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A GUERRA FRIA E A BIPOLARIDADE

I – INTRODUÇÃO
Primeiramente cabe aqui fazer uma consideração sobre o conceito em si.
Habitualmente refere-se à Guerra Fria como um conflito que em múltiplas variantes
opunha norte-americanos e soviéticos. Dos esportes à exploração espacial, das forças
militares às ideologias, dos sistemas econômicos às organizações políticas, esta rivalidade
perpassava diferentes níveis e aspectos, unidos porém na noção de conflito.

Mas talvez caibam outras interpretações sobre o período. A primeira diz respeito a
guerra fria como uma forma de convergência de interesses, mutuamente recíprocos em
termos da preservação dos respectivos status quo: da mesma forma que as aspirações
sociais na América Latina foram vistas como manifestações de comunismo, os posteriores
movimentos de oposição ao governo soviético por parte dos húngaros (1956) ou tchecos
(em 1968), foram apresentados como ações provocativas de capitalistas, justificando-se a
repressão contra eles. Em ambas situações, a guerra fria servia como pretexto para que os
EUA e a URSS mantivessem suas áreas de influência sob controle. O conflito, aqui, era um
acordo entre as superpotências.
Também podemos entender o período como uma oportunidade para que as demais
potências – ainda que coadjuvantes – fossem isoladas e mantidas submissas às duas
superpotências.
Mesmo a temporalidade que envolveu a rivalidade entre soviéticos e norte-
americanos não é vista de forma unânime, com seu início variando de 1945 – com os
ataques nucleares ao Japão -, 1947 – com a doutrina Truman de contenção ao comunismo –
e ainda, 1949, com a detonação de uma bomba A soviética, rompendo o monopólio nuclear
americano, então vigente.

II – DESENVOLVIMENTO
Justificando-se à partir das guerras civis então em curso na Grécia e Turquia, onde
os comunistas aparentavam estar perto da tomada do poder nestes países, o presidente
Henry Truman anunciou a nova orientação da diplomacia dos EUA: conter o
expansionismo soviético aonde fosse. Apenas um detalhe: Stálin, voltado para a
reconstrução da URSS após a guerra, ciente do poderio militar e econômico norte-
americano e sem nenhuma intenção de provocar um atrito com os EUA, não moveu uma
palha para ajudar os comunistas grego-turcos; logo, o pretexto de Truman era uma
manipulação.
Seguiriam-se então o Plano Marshall de reconstrução européia, a unificação das
zonas de ocupação americana, inglesa e francesa na Alemanha e Berlim – originando a
constituição da República Federal Alemã (RFA), e uma aliança militar: a OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte).
A reação soviética a estes eventos foi equivalente. Por meio do COMECON buscou
criar no leste europeu um “mercado” privilegiado e voltado para a consolidação do
socialismo. Formou-se uma aliança rival à OTAN, o chamado Pacto de Varsóvia. Os
governos do leste foram “sovietizados”, incorporando-se às estruturas produtivas, sociais e
políticas da própria URSS. E em resposta pela formação da RFA, Stálin patrocinou a
formação de uma Alemanha Oriental pró-soviética (RDA).
Enquanto as relações se deterioravam os EUA iniciavam a chamada “caça às
bruxas” e o macartismo – intensificados pela competição nuclear e denúncias de traição e
espionagem por toda parte. No leste, o bloqueio de Berlim, a Revolução Chinesa, a guerra
da Coréia e o início do conflito no Vietnã, também apontavam para uma espiral de conflitos
sempre em expansão.
Mas na década de 50, a morte de Stálin e o início da desestalinização, a
aproximação soviética com os EUA, o rompimento sino-soviético, o Sputnik, o
desenvolvimento dos mísseis intercontinentais e o das armas nucleares para outro patamar –
o advento das bombas de hidrogênio -, levaram a uma redefinição das relações entre as
superpotências: a Coexistência Pacífica.
Mas ao contrário da expressão, a política de convergência de interesses continuou
associada com a persistência das crises: a revolução cubana, a descolonização afro-asiática,
as guerras árabe-israelenses, etc. Por sinal, a crise dos mísseis de 1962 colocou o mundo à
beira da guerra nuclear, embora terminasse com o recuo soviético.
Internamente a URSS não alcançou os resultados esperados. Enfraquecido no front
econômico, isolado pela linha dura no PCUS e amargando a humilhação do desfecho da
crise cubana, Kruschev acaba afastado, inicialmente por uma tróika composta por Brejnev,
Podgorny e Kossigyn, tornando-se o primeiro, posteriormente, o único detentor do poder.
Na década de 70 enquanto o Kremlin implementava a Deténte ou degelo – um
prosseguimento da Coexistência sob outra denominação – a URSS seguiu ampliando suas
forças militares convencionais e estratégicas, enquanto ia fincando pé em Angola,
Moçambique, Etiópia e sul da África. Reforçou sua presença no Caribe, apoiou
movimentos guerrilheiros na Nicarágua, El Salvador e Honduras, reforçou o contingente
militar em Cuba, financiou a construção de um grande aeroporto de uso militar em Granada
e flertou com o governo surinamês, bem como ocupou o Afeganistão e enquadrou seus
“satélites” na Europa do leste.
Por outro lado, os EUA enfrentavam um declínio militar após o fiasco no Sudeste
Asiático, e representado pela expulsão do Irã e a queda de aliados nas Filipinas e
Nicarágua, além da crise econômica mundial decorrente dos choques do petróleo. A
prioridade do governo Carter em favor dos direitos humanos foi vista como o abandono de
“amigos” anticomunistas e uma oportunidade da URSS de aproveitar a falta de vontade dos
EUA.
A década seguinte foi marcada pela ascensão de Ronald Reagan e a retomada da
Guerra Fria com uma nova e mais dispendiosa corrida armamentista. Proclamando ser a
União Soviética o “império do mal”, a Casa Branca implementou um grande programa de
investimentos em mísseis de médio alcance a serem posicionados na Europa (os Pershing),
um novo tipo de arma nuclear – a bomba de Nêutrons -, novos aviões de bombardeio
estratégico (o B-1), submarinos nucleares mais sofisticados, devastadores e silenciosos, etc,
além do dispendioso programa denominado de Guerra nas Estrelas ou Iniciativa de Defesa
Estratégica, que previa o desenvolvimento de sistemas de observação mais avançados
complementados com armas de raios instalados no espaço ou não e destinadas a destruir os
mísseis inimigos antes de atingir o território dos EUA ou seus aliados.
Estes programas representavam gastos de bilhões de dólares e compensariam, pela
inclusão de tecnologia de ponta, a disparidade militar convencional do Pacto de Varsóvia.
No Caribe/América Central, forneceram-se recursos militares, logísticos e financeiros para
deter as guerrilhas em El Salvador e Honduras e impedir os sandinistas nicaragüenses de se
consolidarem no poder, mediante apoio e estímulo aos denominados Contras numa guerra
civil, além de invadir o Panamá e Granada. No Oriente Médio, com anuência e aval norte-
americano, o Iraque de Saddam Hussein foi a guerra contra o Irã revolucionário islâmico,
enviaram-se forças militares para o Líbano, confirmaram-se os vínculos com Israel e as
petromonarquias aliadas no Golfo Pérsico. No Afeganistão começaram a apoiar os
guerrilheiros islâmicos contra o invasor soviético, transformando-o no “Vietnã russo”. A
Líbia foi bombardeada e seu governante por pouco não foi morto no ataque aéreo norte-
americano. Na Europa, enviaram-se mais armas e soldados para o contingente dos EUA na
OTAN.
Pressionada a gastar mais recursos para manter a superioridade militar do Pacto de
Varsóvia e ao mesmo tempo incluir mais tecnologia de uso militar, a economia soviética foi
perdendo fôlego. Sob pressão da Casa Branca sobre organismos financeiros internacionais
e aliados políticos, a URSS foi ficando isolada e enfrentando diferentes pontos de
estrangulamento: produção de cereais insuficientes, limitações comerciais e de acesso a
tecnologia, escassez de bens de consumo de todos os tipos, etc.

III – O DESFECHO
Enquanto o belicismo norte-americano colocava a União Soviética contra a parede,
os problemas relacionados a gerontocracia e nomenklatura forçavam o Kremlin a lidar com
a perspectiva de reformas.
Sob Gorbachev, as mudanças econômicas teriam resultados de longo prazo, se
tivessem sucesso. Tomando a iniciativa de congelar a corrida armamentista, reabrir
negociações de limitações de armas estratégicas, retirando-se do Afeganistão e do leste
europeu, reduzir os contingentes militares e assistir a desintegração do Pacto, ele esperava
que tais medidas, em seu conjunto, representassem uma grande redução dos gastos
militares. Enquanto o governo soviético sinalizava que sua prioridade eram os assuntos
internos, a própria dinâmica de desmantelamento do regime levaria à desintegração
soviética em 1991.

Quem venceu a Guerra Fria?


A propaganda norte-americana valoriza, evidentemente, os EUA, mas há que se
lembrar que em todos os assuntos que envolveram posteriormente a Europa Oriental, o sul
da Rússia, as fronteiras iraniana, afegã e chinesa, os russos sempre foram consultados. Eles
continuaram presentes em todas as negociações que envolveram o Irã, o Iraque e a Coréia
do Norte. As duas guerras da Chechênia, a segunda em particular, transcorreram
praticamente sem intervenção ocidental. E a expansão da OTAN para o leste pela inclusão
de ex-membros do Pacto de Varsóvia, provocou desnecessariamente os russos, de forma a
estimular o governo de Vladimir Putin a retomar a retórica e as ações que enfatizam o
poder militar da Rússia, o que culminou com a recente intervenção na Geórgia. Esta ação,
mais que demonstrar aos georgianos quem é que manda, serviu para mandar um recado ao
mundo: a Rússia não está disposta a assistir movimentações em sua área de influência, sem
que seus interesses sejam considerados.
Para alguns a Guerra Fria retornou; para outros, nunca acabou.

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