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CAPÍTULO 28 existimantur (D. 28.2.11).

Pelos romanos da época clássica, conservadora das ideias tra-


dicionais dos tempos passados, a sucessão dos filhos era caracterizada,
SUCESSÃO ("SUCCESSIO IN UNIVERSUM IUS") ainda, como toda especial: não como aquisição da herança, mas, sim,
como aquisição da livre administração daquela: itaque post mortem paíris
non hereditatem percipere videntur, sed magis liberam bonorum
administrationem consequuntur (D. 28.2.11).
A sucessão dos sui heredes, isto é, das pessoas livres que passavam
CONCEITO E BREVE HISTÓRICO de alieni iuris a sui iuris pela morte do paterfamilias, era considerada tão
Os direitos e obrigações patrimoniais geralmente não se extinguem natural na mente dos romanos, que nem a regularam expressamente: a Lei
das XII Tábuas continha disposições apenas para o caso de eles não
pela morte de seu titular, ao contrário do que acontece com outros
direitos e obrigações pessoais e de direito público. Deste último tipo são existirem: si intestato moritur, cuius suus heres nec escit... (T. 5.4).
Não havendo descendentes, podia a família extinguir-se com a
os direitos decorrentes de relações familiares ou da posição do defunto
para com a organização política do Estado. morte do paterfamilias. Em tal caso, o culto dos deuses do lar não
subsistiria, e, com isso, deixaria de existir, também, o centro de ati-
Os romanos chamavam succedere in ius a passagem de todos os
direitos e obrigações transmissíveis do defunto a uma outra pessoa, seu vidade agrícola que era, nesses tempos primitivos, a família.
Para evitar que isso acontecesse, praticava-se ou a adrogatio ou a
sucessor.
designação solene do herdeiro, perante o corpo político do Estado, na
A palavra hereditas significava tanto o processo desta passagem,
mesma forma da adrogatio, que se chamava testamentum comitiis calatis:
como o seu objeto, isto é, o património do defunto, transmitido ao
eis a origem da escolha voluntária do sucessor.
sucessor.
A esta forma de nomeação de sucessor se juntou, mais tarde,
Destarte, na mente dos romanos, até a época bizantina, o conceito
outra, menos complicada e mais prática: por meio do ato per aes et
se restringia ao de sucessão universal, isto é, de toda a herança.
libram.
Foram os bizantinos, da época de Justiniano, que introduziram o
Por outro lado, a Lei das XII Tábuas previa o caso de inexistência
novo conceito da successio in singulas rés, isto é, o da transferência de
de testamento, e determinava a linha dos sucessores, como já mencionamos
determinados direitos ou obrigações de um para outro sujeito de direito.
acima.
Esse novo conceito bizantino se contrapunha ao da successio in Em fase ulterior dessa mesma evolução, introduziu-se a liberdade
universum ius, que para eles se referia a um corpus quod ex dis-tantibus de testar do paterfamilias, dando-se-lhe poderes para dispor, livremente,
constat, isto é, à coisa coletiva, que era o conjunto dos direitos e de seu património, o que a Lei das XII Tábuas já previa.
obrigações do defunto.
Na ordem natural das coisas, a família sobrevivia ao defunto. Os HERANÇA (Hereditas)
sucessores naturais do pai eram seus filhos, na consciência social de
outrora, como o são em nossos tempos. Como já explicamos, significava, além do processo de sucessão,
Daí que, originariamente, no direito romano, tal sucessão se restringia principalmente o objeto dela: os direitos e obrigações transmissíveis. Não
exclusivamente aos filhos. eram consideradas transmissíveis as servidões pessoais, como o usufruto, o
173 uso; a posse; algumas relações obrigacionais, como o man-
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Eles eram considerados, conforme atestam as fontes romanas,


como quase donos, mesmo em vida de seu pai, na expectativa de
receber, futuramente, a herança: etiam vivo patre quodammodo do~ mini
dato, a sociedade; as obrigações delituais; as actiones vindictam spi-
rantes, que visavam obter uma satisfação pessoal pelo próprio ofendido,
como em caso de injúria etc. o seu direito à herança como decorrente da ordem natural das relações
Os demais direitos e obrigações constituíam o património trans- familiares), foi-se restringindo no direito romano mais evoluído. Primeiro
missível. Conforme o balanço entre o ativo e o passivo patrimonial, a exigia-se que o testador incluísse seus parentes mais próximos no
herança podia ser, também, ativa ou passiva (neste último caso se' testamento. A inclusão era, inicialmente, uma exigência formal, porque
chamava damnosa hereditas), pois o herdeiro, substituindo a pessoa do significava que o testador tinha que mencioná-los no testamento,
defunto também nas suas obrigações, arcava com as dívidas deste. nomeando-os herdeiros ou deserdando-os. Só depois, numa segunda fase,
Todo o património passava universalmente (per universitatem) ao foram introduzidas regras com a finalidade de assegurar, a esses
herdeiro ou aos herdeiros, que sucediam em todos os seus direitos e parentes próximos, uma participação real na sucessão, que o testador
obrigações ao defunto: is de cujas hereditate agitur (aquele de cuia não podia desrespeitar.
herança se trata). Daí a denominação moderna do defunto: de cuius. Daí uma terceira forma de sucessão: contra o testamento (suc-cessio
No caso de pluralidade de herdeiros, cada um sucedia ao de cuius no contra tabulas).
património todo, sendo os direitos e obrigações de cada herdeiro Característica típica da sucessão romana era que a legítima e a
limitados apenas pelo concurso dos demais, cabendo a todos alíquotas testamentária se excluíam uma à outra: nemo pró parte testatus pró parte
ideais, sem divisão real: concursu partes fiunt. intestatus decedere potest (cf. Inst. 2.14.5). Nomeado herdeiro, embora o
As dívidas eram transmitidas totalmente aos herdeiros nessa hi- fosse para uma parte da herança ou para determinados bens, a
pótese. Quanto às obrigações divisíveis, eram divididas entre eles-em sucessão se abria com base no testamento: consequentemente era ele o
caso contrário ficavam os herdeiros devendo em comum. único herdeiro e seu direito se estendia a todo o património do de cujiís;
A responsabilidade do herdeiro, no direito romano clássico era os herdeiros legítimos não podiam concorrer com ele, a não ser em
pessoal e ia além do ativo da herança. Respondia com seu próprio obediência às regras da successío contra tabulas.
património, como se tivesse ele próprio contraído o débito. A mesma exclusividade se aplicava, também, aos testamentos entre
si: valia só o último. Testamento posterior derrogava o anterior, mesmo
ABERTURA DA SUCESSÃO (Delatio hereditatis) quando dispunha apenas sobre parte da herança,
Distinguiam-se, no direito romano, a fase da abertura da su-
cessão, em que ela era deferida, oferecida ao sucessor, e a fase da AQUISIÇÃO DA HERANÇA (Âcquisitio hereditatis)
aquisição daquela.
A aquisição da herança se fazia ipso iure ou por expressa manifestação
Abria-se a sucessão pela morte do de cufus. Oferecia-se, então a da vontade, dependendo da qualidade do herdeiro, que poderia ser ou
possibilidade ao sucessor de adquirir a herança: delata hereditas suus heres ou heres extraneus.
intelligitur, quam quis possit adeundo consequi (D. 50.16.151). Os st ti heredes, íncluindo-se nesta categoria, além das pessoas livres
Duas eram, e ainda hoje são, as formas de sucessão: sucessão que ficavam sui iuris pelo falecimento do paterjamilias, também os
legítima e testamentária, segundo se baseasse na lei ou na última escravos alforriados em testamento e nomeados herdeiros, adquiriam a
vontade do de cujus. herança automaticamente. Eram, pois, herdeiros necessários: o filho, o
Como já mencionamos, a sucessão legítima era a originária e a heres suus et necessarius e o escravo, o heres necessarius. Significa isto
sucessão testamentária se juntou a ela posteriormente. Entretanto no que eles adquiriam a herança sem a manifestação da vontade de aceitá-la
direito clássico, o costume fez grandemente prevalecer esta última forma, e, ainda, contra a eventual manifestação de não querer aceitá-la. Eram,
como nos provam os textos e as informações epigráficas. pois, forçados a responder pelas dívidas do espólio, mesmo além das
A liberdade de testar, princípio básico da sucessão testamentária, vantagens reais que a herança lhes oferecia: ultra vires hereditatis (cf. D.
que, porém, podia prejudicar os descendentes (considerado 29.2.8 pr). Somente o pretor amenizou a situação de tais herdeiros
175 necessários de herança passiva, concedendo a facultas abstinendi aos sui,
isto é, aos filhos e o beneficium separa-
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tionis aos necessarii, isto é, aos escravos. Pela primeira, o herdeiro que se abstinha de patrimoniais da herança. Pelo segundo, o escravo que não praticava atos de gestão
comportar-se como herdeiro era considerado pelo pretor como estranho para os efeitos relativos à herança podia conservar separados os bens adquiridos após a sua alforria,
não respondendo com eles pelas dívidas da herança. O direito mais evoluído condenou esse instituto. Os jurisconsultos clássicos o
Ê de se notar que no direito moderno os herdeiros necessários são os apelidaram de ímproba usucapio. Por fim, Marco Aurélio aboliu-o, sendo por ele a
descendentes ou ascendentes sucessíveis, aos quais pertence de pleno direito a metade ocupação de coisas hereditárias considerada um crimen expilatae hereditatis.
dos bens do testador, consoante o artigo 1.721 do Código Civil brasileiro.
No direito romano os demais herdeiros extranei, que se chamavam heredes «HEREDITAS — BONORUM POSSESSIO"
voluntarii, só adquiriam a herança com a expressa manifestação da vontade de aceitá-la,
O dualismo dos institutos do ius civile e do ius honorarium se repete no direito das
denominada aditio hereditatis.
sucessões também.
Três eram as formas da aceitação da herança pelos extranei:
A hereditas era um instituto tipicamente quiritário; por conseguinte regulado,
á) A forma antiga, formalística e solene, a cretio, mediante pronunciamento de
exclusivamente, pelo antigo costume.
formulário verbal: utilizando as palavras adeo cer-noque (Gai. 2.166).
A bonorum possessio era, como o nome indicava, a posse dos bens hereditários,
b)A aceitação tácita pela prática de atos relativos à herança:
deferida pelo pretor. Sua instituição se deve à mesma necessidade prática que orientava
pró herede gestio, da qual se deduz, implicitamente, a vontade de
o pretor na introdução desse instituto como preliminar da rei vindicaíio.
aceitar.A aceitação sem formalidades, expressa por modo diverso
No campo da sucessão, a questão referente ao título de herdeiro decidia-se mediante
dos acima referidos: aditio nuda voluntate.
uma adio in rem, chamada hereditatis pciitio, semelhante à rei vindicatio. Nela, também, a
Naturalmente, o heres extraneus podia renunciar expressamente à sucessão, o que
iniciativa cabia ao não-possuidor, contra o possuidor. Por conseguinte, nas situações
se fazia sem qualquer formalidades; bastava que a manifestação de vontade fosse
incertas intervinha o pretor para qualificar um dos contendores como possuidor. Para
evidente e clara. Não podia ser retra-tada, a não ser que se tratasse de menor de 25
esse fim, o pretor examinava, sumariamente, as circunstâncias e decidia pelo seu bom
anos, que podia pleitear a in integrum resíituíio propter minorem aetatem.
senso.
Por isso, quando as regras rígidas do direito quiritário lhe pareciam contrárias à
«HEREDITAS JACENS" E "USUCAPIO PRÓ HEREDE"
justiça e à equidade, que norteavam a atividade pretoriana, o pretor conferia a posse a
Das regras referentes à abertura da sucessão e aquisição da herança segue-se que quem julgasse merecedor dela.
podia facilmente decorrer algum tempo entre as duas. Nesse ínterim, aberta a Um interdictum quorum bonorum, concedido pelo pretor, possibilitava ao herdeiro,
sucessão, mas ainda não aceita a herança, o que, naturalmente, só podia ocorrer no caso como tal considerado por esse magistrado, entrar na posse dos bens hereditários de
de heres extraneus, o património do de cujus ficava sem dono, porque já não era deste quem os retivesse indevidamente (eis mais um interdito para adquirir a posse nunca
(embora representasse a sua pessoa: hereditas personam de-functi susíínet) e ainda não tida, incluído na categoria dos interdicta adipiscendae possessionis causa).
era do herdeiro. Chamava-se herança jacente: hereditas jacens. Naturalmente, tal posse, concedida pelo pretor, não era definitiva. Só pelo
Tratava-se de um património em situação toda especial: a de pendência, de usucapião assim se tornava. Antes de decorrer o respectivo prazo, o herdeiro quiritário
transição. podia exigir a herança e ganhava

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Com relação à herança jacente há que mencionar um instituto curioso,


controvertido e bastante antigo, a usucapio pró herede. A posse, durante um ano, de
uma coisa pertencente à herança, gerava propriedade (embora houvesse imóveis na
herança, pois esta era uma das ceterae rés, na linguagem da Lei das XII Tábuas). Por ela,
ad-quiria-se, também, a posição de herdeiro e, em consequência, toda a herança. Esse
usucapião não exigia nem iusfus titulus nem bona fides.
a causa. Nessa fase, então, a bonorum possessio era sine ré, isto é, sem efeito contra o
ius cívíle.
Mais tarde, ao completar, suprir e corrigir o direito quiritário (adjuvandi, supplendi
vel corrigendi iuris civilis grafia — D. 1.1. 7.1), estabelecia o pretor novas regras
referentes à vocação hereditária, que prevaleciam sobre as regras do ius civile. Passou,
então, o instituto da bonorum possessio a ser cum ré, isto é, ter força contra o direito
quiritário.
Por esse meio, o pretor introduziu, na sucessão romana, profundas modificações,
que serão estudadas nos devidos lugares.
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