal – Ney Moura Teles

cordão umbilical, que envolvia seu pescoço, o estrangule.

Quando se dirige de casa para o local de trabalho, ou deste para o comércio, e


daí, retornando ao lar, conduzindo o veículo, possante e potente, fabricado no mesmo
ano, último modelo, ainda que haja pressa de chegar ao destino – seja porque está
atrasado, seja porque está faminto, seja, ainda, porque precisa cumprir um
compromisso social anteriormente assumido –, deve o homem, apesar de tudo, ter o
devido cuidado para evitar que um gesto atrevido, ousado, ou descuidado, coloque a
força do veículo em movimento contra um corpo humano que atravessa a pista de
rolamento, ou outro veículo, menos ou mais forte, num impacto de conseqüências as
mais diversas possível, inclusive para si mesmo.

Nos dias de hoje – em que a vida incorpora, cada vez mais, novos e modernos
instrumentos e mecanismos, destinados a facilitar a vida do homem, mas que,
conforme sejam manipulados, podem causar sérios danos –, todos têm, cada vez maior,
um dever geral objetivo de adotar toda a cautela, toda a preocupação e precaução, todo
o cuidado possível, para não causar, com seus comportamentos, lesões aos bens
jurídicos alheios.

É um dever que não precisa estar escrito, expressamente, em uma norma


jurídica. Não é necessária norma que imponha ao motorista do veículo a desaceleração
e a compressão do pedal dos freios, quando, diante da luz verde do semáforo, verificar
um transeunte imprudente resolver atravessar a faixa, num momento para ele proibido.
O sinal verde, se autoriza a travessia, não autoriza, contudo, o atropelamento.

Não é necessário que um químico seja avisado de uma norma que o mande não
acender fogo nas imediações de substâncias altamente sujeitas à combustão. Tal
proibição decorre do bom-senso, que o conhecimento acerca das coisas naturais lhe
impõe.

Algumas relações humanas, dada sua intensidade ou perigo, merecem, do


direito, tratamento claro e específico, inclusive com o estabelecimento de uma série de
normas de conduta, outras de natureza técnica, que visam a, em última análise, evitar a
ocorrência de acidentes e, mesmo, de fatos definidos como crime, com vistas a
obtenção do maior nível de proteção dos bens jurídicos.

Assim ocorre com o tráfego de veículos automotores pelas ruas e estradas dos
vários países. É que, em pouco tempo, a quantidade dos veículos que trafegam numa
cidade é tão grande que, se todos eles estivessem ao mesmo tempo em circulação, o
espaço das vias públicas seria insuficiente para comportá-los.

Tornou-se necessário estabelecer sentido de direção, velocidade máxima


Fato Típico - 27

permitida, locais onde podem ser estacionados, enfim, uma série de normas que
regulam o funcionamento dessa importante, saudável e, ao mesmo tempo, perigosa,
atividade humana.

A vida do homem, pois, por ser perigosa, deve ser vivida com a observância, por
todas as pessoas, de um dever geral de cuidado, objetivamente verificável. Esse dever é
imposto a todas as pessoas, e pode, mas não necessita, estar expressamente
determinado, nem constar de alguma norma jurídica. É um dever de cuidado objetivo
que, obedecido, destina-se à proteção dos bens jurídicos selecionados pela sociedade.

A inobservância desse dever geral constitui comportamento proibido pelo


direito, e, se dela decorrer a lesão a um bem jurídico, pode constituir o delito culposo.
São formas de manifestação dessa violação: a imprudência, a negligência e a imperícia.

8.5.3.1 Imprudência

A imprudência é a prática de um fato perigoso. A cautela impõe a inação, a


abstenção de um movimento, o cuidado de não realizar uma ação, mas o sujeito,
mesmo assim, age colocando um processo causal em movimento. É, por exemplo,
dirigir um veículo automotor em velocidade absolutamente incompatível com
determinado local, num estacionamento, às portas de uma escola ou numa praça
repleta de transeuntes.

A imprudência é, sempre, a realização de um movimento do corpo. É, pois,


positiva.

8.5.3.2 Negligência

A negligência é a ausência de precaução, a omissão, a não-realização de um


movimento que deveria ter sido colocado em marcha, que a prudência mandava fazer e
o agente não faz.

É o descuido do pai que, ao chegar em casa, tira sua arma, carregada, e a deixa
sobre a mesa da sala, local onde daí a pouco estarão seus filhos menores e adolescentes.
A negligência é, sempre, a omissão, a abstenção de um movimento corporal; é,
portanto, negativa.

8.5.3.3 Imperícia
28 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Imperícia é a falta de aptidão ou de destreza para o exercício de determinada


arte ou profissão, pressupondo, portanto, que o fato seja praticado no exercício das
artes ou profissões.

Médicos, engenheiros, farmacêuticos, químicos, pedreiros, motoristas,


carpinteiros, enfim, todos os profissionais estão obrigados a desempenhar-se de acordo
com as normas técnicas de cada uma de suas profissões, a fim de não causarem lesões
aos bens jurídicos das outras pessoas.

O cirurgião deve, ao fazer as incisões sobre o corpo humano, atentar para as


normas técnicas procedimentais, de modo a não cometer erros no momento em que faz
o bisturi incidir sobre os tecidos do corpo humano, e a não fazer incisões mais
profundas que o indispensável, lesionando partes que não deveriam ser atingidas, ou
afetando órgãos outros que não os necessários à cirurgia proposta.

8.5.3.4 Conclusão

As três modalidades de comportamento vistas constituem as manifestações da


ausência de cautela, de cuidado, da observância do dever que todos têm, com relação
aos bens alheios.

Na verdade, é correto denominar essa inobservância do dever de cuidado


objetivo de, simplesmente, negligência. Essa expressão, aliás, deveria substituir a
expressão culpa, em sentido estrito, inclusive na lei, para que não mais se falasse
em crime culposo, fato culposo, mas em crime negligente ou fato negligente.

Por uma razão muito simples: a imperícia só ocorre porque o agente foi
negligente, deixando de observar a norma técnica a que estava obrigado. A imperícia
decorre da negligência do agente que deixou de observar o cuidado devido. A
imprudência, igualmente, é um comportamento positivo que decorre da ausência da
cautela, da falta da observância de uma regra: o motorista que dirige em excesso de
velocidade está sendo imprudente, porque não observa a regra que manda não
ultrapassar a velocidade máxima para aquele local. É imprudente, por ter sido
negligente.

A negligência é, na verdade, o gênero do qual imperícia e imprudência são


espécies.

8.5.4 Resultado naturalístico indesejado


Fato Típico - 29

Para que haja fato culposo, ou negligente, é imprescindível que seja produzido o
resultado indesejado.

Por mais que o sujeito tenha sido negligente, deixando de observar o dever de
cuidado objetivo, só haverá fato culposo se com seu comportamento tiver causado a
modificação do mundo externo, atingindo um bem jurídico. Se não houver resultado,
não haverá crime culposo, podendo até ter havido outra infração penal, mas dolosa, e
não culposa.

Por exemplo, se João está a dirigir em alta velocidade pelas ruas da cidade,
realizando manobras altamente perigosas com seu veículo, colocando a vida das
pessoas em perigo, assustando-as, mas, sem atingir nenhuma delas, sem ferir ou matar
quem quer que seja, não haverá fato culposo, mas poderá ter acontecido um desses
fatos dolosos: a contravenção penal do art. 34 da LCP: “dirigir veículos na via pública,
ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia”, ou o crime
definido assim no art. 132 do Código Penal: “expor a vida ou a saúde de outrem a
perigo direto ou iminente”. Qualquer dessas duas infrações terá sido cometida
dolosamente. Não haverá fato culposo, sem resultado.

Só haverá delito culposo, quando houver um resultado, e este resultado não


pode ser desejado, nem aceito, pelo agente, pois, se assim for, o fato será doloso.

8.5.5 Previsibilidade objetiva

Nem todas as lesões não dolosas a bens jurídicos podem ser evitadas. Algumas
condutas humanas são causa de danos a bens importantes em situações em que era
absolutamente impossível evitá-las, ainda que o homem se conduzisse com a mais
perfeita e total observância do dever de cuidado objetivo. É que certos eventos são
absolutamente inevitáveis, e, como tal, situam-se fora do âmbito da proteção do Direito
Penal.

O Direito somente pode proibir e punir os fatos que puderem ser evitados. Só pode
considerar proibidas as condutas que derem causa a resultados que puderem ser
impedidos.

E só podem ser evitados os resultados que puderem ser antevistos pelo homem, o
agente. Se este não tiver a possibilidade de antevê-los, não terá como agir ou abster-se
para evitar que eles ocorram.

Por essa razão, só se pode falar na ocorrência de um fato culposo quando o


sujeito tiver a possibilidade de prever o resultado lesivo, quando houver previsibilidade.
30 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Previsibilidade é a possibilidade de o sujeito, nas condições em que se encontra,


antever o resultado lesivo. Previsível é aquele resultado que pode ser previsto.

Para que o direito possa fazer incidir punição sobre alguém que não desejava um
resultado lesivo, é indispensável que tal lesão pudesse ter sido evitada por ele, se tivesse
agido com o devido cuidado.

Trata-se de uma previsibilidade objetiva, normal, exigível ao comum dos cidadãos,


de todos, porque comum, não de uma previsibilidade anormal, presente entre os
paranormais, os videntes e clarividentes, ou aquela que só uma pessoa extremamente
prudente pode ter.

Dirigindo seu veículo por uma movimentada avenida da cidade, ao meio-dia de


uma quarta-feira, não feriado, próximo de uma faixa de travessia de pedestre, estando
alguns deles à margem da pista, é plenamente previsível, a qualquer motorista, que um
dos pedestres, apressado, atravesse a avenida antes que o sinal o autorize.

Não é previsível, contudo, que, dirigindo o mesmo veículo, no mesmo dia e lugar,
um daqueles transeuntes resolva cometer suicídio atirando-se sob o veículo, no exato
momento em que este, em velocidade moderada, se aproxima do grupo de pedestres.

A previsibilidade objetiva é essencial para a existência do fato culposo, porquanto


só em sua presença o agente poderia ter evitado o resultado lesivo e, não tendo adotado
as precauções necessárias, por ter sido negligente, acaba por dar causa ao resultado e
por isso por ele responderá.

Sendo o resultado previsível, o sujeito pode ter duas atitudes: prevê ou não prevê o
resultado.

8.5.5.1 Culpa inconsciente

Ocorre quando o sujeito não realiza a previsão do resultado. É previsível, mas


ele, não obstante isso, não o prevê e impulsiona, voluntariamente, a conduta, dando
causa ao resultado. Com efeito, sua conduta é culposa, mas ele não teve consciência de
que o resultado ocorreria, porque não realizou a previsão, não representou o resultado
que era, plenamente, previsível. Por isso, agiu, e o fez sem a consciência de que poderia
causar o resultado. Foi negligente porque não representou o resultado. Por isso, diz-se
ser sua culpa inconsciente.

8.5.5.2 Culpa consciente e dolo eventual


Fato Típico - 31

Às vezes o sujeito realiza a previsão do resultado, mas confia sinceramente que


poderá evitá-lo ou que ele não ocorrerá, agindo com a convicção plena de que, apesar
da possibilidade de que o resultado ocorra, não acontecerá nenhum resultado lesivo.

Essa é conduta culposa consciente.

De notar que é muito próxima da conduta com dolo eventual. Neste, o agente
prevê o resultado, não o deseja, mas o aceita, se ele eventualmente acontecer. Naquela,
ele prevê o resultado, não o deseja e não o aceita, em nenhuma hipótese, se ele vier a
acontecer.

A diferença entre condutas com culpa consciente e com dolo eventual é muito
tênue, situando-se exclusivamente no interior da psique humana, na aceitação, ou não,
do resultado, uma atitude puramente interna.

Exemplo: Everaldo, saindo do estacionamento da Faculdade em seu veículo,


tendo Arlindo, seu colega, a seu lado, e vendo, à frente, a colega de ambos, Cláudia,
prestes a atravessar a rua, resolve assustá-la, passando com o carro bem próximo dela.
Avistando-a, fala para Arlindo: “Vou dar um susto na Cláudia, tirando um fininho.”
Arlindo, preocupado, faz a previsão de um resultado lesivo, e diz: “Cuidado, você pode
atropelá-la!”

Diante de um resultado lesivo previsível, o agente, Everaldo, após realizar a previsão,


com o auxílio de Arlindo, pode ter três atitudes: a primeira delas é, observando o dever
de cuidado objetivo, evitar a conduta perigosa para o bem jurídico de Cláudia. Se o
fizer, ótimo, sem lesão ao bem jurídico, sem fato típico culposo, o fato não interessará
para o estudioso do Direito Penal.

Se, todavia, não quiser atentar para o que o Direito lhe recomenda e determina,
seu comportamento, objetivo e subjetivo, poderá ser um desses dois:

1º mesmo prevendo um resultado lesivo, resolve prosseguir na conduta perigosa, na


certeza de que, com sua habilidade, com sua destreza na condução do veículo, irá
apenas e tão-somente assustar sua colega, convicto de que não haverá qualquer lesão,
que ele, sinceramente, acredita que não acontecerá e, por isso, não a admite, não a
aceita, nela não consente; ou então:

2º prevendo o atropelamento, a possibilidade de causar lesão à colega, mesmo não


desejando que isso ocorra, pode ele, todavia, continuar na conduta com o pensamento
de que, se, eventualmente, vier a atingir Cláudia, ferindo-a ou, mesmo, matando-a, essa
hipótese será aceita: “se pegar, pegou”, “se matar, matou”, “se ferir, feriu”, “que se dane
ela”, “não tô nem aí”.
32 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Na primeira hipótese, o agente, mesmo prevendo o resultado, não o quis nem o


aceitou, não o admitiu. Terá agido com culpa consciente. Trata-se de fato típico
culposo, com culpa consciente. Na segunda, mesmo não desejando o resultado lesivo,
aceitou-o; por isso, terá agido com dolo eventual.

8.5.6 Tipicidade

A regra do Direito Penal é punir fatos praticados dolosamente, porque, neles, o


sujeito queria alcançar o resultado ou, pelo menos, o aceitou.

Excepcionalmente, em situações muito próprias, o Direito também proíbe e


pune a causação de lesões a certos bens jurídicos, quando praticadas sem dolo, mas,
com culpa, em sentido estrito. Por isso, o fato culposo é excepcional, e só será punido
quando houver expressa previsão legal.

Tome-se o exemplo: Maria, grávida há seis meses, resolve subir em uma


jabuticabeira para alcançar frutos que deseja saborear e, tendo chovido e estando a
árvore escorregadia, cai de uma altura de quatro metros, provocando, com a queda,
traumatismo abdominal que conduz ao abortamento do feto.

Examinando-se a conduta de Maria, verifica-se que ela, voluntariamente, subiu


em uma árvore, deixando de observar o dever de cuidado objetivo (com imprudência),
numa situação em que era objetivamente previsível a ocorrência de resultado lesivo
não desejado (involuntário), infelizmente, deu causa à interrupção da gravidez, com a
morte do produto da concepção.

Seu comportamento realizou, como visto, todos os elementos até aqui


demonstrados da culpa, em sentido estrito; todavia, não será punido pelo Código Penal,
por faltar o último dos requisitos do fato culposo: a tipicidade, a determinação legal da
punição do aborto em sua modalidade culposa. Não existe, pois o legislador não
definiu como crime a prática de aborto com culpa, stricto sensu, tendo previsto apenas
na forma dolosa.

Não basta que o sujeito tenha causado, sem vontade, um resultado lesivo
previsível e indesejado, com negligência. Se não estiver prevista na lei sua punição, se
não houver o tipo culposo, não haverá crime.

Os tipos culposos são construídos excepcionalmente, com base nos tipos


dolosos. Por exemplo, no art. 121, caput, está definido o homicídio doloso, assim:
“matar alguém”. No § 3º do mesmo artigo está definido o homicídio culposo, assim:
“se o homicídio é culposo”.
Fato Típico - 33

De conseqüência, no primeiro tipo deve-se entender: “matar alguém


dolosamente”, e no segundo, “matar alguém culposamente” ou, neste tipo, em outras
palavras, “matar alguém por negligência, imprudência ou imperícia”, o que significa
dizer, “causar a morte previsível de alguém por negligência”.

Não existem tipos culposos correspondentes a todos os tipos dolosos. Não há


previsão legal de furto ou estelionato quando praticados culposamente. Tais fatos
somente são puníveis quando praticados com dolo. Outros, como o roubo e o estupro,
só podem ser cometidos com dolo.

Já o homicídio e a lesão corporal podem ser cometidos e são punidos em ambas


as modalidades, com dolo ou com culpa, em sentido estrito.

Para saber se determinado fato é punido também na forma culposa, é preciso


procurar na lei, ao lado da figura dolosa, no mesmo artigo, ou em seguida a ele, a
previsão de sua punição, para concluir sobre se o legislador assim o definiu ou não.

O crime culposo é excepcional, como, aliás, dispõe o parágrafo único do art. 18


do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato
previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.”

8.5.7 Compensação e concorrência de culpas

Diferentemente do Direito Civil, no Direito Penal as culpas não se compensam. A


culpa de um não compensa a culpa do concorrente, aquele que concorre para o
resultado.

Se João, dirigindo seu veículo com imprudência, vem a atropelar Benedito, que,
por sua vez, também agira com imprudência quando atravessou a avenida, pode-se
concluir que os dois agiram culposamente. A culpa de Benedito não compensa a culpa
de João, não a exclui.

O atropelador somente não responderá pelo fato se houver culpa exclusiva do


atropelado. Apenas quando o resultado decorrer de culpa exclusiva da vítima é que o
resultado não será atribuído ao agente.

Por outro lado, se duas pessoas realizam condutas diferentes que concorrem
para a produção de certo resultado lesivo, ambos por ele responderão, verificando-se
que ambos agiram culposamente. Por exemplo: dois veículos colidem numa esquina,
saindo feridas várias pessoas, que estavam nos veículos ou fora deles. Provando-se que
os dois motoristas agiram com culpa, os dois serão responsabilizados.
34 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.6 RESULTADO

Duas posições doutrinárias procuram esclarecer o que vem a ser o resultado de um


crime. A teoria naturalística o considera como um ente concreto, a modificação do
mundo causada pela conduta, ao passo que a teoria normativa entende que resultado é
a lesão do bem jurídico protegido pela norma penal.

8.6.1 Teoria naturalística

Segundo essa teoria, o resultado é a modificação do mundo externo produzida pela


conduta, positiva ou negativa, do agente. É uma entidade natural. No homicídio, o
resultado é a morte da vítima. No furto, a mudança da posse da coisa subtraída. É uma
conseqüência física, material, do comportamento do agente.

Por essa teoria, existem crimes que têm resultado e crimes que não têm resultado,
como na violação de domicílio, definida no art. 150 do Código Penal, assim: “entrar ou
permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa de quem de
direito, em casa alheia ou em suas dependências”.

Como se verifica, este tipo descreve pura e simplesmente uma conduta que não
produz qualquer conseqüência natural. Tal crime se consuma com a simples atitude do
agente, entrando em casa alheia, ou, depois de ter entrado, nela permanecendo.

O comportamento humano, é óbvio, já é uma mudança na vida; no mundo,


todavia, não se pode ignorar que uma coisa é a conseqüência da conduta, outra é a
própria conduta. A primeira segue-se ao comportamento, e este não se confunde com
ela. Uma coisa, como diz MUÑOZ CONDE, é o produzir e outra é o produzido. O produzir
é a conduta, o produzido é o resultado10.

Por isso, uma parte dos crimes tem resultado, como o homicídio, o furto, o
estupro, o roubo, e outros são crimes sem resultado, de mera conduta, ou de mera
atividade: a violação de domicílio, a omissão de socorro, a omissão de notificação de
doença, e a maior parte das contravenções penais.

8.6.2 Teoria normativa

A outra corrente diz que o resultado é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico
protegido pela norma penal, pouco importando se a conduta deu ou não causa a uma

10 Op. cit. p. 21.


Fato Típico - 35

modificação do mundo externo a ela.

Sempre, num fato típico, independentemente da modificação do mundo externo,


um bem jurídico é lesionado ou exposto a perigo. De conseqüência, todos os crimes têm
resultado, pois em todos eles haverá sempre uma lesão ou um perigo de lesão de um
bem jurídico.

Na violação de domicílio, o resultado seria a lesão do direito à inviolabilidade da


casa; na omissão de socorro, seria o perigo da lesão à saúde ou à integridade corporal
da pessoa abandonada, extraviada ou ferida etc. Na omissão de notificação de doença, o
resultado seria o perigo de contaminação, para a saúde de toda a população ou de parte
dela.

8.6.3 Discussão

Suponham a seguinte situação: Paulo decidiu matar Mauro e, encontrando-se com


este, saca de seu revólver e vai atirar contra o desafeto que, mais rápido, consegue
atirar contra o agressor, matando-o com um único tiro disparado.

Mauro realizou o fato típico descrito no art. 121 do Código Penal, pois matou
alguém. Todavia, pode-se com tranqüilidade concluir que agiu em legítima defesa – cujo
estudo será feito no item 10.4 –, pois que repeliu uma agressão injusta, atual, a sua
vida, usando moderadamente do meio necessário.

Viu-se uma conduta humana que produziu a modificação do mundo externo, a


morte de um homem. Houve um resultado naturalístico, mas não aconteceu lesão de
bem jurídico.

Sim, porque, quando o Direito Penal permite a prática de um fato que, a princípio,
é proibido, é porque tal fato é lícito, e tratando-se da morte justificada de um homem, é
porque tal vida não se encontrava sob a proteção do Direito.

Se o Direito protegesse a vida do agressor, não poderia ter permitido que o


agredido a tirasse. Se permitiu que Mauro matasse Paulo, é porque não estava
protegendo a vida de Paulo.

A conclusão a que se pode chegar, pois, é de que a lesão ao bem jurídico não é
conseqüência da conduta, mas a qualidade de ser tal conduta proibida. Se é ilícita,
houve lesão ou perigo de lesão. Se é permitida, não houve lesão nem perigo de lesão.

O resultado, de conseqüência, só pode ser compreendido no plano natural,


enquanto efeito concreto da conduta. A lesividade do bem jurídico há de ser entendida
e explicada no plano da ilicitude, da relação de contrariedade entre o fato e o
36 – Direito Penal – Ney Moura Teles

ordenamento jurídico. Quando o fato for ilícito, terá havido lesão ou perigo de lesão.
Quanto for lícito, não.

Alguns doutrinadores defendem a teoria normativa, amparando-se na norma do


art. 13 do Código Penal, que diz: “O resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa.” Para esse pensamento, haveria
incompatibilidade entre os tipos que não descrevem resultado naturalístico e o
dispositivo do art. 13, que afirmaria que, para haver crime, deve haver resultado.

O raciocínio é simplista e parte de uma leitura equivocada da norma do art. 13. A


simples interpretação literal do preceito conduz a seu entendimento correto. Quer a lei
dizer que o resultado, do qual depende a existência de certo crime – não de todo e
qualquer crime – só pode ser atribuído a quem lhe deu causa.

Quando a definição de um crime contiver uma conduta e um resultado, este


somente será imputado a quem lhe tiver dado causa. O dispositivo, portanto, destina-se
a regular a relação de causalidade dos fatos definidos como crime em que, além de
conduta, se exige a produção de um resultado. Nada além disso.

É de todo evidente que, prevendo o Código Penal crimes com resultado e crimes
sem resultado, com relação a estes teria que, necessariamente, estabelecer norma
tratando da relação de causalidade entre conduta e resultado.

A norma do art. 13 do Código Penal, em vez de amparar a teoria normativa, ao


contrário, milita em favor da naturalista, pois deixa bem claro que há crimes de
resultado e crimes sem resultado.

Se vários tipos do mesmo Código descrevem, incriminando apenas condutas,


simples atividades, meros comportamentos, sem a exigência da produção de qualquer
resultado naturalístico, é certo que a norma da parte geral, do art. 13, somente se refere
aos outros tipos, aliás, os mais importantes, por descreverem as condutas mais graves
contra os bens mais importantes.

Resultado, portanto, não é a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico penalmente


protegido, mas a modificação do mundo exterior, o efeito concreto, o evento natural, a
conseqüência resultante da conduta humana voluntária final.

8.7 NEXO DE CAUSALIDADE

Nos fatos definidos como crime em que, além de conduta, se exige a produção de
um resultado, é imprescindível que entre o comportamento humano e o resultado
verificado exista relação de causa e efeito, a fim de que se possa atribuí-lo ao agente da
Fato Típico - 37

conduta. A conduta deve ser a causa do resultado; este, a sua conseqüência. É de toda
obviedade, pois, que não se pode atribuir ou imputar a alguém a responsabilidade por
algo que não produziu.

Quando José desfere um golpe de facão que decepa a cabeça de Alfredo, que morre
instantaneamente, dúvidas não restam de que a conduta de José foi a causa da morte
de Alfredo.

Nem sempre, todavia, entre conduta e resultado existe relação de causa e efeito tão
simples e claramente verificável. Basta pensar algumas hipóteses:

a) Sílvio atira no peito de Armando, que, minutos após ser socorrido, é atingido
por outro disparo na cabeça, efetuado por Alexandre – que nem conhece Sílvio, nem
sabia de sua conduta –, falecendo em seguida;

b) Mário dispara contra Celso que, ao sair em direção ao hospital, é atingido por
uma viga do telhado que desaba, matando-o;

c) Sinval atira contra Marcos, que, após socorrido e levado ao hospital, recebe, ali,
da enfermeira, uma dose excessiva do medicamento receitado, morrendo por isso;

d) Luís atinge, com um tiro de revólver, Carlos, que, levado ao hospital, é tratado e
contrai, dias depois, pneumonia, vindo a morrer algum tempo depois.

Nessas situações, podem restar dúvidas sobre a quem atribuir o resultado, e até
onde responsabilizar o agente da conduta. A relação de causalidade é um dos temas
mais interessantes do Direito Penal e por isso merece atenção toda especial.

8.7.1 Noções básicas

Causa de uma coisa é aquilo de que esta coisa depende para existir. Ou, então, é
aquilo que determina a existência de uma coisa.

Condição é o que permite a uma causa produzir seu efeito, seja como
instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à produção do resultado.

Ocasião é uma circunstância acidental que cria condições que favorecem a


produção do resultado.

Concausa é a confluência ou a concorrência de mais de uma causa na produção


de um mesmo resultado.

Com base nessas noções elementares, os doutrinadores do Direito elaboraram


diversas teorias com o objetivo de explicar o que é a causa de um resultado, devendo ser
mencionadas apenas algumas delas.
38 – Direito Penal – Ney Moura Teles

A teoria da causalidade adequada entende que a causa de um resultado é a


condição mais adequada a sua produção. A teoria da eficiência fala em condição mais
eficaz, como sendo a causa do resultado. Outra teoria, a da relevância jurídica, diz que
tudo o que concorre para o resultado, ajustado à figura penal, é a causa do resultado.

Diante de intermináveis polêmicas, falhas e dificuldades na aplicação de


soluções mais próximas dos interesses da justiça, o Código Penal adotou a teoria da
equivalência das condições.

8.7.2 Teoria da equivalência das condições

Diz a teoria da equivalência das condições, ou da “conditio sine qua non”, no


art. 13 do Código Penal:

“O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem


lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o
resultado não teria ocorrido.”

Segundo essa teoria e a norma do Código Penal que a adotou, causa é toda a
condição do resultado, e todos os antecedentes causais indispensáveis a sua produção
são equivalentes, não havendo qualquer distinção entre causa, concausa, condição ou
ocasião.

Tomando-se como ponto de partida a conduta do agente e de chegada o resultado,


e verificando-se a existência de outras causas situadas entre os dois momentos, tem-se,
a princípio, que todas elas – conduta e outras causas – são antecedentes causais
equivalentes.

Para se descobrir, então, se a conduta de determinado agente é causa do resultado,


basta examinar a série causal construível com base nela, excluí-la mentalmente, e
verificar o que ocorreria. Se o resultado continuar acontecendo, como aconteceu, a
conclusão é de que tal conduta não é causa do resultado. Se, ao contrário, o resultado
não ocorrer, como ocorreu, a conclusão é que a conduta é a causa desse resultado. Este
é o chamado procedimento hipotético de eliminação.

Por exemplo: Geraldo dispara um tiro de revólver contra Miguel, atingindo-lhe o


tórax; Miguel é socorrido numa ambulância, onde desmaia; instala-se um processo de
hemorragia; perda de sangue; chega ao hospital, é internado e submetido a uma
cirurgia para a retirada do projétil que se alojara no pulmão; instala-se um processo
infeccioso; Miguel morre, dias depois, constando do laudo de exame cadavérico e do
atestado de óbito a causa mortis: pneumonia bilateral, secundária a ferimento por
Fato Típico - 39

projétil de arma de fogo.

Se retirarmos, mentalmente, da série causal, a conduta de Geraldo, o disparo do


revólver, a morte de Miguel simplesmente não ocorre, porque, se não estivesse ferido,
não teria ido ao hospital, nem contraído pneumonia. Conclusão lógica é a de que a
conduta de Geraldo é causa da morte de Miguel.

A teoria da conditio sine qua non, por sua extrema amplitude, recebe inúmeras
críticas, inclusive a de que todos deveriam responder pelo homicídio, até o pai do
agente, sem o qual este não existiria, inexistindo, de conseqüência, o crime.

É óbvio que, ao operador do direito, interessa conhecer a relação de causalidade


com base na conduta do agente, não regredindo no tempo.

8.7.3 Superveniência de causa relativamente independente

Como se observou, a teoria da equivalência das condições equipara todos os


antecedentes causais, sendo, por isso, bastante amplo o âmbito de sua aplicação. Para
restringi-lo, o Código Penal estabelece no § 1º do art. 13 uma exceção:

“A superveniência de causa relativamente independente exclui a


imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores,
entretanto, imputam-se a quem os praticou.”

Após a conduta do agente, pode ocorrer outra causa que venha a interpor-se no
curso do processo causal instalado e em andamento, alterando seu rumo e levando à
produção do resultado por sua própria eficiência.

Tome-se o exemplo: a vítima, após sofrer ferimentos abdominais por golpes de


faca, é socorrida e colocada dentro de uma ambulância, que, no caminho, vem a ser
abalroada por um ônibus, abrindo-se a porta traseira, e, com o choque, arremessada
para fora do veículo a maca e com ela o corpo da vítima, que se choca com o asfalto,
vindo ele a morrer por traumatismo crânio-encefálico.

A conduta do agente, consistente em golpear a vítima na região abdominal com


instrumento pérfuro-cortante, inaugurou um processo causal, que teria um curso
normal até a chegada do ferido no hospital, onde seria tratado, e poderia morrer ou
não. Antes que se concluísse o processo causal instaurado com a conduta do agente,
uma nova causa a ele se interpôs, cortando seu fluxo, e levou, por si só, ao resultado
morte.

Essa nova causa, que se interpôs, que interrompeu e modificou o processo causal
40 – Direito Penal – Ney Moura Teles

iniciado com a conduta do agente, é uma causa superveniente relativamente


independente que, por si só, produziu o resultado.

É relativamente independente, porque guarda com a conduta do agente uma


relação de dependência relativa. A vítima somente sofreu o traumatismo craniano por
estar dentro da ambulância, e só ali se encontrava por ter sofrido os golpes praticados
pelo agente.

Foi capaz de produzir o resultado por si só, porque este não resultou da
confluência das duas causas. Independentemente do ferimento abdominal, produzido
pela conduta, o ferimento do crânio produziria a morte, como produziu, de qualquer
modo.

Assim, sempre que uma causa superveniente for capaz de, por si só, levar ao
resultado, o agente da conduta não responderá por ele, apenas pelos fatos anteriores
praticados.

Se o agente desejava matar a vítima, mas esta veio a morrer em razão da causa
superveniente que por si só produziu o resultado, responderá apenas por tentativa de
homicídio. Se desejava apenas feri-la, por lesão corporal dolosa. Se não queria causar o
ferimento previsível, mas agira com negligência, responderá por lesão corporal culposa.

8.7.4 Concausas relativamente independentes preexistentes e


concomitantes

Questão intrincada é saber se o resultado será atribuído ao agente quando


concausas relativamente independentes preexistentes ou concomitantes interagirem
com sua conduta, já que o Código Penal silenciou sobre elas.

É o que acontece quando é produzido um ferimento numa vítima portadora de


particular condição fisiológica (debilidade física, ferimento anterior, diabetes,
hemofilia) que vem a falecer em razão do concurso das duas condições – a preexistente
e a conduta. Ou a vítima que, diante da agressão, e por causa dela, emocionada, vem a
sofrer uma parada cardíaca, falecendo pela insuficiência total do coração. Nesse caso,
concorreram para o resultado a agressão e a causa concomitante.

A Jurisprudência dos Tribunais é, em sua ampla maioria, no sentido de que,


tendo-se o § 1º do art. 13 referido, exclusivamente, às concausas relativamente
independentes supervenientes, é porque as preexistentes e concomitantes não têm o
poder de romper o nexo causal. Dessa forma, se a concausa relativamente
independente preexistir à conduta do agente, ou for simultânea a ela, responderá ele
Fato Típico - 41

pelo resultado.

ALBERTO SILVA FRANCO, todavia, mostra que nesses casos se deve interpretar o §
1º do art. 13 extensivamente:

“Seria pertinente a extensão do dispositivo às concausas preexistentes ou


concomitantes? Costa e Silva considerou apropriada, apesar do silêncio do
texto de lei, a interpretação extensiva, acentuando, com base na doutrina
italiana, que as concausas preexistentes ou concomitantes podem excluir a
relação de causalidade quando, por si só, sejam suficientes para produzir o
evento (Direito Penal, 1943, p. 71). Na mesma linha de entendimento,
manifesta-se Paulo José da Costa Jr.: ‘embora o § 1º do art. 13 se refira
somente às causas supervenientes, também as causas antecedentes ou
intercorrentes, que tenham sido por si só suficientes (em sentido relativo) para
produzir o evento, prestam-se à exclusão do vínculo causal penalmente
relevante’. E acrescenta que, no caso, nada impede a aplicação analógica do
princípio: ‘Trata-se de um dispositivo favor rei que se harmoniza com os
princípios gerais do ordenamento penal, não constituindo um princípio
excepcional, que importe numa desviação lógica dos pressupostos em torno
dos quais gravita toda a codificação jurídico penal’ (Comentários ao código
penal, v. 1, p. 113 e 114, 1986). E esta, sem dúvida, parece ser a melhor posição,
máxime quando as causas preexistentes ou concomitantes eram desconhecidas
do agente.”11

Adotando esse entendimento, também as causas relativamente independentes,


preexistentes e concomitantes, se tiverem sido capazes de, por si sós, produzir o
resultado, excluirão sua imputação ao agente, que, igualmente, responderá apenas
pelos atos praticados.

No volume 2, acerca do homicídio, esse tema é tratado com mais detalhes.

8.7.5 Concausas absolutamente independentes

Já as concausas absolutamente independentes – preexistentes, concomitantes e


supervenientes – têm o poder de excluir a imputação do resultado ao agente da
conduta, porquanto constituem a única e exclusiva causa do resultado.

11 Código penal: sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 136.
42 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.7.6 Teoria da Imputação Objetiva

O problema da imputação do resultado, um dos mais intrincados do Direito


Penal, e as insuficiências da teoria da conditio sine qua non, fizeram com que os
juristas procurassem novos rumos, chegando-se à construção da chamada teoria da
imputação objetiva, desenvolvida principalmente entre os juristas alemães.

A teoria da imputação objetiva, na verdade, não é uma teoria que nega a


causalidade natural, mas que lhe acrescenta critérios valorativos, dando-lhe uma nova
roupagem e dimensão.

Esses critérios normativos podem ser sintetizados na idéia da criação ou


aumento de um risco não permitido que se realiza no resultado típico, dentro do âmbito
de proteção da norma. Sabendo-se que na vida e sociedade há um grande números de
comportamentos que são, inevitalmente, perigosos, tem-se, entretanto, que muitos
deles se situam no âmbito de uma permissão da própria sociedade, ao passo que outros
são proibidos. DAMÁSIO explica:

“É possível que o sujeito, realizando uma conduta acobertada pelo risco


permitido, venha a objetivamente dar causa a um resultado naturalístico
danoso que integre a descrição de um crime. Exemplo: dirigindo normalmente
no trânsito, envolve-se num acidente automobilístico com vitima pessoal. Nesse
caso, o comportamento deve ser considerado atípico. Falta a imputação objetiva
da conduta, ainda que o evento jurídico seja relevante. (...)

Quem dirige um automóvel, de acordo com as normas legais, oferece a si


próprio e a terceiros um risco tolerado, permitido. Se, contudo, desobedecendo
as regras, faz manobra irregular, realizando o que a doutrina denomina
‘infração de dever objetivo de cuidado’, como uma ultrapassagem perigosa,
emprego de velocidade incompatível nas proximidades de uma escola,
desrespeito a sinal vermelho de cruzamento, ‘racha’, direção em estado de
embriaguez etc., produz um risco proibido (desvalor da ação). Esse perigo
desaprovado conduz, em linha de raciocínio, à tipicidade da conduta, seja na
hipótese, em tese, de crime doloso ou culposo.”12

Segundo a teoria, a apuração da imputação do resultado se faz em dois


momentos. Em primeiro lugar faz-se a aferição do nexo causal, segundo os mesmos
critérios físico-mecânicos da causalidade natural. Constatado o vínculo causal, deve o
intérprete, o juiz, aferir se está presente o vínculo normativo.

12
Imputação Objetiva, Saraiva, 2000, pág. 39 e 40.
Fato Típico - 43

Perguntará o julgador do caso concreto se o resultado é imputável ao agente da


conduta, com as seguintes indagações: a) a conduta criou ou aumentou um risco não
permitido? b) esse risco não permitido se materializou no resultado típico? esta
materialização do risco permitido no resultado típico aconteceu na esfera do âmbito de
proteção da norma?

Se a resposta for negativa para qualquer dessas indagações, o resultado não


poderá ser imputado ao agente da conduta.

O fato será considerado atípico, segundo a teoria, por exclusão da imputação


objetiva do resultado quando se tratar de risco permitido, quando o agente tiver atuado
para diminuir o risco proibido, quando não tiver realizado risco proibido, ou quando o
a concretização do risco proibido não se der dentro do âmbito de proteção da norma.

Penso que, a despeito da engenhosidade da teoria da imputação objetiva e do


respeito que tenho especialmente pelo professor DAMÁSIO E. DE JESUS, os
problemas que ela diz que busca solucionar já são, perfeita e adequadamente,
solucionados pela incidência da normas já comentadas e interpretadas no âmbito da
relação de causalidade, ao longo da exposição deduzida neste item.

8.8 PRETERDOLO

8.8.1 Crimes qualificados pelo resultado

A lei penal, algumas vezes, ao lado de um tipo de crime, regula, como tipo
derivado, e mais grave, por isso apenado com pena mais severa, a mesma conduta
descrita naquele tipo, dito básico, descrevendo, todavia, um resultado mais grave. Esses
são os chamados tipos legais de crimes qualificados pelo resultado.

Exemplos desses tipos de crimes encontram-se no art. 129 do Código Penal. No


caput do artigo está definido o tipo básico, fundamental, do crime de lesão corporal
dolosa, assim: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena –
detenção, de três meses a um ano.”

No § 1º, a lei descreve a mesma conduta, de ofender a integridade corporal ou a


saúde de alguém; todavia, com a causação de um resultado mais grave que o do caput:

“Se resulta: I – incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias; II –


perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV –
aceleração de parto: Pena – reclusão, de um a cinco anos.”

No § 2º, igualmente são descritos resultados mais graves ainda, produzidos por
44 – Direito Penal – Ney Moura Teles

conduta idêntica à do caput.

No caput está o tipo básico; nos §§ 1º e 2º, alguns dos vários tipos derivados,
que são tipos de crimes qualificados pelo resultado.

Se o agente ofende a integridade corporal da vítima e não ocorre nenhum dos


resultados mais graves previstos nos §§ 1º e 2º, responderá por lesão corporal de
natureza leve, definida no caput, mas, se de conduta idêntica decorre qualquer
daqueles resultados, então responderá por eles, denominados respectivamente lesão
corporal grave e gravíssima, que são crimes qualificados pelo resultado.

Os crimes qualificados pelo resultado podem decorrer de dolo do agente, de


negligência ou de mero nexo causal.

Exemplo: pode ocorrer que determinado agente queira, com um golpe de


machado, decepar o braço de seu desafeto. Age com dolo de que seu inimigo perca o
braço, um membro. Quer, por isso, realizar o tipo legal de lesão corporal gravíssima,
descrito no art. 129, § 2º, III, do Código Penal.

Pode acontecer, entretanto, que o agente, querendo simplesmente ferir outra


pessoa, empurra-a nas proximidades da guilhotina de uma fábrica de papéis, caindo a
vítima no exato momento em que a faca desce e lhe decepa o braço. Nesse exemplo, o
agente não tinha a intenção de que ela viesse a perder o braço, mas sua vontade era de
tão-somente ofender sua integridade física. Foi negligente, pois era previsível que,
naquele lugar, próximo de uma máquina perigosa, poderia ocorrer um resultado mais
grave do que o desejado. Agiu, pois, sem dolo de realizar a forma agravada do crime de
lesão corporal, mas com negligência.

Finalmente, pode acontecer de o agente nem querer, nem agir com negligência,
em relação à produção de um resultado mais grave. Fere um seu desafeto,
superficialmente, no braço. A vítima, todavia, não cuida do ferimento que se infecciona,
instalando-se a gangrena e a inevitável amputação do membro. Nesse caso, o agente
não agiu com dolo, e tampouco com culpa, stricto sensu. O resultado mais grave
decorreu de mero nexo causal.

Se o resultado mais grave decorre de puro nexo causal, o agente não responderá
por ele, pois falta o dolo ou a negligência.

Se agiu dolosamente, ocorreu um crime doloso, em sua plenitude.

Se o resultado mais grave decorreu de negligência, este é o crime preterdoloso.


Fato Típico - 45

8.8.2 Crimes preterdolosos

O crime preterdoloso ou preterintencional é aquele em que o resultado vai além


do dolo do agente. Sua conduta é dolosa, mas o dolo não abrange o resultado
alcançado. Na verdade, ele age com a intenção de alcançar um resultado menos grave e,
por imprudência, negligência ou imperícia, dá causa, sem querer, a um resultado mais
gravoso.

O agente quer ferir a vítima, mas, por descuido, acaba por decepar-lhe o braço.
Queria apenas empurrá-la, causando-lhe simples lesão, talvez até insignificante, mas, por
negligência, acaba atirando-a sob a guilhotina, que lhe decepa o membro.

A conduta é dolosa, mas o resultado é culposo. O agente quer um mínimo, seu


comportamento negligente leva a um resultado além do desejado, causando lesão mais
grave.

O Código Penal brasileiro, lamentavelmente, nenhuma distinção faz entre o


crime qualificado pelo resultado cometido dolosamente e o crime qualificado pelo
resultado, cometido preterdolosamente, cominando pena igual nas duas hipóteses.
Assim, a pena para o crime de lesão corporal gravíssima em que resulta perda de
membro, praticado com dolo, é a mesma quando tal resultado promana de negligência
do agente.

Tal tratamento é injusto; por isso, os juízes, ao aplicarem a pena, no momento da


individualização, acabam por levar em conta o comportamento interno do agente,
considerando mais culpado aquele que agiu com dolo quanto ao resultado. A solução
remete à necessidade de que se faça dupla valoração do dolo e da culpa, em sentido
estrito, no âmbito da conduta e no âmbito da culpabilidade, o que não condiz com a
teoria finalista da ação, abraçada pela reforma penal de 1984.

Importante notar que, para que o resultado mais grave seja atribuído ao agente,
é indispensável que ele tenha agido com dolo ou com culpa, não bastando a presença de
nexo de causalidade.

É a norma do art. 19 do Código Penal: “Pelo resultado que agrava


especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos
culposamente.” Se o causou sem dolo, e sem culpa, stricto sensu, por ele não
responderá.

8.9 TIPICIDADE E TIPO

Para que se possa examinar o último elemento do fato típico, a tipicidade, é


46 – Direito Penal – Ney Moura Teles

indispensável que se faça, previamente, um breve estudo sobre os tipos. O tipo é o


modelo de comportamento humano, ao qual se segue, em regra, uma conseqüência,
que constitui o fato proibido, o que não deve ser. A expressão tipo é tradução da palavra
alemã Tatbestand.

Deve-se a BELING, jurista alemão que pontificou no início do século, a


construção da idéia do tipo como descrição objetiva, como modelo do crime, orientador
ou indiciador do crime.

8.9.1 Funções dos tipos

O tipo é a descrição concreta da conduta proibida. É o modelo de conduta que a


lei considera crime, proibida pela norma penal. Tipo de furto: “subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel”. Tipo de estupro: “constranger mulher a conjunção
carnal, mediante violência ou grave ameaça”.

Na lei penal, encontra-se o tipo, a descrição de um fato que deve ser evitado,
porque proibido sob a ameaça de pena.

O tipo tem duas funções da mais alta importância: a de garantia e a indiciária da


ilicitude. Todos os cidadãos, tomando conhecimento da existência dos tipos, sabem,
previamente, que só poderão ser perseguidos penalmente e sofrer a pena criminal se
realizarem um comportamento exatamente ajustado a um tipo. Sua liberdade,
portanto, só poderá ser atingida na hipótese de que venha a realizar um
comportamento exatamente correspondente a um tipo.

O cidadão fica, assim, protegido contra o arbítrio estatal, que não poderá
exercer sua autoridade sobre a liberdade do indivíduo na ausência de uma prévia
definição legal do crime, que se dá por meio dos tipos.

A segunda função dos tipos é indicar que a conduta por ele definida é proibida,
ilícita, contrária ao ordenamento jurídico. Diz-se, pois, que sua função é indiciária da
ilicitude. Os tipos são portadores da ilicitude, trazendo-a em seu interior. Dado um fato
típico, tem-se que ele é, a princípio, ilícito, pois a relação de contrariedade ao direito está
em seu interior. Contrariedade essa que pode ser afastada, mas que vem contida no
interior dos tipos.

Os tipos legais de crime deveriam ser construídos, preferencialmente, com


elementos puramente objetivos, precisos e o mais pormenorizadamente possível. Essa
necessidade, todavia, nem sempre pode ser alcançada, pois muitas vezes é necessária a
construção de tipos abertos, que devem ser completados pelo aplicador da lei. Basta
Fato Típico - 47

pensar nos tipos culposos, cuja incidência depende da interpretação e da valoração


normativa que o juiz fizer acerca da conduta do agente, sobre a verificação do
preenchimento de todos os requisitos da conduta culposa, com a presença de todos os
seus elementos.

Os tipos – enquanto descrições de fatos da vida – utilizam-se das palavras e das


frases da língua pátria, que expressam os significados, as idéias, as coisas, os valores, as
ações, as manifestações da vida. O fazer, o não fazer – a conduta – onde, quando,
como, por quê, de que maneira, com quais características e com quem são alguns dos
componentes dos vários tipos legais de crime. São seus elementos estruturais, que
precisam ser analisados.

Os elementos dos tipos são objetivos, relativos à materialidade do fato,


subjetivos, atinentes ao estado psíquico do sujeito ativo, e normativos, referentes à
ilicitude, ao injusto ou a alguma norma estabelecida.

8.9.2 Elementos dos tipos

8.9.2.1 Elementos objetivos

Todos os tipos legais de crime descrevem comportamentos humanos e a maior


parte deles descreve também os resultados dessas condutas, caso em que exigem entre
aqueles e estes uma relação de causalidade.

Enquanto modelos de fatos da vida, os tipos são retratos vivos ou cenas


animadas de acontecimentos que têm o homem como protagonista, e, conquanto sejam
a base que sustenta o princípio da legalidade, seus enunciados compõem-se de signos
lingüísticos que devem retratar, com precisão, todos os detalhes do fato incriminado,
proibido pela norma penal.

Como numa pintura, num retrato, num filme, cada cena, cada lance, cada gesto,
cada movimento deve estar muito bem descrito no tipo. Cada um deles é um elemento
estrutural do tipo. São os componentes que lhe dão consistência, que o transformam
num modelo de fato concreto, de um acontecimento da vida. Se todo crime é uma ação
humana, os tipos devem revelar acontecimentos que envolvem o homem em
movimento ou em inação. Fazendo ou não fazendo alguma coisa.

O elemento principal de todo e qualquer tipo, que constitui seu núcleo, é aquele
que revela a ação, em sentido amplo, positiva ou negativa, que, como não poderia
deixar de ser, é representada por um verbo: matar, subtrair, constranger, obter,
deixar de, permitir. É a ação material do delito.
48 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Os elementos objetivos dos tipos são os que se referem à materialidade do fato,


do acontecimento. São aqueles que se referem à forma em que o fato é executado, ao
tempo, à ocasião, ao lugar, aos meios empregados, aos sujeitos, ao objeto.

Além dos núcleos, que revelam a ação material, são elementos objetivos dos
tipos, entre outros, a título de exemplo, os seguintes: alguém, representando o sujeito
passivo (arts. 121, 122, 130, 138, 139, 140, 146, 147, CP etc.); coisa, significando o objeto
do crime (155, 157, 157, § 1º, 163, 165, 168, 168, § 1º, 169 etc.).

Outros: “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia” (art. 121, § 2º, III,
CP), “por meio de relações sexuais” (art. 130, CP), relativos aos meios utilizados na
realização do tipo etc.

Os elementos objetivos, de natureza descritiva, são facilmente identificáveis,


porquanto não pertencem ao âmbito do psiquismo do homem, o agente do fato, mas
são perceptíveis pelos sentidos, independentemente de qualquer valoração de natureza
normativa.

8.9.2.2 Elementos normativos

Outros elementos que integram aquelas cenas típicas exigem, do operador do


direito, a formulação de um juízo de valoração normativa, no âmbito da própria
verificação da tipicidade, já no primeiro momento do crime, o fato típico.

Esses componentes, diferentemente dos elementos objetivos, para serem


compreendidos, devem ser apreciados com a elaboração de raciocínio valorativo que
leve em conta outras normas jurídicas ou ético-sociais.

É que, para a proteção de certos bens jurídicos importantes, a lei resolveu


construir tipos que contêm tais elementos. Por exemplo, no art. 151 está protegida a
inviolabilidade da correspondência, assim: “Devassar indevidamente o conteúdo de
correspondência fechada, dirigida a outrem.”

O componente normativo está contido na expressão indevidamente, que


significa “sem autorização” de quem de direito ou de uma norma jurídica, pelo que só
será fato típico se o sujeito devassar o conteúdo da correspondência injustamente,
contrariando outra norma. É que a algumas pessoas é lícito devassar a correspondência
fechada dirigida a outra pessoa, por exemplo, a secretária, autorizada por seu patrão, e
os pais, que podem fazê-lo em relação a seus filhos menores.

Discute-se se o marido e a mulher podem violar a correspondência fechada


dirigida ao outro, havendo posições num e noutro sentido, todos concordando que, na
Fato Típico - 49

hipótese de suspeita sobre a fidelidade, o fato seria lícito.

Ambos, marido e mulher, companheiro e companheira, casados ou unidos


estavelmente num mesmo lar, devem respeitar a intimidade do outro e, é óbvio, só
poderão violar a correspondência do outro se devidamente autorizados. Não é só pelo
fato de viverem juntos e se amarem que não desejam, cada qual, preservar sua
intimidade. Cada indivíduo, mesmo vivendo em comunhão com outro, tem sua
personalidade, e seus direitos constitucionais a ela relativos devem ser mantidos, e,
conquanto disponíveis, para se considerar a renúncia, esta precisa exsurgir no dia-a-dia
do casal, expressa ou tacitamente. A tipicidade do fato, portanto, só não existirá se
houver essa autorização, ainda que tácita, do outro, para conhecer o conteúdo das
comunicações que lhe são dirigidas por meio de correspondência fechada.

Como se viu, elementos como esses exigem uma valoração normativa do


intérprete. Sempre que se encontrarem expressões semelhantes, como indevidamente,
indevida, sem as formalidades legais, sem justa causa, sem prévia autorização,
fraudulentamente, e outras de mesmo ou semelhante sentido, o operador do direito
necessitará realizar um juízo de valor, de caráter normativo, para verificar a violação de
uma regra jurídica de proibição.

Também exigem uma valoração normativa, destinada a conceituar certos


termos jurídicos ou, mesmo, extrajurídicos, expressões como cheque, função pública,
documento, dignidade, saúde, moléstia, pois necessitam ser interpretadas de acordo
com normas jurídicas, legais ou costumeiras, bem assim outras de natureza técnico-
científicas.

A existência de elementos normativos nos tipos é uma exigência dos tempos


modernos, o que, infelizmente, importa numa menor segurança para os cidadãos, uma
vez que deixa para o julgador uma margem de liberdade maior na verificação da
tipicidade dos fatos, o que não é o desejável num regime democrático, pois que
enfraquece o princípio da legalidade.

Em todos os tipos legais de crimes culposos, existe um elemento normativo, que


é a culpa, stricto sensu, a inobservância do dever de cuidado objetivo, por imperícia,
negligência ou imprudência. Como observado, só será fato típico culposo se o sujeito
tiver agido negligentemente. Tal verificação exige um juízo de valor do julgador, acerca
da previsibilidade objetiva do resultado e do desrespeito ao dever de cuidado que se
impunha ao agente.

8.9.2.3 Elementos subjetivos


50 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Finalmente, integram muitas vezes o modelo de fato proibido certos


componentes que vivem no interior do psiquismo do sujeito, na esfera de seu
pensamento, em sua motivação, em sua intenção, em seu intuito, em seu ânimo, em sua
consciência, na cabeça do homem.

Em todos os tipos legais de crimes dolosos, há, pelo menos, um indispensável


elemento subjetivo: o dolo, a consciência e a vontade. Só poderá existir o fato típico se o
agente tiver agido com dolo. Sem o dolo, não há o fato típico doloso.

Além do dolo, alguns tipos trazem outros componentes subjetivos.

No tipo do art. 134 do Código Penal, está descrita a conduta: “expor ou abandonar
recém-nascido, para ocultar desonra própria”. O fato objetivo descrito consiste
na exposição ou no abandono de um recém-nascido. Para que a mulher realize tal tipo, é
necessário que ela exponha ou abandone seu filho com um fim especial, o de ocultar
sua desonra. Este fim é um elemento subjetivo do tipo, sem o qual ele não se realiza.
Subjetivo porque integra o íntimo do sujeito do crime.

Se a mulher tiver abandonado o recém-nascido, sem aquela intenção de ocultar


sua desonra, não terá realizado este tipo, mas outro, o do art. 133 do Código Penal, que
não contém aquele elemento subjetivo. De notar que a presença do elemento subjetivo,
neste caso, torna o fato menos reprovável, pois faz corresponder-lhe pena máxima
menor.

Vê-se, pois, que alguns elementos subjetivos dizem respeito ao intuito do agente, a
sua intenção, como no tipo do crime de perigo de contágio de moléstia grave, definido
no art. 131, Código Penal: “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia
grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”, e no do crime de
extorsão, do art. 158, Código Penal: “constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida
vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma
coisa”. Nesses dois exemplos, a presença do elemento subjetivo vai importar numa
maior reprovação da conduta do agente, pois revela uma intenção mais reprovável,
mais censurável.

Também são elementos subjetivos dos tipos aqueles componentes que se referem
à consciência do sujeito ativo do fato.

Para haver tipicidade no fato definido no art. 180 do Código Penal – tipo de
receptação dolosa –, é indispensável que o agente tenha conhecimento de que a coisa
adquirida, recebida, transportada, conduzida ou ocultada, seja produto de um fato
definido como crime. Do mesmo modo, o tipo do art. 339 do estatuto repressivo
Fato Típico - 51

contém um elemento subjetivo relativo à consciência do agente: “Dar causa à


instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação
administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra
alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.”

São, portanto, subjetivos os componentes inerentes ao estado interno do sujeito


ativo do crime.

Num mesmo tipo legal de crime, podem conviver elementos objetivos, normativos
e subjetivos.

8.10 TIPICIDADE DIRETA E CONSUMAÇÃO

8.10.1 Tipicidade direta

Tipicidade é a relação de adequação exata, perfeita, total, completa, absoluta,


entre o fato natural, concreto, da vida, e o tipo, que é o modelo de conduta proibida.

Em grande parte dos casos da vida, a verificação dessa relação de adequação se


faz de modo bem simples. Observa-se o fato e, num átimo de segundo, chega-se à
conclusão de que ele se ajusta a certo tipo legal de crime.

Por exemplo: Pedro, com vontade de matar, e por um motivo desprezível,


dispara um tiro contra Joaquim, atingindo-o no peito esquerdo, causando-lhe lesões
que o conduzem imediatamente à morte.

Sua conduta ajustou-se diretamente a um tipo legal de crime, aquele definido


no art. 121, § 2º, II, do Código Penal: “matar alguém, por motivo fútil”.

Quando o fato natural se ajusta, se enquadra, imediatamente, diretamente, ao


tipo, fala-se em tipicidade direta, imediata.

8.10.2 Iter criminis e consumação

O art. 14, I, do Código Penal diz que o crime é consumado “quando nele se
reúnem todos os elementos de sua definição legal”.

Para realizar o fato típico, o agente percorre um caminho, chamado iter


criminis, que é o conjunto das várias etapas de sua realização: a cogitação, a
preparação, a execução e a consumação.

A cogitação, que ocorre na esfera do pensamento, jamais será punida.

A preparação, conjunto dos atos meramente preparatórios, como se verá adiante


52 – Direito Penal – Ney Moura Teles

no momento do exame da tentativa de crimes, também não será por si só punível, salvo
se for constituída de infrações penais autônomas consumadas.

A execução do fato típico consiste nos atos que se dirigem à realização do


procedimento típico, quando penetram em seu núcleo, no verbo indicador da ação ou
da omissão.

O fato típico é um trecho da vida, que tem começo e fim, conforme a descrição
do tipo.

A consumação ocorre quando o fato se ajusta por completo, integralmente, ao


tipo. No tipo de homicídio, com a morte da vítima. No tipo de estupro, com a
introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina. No tipo de corrupção passiva,
definida no art. 317, Código Penal, “Solicitar ou receber, para si ou para outrem,
direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em
razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”, a consumação
ocorre no momento em que o funcionário público solicita a vantagem, ou quando aceita
sua promessa, não quando a recebe, até porque nem é necessário que venha a recebê-la.

A determinação do momento da consumação do fato é da mais alta importância


para o estudo do crime, que deve e será estudada, com detalhes e profundidade, em
cada tipo em espécie, pois as dificuldades não são poucas.

8.11 TIPICIDADE INDIRETA

Nem sempre é possível verificar a tipicidade de um fato, adequando-o,


diretamente, a um tipo legal de crime, porque em dois casos certos fatos da vida, que
exigem pronta resposta penal, não se ajustam diretamente a um tipo legal de crime.

É o que ocorre nas tentativas de crimes e no concurso de pessoas. Quando


alguém tenta realizar um tipo, não conseguindo alcançar sua consumação, ocorre a
tentativa de crime. Quando mais de uma pessoa colabora para a realização de um só
tipo, consumado ou tentado, verifica-se o chamado concurso de pessoas.

Nesses casos, a verificação da tipicidade só é possível de forma indireta.

8.11.1 Tentativa de crimes

8.11.1.1 Conceito

Não existem os tipos: “Tentar matar alguém”, “tentar constranger mulher à


conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, e tampouco “tentar subtrair,
Fato Típico - 53

para si ou para outrem, coisa alheia móvel”.

Se não existem tais tipos, a tais fatos não poderiam corresponder penas
criminais.

Para obedecer ao princípio da legalidade, a lei concebeu uma fórmula geral, que
permite a punição da tentativa de realização de crimes, definindo-a e mandando puni-
la. A norma que define a tentativa encontra-se no art. 14, II, do Código Penal: “Diz-se o
crime: tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias
alheias à vontade do agente.” E, mais importante, a regra que manda punir a tentativa
está inscrita no parágrafo único do mesmo artigo: “Salvo disposição em contrário,
pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de
um a dois terços.”

Quem tentar cometer um crime será punido com a pena do crime, se tivesse
sido consumado, diminuída de 1/3 a 2/3. Assim, para se verificar a tipicidade de um
fato, é necessário conjugar-se a norma do tipo com a norma do art. 14, II, parágrafo
único.

Pois bem, e o que é tentativa?

Tentativa de um crime é a execução inacabada, incompleta, do procedimento


típico, por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Para existir tentativa, é necessário que o procedimento descrito no tipo seja


iniciado, mas não se complete, em razão de alguma circunstância que esteja fora do
âmbito da vontade do agente.

8.11.1.2 Elementos

É preciso que o procedimento típico seja iniciado.

O primeiro desafio é distinguir atos de preparação de atos de execução do


procedimento típico, pois aqueles não são puníveis, salvo se constituírem crime
autônomo ou contravenção penal. Para configurar a tentativa, é indispensável que
exista ato de execução.

Há duas correntes doutrinárias que procuram estabelecer critérios para a


distinção entre atos executórios e atos preparatórios.

Um primeiro critério tem natureza material: haveria ato executório quando a


conduta do agente atingisse o bem jurídico objeto do crime. Para haver ato executório
num tipo de homicídio, seria indispensável que o comportamento do sujeito ativo
54 – Direito Penal – Ney Moura Teles

atacasse o corpo da vítima, acertando um tiro, um golpe de faca, ministrando-lhe a


bebida envenenada, ou o medicamento em dose excessiva.

Por esse critério, não haveria tentativa de homicídio quando o tiro disparado pelo
revólver do agente não atingisse o corpo da vítima, embora passasse a centímetros de
seu corpo.

Tal solução é equivocada. Às vezes, a vida do sujeito passivo passa por um perigo
muito maior, sem que seu corpo tenha sido atingido, do que quando o corpo é atingido,
por exemplo, numa das pernas. O primeiro fato será uma tentativa de crime, se o
agente queria matar, mesmo que o bem jurídico não tenha sido atacado, atingido,
materialmente.

Melhor, por isso, o critério formal, segundo o qual existe ato executório quando o
comportamento do agente dá início à realização do tipo. Veja-se o tipo de homicídio.
Mata-se comumente com disparo de arma de fogo, golpe de facas, venenos etc.
Observem-se essas formas de execução.

Apontar a arma em direção da vítima pode ser um ato de execução, desde que não
tenha havido, depois, por parte do agente, a desistência de disparar o revólver, de
prosseguir na execução. Se o agente aponta a arma, mas desiste, não há ato de
execução, mas de simples preparação.

Atrair a mulher para o quarto do hotel, tirar-lhe as vestimentas, deitá-la na cama,


amarrá-la no leito constituem atos executórios do tipo descrito no art. 213 do Código
Penal, estupro, e nenhum deles ainda atacou a liberdade sexual da mulher.

Correto, pois, é o critério formal. Há início de execução, quando o comportamento


do sujeito começa, dolosamente, a realizar o tipo legal de crime. Se é interrompido por
fato estranho a sua vontade, circunstância alheia, haverá tentativa de crime. Se,
todavia, nenhum fator externo à sua vontade interage, e ele não prossegue na execução
do procedimento típico, então não terá havido tentativa de crime.

Se o desenrolar do procedimento típico é interrompido pela própria vontade do


agente, poderá haver arrependimento eficaz ou desistência voluntária, que serão
estudados adiante.

Só haverá tentativa se o agente agia com dolo de alcançar o resultado. Sem dolo,
não se fala em tentativa. Assim, não existe, porque é impossível, tentativa de crime
culposo.

8.11.1.3 Formas
Fato Típico - 55

O procedimento típico pode completar-se e o resultado, mesmo assim, não


acontecer. João, com vontade de matar, atira em Pedro, acerta-o, no rosto, mas este é
socorrido, tratado e curado, e não morre.

Todo o desenrolar do procedimento típico foi concluído; apenas o resultado


descrito no tipo não aconteceu. A execução completou-se, mas o resultado teimou em
não acontecer. Esta é a chamada tentativa perfeita, ou crime falho.

Quando o processo de execução é interrompido, configura-se a tentativa


imperfeita. Cláudio vai, querendo matar, atirar em Anísio, quando Geraldo desvia seu
braço, indo o tiro acertar a parede mais próxima.

8.11.1.4 Punibilidade da tentativa

Como regra geral, a tentativa não é crime autônomo; daí, não existir crime de
tentativa, mas tentativa de crime. Tanto que a pena para a tentativa é dependente da
pena para o crime consumado, conforme dispõe o parágrafo único do art. 14 do Código
Penal: as tentativas de crimes serão punidas com a pena do crime consumado,
diminuída de um a dois terços, salvo disposição expressa em contrário. Esta é a regra.

Há exceções, entre elas a do tipo legal do art. 352 do Código Penal, que
descreve, como crime autônomo, com pena idêntica ao consumado, a tentativa de fuga:
“evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de
segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa”. A pena é igual para o
crime consumado e para sua tentativa. Isto porque a tentativa de fuga é crime
consumado.

Igualmente, os tipos descritos nos arts. 17 e 18 da Lei nº 7.170, de 14-12-83, a


Lei de Segurança Nacional: “Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça,
a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e “tentar impedir, com emprego de
violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos
Estados”. Nesses casos, tais tentativas constituem crimes autônomos.

8.11.1.5 Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Em certas situações, o agente, após iniciar a execução do procedimento típico,


desiste de nela prosseguir e, em razão disso, o resultado não ocorre, ou o crime não se
consuma.

João, querendo matar a Pedro, dá-lhe um tiro que o atinge no braço, e, em


56 – Direito Penal – Ney Moura Teles

seguida, podendo disparar outras vezes, desiste de continuar atirando e vai embora,
deixando a vítima apenas ferida.

Noutras situações, após concluir todo o procedimento típico, o agente arrepende-


se e adota medidas capazes de impedir que o resultado aconteça. No mesmo caso, após
ferir o desafeto, querendo matá-lo, o agente o socorre e o conduz até o hospital,
providenciando que o mesmo seja curado, o que acontece.

Nesses casos, não há tentativa de crime, porque a não-consumação decorreu da


vontade do agente e não de circunstâncias a ele alheias. Trata-se da desistência
voluntária ou do arrependimento eficaz, que descaracterizam a tentativa, respondendo
o agente apenas pelos atos praticados, se, por si sós, constituírem crime menos grave
ou contravenção já consumados.

É a norma do art. 15 do Código Penal: “O agente que, voluntariamente, desiste de


prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza só responde pelos atos
já praticados.”

Para ALBERTO SILVA FRANCO,

“a desistência voluntária e o arrependimento eficaz são, portanto, causas


inominadas de exclusão da punibilidade (art. 107 da PG/84), que têm por
fundamento razões de política criminal. Se o próprio agente, por sua vontade,
susta a execução do delito ou obsta, mesmo depois de terminado o processo de
execução do crime, que advenha o resultado ilícito, interessa ao Estado que
seja ele recompensado com a impunidade, respondendo apenas pelos atos já
realizados, desde que constituam crimes ou contravenções, menos graves, já
consumados”13.

Já DAMÁSIO E. DE JESUS tem entendimento diverso:

“Ora, não há falar-se que aquelas causas extinguem a possibilidade de


aplicação da pena, pois a ‘extinção da punibilidade’ pressupõe a causa da
punibilidade (no caso, o conatus) com todos os seus elementos. Se a
punibilidade é conseqüência da existência da tentativa, quando esta não existe,
não se pode falar em extinção daquela. É a lição de José Frederico Marques, in
verbis: ‘Se do próprio conteúdo dessa forma que possibilita a adequação típica
indireta tira-se a ilação de que a tentativa só existirá se a não-consumação
não ocorrer por motivos alheios à vontade do agente, é mais que evidente que
não há adequação típica quando a não-consumação decorre de ato voluntário
13 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.
Fato Típico - 57

do autor dos atos executivos do delito.’ Isto significa que o arrependimento e a


desistência tornam atípica a conduta do agente.”14

A razão está com JOSÉ FREDERICO MARQUES e DAMÁSIO E. DE JESUS, a despeito do


profundo respeito que se deve ter pelo grande ALBERTO SILVA FRANCO.

Se o agente tiver iniciado a execução de um homicídio – por exemplo, postando-se


à espreita da vítima, com a arma carregada, mirando-a, armando o gatilho, disparando
o primeiro tiro que não acerta a vítima, que nem chega a ouvir o disparo, por estar em
avenida movimentada da cidade, no exato momento em que vários veículos pesados
tocam suas buzinas – e, em seguida, desistir de prosseguir na execução, terá havido
tão-somente a contravenção penal do art. 28 – disparo de arma de fogo ou, no máximo,
o crime do art. 132 do Código Penal –, perigo para a vida ou saúde de outrem.

Dizer que tal fato é típico de tentativa de homicídio, impunível por razões de
política criminal, é ignorar os fins da norma penal incriminadora: proteger o bem
jurídico das lesões ou ameaças de lesões graves. A punibilidade da tentativa decorre do
perigo de lesão grave em que ela consistiu. Ora, se houve desistência voluntária ou
arrependimento eficaz, desapareceu o perigo de lesão do bem jurídico por ato
voluntário do próprio agente que o causara. Ele mesmo, que causara o perigo, deu
efetiva proteção ao bem, desistindo ou eficazmente se arrependendo. Assim se
comportando, realizou a vontade do Direito, que é proteger o bem jurídico. Quem
alcança o fim do Direito não pode estar realizando algo proibido ou ilícito.

Restam, se existentes, os comportamentos típicos menos graves. Por isso, a


tipicidade fica excluída ou, melhor dizendo, alterada para um tipo menos grave, se a
conduta o tiver realizado.

Se, naquele exemplo, o agente, após mirar, com a arma engatilhada, nem chega a
dispará-la, desistindo imediatamente, tal ato já é executório, e aí não se pode falar nem
em perigo para o bem jurídico, e, estando ele autorizado a portar sua arma, não terá
havido nem o crime de porte ilegal de arma. Se se admitisse que permanece a tipicidade
da tentativa, que, apenas, será impunível, então será forçoso reconhecer que haverá
tipicidade de um fato que nem significa ameaça de lesão do bem jurídico – o que viola o
princípio da legalidade. Seria tipificar a simples intenção, mas é óbvio que o Direito
Penal não se preocupa com os atos puramente internos do homem.

ALBERTO SILVA FRANCO diz:

“A sustação voluntária do processo de execução do delito ou a realização

14 Direito penal. Op. cit. p. 296.


58 – Direito Penal – Ney Moura Teles

voluntária, depois do exaurimento desse processo, de uma ação em contrário,


no sentido de impedir a consumação, não permitiriam tornar atípico o que,
até então, tinha inequívoca conotação típica.”15

Os fatos, não há dúvida, tornam-se típicos pela conduta e pelo resultado – nos
crimes de resultado. Se este não ocorre, por razões alheias à vontade do agente, a
conotação típica altera-se, deixando, por exemplo, de ser homicídio, para ser tentativa
de homicídio, de ser furto para ser tentativa de furto etc.

Se, quando o resultado não acontece, por razões alheias à vontade do agente, a
tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não
ocorrer porque o agente alterou sua conduta, com a mudança de sua intenção, de sua
vontade. Antes, ele queria alcançar o resultado e, depois, ele quer e consegue impedir o
resultado; é evidente que a tipicidade se alterou substancialmente. Pode remanescer,
portanto, outra tipicidade, não a da tentativa.

8.11.1.6 Arrependimento posterior

O arrependimento posterior é uma causa obrigatória de diminuição de pena,


aplicável aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça contra a pessoa, quando
o agente, antes da instauração do processo, pelo recebimento da denúncia ou da queixa,
tiver reparado o dano causado ou restituído a coisa sobre a qual recaiu a conduta típica.
Tal norma encontra-se no art. 16 do Código Penal. Este é assunto do Capítulo 17 deste
manual.

8.11.1.7 Crime impossível

No art. 17 do Código Penal, cuida-se do crime impossível, também chamado de


tentativa inidônea ou tentativa inadequada, assim: “Não se pune a tentativa quando,
por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível
consumar-se o crime.”

O Direito Penal não se ocupa dos atos puramente internos, não punindo a
simples intenção do agente.

Em algumas situações, o homem, desejando realizar um tipo legal de crime,


utiliza-se de meios absolutamente ineficazes, o que impossibilita a consumação do
crime. Noutras, com meios eficazes, age sobre objeto absolutamente impróprio. Em

15 Código penal. Op. cit. p. 163.


Fato Típico - 59

ambas as situações, o crime jamais se consumaria.

O bem jurídico, em qualquer dos casos, não esteve sequer ameaçado. Se não
houve lesão, nem ameaça, nem era possível que houvesse, o Direito Penal não se
interessa pela conduta, mesmo que ela estivesse eivada de vontade de causar um mal.

Alguém resolve matar outrem, com uma arma descarregada, ou ministrando-


lhe açúcar, em vez de veneno. Tais meios são absolutamente ineficazes.

Mas, e se a pessoa visada, no primeiro caso, assustando-se, vem a morrer de


ataque cardíaco? Ou, sendo ela diabética, vem a morrer em função da ingestão do
próprio açúcar? Bom, nestas hipóteses, o resultado terá acontecido, pelo que o crime
terá se consumado e é óbvio que aqueles meios foram eficazes. Não se estaria diante de
tentativa, mas de crime consumado.

Já Maria, imaginando-se grávida, realiza em seu corpo vários atos visando


interromper a gravidez imaginária e matar o inexistente feto. Está realizando condutas
sobre um objeto absolutamente impróprio.

O mesmo se dá quando alguém dispara contra um cadáver, imaginando que é o


corpo do desafeto que dorme. Não se mata quem já morreu. Impossível a consumação
do homicídio.

A ineficácia do meio deve ser absoluta. Se apenas relativa, há tentativa;


portanto, fato punível. O mesmo se dá com o objeto, que deve ser absoluta e não
relativamente impróprio, caso em que haverá a tentativa de crime. Há ineficácia relativa
do meio, por exemplo, quando alguém tenta matar outro com uma arma defeituosa,
daquelas que “negam fogo”. Assim como falhou, poderia não ter falhado. A ineficácia
não é absoluta, total. A possibilidade de consumação do crime existia.

Igualmente, a impropriedade do objeto há de ser absoluta. Se, apenas relativa,


subsiste a tentativa punível. Tentar subtrair a carteira no bolso esquerdo da vítima, que
a trazia no bolso direito, é realizar uma conduta sobre um objeto relativamente
impróprio, é, pois, tentativa de furto. O mesmo quando se tenta subtrair o veículo com
trava de segurança. A impropriedade é só relativa.

8.11.2 Concurso de pessoas

Não existem tipos: “mandar matar alguém”, “colaborar para que alguém
subtraia coisa alheia móvel, para si ou para outrem”, nem “ajudar alguém a
constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.

Apesar disso, são inúmeros os casos concretos em que várias pessoas


60 – Direito Penal – Ney Moura Teles

colaboram para a prática de fatos definidos como crime. Seria impossível que o
legislador previsse todas as modalidades possíveis de colaboração na prática de fatos
típicos.

Em vez de construir inúmeros tipos, descrevendo casuisticamente todas as


possibilidades de concorrência de pessoas para a realização de um mesmo tipo –
missão impossível –, a lei preferiu, a exemplo da tentativa de crime, criar uma fórmula
geral que prevê a punição de todo aquele que contribuir, de qualquer forma, para a
realização de um tipo legal de crime. Por isso, o art. 29 do Código Penal dispõe: “Quem,
de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na
medida de sua culpabilidade.”

É o segundo caso de adequação típica indireta, em que a tipicidade se verifica


pela conjugação da norma do tipo com uma regra geral. Aqui, a contida no art. 29 do
Código Penal. Sem ela, não haveria tipicidade nos casos mencionados.

A doutrina, autorizada pela lei penal brasileira, distingue duas modalidades de


concurso de pessoas: autoria e participação.

8.11.2.1 Autoria

Ao longo do tempo, a doutrina preocupou-se com a conceituação de autoria de


crime, construindo várias teorias.

Uma primeira teoria, denominada subjetivo-causal, dizia que autor do crime seria
todo aquele que tivesse gerado uma condição para a causação do resultado descrito no
tipo. Como se vê, é de uma amplitude muito grande, abarcando como autor todo aquele
que desse a mínima colaboração, ainda que atípica, para o resultado. Por ela a distinção
entre autor e partícipe ficaria comprometida, e, por essa razão, recebeu muitas críticas.

Uma segunda doutrina, formal-objetiva, apresentava um conceito mais restrito de


autor, que seria aquele que realiza, total ou parcialmente, uma figura típica. Esta teoria
vincula o conceito de autor ao tipo legal de crime. Aqueles que realizassem
comportamentos fora da descrição do tipo seriam meros partícipes, desde que houvesse
a norma extensiva alcançando-os e mandando puni-los.

A grande falha dessa teoria é deixar, na condição de partícipe, o indivíduo que


organiza e comanda o procedimento típico, o chefe do bando, o que manda matar, o
que contrata os executores de certo procedimento.

Por essas e outras razões, construiu-se a teoria objetivo-subjetiva, também chamada


de Teoria do Domínio do Fato, segundo a qual autor de um crime é quem possui o
Fato Típico - 61

domínio final da ação, podendo decidir sobre a consumação do procedimento típico16.

A determinação da autoria está vinculada ao tipo legal de crime, mas depende da


presença do elemento subjetivo, que é a vontade comandando o rumo do fato, isto é, do
procedimento típico.

Quem tiver poder de decidir sobre continuar ou interromper o procedimento


típico, quem puder decidir sobre consumar o crime, quem puder arrepender-se, quem
puder desistir, quem pode continuar, este é o autor, mesmo que não venha a realizar
qualquer parte do procedimento típico, bastando tenha, previamente, determinado a
outros que o fizessem, ou planejado a ação, organizado a execução. Ao fazê-lo, começou
a realização intelectual do procedimento, e, por essa razão, realiza conduta adequada ao
tipo.

Com base nesse conceito, podem-se distinguir modalidades distintas de autoria, a


saber: o autor intelectual, o autor executor, o autor mediato.

8.11.2.1.1 Autor intelectual

Aquele que, sem executar diretamente qualquer parte do procedimento típico,


possuir, no entanto, o domínio final da conduta, tendo a possibilidade de decidir sobre
a consumação ou não do crime, sobre sua interrupção, sobre a modificação, é autor
intelectual, porque planejou e organizou a realização do procedimento típico.

É o chefe da quadrilha, o mandante do homicídio, quem contrata o pistoleiro,


enfim, aquele que, apesar de não realizar um único movimento corporal para realizar a
figura típica, possui o domínio dela, por meio do poder moral que exerce sobre os que a
vão executar.

8.11.2.1.2 Autor executor

Aquele que realiza, total ou parcialmente, a conduta descrita no tipo legal de crime
é o chamado autor executor. É quem executa o comportamento proibido, diretamente,
com sua atividade material. É quem dispara o revólver, quem subtrai a coisa, quem
imprime a violência contra o ofendido.

Basta a realização de uma parte do procedimento típico. Por exemplo: Sérgio


ameaça Joaquim, com uma arma, para que Nélson, seu comparsa, subtraia o veículo. O

16 FRANCO, Alberto Silva. Código penal... Op. cit. p. 345.


62 – Direito Penal – Ney Moura Teles

primeiro agente realizou o constrangimento, o segundo, a subtração. Cada qual realizou


uma parte do procedimento típico do roubo. São ambos autores executores.

8.11.2.1.3 Autor mediato

Se o agente, para realizar a conduta típica, abusa de uma terceira pessoa,


imprimindo-lhe uma força física, para alcançar o resultado típico ou a consumação do
delito, estará servindo-se de outrem como instrumento para o alcance de seus
objetivos. Este é o chamado autor mediato.

8.11.2.1.4 Co-autoria

O co-autor é outro autor. Não há distinção entre autor e co-autor. Se dois homens
planejam e organizam um assalto a ser executado por outros dois, os quatros são co-
autores, os dois primeiros, co-autores intelectuais e os dois últimos, co-autores
executores. Entre todos, não há tratamento típico diverso.

8.11.2.1.5 Co-autoria em crime culposo

Plenamente possível é a co-autoria em crime culposo. Duas pessoas, com


negligência, imprudência ou imperícia, podem realizar, conjuntamente, a mesma
conduta, produzindo um resultado indesejado por elas. Por exemplo, dois homens
resolvem atirar, pela janela do 10º andar de um edifício, um objeto qualquer, que, indo
ao chão, atinge um transeunte, causando-lhe ferimentos. O comportamento de ambos
foi negligente, causando o resultado por eles não almejado.

Questão interessante é saber se o pai que entrega o veículo ao filho menor


inimputável, ou deixa, negligentemente, as chaves do carro ao alcance dele, que,
dirigindo o veículo, vem a causar, culposamente, a morte ou a lesão corporal em
terceiros, será co-autor do crime.

Algumas decisões de tribunais estaduais vinham considerando o pai co-autor do


crime, pela ação ou pela omissão culposas, das quais resultavam a posse, pelo filho, do
veículo e, em seguida, sua conduta de dirigir com imprudência, dando causa a um
resultado – morte ou lesão corporal –, uma vez que teria, com seu comportamento,
concorrido para o evento.

É claro que essas decisões não levaram em conta que a teoria da equivalência das
condições, adotada pelo Código, não admite, na verificação do nexo causal entre conduta
Fato Típico - 63

e resultado, a regressão ad infinitum às condições antecedentes do evento.

No caso, só é possível verificar nexo causal entre a morte ou a lesão corporal da


vítima e a conduta do menor que dirige o veículo. Sua conduta é a causa da morte, não
o comportamento de seu pai. A negligência deste não pode ter relação direta com o
resultado causado pela conduta de seu filho.

Pondo fim ao dissídio jurisprudencial, felizmente o Superior Tribunal de Justiça


enfrentou e resolveu a questão:

“A co-autoria, tanto em crimes dolosos ou culposos, depende da existência


de um nexo causal físico ou psicológico ligando os agentes do delito ao
resultado. Não é admissível, por tal fato, a co-autoria em delito culposo de
automóvel onde figura como autor menor inimputável. A negligência do pai,
quando existente, poderá dar causa à direção perigosa atribuída ao menor,
jamais à causa do evento.”17

8.11.2.2 Participação

Com base no conceito de autoria, diz-se que participação é a contribuição – sem


realização direta de qualquer ato do procedimento típico – para um fato típico que está
sob o domínio final de outra pessoa.

É a conduta acessória, daquele que não possui domínio final da ação, do que não
tem qualquer poder de decidir sobre a consumação, interrupção, ou modificação do
procedimento típico. Apenas quer, conscientemente e com vontade, contribuir para a
realização de um fato típico dominado por outra pessoa.

Para haver participação, deve haver um fato típico alheio, a colaboração do


partícipe, que não tem poder de decisão. Aquele que simplesmente auxilia, sem
executar, o procedimento típico desenvolvido por outra pessoa está participando do
fato.

Para haver participação é indispensável que haja vontade, dolo, de colaborar com
o fato típico. Não se pode pensar em participação negligente em delito doloso.

Por exemplo, Joaquim, no aeroporto de Bogotá, prestes a embarcar com destino


ao Brasil, recebe o pedido de Maria, sua conhecida, para que entregue ao pai dela, em
São Paulo, um pacote. Tendo decidido colaborar com Maria, traz a encomenda e,

17Acórdão prolatado no Recurso Especial nº 25.070-9, de Mato Grosso, Relator o Ministro Flaquer
Scartezzini, publicado na RSTJ nº 47, p. 282.
64 – Direito Penal – Ney Moura Teles

chegando ao Brasil, é abordado pela polícia, que descobre conter o pacote alguns quilos
de cocaína.

Do ponto de vista meramente causal, Joaquim transportou a droga, e seria, na


verdade, autor do crime, ou, pelo menos, partícipe, por ter colaborado para o
transporte; todavia, não tendo agido com conhecimento e vontade de transportar a
substância proibida, não só não praticou nenhum fato típico, como também não
participou do fato típico de ninguém.

Conquanto a norma do art. 29 seja ampla, no sentido de que a concorrência se dá


de qualquer modo, é importante verificar que a participação no crime pode dar-se das
mais diferentes formas. Segundo DAMÁSIO E. DE JESUS, a participação pode ser moral
ou material. A determinação ou o induzimento, a instigação, o ajuste e a promessa de
ajuda são exemplos de participação moral18.

Importante, a propósito, verificar até que ponto o partícipe tem possibilidade de


influir na consumação do crime, pois, se houver poder de decisão, em vez de
participação, haverá co-autoria. É preciso analisar com bastante cuidado o fato
concreto e verificar se a “determinação” foi simples indução ou instigação, ou uma
verdadeira ordem ao executor.

Havendo entre o que determina e o que executa relação de domínio psicológico, de


autoridade, a situação transmuda-se, de participação para autoria intelectual.

Importante observar que a simples conivência não significa participação, pois,


para que alguém possa responder pelo crime, deve ter, no mínimo, a vontade de com
ele colaborar, não podendo ser responsabilizado por simplesmente não ter impedido
fisicamente a execução de um fato típico, salvo se houvesse o dever jurídico de agir para
impedir o resultado (art. 13, § 2º, CP).

A colaboração levada a efeito posteriormente ao fato típico não é participação no


crime, mas pode constituir o delito autônomo de favorecimento real ou pessoal,
definidos nos arts. 348 e 349 do Código Penal.

8.11.2.3 Participação de menor importância

O § 1º do art. 29 estabelece que, se a participação tiver sido de menor


importância, a pena será reduzida, de um sexto a um terço. Significa que a participação
de cada um dos concorrentes deverá ser analisada e graduada conforme sua

18 Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 371-373.


Fato Típico - 65

importância para a realização da figura típica. Existirão participações de grande e de


pequena importância, de maior e de menor eficiência causal.

Diferentemente da autoria, a participação exige esta graduação objetiva, e ao


partícipe de menor importância será aplicada pena reduzida, obrigatoriamente, em até
um terço da pena, podendo, até mesmo, ser fixada abaixo do grau mínimo.

Aquele que informa o agente sobre a ausência dos donos da casa, para que ele
nela entre e subtraia à vontade, está participando de um fato típico de furto.

Esta participação, a princípio, é de menor importância, mas, se, em vez da


informação, ele deixar a porta dos fundos destrancada, tal participação passa a ser um
pouco mais importante, e, se em vez disso, tiver desligado um sistema de alarme, então,
tal participação será de importância relevante para a execução do procedimento típico.

Caberá ao juiz, no caso concreto, analisar o grau de eficiência causal, para


concluir pela maior ou menor importância da participação.

8.11.2.4 Cooperação dolosamente diversa

Às vezes, um dos concorrentes deseja realizar um tipo legal de crime em


concurso com outro que, não obstante isso, realiza um tipo mais grave.

Por exemplo: João deseja participar ou ser co-autor de um delito de furto a ser
executado por José, que se encarrega de entrar na casa alheia e subtrair objetos de
propriedade do dono, Paulo. João, íntimo de Paulo, informara a seu amigo que todos os
moradores estariam viajando de férias para outra cidade, onde ficariam 15 dias, e a casa
estaria completamente desguarnecida.

No dia seguinte à viagem de Paulo, José entra na casa e, enquanto está


subtraindo os objetos, Paulo retorna e, entrando em luta corporal, vem a ser morto por
José. O retorno de Paulo era inesperado, e deu-se em virtude do falecimento repentino
de sua sogra.

Como se viu, João queria participar de um furto, ao passo que José realizou um
tipo de roubo seguido de morte, latrocínio, muito mais grave.

A solução para problemas como este está no § 2º do mesmo art. 29:

“Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada
a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível
o resultado mais grave.”

No exemplo dado, João responderá pelo furto, uma vez que, tendo Paulo viajado
66 – Direito Penal – Ney Moura Teles

de férias, era-lhe absolutamente imprevisível que a vítima retornasse antes de alguns


dias. Imprevisível seu retorno, imprevisíveis o resultado mais grave, a violência e a
morte que caracterizam o latrocínio.

Se, no mesmo exemplo, Paulo tivesse ido ao cinema, e José informado a João
que a casa estaria vazia por algumas horas, tempo suficiente para a subtração, e o dono
da casa retornasse, tal resultado era previsível, pois não se tratava de uma viagem
longa, por tempo longo. Neste caso, José responderia pelo tipo de furto, com pena
aumentada de até metade.

8.11.2.5 Circunstâncias incomunicáveis

Circunstâncias são dados objetivos ou subjetivos acessórios que integram os


tipos, com a exclusiva finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena.

As circunstâncias objetivas ou reais são as que dizem respeito à materialidade


do fato – a seu modo de execução, aos meios utilizados, tempo, lugar, qualidades do
sujeito passivo. As circunstâncias subjetivas ou pessoais são as que se referem ao
agente do fato, sua motivação, suas relações com o sujeito passivo, com seus
concorrentes, suas qualidades pessoais.

Excepcionalmente, algumas das mencionadas circunstâncias, em vez de simples


acessórios dos tipos, integram suas estruturas como elementos essenciais,
indispensáveis a sua configuração, e que, por isso, são chamadas elementares do tipo.

Quando duas ou mais pessoas concorrem para a realização de um mesmo


procedimento típico, importa saber se, quando e quais as circunstâncias que se
comunicam entre eles.

Dispõe o art. 30 do Código Penal que as circunstâncias e as condições pessoais


não se comunicam entre os concorrentes, salvo se elas forem elementares do crime.

A primeira conclusão é de que – como a norma explica que as circunstâncias


subjetivas ou pessoais, em regra, não se comunicam – deve-se entender que as
circunstâncias de natureza objetiva ou real se comunicam aos concorrentes.

É claro que só haverá comunicação de uma circunstância que venha a agravar a


pena ou qualificar o crime, se o concorrente tiver se comportado, relativamente a ela,
com dolo ou, pelo menos, culposamente. Se João determina a Alfredo que aplique uma
surra em Mário, e o executor causa na vítima lesão corporal com emprego de tortura,
essa circunstância objetiva, que agrava a pena, segundo manda o art. 61, II, c, somente
será comunicada a João se, em relação a ela, tiver ele agido pelo menos culposamente.
Fato Típico - 67

Se ele sabia que Alfredo iria usar de tortura para lesionar e quis, ou aceitou, é óbvio que
a agravante será comunicada, bem assim se lhe fosse previsível que Alfredo utilizaria o
referido meio. Do contrário, não se comunica a circunstância real.

A segunda observação é de que, em regra, as circunstâncias subjetivas ou pessoais


são incomunicáveis. Se Célio comete um homicídio por motivo de relevante valor moral
– está matando o estuprador de sua filha – com a colaboração de Jorge, que não tem a
mesma motivação, seja por não saber do motivo de seu concorrente, seja por não estar
imbuído desse espírito, a este não será comunicada a causa de diminuição de pena
prevista no § 1º do art. 121.

Finalmente, a terceira conclusão: se as circunstâncias são elementares do tipo,


sejam elas objetivas ou subjetivas, reais ou pessoais, vão-se comunicar entre os
concorrentes, desde, é óbvio, que entrem na esfera da previsibilidade de cada um.

Nos tipos legais dos crimes praticados por funcionário público contra a
administração em geral, definidos nos arts. 312 e seguintes do Código Penal, uma
circunstância de natureza subjetiva é elementar, essencial, indispensável à configuração
de cada um daqueles tipos, peculato, concussão, corrupção passiva etc.: ser o agente
funcionário público.

Quem, portanto, concorrer com um funcionário público para a realização de


qualquer desses tipos, mesmo não sendo funcionário público, responderá em concurso –
co-autoria ou participação – pelo crime que é próprio de funcionário público.

É claro que isso apenas se o concorrente tiver, pelo menos, previsibilidade quanto
a essa circunstância. É preciso que ele saiba ser seu concorrente um funcionário
público, ou que lhe fosse, pelo menos, previsível tal circunstância.

Além das circunstâncias pessoais que, em regra, são incomunicáveis, a lei dá


idêntico tratamento às condições de caráter pessoal. MIRABETE explica que as

“condições referem-se às relações do agente com a vida exterior, com outros


seres e com as coisas (menoridade, reincidência etc.), além de indicar um
estado (casamento, parentesco etc.)”19.

Assim, a condição de reincidente do executor do fato não será comunicada a seu


partícipe ou co-autor, porquanto não integra, enquanto elementar, tipos legais de
crimes.

Caso muito interessante, polêmico e inquietante, que está a exigir solução do

19 Op. cit. p. 228.


68 – Direito Penal – Ney Moura Teles

legislador penal, é o do infanticídio, que DAMÁSIO E. DE JESUS muito clara e


lucidamente apresenta em sua monumental obra DIREITO PENAL, e que merece ser,
sempre, comentado.

O tipo do art. 123, infanticídio, é: “matar, sob a influência do estado puerperal, o


próprio filho, durante o parto ou logo após”.

Integra o tipo, como elementar, indispensável, essencial à realização do


infanticídio, uma circunstância de natureza subjetiva da mãe: estar ela sob influência
do estado puerperal, que é a situação de perturbação físico-psicológica que pode
acometer a mulher durante o parto. Tais perturbações constituem um estado que pode
influir no comportamento da mãe, alterando-lhe a psique. Se ela mata o próprio filho
nessas condições, a lei comina-lhe uma pena bem menor que a do homicídio simples:
detenção, de dois a seis anos.

Quem concorrer para o infanticídio, auxiliando a mãe, estando ela sob influência
do estado puerperal, a matar o recém-nascido, responderá por infanticídio ou por
homicídio?

À primeira vista, o concorrente, partícipe ou co-autor, terá realizado outro tipo


legal de crime: o de homicídio, pois não está ele “sob a influência do estado puerperal”,
que só a mãe pode sofrer. Pensar o contrário seria absurdo, pois o partícipe não está
afetado por nenhuma perturbação psíquica e, por isso, não mereceria reprovação
menor. Ao contrário, impõe-se-lhe até maior reprimenda, porque, na plenitude de suas
faculdades mentais, colabora para a morte de uma pessoa absolutamente incapaz de
esboçar qualquer defesa.

DAMÁSIO E. DE JESUS sustenta que, infelizmente, não é essa a solução para o caso,
em face da norma do art. 30, em comento, que manda sejam comunicadas ao
concorrente as circunstâncias pessoais elementares do tipo, e a influência do estado
puerperal, que é uma delas, integra o tipo.

“Segundo entendemos, o terceiro deveria responder por delito de


homicídio. Entretanto, diante da formulação típica desse crime em nossa
legislação, não há fugir à regra do art. 30: como a influência do estado
puerperal e a relação de parentesco são elementares do tipo, comunicam-se
entre os fatos dos participantes. Diante disso, o terceiro responde por delito de
infanticídio. Não deveria ser assim. O crime do terceiro deveria ser homicídio.
Para nós, a solução do problema está em transformar o delito de infanticídio
Fato Típico - 69

em tipo privilegiado do homicídio.”20

Lamentavelmente, o ordenamento penal apresenta essa incongruência, que impõe


um tratamento injusto ao que colabora para o infanticídio. A solução apontada por
Damásio deve ser acolhida pelo legislador, eliminando o tipo de infanticídio e tornando-o
uma causa obrigatória de diminuição da pena do homicídio, deixando, assim, de integrar
a descrição elementar do tipo, passando a ser uma circunstância subjetiva acessória,
que, dessa forma, não se comunicaria ao concorrente.

No volume 2, ao abordar o infanticídio, voltarei ao tema, com maior profundidade,


expondo o meu pensamento a respeito da polêmica.

8.11.2.6 Caso de impunibilidade da participação

Algumas formas de participação, como o ajuste, a determinação, a instigação ou o


auxílio, não serão puníveis se o crime não chegar a ser, pelo menos, tentado. Não se
punirá o partícipe que instigou, auxiliou, ajustou, determinou, se seu concorrente nem
chegou a iniciar a execução do procedimento típico.

Não poderia ser diferente, pois o Direito Penal somente pune os fatos típicos
consumados – realizados na integridade dos tipos – e a tentativa de sua realização, que
tem como elemento indispensável o início de execução.

O dispositivo ressalva a hipótese de que uma das formas de participação


mencionadas integre a estrutura de outro tipo. Assim, por exemplo, os tipos dos arts.
227, 228 e 248 do Código Penal, cujo núcleo é a ação de “induzir”. Nesses casos, não há
participação em delito de outrem, mas fato típico autônomo.

8.12 CONFLITO APARENTE DE NORMAS

Algumas vezes, a um mesmo fato concreto, natural, da vida, parecem ajustar-se


duas normas diferentes, dois tipos legais de crime.

É óbvio que tal não pode ocorrer, pois para um fato haverá sempre uma única
norma reguladora, e o conflito é apenas aparente. Haverá conflito aparente quando
houver um só fato e aparentemente duas normas a ele se ajustando. Para resolver tais
conflitos, a doutrina elaborou três princípios.

20 Direito penal: parte especial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 98.
70 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.12.1 Princípio da especialidade

Existem normas penais incriminadoras que guardam, umas com as outras, uma
relação de gênero para espécie, de especialidade. Uma norma é genérica, as outras são,
em relação a ela, específicas.

Uma norma é especial em relação a outra, geral, quando contiver, em sua


descrição, todos os elementos objetivos, normativos, subjetivos, da norma geral e mais
alguns, objetivos, normativos ou subjetivos, que a tornam especial. Tais são os
elementos especializantes.

O homicídio doloso simples é um tipo geral, do qual são tipos especiais os tipos de
homicídio privilegiado, os vários tipos de homicídio qualificado, e o tipo de infanticídio.
No primeiro, os elementos são: “matar alguém dolosamente”, nos demais, além desses
mesmos elementos, existem outros que os tornam mais específicos.

Se uma mulher matar o próprio filho, durante o parto, sob a influência do


estado puerperal, esse fato ajusta-se ao tipo de homicídio simples “matar alguém”;
ajusta-se, ainda, ao tipo do infanticídio “matar, sob a influência do estado puerperal, o
próprio filho, durante o parto ou logo após”. Aparentemente, o mesmo fato se ajusta a
dois tipos distintos.

O princípio da especialidade manda que, quando entre as duas normas que


aparentemente estão em conflito, abrangendo o mesmo fato, houver uma relação de
especialidade, a norma especial afaste a incidência da norma geral. Lex specialis
derrogat lex generalis.

Veja-se outro exemplo: João subtraiu, para si, o veículo de Mário e, quando com
ele se retirava, a vítima chegou e tentou impedi-lo ao que ele, para assegurar a posse do
veículo, desferiu-lhe um tiro de revólver, matando-a.

Aparentemente, esse fato ajusta-se a dois tipos legais de crime, ao do art. 121, §
2º, V, e ao do art. 157, §§ 1º e 3º, que são os seguintes:

a) matar alguém para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de


outro crime;

b) empregar violência contra pessoa, disso resultando morte (§ 3º), logo depois de
subtraída a coisa alheia móvel a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção
da coisa, para si ou para terceiro (§ 1º).

O primeiro é um dos tipos de homicídio qualificado, o segundo é o de roubo


seguido de morte, chamado latrocínio.
Fato Típico - 71

O fato descrito, segundo determina o princípio da especialidade, ajusta-se ao


segundo dos tipos, porque este é especial em relação ao primeiro. Tem, em sua
descrição legal, todos os elementos do primeiro (matar alguém, para assegurar a
vantagem de crime), com um elemento especializante a mais: ser de furto o crime cuja
vantagem se quer assegurar.

Será homicídio qualificado toda vez que o sujeito matar outrem para assegurar a
vantagem de outro crime, qualquer outro crime. Incidirá o tipo do roubo seguido de
morte, toda vez que o sujeito matar alguém para assegurar a vantagem de um crime de
furto.

O primeiro tipo é genérico, em relação ao segundo, que só se aplica quando se


tratar da morte de outrem para assegurar vantagem de uma subtração de coisa alheia
móvel.

O princípio da especialidade, pois, é o que manda aplicar a norma especial, que


tem o poder de afastar a incidência da norma geral.

8.12.2 Princípio da subsidiariedade

Em outros casos, a relação existente entre duas normas penais incriminadoras


não seria de gênero para espécie, mas de subsidiariedade. Uma norma seria subsidiária
da outra, primária, quando descrevesse grau de violação do bem jurídico de menor
gravidade que a descrita na norma primária, principal.

A subsidiariedade chega a ser, em alguns casos, explícita, como no tipo do art.


132 do Código Penal: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não constitui crime mais grave.” Essa
norma é subsidiária em relação a várias outras, pois descreve violação menos grave dos
bens jurídicos: vida e saúde, que podem ser atacados de formas mais graves – tentativa
de homicídio e abandono de incapaz (art. 133), por exemplo.

Noutras situações, a subsidiariedade seria implícita, com um tipo constituindo


uma circunstância de outro, como ocorre com o tipo do art. 147, de ameaça, que é
subsidiário do tipo do art. 146, de constrangimento ilegal.

Diante do aparente conflito, o intérprete deve analisar o fato em sua totalidade,


para verificar qual dos tipos incidirá. Se a conduta tiver violado no maior grau o bem
jurídico, é evidente que a norma primária é que vai ajustar-se ao tipo. Se o tiver
ofendido mais levemente, incidirá a norma subsidiária.
72 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.12.3 Princípio da absorção ou da consunção

A terceira hipótese é a existência de normas que guardam entre si relação de


conteúdo a continente, de parte a todo, de meio a fim, de fração a inteiro, ou seja, um
tipo é parte integrante de outro, ou meio para sua realização. Um tipo é fração do outro,
que é o inteiro. Um tipo está contido no outro.

Se isso acontece, não se irá punir o agente por dois fatos, mas apenas ao fato
continente, ao fato-fim, ao fato todo.

Assim, o tipo de homicídio doloso simples contém a tentativa de homicídio,


como fase normal ou conduta anterior de sua realização, contendo, ainda, a lesão
corporal, e o tipo de disparo de arma de fogo, e, além dele, pode conter tipo de porte
ilegal de arma de fogo.

O tipo de furto em casa habitada contém a violação do domicílio.

Por esse princípio, o tipo-fim, continente, todo, absorve o tipo-meio, o conteúdo,


o tipo-parte. O furto absorve a violação do domicílio, o homicídio absorve a tentativa, a
lesão corporal e o porte ilegal de arma.

O agente responderá por apenas um crime.

Se Marcos falsifica a cédula de identidade de Geraldo para, exclusivamente, com


ela, apresentar-se ao notário público e vender a única propriedade da vítima a terceira
pessoa, obtendo, com isso, vantagem ilícita, terá realizado o tipo do art. 297, Código
Penal, “falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento
público verdadeiro”, em seguida o do art. 304, Código Penal, “fazer uso de qualquer dos
papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302” e, finalmente, o
tipo do art. 171, estelionato, Código Penal: “Obter, para si ou para outrem, vantagem
ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício,
ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”

Responderá pelos três crimes?

Óbvio que não, pois a falsificação e o uso do documento falso foram meios
necessários para a realização do tipo-fim, o do estelionato que, por isso, absorve os
demais.

Se Marcos, todavia, falsificar um documento público para usá-lo para a


realização de mais de uma fraude, para cometer outros crimes, é óbvio que a
falsificação não será absorvida pelo primeiro dos crimes-fim. Nesse caso, serão dois ou
mais crimes cometidos, e cada crime-fim absorverá o uso. A cada crime novo, apenas o
uso será absorvido, permanecendo íntegro e autônomo o crime de falsificação. Marcos
Fato Típico - 73

responderá por uma falsificação, e tantos quantos estelionatos vier a praticar com o
mesmo documento falso.

O Superior Tribunal de Justiça, a propósito, formulou a Súmula 17, assim:


“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este
absorvido.”

8.12.4 Observação importante

DAMÁSIO E. DE JESUS, após dizer que o tipo do constrangimento ilegal é


subsidiário do tipo de estupro, discorda da opinião de ANTOLISEI de que o princípio da
subsidiariedade, por conduzir aos mesmos resultados da regra da especialidade, deve
considerar-se supérfluo, afirmando que “na especialidade os fatos descritos pelas
normas genérica e especial estão entre si numa relação de gênero e espécie, o que não
ocorre com a relação de subsidiariedade”21.

Parece, a propósito, primeiramente, que entre o tipo do constrangimento ilegal


e o de estupro a relação é de gênero para espécie:

a) art. 146: “constranger alguém”, art. 213: “constranger mulher”. O tipo de estupro na
primeira ação contém um primeiro elemento especializante: o sujeito passivo deve ser
mulher;

b) art. 146: “mediante violência ou grave ameaça” – art. 213: “mediante violência ou
grave ameaça”;

c) art. 146: “a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda”; art. 213: “à
conjunção carnal”, e eis aqui o segundo elemento especializante.

No constrangimento ilegal, a norma proíbe seja alguém constrangido a qualquer


comportamento não proibido ou que a lei não obrigue, e no estupro, proíbe o
constrangimento a um desses comportamentos a que a pessoa não está obrigada: a
conjunção carnal.

Parece evidente, pois, que o estupro é um tipo especial em relação ao


constrangimento ilegal, como, aliás, se poderia entender que a tentativa de homicídio é
especial em relação ao tipo do art. 132, de perigo para a vida ou saúde de outrem. Este,
descrevendo qualquer situação de perigo, um perigo genérico, aquela, a tentativa, uma
situação típica por adequação indireta, como já foi visto, em que o perigo é específico,

21 Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 98.


74 – Direito Penal – Ney Moura Teles

perigo de que a vida pereça, em face da gravidade da lesão e da direção final da


vontade.

O princípio da subsidiariedade, por isso, é mesmo supérfluo, bastando, para a


solução dos conflitos, o princípio da especialidade e o da absorção.

Uma última observação a respeito do conflito aparente de normas.

Os doutrinadores falam de um quarto princípio, o da alternatividade, que


buscaria resolver conflito interno de um mesmo tipo.

O tipo do art. 33 da Lei nº 11.343 /06 descreve:

“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à


venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,
ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar

Se o agente produz e vende, estaria realizando duas vezes o mesmo tipo legal de
crime? Qual dos núcleos se aplicaria?

Aqui, é preciso concordar com a lição de DAMÁSIO de que não há conflito, pois
que não há duas, mas uma só norma, um só preceito primário. Para haver conflito de
normas, são indispensáveis unidade de fato e pluralidade de normas. Aqui, pode haver
o contrário, pluralidade de fatos e unidade de preceitos. Há um tipo de ação múltipla, e
o agente, mesmo realizando duas ações, estará violando a norma apenas uma vez. Não
há, pois, conflito de normas.

8.13 CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA DOS TIPOS DE CRIMES

Os maiores doutrinadores, dentre eles JOSÉ FREDERICO MARQUES a DAMÁSIO E.


DE JESUS, apresentam, com base em seus estudos, várias classificações para os tipos
legais de crimes, conforme sejam seus elementos integrantes, sua estrutura, seu
conteúdo, enfim, cada qual com base em determinado critério científico.

Cuida-se aqui das classificações que parecem de maior relevância para o


estudioso do Direito Penal.

8.13.1 Crimes materiais, formais e de mera conduta

Quando se toma como critério classificador o resultado, enquanto modificação


do mundo externo causada pela conduta, segundo a teoria naturalística, verifica-se que
Fato Típico - 75

os tipos serão materiais, formais ou de mera conduta.

Material ou crime de resultado é o crime cujo tipo legal de crime contém a


descrição de uma conduta e de um resultado, e que somente se consuma com a
produção do resultado. Homicídio, lesão corporal, aborto, furto, roubo, estelionato são
todos crimes materiais, pois que os tipos descrevem condutas, resultados e exigem,
para sua consumação, que o resultado seja produzido. Sem o resultado, remanesce
apenas a tentativa.

Formal é o crime cujo tipo descreve uma conduta, menciona um resultado, mas
não exige que este ocorra para sua consumação. São chamados de crimes de
consumação antecipada ou de resultado cortado. O tipo do art. 158, de extorsão, é o
mais perfeito exemplo de um crime formal:

“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter


para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou
deixar de fazer alguma coisa”.

Como se vê, o tipo descreve uma conduta, e menciona a produção de um


resultado: a obtenção de uma vantagem econômica indevida, mas, para a consumação
desse crime, não é necessária a produção do resultado, não é necessário que o agente
consiga obter a vantagem, bastando o constrangimento da vítima. Tal crime se
consuma no momento em que a vítima faz, tolera que se faça ou deixa de fazer alguma
coisa.

De mera conduta ou de mera atividade são os crimes cujos tipos descrevem


pura e simplesmente um comportamento, uma conduta, sem qualquer menção a
qualquer conseqüência, qualquer resultado. Consumam-se tais crimes com o simples
comportamento do sujeito, como na violação do domicílio (art. 150), no crime de
desobediência (art. 330), no de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), e na
maior parte das contravenções penais.

8.13.2 Crimes simples, privilegiados e qualificados

Classificam-se os crimes em simples, privilegiados e qualificados, em razão da


gravidade da lesão causada ao mesmo bem jurídico.

Simples é o tipo básico, fundamental, do qual derivam os outros dois, o


qualificado, mais grave, e o privilegiado, menos grave.

Há, como tipo básico, o do homicídio doloso simples, do caput do art. 121, cuja
descrição é simplesmente “matar alguém”, sem qualquer outra qualificação no sentido
76 – Direito Penal – Ney Moura Teles

de considerar o fato nem mais, nem menos grave.

Derivados dele há três tipos de homicídio doloso privilegiado, que se encontram


descritos no § 1º do art. 121:

a) cometido por motivo de relevante valor social;

b) cometido por motivo de relevante valor moral;

c) cometido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta


provocação da vítima.

Os tipos privilegiados, derivados do tipo simples, contêm elementos


especializantes que tornam o fato merecedor de menor reprovação, por constituírem
fatos menos graves que o fato básico. São circunstâncias que tornam o fato menos
grave, ainda que o resultado não se altere. Dizem respeito a circunstâncias de natureza
subjetiva que levam a uma menor ou mais branda punição. No caso do homicídio, a
pena do tipo básico é diminuída de 1/6 até 1/3.

Já os tipos qualificados são, exatamente, o oposto, derivando do tipo básico,


especializam-se por conterem circunstâncias, objetivas ou subjetivas, que fazem
aumentar o grau de reprovação do fato. Derivam do homicídio doloso simples vários
tipos de homicídio qualificado, descritos no § 2º do art. 121, cometidos:

a) mediante paga, promessa de recompensa, por outro motivo torpe; por motivo
fútil;

b) com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio


insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou
mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido;

c) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro


crime.

Os tipos qualificados exigem maior reprovação, maior reprimenda penal, em razão


das circunstâncias especializantes que os tornam mais graves, seja pela motivação, seja
pela forma de execução, seja pela conexão finalística com que age o sujeito. Há, ainda,
derivados dos tipos simples, básicos, os qualificados pelo resultado, dos quais já se
falou anteriormente.

8.13.3 Crimes comuns, especiais, próprios e de mão própria

Crimes comuns são os definidos no Direito Penal comum, que é o aplicado pela
Fato Típico - 77

justiça comum, e crimes especiais, os descritos na legislação penal especial – os crimes


militares, os crimes de responsabilidade, os crimes eleitorais.

Diz-se, ainda, comum o crime praticado por qualquer pessoa, e próprio o


praticado por pessoa que tenha uma condição ou qualidade pessoal própria, como o
funcionário público.

De mão própria o crime que só pode ser cometido pelo sujeito, pessoalmente,
como no caso do delito tipificado no art. 342 do Código Penal:

“Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha,


perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, policial ou
administrativo, ou sem juízo arbitral.”

Tal fato típico só pode ser cometido pela testemunha, ou pelo perito, ou pelo
contador, ou pelo tradutor, ou pelo intérprete. Estes não podem cometê-lo por meio de
interposta pessoa; por isso, são chamados crimes de mão própria, porque por outra
mão não se pode fazer o que se faria.

8.13.4 Crimes políticos e de responsabilidade

São chamados crimes políticos os que atingem a segurança, interna ou externa,


ou o ordenamento político do país, ou ainda os que tenham motivação de natureza
política.

Crimes de responsabilidade são os praticados pelo Presidente da República,


Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, pelo Procurador-Geral
da República, pelos Governadores de Estados e do Distrito Federal e seus Secretários,
Prefeitos e Vereadores, definidos em leis especiais, e dizem respeito a infrações
político-administrativas desses sujeitos.

8.13.5 Crimes de dano, de perigo e de opinião

Crime de dano é o que se consuma com a produção de um resultado, que é a


modificação do mundo externo causada pela conduta, como ocorre no homicídio, na
lesão corporal, no roubo, no furto, no estelionato.

Crime de perigo é o que se consuma com a existência da probabilidade da


ocorrência de um resultado naturalístico. É o que ocorre nos delitos tipificados nos arts.
130, de perigo de contágio venéreo, 131, 132 etc.

Crime de opinião é o que consiste no abuso da liberdade de expressão do


78 – Direito Penal – Ney Moura Teles

pensamento, como a calúnia, a injúria, a difamação, cometidos com o uso da palavra,


do gesto, com instrumento de comunicação da expressão do pensamento.

8.13.6 Crimes instantâneos, permanentes e instantâneos de


efeitos permanentes

Crime Instantâneo é o que se consuma em determinado instante, num único


momento, não havendo continuidade temporal. Quando alguém profere calúnia contra
outrem, mediante o uso de uma única frase, atribuindo-lhe a prática de um fato
definido como crime, tal crime é instantâneo, assim como o é aquele homicídio em que,
disparando o tiro e alvejando a vítima, esta morre imediatamente. O homicídio foi
instantâneo.

O Crime Permanente é aquele cujo resultado continua no tempo, com a


prolongação, no tempo, de seu momento de consumação. É o que acontece no tipo do
seqüestro ou cárcere privado, definido no art. 148, “privar alguém de sua liberdade,
mediante seqüestro ou cárcere privado”. Seu momento consumativo perpetua-se, é
permanente.

Crime Instantâneo de Efeitos Permanentes é o que, após consumado, tem suas


conseqüências perpetuadas. Na verdade, a consumação ocorreu, mas continua
produzindo suas conseqüências, como o homicídio, o furto, o roubo.

8.13.7 Crimes complexos

Diz-se complexo o crime cuja descrição é formada por dois ou mais tipos, seja
com a junção de dois tipos que formam um terceiro, seja com um tipo que integra o
outro como circunstância qualificadora.

O tipo definido no art. 159, Código Penal, “seqüestrar pessoa com o fim de
obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”,
é a junção do tipo do art. 158, “constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica,
a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”, com o tipo do art. 148, “privar
alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.

8.13.8 Crimes hediondos

A Constituição de 1988 determinou ao legislador ordinário que definisse e


Fato Típico - 79

considerasse inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia os crimes hediondos,


equiparando-os à prática da tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e
ao terrorismo.

Para cumprir o mandamento constitucional, o Congresso Nacional decretou e o


Presidente da República sancionou a Lei nº 8.072, em 25-7-1990, e depois a Lei nº
8.930, em 6-9-1994, as quais consideram hediondos os seguintes crimes e suas
tentativas: “homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de
extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, §
2º, I, II, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte
(art. 158, § 2º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e
§§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo
único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), e os tipos de genocídio
definidos nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º-10-56”.

O legislador brasileiro, ao cumprir o mandamento constitucional, talvez pela


pressa e diante de fortes pressões – encontrava-se o Congresso Nacional sob pressão da
mídia eletrônica, na ânsia de atender aos reclames da camada mais rica da população,
que assistia ao seqüestro, para fins de extorsão, de alguns de seus mais importantes
representantes –, preferiu selecionar alguns tipos já definidos em lei vigente, e rotulá-
los de hediondos, em vez de apresentar uma noção explícita do que seria a hediondez
que caracterizaria tais crimes.

Hediondo, portanto, segundo a lei, não é, necessariamente, o crime sórdido,


abjeto, repugnante, asqueroso, mas todo e qualquer crime relacionado na lei, ainda que
não seja hediondo no sentido verdadeiro dessa expressão. Por exemplo, se alguém
cometer uma lesão corporal de natureza grave, ou gravíssima – extirpando um membro
da vítima – ou um aborto, sem consentimento da gestante, sordidamente, provocando
sofrimento indizível na vítima, por motivo repugnante, de modo horroroso, com
depravação, não cometerá crime hediondo.

Se o indivíduo cometer, todavia, um homicídio à traição, sem motivo fútil, nem


torpe, mas por um motivo até compreensível, só pela traição, terá cometido um crime
hediondo.

Andou muito mal o legislador brasileiro, ao elaborar, apressadamente, sem


discussão prévia, uma lei cujas conseqüências são tão graves, e que impõe graves
restrições aos direitos e garantias individuais dos acusados da prática de crime, bem
assim aos por eles condenados.
80 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.13.9 Crime organizado

LUIZ FLÁVIO GOMES, comentando a Lei nº 9.034, de 3-5-1995, que “dispõe


sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações
praticadas por organizações criminosas”, entende que a lei definiu a “organização
criminosa” como forma delituosa autônoma, criando uma nova tipologia, que dá um
conteúdo mínimo para os tipos de crime organizado – o tipo do art. 288, Código Penal
– e deixando para o intérprete, o juiz, a tarefa de realizar a complementação conceitual.

Para ele, qualquer tipo, de furto, roubo, homicídio, estelionato etc., pode ser
considerado organizado, desde que sejam resultantes de atividades de uma
“organização criminosa”, dizendo, ainda, que

“há, destarte, o crime organizado por natureza (que consiste na associação de


quatro ou mais pessoas, de modo estável e permanente, para cometer crimes,
de modo organizado, isto é, sofisticado – o plus caracterizador da
‘organização’ deve ser buscado pelo aplicador da lei na realidade
criminológica – (...), assim como o crime organizado por extensão (que é o
decorrente ou resultante de ação da organização criminosa)”22.

Apesar das colocações do jurista paulista, o certo é que a Lei nº 9.034/95 não
veio nem quis definir o crime organizado, mas apenas buscar a regulação dos meios de
prova e procedimentos de investigação acerca de crimes resultantes de ações de
quadrilha ou bando, como claramente está disposto em seu art. 1º: “Esta Lei define e
regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime
resultante de ações de quadrilha ou bando.”

A utilização reiterada, nos arts. 2º e 4º a 10, da citada lei, da expressão


organizações criminosas, desacompanhada de qualquer conceituação, não pode ser
interpretada como criação de novos tipos de crime, sob pena de violação do princípio
da legalidade. Se é claro que o princípio convive com a existência de tipos abertos,
estes, contudo, somente são construídos quando houver extrema necessidade de, para a
proteção dos bens jurídicos, deixar certa margem de liberdade para o juiz cerrá-los,
completando a vontade da lei. Aliás, mesmo os tipos abertos – como os culposos – para
serem cerrados, fechados, precisam de uma norma geral clara e definida, como a do art.
18, II, do Código Penal. O tipo aberto exige chave precisa para fechá-lo.

22 GOMES, Luis Flávio; CERVINI, Raúl. Crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 77.
Fato Típico - 81

Só haveria a criação de tipos abertos de crimes organizados – propriamente ditos


ou por extensão – se a lei contivesse uma regra geral para que o juiz os fechasse.

Além disso, para alcançar as atividades de organizações criminosas, a lei não


necessitaria construir tipos abertos e, se fosse essa sua intenção, não teria dito, no art.
1º, que sua finalidade é tratar de meios de prova e de procedimentos investigatórios
sobre crimes resultantes de ações de quadrilha ou bando.

Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, infelizmente, ainda não existe a


figura do crime organizado.

8.13.10 Crimes de menor e de médio potencial ofensivo

Atendendo ao mandamento do art. 98, I, da Constituição Federal, a Lei nº


9.099, de 26-9-1995, em seu art. 61, definiu os crimes de menor potencial ofensivo
aqueles “a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos
em que a lei preveja procedimento especial”.

A mesma lei, no art. 89, instituiu, no ordenamento jurídico brasileiro, a


suspensão condicional do processo, para os crimes cuja pena mínima cominada seja
igual ou inferior a um ano.

Com a vigência da Lei nº 10.259, de 12-7-2001, que instituiu os Juizados


Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, o conceito de crime de
menor potencial ofensivo foi ampliado, para alcançar os crimes punidos com pena
máxima igual ou inferior a dois anos (art. 2º, parágrafo único). É lei posterior mais
benéfica, lex mitior, que deverá aplicar-se a todos os casos, não apenas aos de
competência da Justiça Federal.

Com base na lei, podem-se definir os crimes de menor potencial ofensivo como
aqueles cuja pena máxima cominada não seja superior a um ano, e crimes de médio
potencial ofensivo como aqueles cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano,
excluídos os de menor potencial ofensivo.

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