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Revita Faculdade se Letras SLINGUAS. FE LITERATURAS® Porto, XVI, 1999, pp. 23-45 O SIMBOLISMO DO CENTRO NAS NARRATIVAS. MARAVILHOSAS (NOTAS INTRODUTORIAS) * Durante toda a vida, tem de se continuar @ aprender a viver e, 0 que vos espantaré ‘ainda mais, durante toda a vida tem de se aprender a morrer. Seveca Era uma vez um rabino de Cracévia chamado Eisik que, um dia, teve um sonho que o mandava ir a Praga. Ai, debaixo da ponte que leva ao pali- cio real, encontraria um tesouro escondido. Como o sonho se repetisse trés vezes, 0 piedoso homem decidiu-se a partir. Uma vez chegado a Praga, deparou-se-Ihe a ponte guardada dia e noite por sentinelas. O capitio dos guardas estranhou a sua presenca e perguntou-lhe ao que vinha. Com toda a simplicidade, o rabino relatou-Ihe o sonho recorrente, tendo 0 oficial reagido com gargathadas efusivas. E que ele proprio ~ que, de modo algum, acredi- tava em sonhos ~ ouvira uma voz durante a noite dizendo-Ihe que fosse a Cracévia procurar um tesouro escondido em casa de um rabino cujo nome era Eisik. O tesouro encontrava-se num canto poeirento, enterrado por detrés do fogio. Como pessoa de juizo que era, nem sequer atribuira ao sonho qual- quer valor. Despediu-se 0 homem piedoso do capitiio. Regressou a casa e, ali mesmo, por detris do fogao, escavando, descobriu 0 tesouro que pés fim a sua miséria, A semelhanga de mattiplas narrativas do folclore universal, esta historia hassidica relatada pelo indianista Heinrich Zimmer ' permite reflectir sobre * Esta reflexdo constitui a parte inicial da andlise de alguns contas de fadas, contos populares € mitos feita com base na simbélica do Centro. A segunda parte seré publicada em breve. "A partir dos Khassidischen Bucher de Martin Buber. 23 MARIA DO ROSARIO PONTES um dos mitos omnipresentes em todas as tradigdes e culturas ~ 0 mito da demanda, da peregrinagio, da viagem, da “quéte” ~ e aprender que, qual= quer que seja a deambulagdo exterior a que o homem se entregue, ela no é mais que um substituto (quantas vezes um sucediineo!) da verdadeira viagem interior, aquela de que falam todos os contos, mitos e lendas, que se encon- tra reproduzida nas nossas experiéncias oniricas e nas intimeras actividades artisticas a que o homem se entrega. Afinal, tal como para Eisik, 0 rabino de Cracévia, 0 verdadeiro tesouro, aquele que pde fim as nossas provacées & misérias, nunca se encontra muito longe: quase sempre ele jaz nos recantos mais intimos € poeirentos da nossa prépria casa, ou seja, na interioridade do ‘nosso ser. Descobri-lo nao exige a partida para um pais longinquo, a menos que isso simbolize o mergulhio na imensidade do nosso coragao, a descida as profundezas da nossa psique. Ai, sim: 0 Centro que fornece a vida e o calor que orientam a nossa existéncia, oferece essa viagem ao encontro da voz inte- rior misteriosa que guia toda e qualquer procura. Nas narrativas maravilhosas, tal encontro ~ do ser com o seu centro, 0 1né mais intimo da sua consciéncia, a conquista da felicidade e harmonia supre~ mas ~ conhece inimeras metéforas: a do casamento do principe e da princesa, a descoberta de um tesouro perdido pelo filho mais novo do rei, a libertagio do reino de um dragtio ou gigante, a recuperagao — pelo monarca ~ da satide perdida apés ter ingerido um gole do e simbolismo da procura de um Graal que representa a etapa iltima e funda- mental do encontro com o sagrado interiorizado, 0 mesmo & dizer, com as raizes mais profundas de cada um de nds ?. ir da longa vida, em suma, todo o “Le Centre” est donc la zone du sacré par excellence, celle de la réalité absolue. Parellement, tous les autres symboles de réalité absolue (Arbres de Vie et d'Immortalité, Fontaine de Jousence, tc) se trowvent eux aussi en un Centre. La route menant au centre est une “rowe difficile” (dérohana) et cela se virfe & tous les niveau durée: circon- volutons diffculteuses d'un temple (..): pelerinage aus lew saints (..): pérégrinations pleines de dangers des expéditions héroiques de la Toison d'Or, des Pommes d'On de Herbe de Vie, ete: égarements dans lelabyrinthe;diffcultés de celui qui cherche le chemin vers le soi, vers le “centre” de son ere, etc. Le chemin est ardu, semé de périls, parce «qui est, en fait, un rite de passage du profane au sacré; de l'iphémére et de Vllusoire 1a réalité eta Uéternité; de ta mort a la vie; de U'homme & la divinité. L'aceés au “cen- ire" équivaut a une conséeration, une initiation; & une existence, hier profane et illu sire, succide maintenant une nowvelle existence, réelle, durable et effcace. In Eliade, Mircea, Le mythe de !temel retour, Paris, Ed, 1dées'Gallimard, 1968, p. 30 24 0 SIMBOLISMO DO CENTRO NAS NARRATIVAS MARAVILHOSAS Para Jung ¢ 05 seus discipulos, tal encontro obedece a um ritual (o processo de individuagao)? que, tendo como protagonista eleito a psique P isto)? qh individual (na qual se plasma muito do psiquismo colectivo), conduz esta a0 iélogo ultimo com o “Si”, ou seja, a uma exigéncia de interioridade e inti- midade onde se confundem a profundidade do individuo ¢ 0 (re)encontro pleno com as suas origens, com a sua totalidade animica, Mas para o homem contemporaneo tal encontro ¢ vivide intmeras vezes — como desencontro: a nostalgia do paraiso, experimentada outrora como 0 acesso incondicional a um estado edénico, isento de rupturas e de quedas, enquanto regresso a uma época primeva —a Idade do Ouro -, tempo em que a humanidade nao conhecia a morte, em que 0 homem compreendia a lin- guagem dos animais e com eles vivia em paz, em que, posta de parte qual- quer necessidade de sobrevivéncia, os seres comungavam com a divindade num estado de beatitude e de pureza inaugurais — vive-se agora na procura desenfreada de viagens exéticas a paises longinquos que, num ritmo crescente ¢ frenético, as agéncias de viagens fornecem “A la carte” a todos nés que, actualmente, confundimos o elixir da imortalidade com a agua poluida dos nossos mares € rios. De uma forma breve e sucinta, iremos pois apresentar, nesta reflexio, algumas consideragdes em torno de um simbolismo que os homens actuais, parecem querer negar ou terdo esquecido — 0 simbolismo do Centro — ser vindo-nos para tal de certos aspectos fundamentais inseridos na psicologia analitica junguiana que teve o privilégio de desenvolver a simbélica do Centro enquanto descoberta do ““Si-mesmo”, (reJencontro ~ através de uma estrutura psicolégica comum a toda a humanidade — com o estado de unificacao do ser, com a fonte dindmica, principio meta de toda a vida psiquica, sede do equi librio e da maturidade ontoldgica do individuo. Da sempiterna procura do Principio nos falam as figuras miltiplas que, de um modo enfitico e recorrente, abundam em todas as culturas, desde as 3 Na sua obra La Foie de la transformation (Paris, La Fontaine de Pierre, 1980), um estudioso de Jung, Etienne Perrot, resume assim © pensamento deste a tal propésito: (.) franchissement d'une succession de seuils qui ne vise & rien de moins qu'a une transfor ‘mation de Uetre (..} la démarche par laquelle lindividu sort du cadre social, collectif. pour réaliser son destin propre, individuel, dont il est prégnant. (p. 37). E acrescenta: Dans fa seconde partie de son oewvre, (..) Uindividuation (..) est a réintegration dans I'unité pri- mordiale et ultime, la cessation de la division, des dualités, des oppositions, comme la libération hindowe est nirdvandva (non-dualité), équivalem sémantique d individuation. (ibidem) 25

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