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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarías á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questdes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
fiemo
índice

DUZENTAO 325

Sinals dos tempos:


AÍNDA O SURTO RELIGIOSO NA U.R.S.S 327

Setor de conleslacáo:
ÉTICA SEXUAL E VIDA MODERNA 337

Dentro da sociedade de consumo:


O ABORTO: FATOS SIGNIFICATIVOS 349

Mudou a fó?
CRER NO PURGATORIO HOJE ? 359

A XI SEMANA BÍBLICA NACIONAL 366

LIVROS EM ESTANTE 3? capa

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

• * •

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Pa:coalizac5o : que é ? — Na ordem do día: Psicorientologia.


— Abortamento terapéutico. — Saber caminhar entre extremos.

AMIGO, NAO SE ESQUECA DE RENOVAR SUA ASSINATURA!


DESEJAMOS CONTINUAR A SERVIR COM O AUXILIO DOS
NOSSOS COLABORADORES.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Assinatura anual Cr$ 60,00
Número avulso de qualquer mes Cr$ 6,00
Volume encadernado de 1975 Cr$ 85,00

EDITORA LAUDES S. A.

REDAgAO DE PR ADMINISTRA^AO
Caixa Postal 2.666 Rúa Sao Rafael, 38, ZC-09
ZC00 20.000 Rio de Janeiro (RJ)
20.000 Rio de Janeiro (RJ) Tels.: 268-0981 e 268-2796
DUZENTAO P7?

Com esta edicáo, a serie de fascículos «Pergun


„ te e Kes-
ponderemos» chega ao seu número 200! Na verdade, seria
mesmo o n* 208, já que os oito fascículos editados era 1957
nunca foram incluidos nesta contagem.

Ao verificar isto, a redacáo de PR sente-se compelida a


duas atítudes:

1) Gratidáo ao Senhor Deus, Doador de todos os bens,


que suscitou e sustentou a obra de PR até hoje... Gratidáo
também aos numerosos amigos que de alguna modo tenham
contribuido para a realizacáo desse trabalho. Seja Ele, o Bem
Infinito, a recompensa de todos !

2) Reafirmacáo de programa: a intencáo que sempre


moveu a redacáo de PR, é a procura honesta da Verdade. É
esta que indica o caminho onde o homem viandante deve colo
car os seus passos para chegar á meta almejada. É a descoberta
da Verdade que gera em nos a alegría mais profunda e dura-
dourá, porque a Verdade estrutura a vida e nos revela o sen
tido desta. Se muitos homens em nossos dias se sentem neuró
ticos, isto se deve, em grande parte, ao fato de que nao encon-
traram a resposta para os grandes porqués da existencia hu
mana. Nao é verdade que todo homem é como urna agulha
magnética atraída pelo seu Norte invisível ? Enquanto nao se
volta para o Norte, a agulha é agitada e inquieta ; só repousa
quando se dirige para ele. Assim é todo ser humano: feito para
o Infinito invisível (Deus), que o atrai, é angustiado até des-
cobri-Lo e se inclinar decididamente para Ele.

A procura da Verdade em meio a temas obscuros e dis


cutidos de nossos dias, PR procurou — e procura — executá-la
seguindo sempre dois parámetros :

— a realidade de hoje, ou seja, o pensamento filosófico


contemporáneo e os acontecimentos que nos cercam. Procura
mos ser abertos, acompanhando o passo da historia, pois a
Verdade se encarna (as pepitas de ouro se encontram no seio
da térra) e Deus fala pelos sinais dos tempos ;

— em se tratando de temas teológicos, procuramos também


seguir com toda a fidelidade as auténticas fontes da fé, das
quais o magisterio da Igreja é o porta-voz credenciado pelo

— 325 —
próprio Cristo. A teología nao se pode reduzir a filosofía (cien
cia cuja instancia suprema sao os criterios da razáo), nem é
algo que se improvise ou que se possa construir na base do
«Eu acho» ou do «Para mim,... para tal teólogo,... para tal
outro teólogo...». A teología procura aprofundar a Palavra
de Deus ou a verdade da fé; por conseguinte, ela procede com
reverencia a tais valores, cíente de que nao é lícito manipular
a Palavra de Deus.

É certo, porém, que nem todas as proposigóes do depósito


da fé tém o mesmo peso: algumas referem verdades intocáveis,
enquanto outras se aproximam, em grau maior ou menor, dos
artigos da fé, mas sao passíveis de aprofundamento ou revisáo.
A Igreja mesma favorece a pesquisa a respeito de certos pontos
da Revelagáo. Todavía isto nao quer dizer que nao haja grandes
certezas e afirmagóes de valor perene para o cristáo (como,
alias, as há para todo homem). Viver sem certezas, sem moti-
vagóes aptas a polarizar todas as energías do ser humano, é
condenar-se a nao mais viver; precisamos todos de grandes
«porqués» e «para qués» que justifiquem a renuncia a nos mes-
mos e a dedicagáo a urna causa maior do que o nosso egoísmo.
Mesmo aqueles que rejeitam a Deus, constroem sua mística,
que os incita ao sacrificio e a renuncia em demanda do seu
«paraíso».

Pois bem. O nosso PR propóe-se a continuar a sua missáo


de caminhar junto com os homens em meio as penumbras desta
vida, olhando para os pontos cardeais que o Senhor Deus houve
por bem colocar á disposicáo dos caminheiros. Para prosseguir
nessa tarefa, contamos com a colaboragáo de nossos amigos,
que nunca nos faltaram e que saberáo enviar-nos suas críticas,
suas sugestóes, seus recortes de jomáis e revistas, seus ar
tigos, etc. Tudo será sempre muito bem acolhido. Assim pode-
remos construir juntos a mesma obra.

Pedtndo ao Senhor Deus a sua béngáo, PR se associa a todo


o povo de Deus reunido em Filadélfia (U.S.A.) para celebrar
no inicio de agosto 1976 o 41« Congresso Euoarístico Interna
cional. Seja este certame a ocasiáo de que os homens — cristáos
e nao cristáos — encontrem um pouco mais daquela Verdade
que é Vida e que, conseqüentemente, levanta os ánimos aba
tidos na caminhada para a Plenitude!

E. B.

— 326 —
PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XVII — N< 200 — AgosJo de 197Ó

SInals dos tempos:

ainda o surto religioso na u. r.s.s.


Em sfnteae: Este artigo propQe prlmelramente a carta da Jovem
Svetlana S., estudante soviética de 18 anos de idade, dirigida ao jornal
"Nauka I Rellglja" (1/1976), para expor como de atéla se tomou erante
ao entrar numa Igreja russa. Combatida na escola por causa dessa sua
atltude religiosa, Svetlana a defende e professa tranquilamente. Essa
carta, publicada na Rússia, fol comentada pela Jornallsta L. Scharmanowa,
que reconheceu haver outros casos semelhantes na U.R.S.S.. A causa
deste fenómeno está, em grande parte, no fato de que a fuventude pro
cura resposta para as questSes capitals da existencia humana e nSo as
encontra no materialismo dialético, como reconhecem escritores russos
contemporáneos.

A segunda parte do artigo prop6e alguns tragos característicos da


juventude soviética de nossos dias: esvaziada ou cética frente ao comu
nismo e ao capitalismo, em parte volta-se para a vodca (bebida); em
parte, procura reagir, constituindo grupos de samizdat (dlfusSo de escritos
e relatos nao autorizados pela censura) ou mesmo voltando-se para a
religiao e a mística; a descoberta do Evangelho tem entusiasmado inultos
Jovens, que o vSo difundindo com o risco de serem punidos. As autori
dades do Governo tém-se preocupado com tal fenómeno e pensam em
apllcar-lhe repressSo violenta.

O surto religioso na Rússia contemporánea é mals urna expressSo


de como a religiSo é urna dlmensáo natural do ser humano.

Comentario: Já em PR 197/1976, pp. 201-216; 198/1976,


pp. 231-245 foram publicadas noticias a respeito do despertar
religioso que atualmente se verifica na Rússia Soviética. O
fenómeno chama a atencáo, pois ocorre 'á revelia da propa
ganda de ateísmo a que o Estado comunista tem submetido a
populagáo russa. Além disto, observa-se que esse despertar
religioso nao procede de geracóes adultas apenas, mas tam-
bém de jovens que passaram pela escola do materialismo.
Dado que a Rússia Soviética se impermeabilizou a toda influén-

— 327 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 200/1976

cia doutrinária do estrangeiro (vetando a entrada de escritos


e idéias contrarios ao comunismo soviético), percebe-se que
tal surto religioso corresponde a um brado genuino do ser
humano; este é naturalmente religioso e manifesta seus senti-
mentos de fé ainda mesmo quando contraditados violenta
mente pelo ateísmo.

Para corroborar esta afirmacáo, apresentamos, a seguir,


dados novos: em primeiro lugar, transcreveremos em tradu-
cáo portuguesa a carta de urna jovem estudante russa ao jor
nal ateu «Nauka i Religija» (Ciencia e Religiáo), órgáo oficial
destinado a propagacáo do ateísmo na Uniáo Soviética. O perió
dico publicou tal carta em seu tí> 1/1976, fazendo-a acompa-
nhar de um comentario de tres páginas. A autora da missiva,
Svetlana S., tem dezoito anos de idade, sendo membro da
Uniáo da Juventude Comunista chamada «Komsomol».

Na segunda parte deste artigo, seráo propostos alguns


elementos relativos á mentalidade e aos interesses da- juven
tude na Rússia Soviética contemporánea.

1. Carta e comentarios

1. Eis o texto da missiva de Svetlana S. ao órgáo do


ateísmo soviético «Naüka i Religija» (Ciencia e Religiáo):

"Salve, prezados Srs. Redatores!

Escreve-lhes urna jovem que terminou o décimo ano da


escola soviética. Hoje freqüento o curso técnico; sou mem
bro do Komsomol. Nunca alguém me ¡ncutiu ou impós a fé
em Deus; eu mesma outrora pouco me ¡nteressei por essa
questao. Certa vez atravessei o limiar de urna igreja. Entáo
vi-me atingida pelo agradável som de cantos comovedores,
pelo suave perfume do incensó, pelas chamas de velas arden-
tes. E algo em mim comegou a balangar...

A partir desse memorável momento, procurei com todas


as minhas torgas unir-me a essa santa pureza. Nao sou faná
tica, mas urna simples jovem soviética. Gosto de me divertir,
vou ao cinema, olho a televisáo; vivo quase como todo o
mundo. Mas para mim é dia de grande festa o dia em que
vou á igreja (nem a minha máe tem conhecimento disto; ela
ficaria muito surpresa).

— 328 —
SURTO RELIGIOSO NA U.R.S.S.

Creio em Deus como urna bela lenda. Pergunto o que há


de mau nisso, pois a ninguém prejudica, ao contrario, só traz
vantagens. Se todos os homens cressem sinceramente em
Deus, nao haveria entre nos fraude, mentira, traicao, homici
dio. Será que o desejo de ser puro nao é digno de louvor?
Na escola procuraram díssuadir-me da fé; mas isto aconteceu
ácidentalmente sem me convencer e nao exerceu influencia
sobre mim".
(a) Svetlana S."

2. O redator Robert Hotz do jornal de Zürich «Orien-


tierung» n« 7, 40* ano, 15/04/76, p. 84, faz as seguintes obser-
vagóes á carta de Svetlana S. publicada na primeira página
do jornal citado:

"A redatora encarregada do ateismo, L Scharmanowa,


ocupou-se com a carta de Svetlana S., membro do Komsomol,
publicada, de forma abreviada, na Uniáo Soviética. A resposta
de Scharmanowa consiste, antes do mais, em urna grande
lamúria a respeito da insuficiente formacáo ateísta ministrada
ñas escolas russas. Escrevia a comentarista:

'Sim, um auténtico ateísmo adaptado aos nossos dias até


hoje é algo que nao se conhece nem se entende devidamente
ñas escolas'.

Scharmanowa reconhece mesmo que Svetlana em abso


luto nao ó caso singular e que na Rússia existem outros jo-
vens oriundos de familias nao religiosas que se voltam para
a religiáo — o que é cortamente urna confissao que merece
atencao quando publicada por um jornal de ateísmo.1

Continua Scharmanowa:

'Sim, é verdade. A Igreja é, a seu modo, um teatro, urna


impressionante representacáo, a qual foi concebida para des
pertar emocSes nos homens, tocando sentimentos, gerando
ternura, arrebatamento, solenidade ou até mesmo depressáo.

* De resto, o surto de crética religiosa entre os jovens da Rússia


será o tema da segunda parte deste artigo. — N. d. T.

_ 329 —
6 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 200/1976

O belo é sempre belo, desde que tenha uma base huma-


nista, desde que mova os homens a objetivos dignos, desde
que os torne melhores, mais sabios, mals fortes...1

Que pureza ensina a Igreja? E, principalmente, em nome


de que Ela a ensina? Em nome de uma libertacáo pessoal,
a fim de que os homens conquistem para si a felícidade
eterna do parafso. Em vista desta, é melhor ser manso, tran
quilo e submisso e renunciar aos ínteresses da vida (que, do
ponto de vista da religiáo, nao sao senáo tentacSes), pois
tudo o que vem da vida é vaidade das vaidades, tudo é vai-
dade e desagrada a Deus. E, se quisesses ser coerente até as
últimas conseqüéncias, ó Svetlana, nao irías ao cinema para
atender ás exigencias da religiáo nem assistirias á televisáo,
nem mesmo te divertirías e alegrarías. Isso tudo é pecado,
segundo as estrilas regras da Religiáo!'"

Como se vé, Scharmanowa ignora a auténtica face da


Religiáo crista; julga que esta é uma escola de tristeza e de
alienagáo, quando na verdade a graca de Deus desperta e com
plementa os auténticos valores humanos; diz-se muito sabia
mente que «um santo triste é um triste santo».

Em suma, Scharmanowa censura Svetlana por procurar


na religiáo a resposta ás suas aspiracóes. Alias, logo no
inicio do seu artigo, a comentarista observara que as incli-
nagóes religiosas da juventude provém principalmente do fato
de que «a personalidade do jovem em formagáo procura
ideáis, procura o bem e respostas ¿mediatas para as questóes
atinentes ao sentido da vida». Scharmanowa censura a pro
cura de respostas ñas fontes da religiáo, mas ela mesma nao
responde a essas perguntas vitáis e decisivas da juventude:
«Donde vimos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida?
Por que trabalhamos? Por que sofremos?» Scharmanowa nao
responde porque realmente nao o pode, visto que o comunismo
nada tem a dizer a respeito.

1 Com estas palavras, Scharmanowa registra apenas os efeitos psi


cológicos que a Liturgia pode produzir em quem a observa. Fol o que
se deu com Svetlana. Todavia, como atéia, a comentarista nSo fala da
graca de Deus que toca os coracSes através dos slnals da Liturgia e que
certamente é o principal valor transmitido pelos ritos sagrados; foi certa-
mente a graca que moveu a jovem a reconhecer a mensagem da fé que
ela abragou. — N. d. T.

— 330 —
SURTO RELIGIOSO NA U.R.S.S.

O escritor soviético Pjotr Kile escreveu em sua narragáo


«Neblina colorida» a seguinte sentenga altamente significativa:

"O principal fica ainda por ser resolvido, ou seja, as


questóes concernentes ao sentido da vida, á finalidade, á
missao de cada um e á realidade de cada día".

Pjotr Kile apenas descreve os fenómenos que preocupam


hoje muitos cidadáos soviéticos; mas deixa sem resposta a
pergunta decisiva referente ao sentido da vida. Pode-se dizer
com muita probabilidade que nao é por acaso que muitos cida
dáos soviéticos, ao entrarem em contato com a Liturgia da
Igreja (que em suas formas orientáis aponta para o transcen
dental de maneira pregnante), descobrem de repente algo que
o materialismo grosseiro da ideologia comunista nunca lhes
poderia oferecer. É o que observam até mesmo os propagan
distas ateus, e é o que os inquieta com razáo.

Sao estas as principáis reflexóes que Robert Hotz propóe


aos comentarios de L. Scharmanowa, a qual procurava depre
ciar a atitude religiosa de Svetlana S. Interessa agora consi
derar o que acontece com

2. Os fovens na Rússia de boje

Os periódicos do mundo inteiro publicam de vez em


quando artigos que retratam o modo de pensar e de viver
da juventude russa contemporánea. Sao artigos particular
mente interessantes porque fornecem dados para, de certo
modo, diagnosticar o presente e tentar prever o futuro da
nacáo russa.

Entre outras, merecem atengáo as consideragóes publica


das por A. E. Krasnov Levitine, com o título «Regard sur la
jeunesse russe» (Um olhar sobre a juventude russa), na re
vista «Projet» n» 103 (margo de 1976), pp. 281-286. Esse
número de «Projet» é dedicado por inteiro á «Sociedade Sovié
tica na era de Brejnev». O autor do citado artigo vive em
Lucerna (Suiga) — a quando parece, em exilio — depois de
haver convivido longos anos cóm a juventude russa no interior
da própria Rússia. Assim, por exemplo, diz o articulista ao
encerar as suas ponderagóes: «Falei dos jovens da Rússia.
Passei a minha vida inteira entre eles, e eles me sao especial
mente caros».

— 331 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS». 200/1976

Procuraremos, pois, abaixo extrair desse artigo alguns


dos traeos mais significativos para a compreensáo da evolucáo
da juventude soviética contemporánea.

2.1. O vazio

Levitine comega por mencionar o que ele chama «o vazio


da juventude soviética», vazio que significa «desilusáo e can-
saco interior» (p. 282):

"Na Rússia, o vazio experimentado pela juventude toma


urna nota particular: é, antes do mais, um profundo desen
canto em relacao á ideología comunista,... ideología que ali-
mentou a fé fanática das tres geracóes precedentes.

Os jovens nao combatem o comunismo, nem brigam com


ele, nao o amaldigoam. Tomam atitude muito mais forte: riem
dele. Por exemplo, numa aula ministrada a cerca de trinta
jovens trabalhadores (rapazes e mocas) em Moscou a res-
peito do livro 'A Máe' de Gorki, o professor fez a seguinte
citagáo do livro em foco: 'Quando o socialismo estiver ins
taurado, os homens viveráo como se tivessem alma transpa-
parente e aberta a todos os olhares'1. Houve entáo urna
explosáo de gargalhadas sarcásticas. Ninguém se pode impe
dir de rir. Continuou o mestre: 'O comunismo é o futuro
radiante da humanidade'. Registrou-se novo surto de risa
das" (p. 282).

Nota entáo o articulista que em todos os tempos os ho


mens aguardaram o advento próximo de urna era de bonanza
e paz, mas que nunca aconteceu algo de semelhante.

"Lenine ainda goza de sólido prestigio na Rússia; os


homens continuam a tributar-lhe incensó e genuflexóes. Eis,
porém, que imprevistamente ele se tornou para a geracáo jo-
vem um herói de anedotas. Alias, anedotas sem fel, de crian-
gas bem comportadas. A face de Lenine é evocada em meio
a urna nuvem de leve humorismo. Note-se, porém, que isso
(por pouco que seja) era de todo impossfvel para as geracóes
anteriores. Essas anedotas dissipam a aura de romantismo

i Esta expressáo significa "descontragáo, confianza, otimlsmo".


— N. d. T.

— 332 —
SURTO RELIGIOSO NA U.R.S.S.

com que se fala da revolucáo de 1917 e mostram os 'deuses'


(os heróis da Revolucáo) como gente simples e ordinaria"
(p. 282).

A seguir, Levitine fala da posigáo da juventude frente ao


capitalismo:

"Já nao existe hoje na juventude soviética o odio agres-


sivo de outrora para com o capitalismo nem o desejo de aba-
ter a este, de esmagar os capitalistas, de destruir tudo numa
guerra de barricadas, e de levar o comunismo ao Ocidente,
como ñas décadas de 1920 e 1930. Doutro lado, porém, os
jovens soviéticos em sua maioria nao alimentam a mínima
simpatía para com o capitalismo. Nao Ihes passa pela cabeca
a possibílidade de viver sob regime capitalista. O capitalismo
é, para eles, algo de táo longínquo, táo nebuloso!... quase
táo longinquo quanto o comunismo...

Em conseqüéncia, sentem o vazio. Nem comunismo, nem


capitalismo" (p. 283).

Nao há dúvida, qualquer dos dois extremos é mau ou


é sufocador da dignidade humana. Todavia há meio-termo:
pode-se conceber uma democracia que respeite plenamente os
direitos da pessoa humana, mas dirija a economía da nagáo
de sorte a evitar a exploragáo dos trabalhadores por parte
dos empresarios. É isto, alias, o que propóe a doutrina social
da Igreja.

Observa ainda Krasnov Levitine que muitos jovens, assim


decepcionados, procuram paliativo no consumo da «vodka» 1.

"Todavia, como se compreende, há os que nao adotam


tal atitude, por serem mais ponderados, mais atetados de
'fome e sede de justiga'. Estáo á procura de ideáis positivos.
Precisam de algo que os faga viver,'.. de algo por que com-
bater. Procuram e encontram. É, antes do mais, em favor da
liberdade e dos direitos do homem que eles combatem. Todo
o movimento democrático russo dos últimos anos, tudo o que
se chama o 'samizdat' (difusáo de textos que sao subtraídos
á censura), tudo isso tem sua origem em planos e tramas
concebidos por rapazes e mocas desde os fins da década de
1950; depois desses jovens, outros assumiram a continuagáo
dessa obra e atualmente uma terceira leva de jovens prosse-
gue a mesma tarefa.
* Aguárdente russa feita de cereals. A palavra, em russo, quer
dizer "agülnha".

— 333 —
^0 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

Na verdade, nao sao todos os que desistem de lutar, mas,


sim, os traeos, os excitados, ou alguns dos que se casam.
Outros, porém, ficam. Foi precisamente do gremio da juven-
tude que sairam esses lutadores intrépidos cuja coragem sur-
preendeu o mundo: Vladimir Boukovski, Jouri Galanskov, Val-
dimir Ossipov, Gabriel Souperfine e outros.

Até os nossos días, é a juventude que constituí o esteío


essencial de todos os grupos e tendencias de oposicáo. Seja
A. D. Sakharov, sejam os membros do Grupo de Oefesa dos
Direitos do Homem, seja qualquer outro pioneiro, sem os
jovens eles carecem de forca. Pois sao estes... que batem
á máquina os nossos protestos, os difundem e os fazem pas-
sar para o estrangeiro. Sao eles também que se aglomeram
macicamente diante das portas dos tribunais quando somos
julgados" (p. 284).

Prossegue Levitine, abordando diretamente o tema reli


gioso:

2.2. O Evangelho em «samizdat»

"Lugar especial toca aos jovens atraídos pela religiáo.

Como se sabe, já há sessenta anos que o ateísmo domina


na U.R.S.S. Lá é proibido ensinar a religiáo aos menores
sob pena de incorrer ñas mais pesadas sangoes. Em conse-
qüéncia, fCresceram geragdes que nada sabem de Cristo e
que só tém da religiáo um conceito nebuloso. Houve quem
¡ulgasse que as jovens geragoes estavam irremediavelmente
perdidas para a religiáo. Mas sobreveio o ano de 1956 — ano
do XX Congresso do Partido Comunista, ano em que foi abo
lido o culto de Stalin —, urna vertente na vida da Rússia. Se-
guiram-se anos de pesquisas, agitagóes,... anos de luta. A
geragáo joyem, na ansia de dar um sentido á sua vida, caiu
sobre um livrinho de nada, um livrinho posto de lado, coberto
de poeira, escondido num recanto da casa da vovó — um
livrinho de nada,... editado cinqüenta ou sessenta anos antes
<e tendo impresso na capa o título: "Novo Testamento de
Nosso Senhor Jesús Cristo". Entáo originou-se na vida russa
um fenómeno novo, ou seja, urna juventude movida por preo-
cu pagoes religiosas.

O Evangelho é copiado é máquina, recopiado á mao,


arrancado das máos dos turistas, comprado a pregos incríveis

— 334 —
SURTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 11

no mercado negro. O Evangelho torna-se o iivro de cabe-


ceira para mu ¡tos rapazes e mogas, entre os quaís há filhos
de comunistas ou mesmo de 'tchekistas'.

A juventude procura mestres de religiao e guias espiri-


tuais e, como acontece sempre, essa exigencia faz surgir
novos operarios. Registra-se o surto de pregadores inspira
dos, tais como a térra russa nao vira desde muito, sacerdotes
como o Pe. Dimitri Doudko e outros, que reunem em torno
de si os jovens crentes. Vé-se aparecer um samizdat religioso,
com artigos que tomam a defesa da religiao — e dos quais
aiguns foram assinados pelo autor destas iinhas. Torna-se
fenómeno corrente o batizado de jovens adultos, nascidos de
pais incrédulos' (p. 285).

Dito isto, o articulista dilata o seu horizonte e passa a


considerar o interesse religioso em outro ambiente:

"Nos meios intelectuais, a atracáo pela Igreja Ortodoxa


se manifesta de maneira notoria. A propósito é preciso lem-
brar o papel específico exercido pelas tradicóes da cultura
russa: Dostoievski e V. Soloviev, S. Boulgakov e Berdiaev,
Florenski e Merejkovski, o encanto fascinante dos antigos
pintores russos (André Roublov e os outros) e a beleza da
pintura religiosa ortodoxa dos tempos modernos (Vasnetsov e
Nesterov).

Paralelamente, também as seitas religiosas progridem.


Entre o povo simples, entre os operarios e os aprendizes dos
kolkhozes, multiplica-se o número dos batistas, dos adven
tistas, dos pentecostais e das testemunhas de Jeová... As
perseguicóes desencadeadas pelas autoridades nao chegam
a deter o crescimento dessas seitas. Ao mesmo tempo pro-
paga-se de modo geral, mas principalmente entre os jovens,
o interesse pela Yoga, pelas ciencias ocultas, pelo espiritismo
e pelas outras formas de conhecimento religioso. Tudo isto
vai-se desencadeando sobre um fundo de cena de profundo
desencanto em reiacáo á filosofia materialista e á prática coti
diana do comunismo" (p. 285s).

Por último, o autor do artigo nota a atitude das autori


dades governamentais e comunistas frente a táo singular
realidade:

"Todos esses fenómenos muito preocupam os líderes do


regime. Vendo que a propaganda oficial ó incapaz de deter

— 335 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS». 200/1976

a fermentagáo no ámbito da juventude, o Governo tende a


reprimi-la violentamente: ouvem-se, um após outro, veredictos
draconianos contra a rebeliáo da juventude. Mais ainda: al-
guns comunistas pensam mesmo em adotar formas de proce-
dimento francamente antediluvianas. Nao há mais de dez
anos, o cientista marxista Skourlatov, professor de materia
lismo dialético no Instituto das Pontes e Calcadas de Moscou,
enviou ao Comité Central do Partido Comunista da U.R.S.S.
o texto de um relatório no qual ele propunha 'restabelecer em
toda parte e sem excegáo... os castigos corporais para a
juventude1. 'O chicote é o melhor dos mestres! Bater o corpo
revigora o espirito!', exclamava cheio de entusiasmo esse
discípulo de Marx e Engels. Todavía em váo. A juventude
perde cada vez mais o medo e o respeito das autoridades. A
juventude continua a eaminhada..." (p. 286).

Concluí o articulista:

"Falei dos jovens da Rússia. Passei toda a minha vida


entre eles; sao especialmente caros ao meu coragáo.

Quanto aos jovens de outras nacionalidades que vivem


no territorio da U.R.S.S. (os da Ucrania, da Bielorússia, dos
países bálticos, do Cáucaso, da Asía Central), o desencanto
que eles experimentam em relacáo ao comunismo é mais vivo
ainda. Entre eles, a procura de novos caminhos para a sua
própria existencia ocorre juntamente com o despertar da cons-
ciéncia nacional. A juventude russa nao tem motivos para
impedir-Inés essa eaminhada. A juventude russa é a amiga
fiel e aliada desses jovens.

Lucerna, 8 de novembro de 1975"

Este testemunho provém de alguém que Iutou contra o


regime soviético russo e, em conseqüéncia, deve ter experi
mentado sangóes e penas. O seu tom é forte e decidido. Mesmo
levando-se em conta este particular, pode-se dizer que, pela
convergencia do que Krasnov Levitine revela com o que outros
depoimentos asseveram, as páginas de Levitine contribuem
positivamente para se ter urna imagem do que é a juventude
russa contemporánea: descrente do marxismo, ela ouve em
seu íntimo os apelos á mística religiosa. Os jovens nao sabem
como responder concretamente a esse chamado, mas, como
quer que seja, comprovam as inesquecíveis palavras de S. Agos-
tinho: «Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso
coracáo enquanto nao repousa em Ti» (Conf. 1,1).

_ 336 —
Setor de contestado:

ética sexual e vida moderna

Em sfntese: A DeclaracSo "Persona Humana" da S. Congregado


para a Doutrina da Fé (29/XII/1976), versando sobre questóes de ética
sexual, suscitou contestacSo. Esta foi movida por objec5es que na verdade
sio inconsistentes: a Declaracio nfio é arcaica, pois que, de um lado,
eia recorda os perenes principios da le) natural e da mensagem crista
em materia de castidade; de outro lado, porém, leva em conta as con
clusas da moderna psicología das profundidades. Nem a DeclaracSo foi
inoportuna, visto que velo atender a urna sltuacáo de confusSo de con-
ceitos instaurada mesmo ñas escolas católicas e na praxe pastoral. Era
necessário que a Igreja levantasse a voz para ajudar os homens a dis-
tingulrem entre o bem e o mal, embora esta atitude pastoral da Igreja
estivesse sujelta a ser mal entendida. Paulo VI prestou um servlco á
humanidade, que já deu seus prlmeiros frutos e continuará a ser fecundo,
se bem que tenha custado duros sacrificios á autoridade eclesiástica.

Quem analisa de perto o texto da DeclaracSo, verifica que distingue


sempre entre o aspecto objetivo (¿s vezes mau) do comportamento humano
e o seu aspecto subjetivo (que, por vezes, pode ser menos responsável e
culpável). Vé-se, pois, que assim estSo associadas firmeza de doutrina e
compreensáo pastoral na Declaracao "Persona Humana".

Comentario: A tendencia da sociedade contemporánea


em materia de sexo é a da liberalizagáo total. A muitos pa
rece que, quanto mais se superam as restrigóes á permissivi-
dade, mais o género humano evolui; o homem e a mulher váo
assim conquistando o direito (que lhes foi denegado por tanto
tempo) de usar do próprio corpo e do corpo do próximo
segundo lhes parega oportuno ou a seu bel-prezar. Sao ex-
pressóes dessa marcha para a licenciosidade a prática do
aborto, a do divorcio, a oficializacáo do homossexualismo, a
pornografía nos meios de comunicagáo social, o uso crescente
dos anticoncepcionais... Quanto a certos atos ditos «solita
rios», como a masturbagáo, já parecem nao merecer entre os
jovens atengáo, pois passaram para o rol do «corriqueiro»,
segundo muitos.

Foi nesse clima que a S. Igreja publicou aos 29/XII pp.


a Declaragáo «Persona Humana», que procurava despertar as
consciéncias para certos valores moráis que váo sendo oblite-

— 337 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 200/1976

rados e conculoados hoje em dia. Sabe-se que tal documento


provocou celeuma ém diversos países ocidentais, inclusive na
própria Italia; varios comentaristas se mostraram surpresos
pelo fato de que a Igreja aínda dedique atengáo a tais assun-
tos, enquanto outras vozes se fizeram ouvir em pleno apoio
da Declaragáo de Roma.

É esta situagáo que sugero a consideragáo atenta de algu-


mas das principáis objegóes que se tém levantado contra a
doutrina católica, assim como a apreciagáo do valor objetivo
que ela tem e comunica 'á humanidade como tal.

O texto da Declaracáo «Persona Humana» já foi apre-


sentado em PR 196/1976, pp. 139-150.

1. Evolugáo dos tempos e da cultura

1. A objegáo mais freqüente (que na realidade compen


dia as demais) procede da alegagáo de que as normas da mora-
lidade sao dependentes das etapas do progresso da cultura e
da ciencia. As categorías do bem e do mal no tocante ao
sexo seriam categorías meramente culturáis, por conseguinte
sujeitas a constantes reformas. Tenha-se em vista, dizem, o
matrimonio monogámico e indissolúvel; sobreveio á poligamia
ou mesmo a urna certa promiscuidade inicial. — Mais. Per-
guntam: há cinqüenta anos quem ousaría vestir-se como hoje
se vestem rapazes e mogas, homens e mulheres? Há quinze
anos, quem pensaría ñas cabeleiras que hoje sao «normáis»
em individuos do sexo masculino?

Nao há, pois, principios absolutos no que concerne ao


sexo e á moral, mas apenas a crístalizagáo de costumes variá-
veis segundo épocas e regióes. Também nao existe «natureza
humana», da qual se derivem as prescrigóes e proibigóes apre-
sentadas sob o título de «lei natural».

Em conseqüéncia, vé-se que nao há razáo para manter


as normas restritivas ao sexo que a Igreja propós em tempos
passados. Hoje os costumes sao outros, tendendo para o reco-
nhecimento da liceidade de tudo aquilo que alguém queira
fazer sem prejudicar os outros. A historia varre os tabus e
liberta os homens, tornando relativas todas as leis moráis.

2. Que dizer diante de tais afirmagóes?

— Consideremo-las por partes:

— 338 —
ÉTICA CRISTA E REVOLUCAO SEXUAL 15

a) É artificial ou irreal dizer-se que nao existe «natu


reza humana» nem, por conseguinte, «lei natural». — Basta
lembrar que nenhuma pessoa humana se constrói sem res-
peito as leis naturais da biología: estas prescrevem respiragáo,
nutrigáo, exercício corporal, repouso, higiene física e men
tal... Nao há como fugir a estas normas, sob pena de nao
se realizar ou de se destruir a personalidade humana; quem
nao coma,... e nao coma nos termos sugeridos pela natureza
biológica, nao se desenvolve como personalidade; quem nao
exerce suas atividades dentro das medidas indicadas pela sua
natureza biológica, também se destrói como personalidade...
Ora a natureza também indica ao homem certas normas mo
ráis, que sao penhor de comportamento auténticamente hu
mano e nao bestial: «Pratica o bem; evita o mal... Nao
mates, nao roubes, honra pai e máe, etc.» Nao há ser humano
psíquicamente sadio que nao ouga estas normas em sua cons-
ciéncia. — No tocante ao sexo, a fisiología apresenta as fun-
góes genitais como sendo destinadas á complementacáo mutua
do homem e da mulher,... complementagáo que tende a se
tornar fecunda mediante a respectiva prole. Em conseqüéncia,
contraria á natureza o uso solitario do sexo, o uso hornos-
sexual como também o uso pré-matrimonial.1 É nestas obser-
vagóes que se fundamentan! a ética crista (e a Declaragáo
«Persona Humana»), quando rejeitam as práticas da mastur-
bagáo,2 do homossexualismo e das relagóes pré-matrimoniais.

Tais normas da ética crista, baseadas na lei natural,


encontram sua comprovacáo ñas próprias reagóes da natureza
a todo abuso que déla se faga: sabe-se que graves males físi
cos e, principalmente, perturbagóes psíquicas estáo freqüente-
mente associados as desordens sexuais. A permissividade tor-
nou-se fonte de inseguranga e desatinos na sociedade contem
poránea.

b) Dirá alguém: a Igreja, defendendo a lei natural, ins-


pira-se na filosofía aristotélico-tomista e cede ao fixismo das
esséncias. Ora a filosofía hoje conhece novas perspectivas;
temos consciénda de que a natureza é dinámica e evolutiva.

1 Para que este possa existir, os interessados ou excluem a prole ou


se arriscan) a conceber prole que nSo terá lar ou familia (como sio, por
exemplo, os filhos de mSes soltelras).
2Verdade é que na crlanca e no adolescente a masturbacSo é,
muitas vezes, semiconsciente ou Inconsciente, nSo chegando entSo a ter
gravidade moral. Todavía, se essa prátlca é alimentada consciente e vo
luntariamente, pode tornar-se ocasISo de serla deformacSo da perso
nalidade.

— 339 —
16 tPERGUNTE E RESPOrfl>EREMOS» 200/1976

— Nao há dúvida de que conhecemos hoje, melhor do


que outrora, a dinámica da natureza. Observe-se, porém, que
esta dinámica se desenrola dentro de linhas homogéneas; a
estrutura física do ser humano é, em sua essénda, a mesma
que em tempos passados; as fungóes vegetativas e genitais
conservaran! através dos tempos os seus tragos e objetivos
característicos.

Ademáis, se alguém nao quer falar de leí natural, pode


recorrer a um concertó que os antigos escritores cristáos desen-
volviam freqüentemente, desvinculados de qualquer sistema
filosófico: o de dignidade humana. Esta nogáo deriva-se da
visáo bíblica segundo a qual o homem é «imagem e seme-
lhanga de Deus» (Gn 1,26); este fato comunica dignidade e
implica exigencias; sim, para viver a sua dignidade, o homem
nao se pode guiar apenas pelo criterio do prazer (existe o
prazer nobre, mas existe também o prazer baixo); o homem
tem que fazer prevalecer a sua inteligencia e aspirar á reali-
zagáo de um ideal que subordine instintos e paixóes aos valo
res da mente; é isto que distingue do animal o homem e o
torna imagem de Deus. Essa dignidade tem valor objetivo; o
homem nao a cria, mas a descobre em si; ela é anterior a
consciéncia, e a ela háo de ser subordinados os desejos e pla
nos da pessoa humana. Se alguém nao observa essa ordem de
coisas, sujeita-se a ter a inteligencia obnubilada pelas paixóes,
tornando-se antes joguete de instintos cegos do que expres-
sáo de razáo lúcida, típicamente humana.

c) Para o cristáo, pode-se argumentar outrossim a par


tir da Palavra de Deus expressa pelo Novo Testamento, que
neste setor é muito explícito.

O mundo greco-romano era profundamente marcado por


desordens sexuais; basta ler a respeito os autores clássicos
desde Aristófanes. Frente a essa situagáo, os Apostólos e,
em particular, Sao Paulo lembram que a luxúria excluí do
Reino de Deus (cf. Gl 5,19-23; ICor 6,9-11; lTs 4,3-8; Cl 3,5-7;
lTm 1,10). Isto é dito em vista da dignidade do cristáo, tem
plo de Deus e membro de Cristo (cf. ICor 6,15.18-20); o
corpo humano, assim nobilitado, nao pode ser vilipendiado,
nem se há de tornar instrumento de volúpia passional...
Mais ainda: Sao Paulo, impressionádo pela corrupgáo moral
das cidades que ele visitava (Tarso, Tessalónica, Corinto,
Atenas, Éfeso...), procurou dar urna explicagáo teológica da
permissividade sexual; esta, entáo como hoje, se manifestava

— 340 —
ÉTICA CRISTA E REVOLUCAO SEXUAL 17

freqüentemente ñas práticas do homossexualismo masculino e


feminino; o Apostólo via na origem desses males o fato de
que o mundo pagáo conscientemente se perderá na idolatría
— o que significa: desconhecia a verdadeira origem e a finali-
dade suprema do homem. Ignorando voluntariamente a Deus,
o ser humano se imerge no turbilháo das paixóes e se atóla
ñas mais aberrantes formas de comportamento:

"Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos e


troearam a gloria de Deus incorruptível por imagens do ho
mem corruptível, de aves, quadrúpedes e reptéis.

Por isto Deus os entregou, segundo o desejo de seus


coragóes, á impureza em que eles mesmos desorraram seus
corpos...: as suas mulheres mudaram as relagñes naturais
por reiacóes contra a natureza;. igualmente os homens, dei-
xando a relagáo natural com a mulher, arderam em desejo
uns para com os outros, praticando torpezas, homens com
homens, e recebendo em si mesmos a paga da sua aberra-
cao" (Rm 1,22-27) \

As palavras da Escritura, corroborando as da razáo natu


ral, dáo fundamento a urna antropología e a urna ética que
tém valor até hoje. Nao se devem a um tipo de cultura; mas
perpassam as diversas fases da cultura humana, podendo-se
conciliar integralmente com as perspectivas do homem da era
tecnológica e espacial. Mesmo usufruindo do máximo dominio
possível sobre a térra e o cosmo, o homem senté que nao é
senhor da materia e do seu corpo, mas ele descobre a materia,
seus segredos e riquezas, e tenta explanar tais riquezas de
acordó com as leis que a própria materia e a natureza Ihe
váo ditando.

Passemos agora a outro tipo de objecáo contra a Decla-


racáo «Persona Humana».

2. Inoportuna. ..

O documento da Santa Sé, dizem, foi inoportuno, pois


hoje em dia há outros problemas mais urgentes, com os quais
a Igreja se deveria ocupar mais detidamente. Por que cha-

1A expressSo "Deus os entregou" há de ser entendida segundo a


mentalldade semita. Significa que Deus permitiu fossem vftimas das desor-
dens moráis os que pervertiam as suas concepgSes religiosas.
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

mar a atencáo para pontos de ética sexual quando existem


no mundo fome, injustiga, guerra, crise económica e males
semelhantes... ?

— Em resposta, dir-se-á:

1) A Igreja nunca deixou de considerar tais problemas.


Nos últimos tempos, mais ainda tem-se voltado para os mes-
mos, como atestam as prodamagóes de «Populorum Progres-
sio», «Gaudium et Spes», as mensagens de Paulo VI para o
Dia Mundial da Paz (1' de Janeiro de cada ano), as alocugóes
á FAO e numerosos discursos e providencias concretas de tipo
semelhante. Há mesmo quem diga que certos bispos, sacer
dotes e leigos católicos tém ido longe demais na abordagem
dos problemas sociais.

Todavia o homem nao se realiza apenas através do desen-


volvimento económico ou da libertagáo política ou da paz
exterior. Ele necessita de «algo mais»; a dimensáo do trans
cendental e do Infinito está essencialmente impregnada dentro
de todo ser humano. Ora essa dimensáo caracteriza também
a moral sexual; o amor humano e suas expressóes estáo, em
última análise, voltados para a consecugáo do Bem Infinito e
o encontró definitivo com o Primeiro Amor, com «Aquele que
primeiro nos amou» (Uo 4,19). Por conseguinte, pertence
aos fatores de realizagáo do ser humano urna ética sexual
digna da marca do transcendental que todo homem traz em
si; essa ética mostrará o valor do matrimonio, defendendo-o
contra qualquer tipo de uniáo egoísta ou meramente volup
tuosa; esclarecerá o sentido das fungóes genitais, que hio de
ser sempre iluminadas pelo ideal que a pessoa humana aca
ricia; mostrará que a heranga crista de pudor e de reserva
frente aos instintos sexuais nao é mera sobrevivencia de rea
lidades ultrapassadas, mas corresponde exatamente a urna visáo
mais lúcida e profunda do amor e das suas expressóes.

Precisamente a necessidade de despertar as consciéncias


para estas verdades justifica a Dedaragáo «Persona Humana»,
tornando-a altamente oportuna. Como se vé, o reconhecimento
dessa oportunidade depende da concepgáo que se tenha do
homem e da dimensáo ética do ser humano. Se alguém só vé
a grandeza da personalidade no relacionamento com o próximo
na sociedade, dirá que é supérfluo ou inoportuno qualquer
apelo á responsabilidade sexual. Ao contrario, se, penetrando
mais a fundo no ser humano, o consideramos como um ser

— 342 —
fcTICA CRISTA E REVOLUCAO SEXUAL 19

inteligente cuja inteligencia deve irradiar-se por todo o seu


.comportamento, compreenderemos que se dé atengáo a con-
duta sexual do homem e da rrmlher; nao seja ela a de um
animal irracional! De resto, quanto mais alguém é harmoni
zado em sua vida pessoal, tanto mais também é apto a comu
nicar aos outros os sentimentos de justica, fraternidade e
amor, colaborando para construir um mundo melhor. Para
avaliarmos a situagáo moral de alguém, nao basta levarmos
em conta a prálica da justica e do amor por parte desse
individuo.

2) A oportunidade da Declaragáo «Persona humana» se


depreende outrossim do fato de que, entre os próprios fiéis
católicos (mesmo entre os teólogos), reinava (e aínda reina)
confusáo de opinióes no tocante á ética sexual. As próprias
familias cristas no Ocidente foram últimamente atingidas pela
«revolucáo sexual» ou mudanga de mentalidade e de costumes
referentes ao sexo. Originou-se assim urna «nova moral»,
cujos principios sao:

a) a recusa de toda norma moral objetiva, por ser con


siderada como opressiva ou como contraria á livre expansáo
da personalidade;

b) a absoluta permissividade ou a liberdade de fazer


tudo o que se queira, devendo-se apenas cuidar de nao impe
dir o exercício da liberdade alheia;

c) a procura do prazer como fonte de felicidade e meio


de auto-realizacáo;

d) o comportamento da maioria (o que outros fazem


habitualmente) como norma que as leis devem confirmar e
sancionar;

e) a privatizagáo do que diz respeito á vida sexual, de


modo que esta deve ficar exclusivamente ao arbitrio de cada
individuo.

Assim o «sexo livre» passou a ser considerado como sím


bolo da libertacáo de todas as formas de expressáo e escra-
vidáo. Em conseqüéncia, verificam-se, de um lado, o derrame
da pornografía na imprensa e nos espetáculos, o aumento da
prostituicáo, o homossexualismo, o sadismo...; de outro lado,
procuram-se impor cada vez mais o divorcio, o adulterio, a

— 343 —
20 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

contracepcáo, o aborto... Todas essas práticas nao sao ape


nas permitidas, mas vém sendo consideradas pela opiniáo pú- •
blica como expressóes da liberdade ou ao menos como prego
a pagar para que haja o grande valor da liberdade!

Bem se vé quanto estas concepcóes sao erróneas. A psi-


canálise ensina que Eros (amor) e Thánatos (morte) sao dois
instintos fundamentáis da pessoa humana. Se o instinto do
amor nao é controlado, ele se exprime como egoísmo, amor
próprio, e destrói os valores da personalidade humana; tor-
na-se mesmo causa de infelicidade. — A sexualidade selvagem
tende a se distanciar do amor; torna-se mera procura de con
tato físico e carnal ou comercializaeáo da pessoa e do corpo
humano. Tal tipo de sexualidade desenfreada está longe de
ser liberdade ou simbolo de liberdade; é escravidáo e degra
dado.

Eis por que a Igreja houve por bem publicar a Declara-


Cáo sobre a Pessoa Humana aos 29/XÜ/75; Ela assim tencio-
nou cumprir a sua missáo de servir ao homem e á sociedade,
em fidelidade aos preceitos de Cristo. Houve quem se escan-
dalizasse a propósito desse documento como se a Igreja se
mostrasse cega aos rumos da sociedade contemporánea e
insensível é. vida moderna. Na verdade, haveria motivo de
escándalo se a Igreja nao tivesse falado sobre os abusos
sexuais, pois entáo teria traído o Cristo e os homens. Se Ela
falou, é digna de admiragáo porque deu provas de coeréncia
e de coragem raras.

3. O valor objetivo da Dedara$áo

Podemos distinguir dois títulos principáis pelos quais o


discutido documento da Igreja sobre Ética Sexual se impóe á
■consideragáo do público.

3.1. Testemunho

É, antes do mais, um testemunho,... testemunho no sen


tido da Exortacáo Apostólica «Sobre o anuncio do Evangelho»
(Evangclii Nuntiandi): é a proclamagáo, feita ao mundo, de
rana faceta da mensagem evangélica entregue por Cristo aos

— 344 —
&TICA CRISTA E REVOLUCAO SEXUAL 21

homens. Sempre que os valores váo sendo esquecidos ou mesmo


conculcados, compete á Igreja levantar a voz, fazendo eco ao
Evangelho e á constante Tradicáo crista. Nos momentos de
confusáo, é oportuno que urna instancia autorizada diga com
firmeza em que consiste o mal e em que consiste o bem, e indi
que pistas para se caracterizaren! um e outro. Esta átitude é
urna forma de seryigo, embora sujeita á incompreensio e á
burla. Nao é em vista de aplausos que a Igreja fala, mas em
vista do bem dos homens. Com o passar dos tempos, todos
seráo beneficiados, inclusive os católicos que comecaram a se
deixar enredar peía confusáo.

3.2. Tópicos novos

A Declaracáo «Persona humana» nao se limitou a repetir


as afirmagóes dos documentos anteriores (encíclica «Casti
connubii» de Pió XI e declaragóes do antigo Santo Oficio).
Usou de linguagem as vezes um tanto nova, aproveitando-se
das proposigóes da psicologia contemporánea.

a) Assim, por exemplo, distingue entre dols tipos de


homossexuais: os que nasceram com tal propensáo, e os que
foram induzidos á mesma; aqueles e estes merecem trata-
mento próprio, devendo-se levar em conta as possibilidades
pessoais de recuperacáo de cada um. Tenha-se em vista a
delicadeza e o equilibrio da linguagem do texto da Igreja:

"Faz-se urna distincáo — ao que parece, nao sem funda


mento — entre os homossexuais cuja tendencia provém de
urna educagáo falseada, de urna falta de evolucáo sexual nor
mal, de um hábito contraído, de maus exemplos ou de outras
causas análogas (tratar-se-la de urna tendencia transitoria, ou,
pelo menos, nao incurável), e aqueles outros homossexuais
que sao tais definitivamente, por forga de urna especie de
instinto ¡nato ou de urna constitüigáo patológica considerada
incurável.

Quanto a esta segunda categoría de sujeitos, alguns con-


cluem que a sua tendencia é de tal mane ira natural que deve
ser considerada como justificativa, para eles, das relacdes
homossexuais numa sincera comúnháo de vida e de amor
análoga ao matrimonio, na medida em que eles se sintam
incapazes de suportar urna vida solitaria.

— 345 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

Certamente na atividade pastoral estes homossexuais háo


de ser acolhidos com compreensáo e apoiados na esperanca
de superar as próprias dificuldades pessoais e a sua inadap-
tagáo social. A sua culpabilidade há de ser julgada com pru
dencia. No entanto, nenhum método pastoral pode ser empre-
gado que, pelo fato de esses atos serem julgados conformes
com a condicáo de tais pessoas, Ihes ven ha a conceder urna
justificativa moral. Segundo a ordem moral objetiva, as rela-
cóes homossexuais sao atos destituidos da sua regra essen-
cial e indíspensável. tías sao condenadas na Sagrada Escri
tura como graves depravares e apresentadas ai também
como urna conseqüéncia triste de urna rejeigáo de Deus.
Este juízo exarado na Sagrada Escritura, porém, nao permite
concluir que todos aqueles que sofrem de tal anomalía sao
por isso pessoalmente responsáveis; mas atesta que os atos
de homossexualidade sao intrínsecamente desordenados e
que eles nao podem, em hipótese nenhuma, receber qualquer
aprovagáo" ("Persona humana" n9 8).

b). A Declaracáo também distingue entre diversos graus


de culpabilidade ocorrentes na masturbacáo; nem tudo o que
é objetivamente grave, vem a ser subjetivamente táo grave
ou culpado, pois há circunstancias atenuantes que podem tor
nar o ato mau menos consciente e voluntario (da parte de
quem o comete). Tenha-se em vista a seguinte passagem:

"Os inquéritos sociológicos podem indicar a freqüéncia


dessa desordem segundo os lugares, segundo a populagáo
ou segundo as circunstancias que eles tomam como objeto
de observacáo; e assim anotam-.se os fatos. Mas os fatos
nao constituem um criterio que permita julgar o valor moral
dos atos humanos. A freqüéncia do fenómeno em questáo há
de, certamente, ser posta em relacáo com a fraqueza ¡nata do
homem, conseqüéncia do pecado original, mas igualmente
com a perda do sentido de Deus, com a depravagáo dos cos-
tumes gerada pela comercializacáo do vicio, com a licencio-
sidade desenfreada de tantos e tantos espetáculos e publica-
góes, bem como com o menosprezo do pudor, resguardo da
castidade.

Quanto a esta materia da masturbacáo, a psicología mo


derna oferece numerosos dados válidos e úteis para formular
um juízo mais equitativo acerca da responsabilidade moral e
para orientar a acáo pastoral. Ajuda a ver como a imaturi-
dade da adolescencia, que ás vezes se pode prolongar para

— 346 —
ÉTICA CRISTA E REVOLUCAO SEXUAL 23

além desta idade, o desequilibrio psíquico ou o hábito con


traído podem influir sobre o comportamento, atenuando o
caráter deliberado do ato, e fazer com que, subjetivamente,
nele nao naja sempre falta grave. Entretanto a ausencia de
responsabilidade grave nao se pode presumir de maneira ge-
ral; isso seria desconhecer a capacidade moral das pessoas"
("Persona humana" n? 9).

c) Freqüentemente, a Dcdaragáo recorre a distincáo


entre a ordem objetiva e a subjetiva. A ordem objetiva deve
ser sempre afirmada: qualquer ato contra a natureza é, em
si ou como tal, ato mau ou pecaminoso (assim, a masturba-
gáo, o homossexualismo, as relacóes pré-matrimoniais...).
Todavía nao se deve jamáis esquecer que aqueles que come-
tam tais érros, podem estar envolvidos em certa ignorancia
da gravidade do mal, ou podem ser vitimas de estados psico-
patológicos, que os tornam menos responsáveis (porque me
nos capacitados para optar...) ou podem ser «arrastados»
pela onda, que lhes tira a lucidez de julgamento... Os atos
humanos sao extremamente complexos; o mesmo ato objetivo
e visivel pode ser praticado por diversas pessoas em diversos
graus de participagáo voluntaria. O pastor de almas deve ter
cuidado para considerar sempre os dois lados dos atos huma
nos: o objetivo e o subjetivo; nao queira precipitadamente
nivelar um e outro; pelo fato de que em varios casos pode
haver atenuantes de culpa (subjetivos), o ato fica sendo em
si. objetivamente, mau. O procedimento de muitos ou da
maioria nao é criterio de autenticidade e validade; pelo fáto
de que determinados comportamentos sao cada vez mais fre-
qüentes (a masturbagáo, por exemplo, as relagóes pré-matri
moniais. ..), nao se deve dizer que se tornaram legítimos ou
moralmente indiferentes. Sao palavras do S. Padre Paulo VI:

"Se os inquéritos sociológicos nos sao úteis, para conhe-


cermos melhor a mentalidade ambiente, as preocupacóes e
as necessidades daqueles aos quais nos anunciamos a Pala-
vra de Deus, bem como as resistencias que a razáo moderna
Ihe opóe, com o sentimento amplamente difundido de que,
fora da ciencia, nao existe outra forma legítima de saber,
entretanto as conclusóes de tais inquéritos nao poderiam
construir por si mesmas um criterio determinante da ver-
dade" (Exortacáo Apostólica "Quinqué iam anni", de
8/XII/1970).

Em suma, no campo da sexualidade, «Persona Humana»


ensina a fugir de dois extremos: a permissividade (que tende

— 347 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

a se alastrar cada vez mais) e a repressáo cega... A permis-


sividade libertina desonra a Deus e degrada a pessoa humana.
Quanto á repressáo cega, ela ignora os graus de profundidade
do psiquismo humano; contraria, conseqüentemente, á atitude
do Bom Pastor, que conhece a fragilidade humana e procura
compreendé-la, a fim de a condenar na medida em que deva
ser condenada e estimulá-la a se corrigir e restaurar.

Ao mesmo tempo, a Declaragáo propóe a prática da cas-


tidade e do bem em geral em vista de um objetivo positivo
ou de um ideal. Nao basta ensinar o horror do pecado, mas é
necessário também propor a grandeza de urna meta a ser
atingida,... meta que, em última análise, é a imitagáo de
Cristo. O entusiasmo .concebido em vista dessa meta há de
levar os fiéis á espontánea rejeicáo do mal e a prática gene
rosa das virtudes e, em especial, da castidade.

"A virtude da castidade nao se limita a evitar as faltas...;


ela tem ainda exigencias positivas e mais elevadas. £ uma
virtude que marca toda a personalidade no seu comporta-
mentó, tanto interior como exterior...

Quanto mais os fiéis compreenderem o valor da castidade


e a fungáo necessária da mesma, ñas suas vidas de homens
e de mulheres, tanto melhor eles captaráo, por uma especie
de instinto espiritual, as exigencias e os conselhos e melhor
saberáo aceitar e cumprir, dóceis ao ensino da Igreja, aquilo
que a consciéncia reta Ihes ditar nos casos concretos" ("Per
sona humana" n"? 11).

Vé-se assim que a Declaracáo «Persona humana», longe


de ser documento de inspiragáo arcaica, é expressáo do equi
librio atualizado da S. Igreja. Reafirmando a riqueza de dou-
trina do Evangelho e da Tradicáo, o documento soube assi-
milar outrossim as conclusóes da psicología moderna numa
demonstragáo de compreensáo e benevolencia para com a pes
soa humana.

— 348
Dentro da sociedade de consumo:

o aborto: íaíos significativos

Em sinlese: A leí liberallzadora do aborto fol promulgada na


Inglaterra em 1967 e comegou a ser aplicada em 1968. Desde entáo vém-se
registrando abusos, de que dño noticias alguns livros recém-publicados:
os Interesses económicos vém Inspirando numerosas InstltuIgSes, que de
certo modo fazem pressSo sobre as mulheres para que abortem; exlstem
agencias que negoclam a ida de pessoas grávidas á Inglaterra em flm
de semana para se submeterem a operacSo abortiva; a honestidade
médica tem sido conculcada... Vém-se pratlcando farsas "médicas" no
intuito de favorecer a aborto e os proventos que ele acarreta aos profis-
slonals. — É o que resulta, entre outras coisas, da bibliografía publicada
a respelto nos últimos tem pos.

Diante de quelxas contra os abusos ocorrentes, o Governo Inglés


Instltulu urna Comlssao para apurar os males; esta editou finalmente o
relatarlo Lañe (nome da senhora Presidente da Comlssáo). Também este
trabalho fol severamente criticado, pols examinou o que quis e ignorou
o que quis ignorar; concluiu que a prátlca do aborto é dever de todos
os profissionais do Governo, em oposicSo á cláusula da leí, de 1967 que
respeitava a llberdade de consciencia de cada médico(a) e de cada en-
fermelro(a). — Na Comissáo nSo foram incluidos senSo poucos médicos
e nenhuma personalldade que se tivesse professado contraria ao aborto.

Tais sao os desmandos que a recente historia do aborto aponta


na Inglaterra.

Comentario: O problema do aborto no Brasil nao é dos


mais candentes se nos atemos ao noticiario público. Em
outros países, porém, da Europa e da América do Norte é
grave, tanto pelos debates como pelas conseqüéndas que vem
tendo em setores diversos.

A revista «La Civiltá Cattolica» n« 3.017, de 6/111/1976,


ano 127, pp. 4G3-473, publicou um artigo do Pe. Giovanni
Caprile S. J., que analisa algumas obras atinentes á questáo
como ela se coloca na Inglaterra. Entre outras, sobressai, por
sua originalidade, o livro de M. Litchfield e S. Kentish inti
tulado «Babies for Burning. The abortion business in Britain».
London. Serpetine Press, 1974, 8» 192 pp. (Criansas para o
fogo. O negocio [ou a comercializacáo] do aborto na Grá-

— 349 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

-Bretanha). Esse livro foi comentado nao só na Inglaterra,


mas também no estrangeiro; tenham-se em vista, por exem-
plo, «Times» de 20/XH/1974; «Nuestro Tiempo», junho 1975,
pp. 84-87; o Boletim da Agencia Kipa de 4/1/1976; «II Giornale»
20/VIII/1975 ; «L'Amico del Popólo» (Chieti), 16/IH/1975 ;
H. van Straelen, «Aborto: la grande decisione», Leumann
(Turim) 1975, pp. 73-80.

O livro apresenta a documentagáo colhida por dois jorna


listas ingleses (um homem e urna mulher),... documentagáo
que evidencia a extraordinaria facilidade com que se pratica
o aborto na Grá-Bretanha, em conseqüéncia de legislacáo per-
missiva. Embora as leis exijam cautelas precisas antes de
qualquer intervencáo abortiva, a experiencia demonstra que
as restrigóes sao contornadas com facilidade — o que ocasiona
verdadeiros abusos.

Os dois jornalistas fizeram questáo de gravar (as ocultas)


as entrevistas e conversas que tiveram com o pessoal aten-
dente de hospitais, a fim de ter certeza de que nao estavam
atribuindo injustamente afirmacóes e atitudes estranhas a
tais pessoas; estas, alias, no livro-depoimento foram identifi
cadas pelo nome, o cognome e o enderego respectivos. — Nao
há dúvida de que tal processo merece reprovagáo; gravar dis
simuladamente palavras de alguém para depois divulgá-las
sem a devida permissáo contraria as normas mais obvias da
sadia ética. Feita, pois, a ressalva quanto ao método utilizado
pelos dois jornalistas, nao se pode deixar de reconhecer a fide-
lidade dos depoimentos. Alias, é de notar que Litchfield e
Kentish nao foram molestados nem denunciados perante a
Policía ou a Justiga por haverem assim procedido. As partes
indigitadas preferiram fazer descer urna cortina de silencio
sobre o caso; de resto, o livro desapareceu do comercio de
maneira rápida e surpreendente.

Dado o conteúdo singular do livro «Babies for Burning»,


julgamos oportuno dar ao nosso público conhecimento dessa
obra através do resumo que déla faz o Pe. Giovanni Caprile
no citado fascículo de «La Civiltá Cattolica»; com isto, ere
mos nao estar difundindo senáo a verdade. — Por certo, é
desagradável dar a lume a noticia de abusos do comporta-
mentó alheio, principalmente quando isto pode por em foco
pessoas ou instituigóes de certa projecáo. Todavía a divulga-
gáo de tais dados é necessária para que o público possa conhe-
cer algumas dast conseqüéncias da prática do aborto. Nem

— 350 —
ABORTO : FATOS SIGNIFICATIVOS 27

todos os que propugnam tal recurso, estáo conscientes dos


inconvenientes e desmandos degradantes que na realidade con
creta ela acarreta. Quem pensa em aborto, geralmente se
detém ñas aparentes vantagens que isto pode trazer para a
mulher grávida, mas ignora o que na verdade tal prática tem
significado para" a própria mulher.

1. «Críansas para o fogo»

M. Litchfield e S. Kentish sao apenas colegas de profissáo


jornalista. Ela nao é casada; jamáis esteve grávida, nem
mesmo após o inquérito dado a lume pelo livro em foco — por
menor este que será útil ao leitor conhecer. Foram ter a
numerosas clínicas de Londres, apresentando-se ora como um
casal de jovens esposos, ora como amantes, ora como noi-
vos..., preocupados por ter descoberto urna gravidez impre
vista e indesejada. Nessas circunstancias, iam pedir orientagáo
a quem a pudesse dar na Clínica.

Em geral, o procedimento dos Chefes de Servico ñas diver


sas Clínicas era o seguinte:

Diante das primeiras perguntas do «casal» perturbado, a


Enfermeira ou a Assistente procurava tranquilizar os dois
interessados: sem jamáis dizer urna palavra em favor da
crianga, sugería de imediato o aborto... E tratava logo de
dissipar as dúvidas que pudessem ocorrer: nao haveria perigo
nenhum;... a assisténcia médica seria a melhor que se pu
desse desejar:... a discricáo, absoluta:... o «casal» poderla
escolher a data que mais lhe conviesse, até mesmo um fim de
semana (week-end); a permanencia na Clínica seria de breve
duraqáo, ao máximo,... de urna tarde e urna noite;... no
prego do tratamento estaría incluido eventualmente o custeio
de um carro, que apanharia a senhora em casa, a levaría &
Clínica e a reconduziria ao domicilio. — Embora os dois apa
rentes cónjuges se mostrassem inseguros auanto ao alvitre a
tomar, a atendente já dava por certa a sua decisáo, como se
nao houvesse outra alternativa.

Urna vez suposta a aquiescencia do «casal» ao alvitre de


abortar, o (a) Chefe de Servigo, a fim de cumprir os dispositivos
da leí, passava a indagar a respeito dos motivos que levavam
os «cónjuges» a pedir o aborto. Propositadamente os jornalis-
tas indicavam os mais inconsistentes, como seriam: «Nesta

— 351 —
28 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

fase, um filho impediría a nossa vida social»; «... privar-


-nos-ia de urna viagem de ferias já programada»... Em al-
guns casos, os repórteres nao formulavam argumento algum;
apenas diziam que nao queriam ter filhos... A pessoa encar-
regada da entrevista nao dizia urna palavra de réplica a tais
respostas, mas ainda encontrava meios de encorajar a suposta
decisáo: «Julgo que um filho nao desejado é algo de ruim»,
dizia ela; o estado emotivo no qual se encontrava a suposta
máe, seria razáo suficiente; o fato de nao querer outros filhos
ou de nao estar preparada para os receber seria também
plausível.

Muitas vezes mesmo nao chegava a ser colocada a ques-


táo referente aos motivos do aborto; a atendente declarava
tratar-se de assunto estritamente privativo; por isto bastaría
o desejo dos cónjuges; os médicos depois encontrariam a base
legal para justificar o aborto, apoiando-se principalmente em
razóes psicológicas. O Governo, de resto, só estaría interes-
sado em conhecer os motivos do aborto por necessidades esta-
tísticas! Iitchfield e Kentish afirmam que boa parte (ou tai-
vez a metade) dos formularios preenchidos pelos requerentes
de aborto, até com nomes falsos, nao chega as repartigóes do
Governo.

Terminada a primeira etapa do processo, a atendente pas-


sava á segunda, que eram os preparativos médicos. Antes do
mais, era prescrito o exame de urina. Este tinha sempre
resultado positivo (existencia de gravidez), mesmo quando,
em lugar da urina da jornalista (a qual nunca estivera grá
vida), era dada á análise a urina do seu colega. Como se com-
preende, tal exame de laboratorio era pago, ... e pago ao
prego de urna até tres libras esterlinas! Alguns dos labora
torios fazem mais de 500 análises desse tipo por semana!

Enquanto mesmo se aguardava o resultado do laboratorio,


a paciente era incitada a proceder com rapidez, ou seja, a
procurar logo o médico para consulta... Esta terminava sem
pre com o diagnóstico de gravidez para a jornalista!

As vezes mesmo urna só consulta, em vez das duas pres


entas pela lei, bastava para ficar decidida a intervencáo abor
tiva. Em certas ocasióes era suficiente apenas um entendimento
telefónico com o médico. Em conseqüéncia, estabeleciam-se
os pormenores para a operacáo médica: data de entrada na
Clínica, pagamento adiantado em Clínicas particulares...

— 352 —
ABORTO : FATOS SIGNIFICATIVOS 29

Este era estipulado de acordó com o tempo de existencia do


feto no útero: até tres meses seria de cem libras aproximada
mente; depois subiría! Os dois jornalistas, alias, puderam cer-
tificar-se da realizagáo de abortos mesmo depois do sétimo
mes de gestagáo; averiguaram também que criancinhas extraí
das com vida do seio materno haviam sido atiradas no depó
sito de detritos para lá morrer.

Como se entende, depois de tomadas todas as providen


cias para o aborto, o «casal» nao voltava á Clínica, e com
outro nome passava a averiguar novos abusos em outras Clí
nicas particulares. Em seu livro, os dois jornalistas referem
comportamentos análogos ao descrito, inspirados muitas vezes
por cinismo, cobiga de dinheiro, inteneáo de burlar as leis...
Atestam auténtica carnificina cometida em algumas Clínicas,
ñas quais dizem ocorrer até trinta abortos por dia nos sete
dias da semana; denunciam também a existencia de urna orga-
nizagáo comercial destinada a facilitar os abortos: agencias,
publicidade nos jomáis, intermediarios entre a paciente e o
médico, lucros ilícitos de muitos profissionais... A leitura
das páginas que expóem tais fatos, leva o leitor a pensar sobre
a decepcáo a que se arriscam certos movimentos feministas
descriteriosos: propugnando a emancipacáo da mulher me
diante a permissáo generalizada de dispor de seu ventre, mui
tas mulheres nao veém a que degradante exploragáo se
expóem, visto que muitas vezes sao reduzidas a condicáo de
joguetes e escravas dos mais baixos sentimentos de egoísmo
e ganancia. As páginas de Litchfield e Kentish estáo marca
das por observagóes e fatos que muito dáo a pensar.,

A parte final do livro tem por título «Criangas para a


incineragáo». Ai lembram os autores que, segundo a lei, todos
os restos humanos derivados de aborto deveriam ser enviados
ao incinerador; todavía isto nem sempre acontece. O jornalista
Litchfield, fingindo ser o representante de urna firma impor
tante, obteve finalmente de médico famoso a mencáo de que
os restos humanos provenientes da sua sala de operacóes
tomam «outro caminho» (ou «desaparecem», no dizer do cirur-
giáo)j tal outro caminho era o de urna fábrica de sabáo e
cosméticos, substancias estas para cuja confecgáo as gorduras
naturais sao as mais indicadas. E o caso desse profissional
nao era caso isolado !

— 353 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

2. Observares complementares

Foi aos 27/IV/1968 que o «Abortion Act», aprovado no


ano anterior peio Parlamento Inglés, se tornou efetivo ou ope
rativo na Grá-Bretanha. Tal data foi saudada pelos propug-
nadores do aborto como dia de libertacáo. Estaría extinta
a praga dos abortos clandestinos e a mulher alcanzaría urna
posigáo de dignidade e paz antes nao conhecida; conter-se-ia
a cupidez dos exploradores, que sacrificavam os casáis ou as
mulheres menos aquinhoados do ponto de vista financeiro...
Ora oito anos após a aplicacáo da legislagáo permissiva do
aborto, verifica-se na Inglaterra quáo ilusorias foram as espe
ranzas depositadas em tal medida governamental: nem a mu
lher nem a sociedade se dignificaram em conseqüéncia da prá-
tica do aborto.

Com efeito, observem-se mais alguns fatos concretos, os


quais complementam os que foram atrás mencionados.

1. A legislagáo inglesa de 1967/8 fez que se elevasse


consideravelmente o número de abortos na Grá-Bretanha.
Disto resultou que as Clínicas do Governo já nao pudessem
atender á demanda de pacientes interessadas... Ora, já que
a lei limita o prazo dentro do qual é lícito praticar o aborto,
a mulher grávida nao pode esperar semanas ou meses sem
correr o risco de já nao conseguir realizar legalmente o seu
intento. Gonseqüentemente a procura de Clínicas particulares
(honestas e de confianca, pois nem todas sao tais) aumentou
grandemente. Assim, enquanto a quota anual de abortamentos
legáis está em continua ascensáo, o porcentual das interven-
góes pfaticadas gratuitamente pelos Servicos Médicos do Go
verno vai decrescendo: 55,1% em 1970; 42,4% em 1971; 36,5%
em 1972...

Ora sabe-se que as operacóes abortivas efetuadas em Clí


nicas particulares custam altos presos: após doze semanas de
gravidez, cobram-se de 150 a 200 libras esterlinas; após 16 se
manas, nao menos do que 300 libras esterlinas...!

A especulagáo financeira instaurou-se em torno da prá-


tica do aborto: há profissionais que cobram pregos «gordos»
e tudo fazem para os coonestar perante os agentes do fisco e
do imposto de renda... Entre outras solugóes, criaram autén
tica rede de negocios ou criaram empresas, que procuram
atrair á Inglaterra mulheres estrangeiras desejosas de abor-

— 354 —
ABORTO : FATOS SIGNIFICATIVOS 31

tar. Em setembro de 1973, varios ginecologistas italianos rece-


beram de urna cooperativa de Clínicas particulares inglesas
urna circular que oferecia as clientes desses médicos um «weed-
-end» abortivo ao prego de 175 libras esterlinas, sendo 15 li
bras por paciente entregues ao médico italiano que partici-
passe da negociáta. Outras Clínicas inglesas organizaran! um
servico de recepcionistas e de motoristas de taxis que indicam
esta ou aquela casa de Maternidade as senhoras que chegam
aos aeroportos. Assim se fazem negocios altamente lucrativos
— o que está em contraste com a previsáo de David Steel,
que patrocinou a lei permissiva do aborto no Parlamento: o
«Abortion Act», julgava ele, pora fim ao fato de que existe
urna lei para os ricos e outra para os pobres.

2. A quanto se sabe, sao especialmente vítimas de pres-


sáo para abortar as máes solteiras. Médicos e assistentes
sociais se interessam por induzi-las ao aborto, explorando a
desgrana da paciente a fim de extrair daí lucros financeiros.
É o que atesta um jornalista depois de haver longamente pes
quisado o assunto:

"As jovens sao literalmente cerceadas para que pratiquem


o aborto. Desde que sejam por um Centro de Exames Médicos
ou urna Clínica declaradas grávidas, nao há escapatoria para
elas. Sao enviadas de urna instancia a outra..., onde ouvem
repetidamente dizer que nao há outra alternativa... Saem
finalmente dessa engrenagem sem o seu filho, sem coisa al-
guma a nao ser confusáo. Falei com ¡numeras jovens que
tinham ido a urna Clínica para pedir um parecer sobre a su a
gravidez. Com que resultado? — Em resposta, ouviram dizer
que, estando elas aínda em idade de se casar, a sociedade
as marginalizaria e que a única solugáo 'honrosa' sería o
aborto. No espaco de tres horas o aborto era decidido e
executado. Nao era dada ás jovens a ocasiáo de tomar dis
tancia, saindo da Clínica, para refletir. Depois de ter sido
mandadas de um médico a outro, eram acompanhadas até o
Banco a fim de retirar o dinheiro suficiente á intervencáo
cirúrgica; depois voltavam á Clínica, onde ersm levadas á sala
de operagáo.

Sete Centros de Exames Médicos e Clínicas declara-


ram-me 'grávido': a minha urina foi enviada por um médico
a essas Clínicas, as quais todas responderam positivamente
(diagnosticando minha gravidez). Isto mostra como funciona
bem o "Abortion Act" (texto encontrado em italiano no artigo

— 355 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

de G. Caprile, "La fallimentare liberalizzazione dell'aborto in


Gran Bretagna", em "La Civiltá Cattolica" n? 2981, 7/IX/1974,
p. 407, nota 7. O rvome do jornalista nao é citado pelo arti
culista).

Este texto, carregado de cores sinistras e graves, parece


escapar as raías do verossímil e assumir aspectos de fantás
tico. A fonte, porém, donde foi retirado, assim como observa-
cóes paralelas colhidas em outras fontes, abonam o crédito que
tais dizeres do jornalista merecerá Quando o homem ou a
sociedade comegam a dar largas á permissividade, ainda que
sob rótulos de filantropía, nao é possível frear a libertinagem,
que vai encontrando novas e novas facetas de si; os compor-
tamentos mais estranhos e absurdos se tornam entáo realidade.

3. Ainda se podem por em relevo as conseqüéncias do


Abortion Act sobre a vida moral da juventude. Esta, a quanto
parecía, encontraría na prática do aborto o remedio para as
conseqüéncias indesejadas de experiencias sexuais. Ora, em
vez de remedio, o aborto (assim como toda a permissividade
que se alastra pela sociedade) parece ter-se tornado excitante
de novos e novos males. Tenham-se em vista os seguintes
números:

a) Em 1970, 75.962 mulheres na Inglaterra obtiveram


a prática do aborto. Dessas

3 tinham 11 anos
291 tinham 14 anos
15.250 tinham entre 15 e 19 anos
19.838 tinham entre 20 e 24 anos
b) Em 1971, sofreram intervencáo abortiva
96 jovens entre 11 e 13 anos,
2.618 jovens entre 13 e 16 anos.
c) Em 1972, abortaram 3.099 jovens em idade inferior
a 16 anos.

d) Em 1973, nos primeiros nove meses já se contavam


2.491 em tais condicóes.

Estes dados sao confirmados pelo brado de alarme lan-


cado pelos diretores e professores de escolas na Inglaterra,
impressionados pelo número crescente de abortos praticados
em estudantes: no ano de 1972, eram em media 60 abortos,
por semana, realizados em meninas de idade inferior aos 16
anos.

— 356 —
ABORTO : FATOS SIGNIFICATIVOS 33

4. Compreende-se que a prática liberal do aborto na


Inglaterra tenda a repercutir de maneira geral no setor social.
Vai-se atenuando cada vez mais o senso de respeito á vida
humana. Assim o infanticidio tem sido apregoado...; o jor
nal «Times» de 22 de Janeiro de 1973 publicou as seguintes
declaragóes de Miss Barbara Smoker, presidente da «National
Secular Society» e vice-presidente da «British Humanist Asso-
ciation»:

"A condicáo de urna enanca recém-nascida é muito dife


rente da mesma enanca poucas semanas depois de nas-
cida... Ao nascer, a crianga é apenas um ser humano poten
cial; por conseguirle, praticam sem dúvida um gesto de huma-
nidade e sensibilidade os médicos e as parteiras que sem
preocupagáo eliminam a vida de toda crianga que aprésente
evidentes anomalías físicas ou cerebrais. Nao se deveria dei-
xar á familia a decisáo em tais casos, pois os familiares
geralmente sao demasiadamente emotivos; apenas nos caaos
extremos o médico levaria em conta o estado psíquico da
familia á qual estivesse vinculada a crianga anómala".

Em muitas Clinicas do Governo, juntamente com o aborto


se pratica a esterilizagáo da mulher. Acontece mesmo, por
vezes, que o aborto só é concedido sob a condigáo de que a
paciente se submeta á esterilizagáo. As mulheres tornadas
esteréis constituem 50% das senhoras casadas que obtiveram
a interrupcáo da gravidez.

5. Quanto aos médicos e enfermeiros, a lei os deixa


livres para participar ou nao de intervengóes abortivas, de
acordó com as suas conviccóes pessoais. Todavía, no exercício
concreto da sua profissáo, véem-se freqüentemente diante de
serios dilemas: ou colaboram com a praxe abortiva ou sao
marginalizados no servigo, verido-se mesmo constrangidos a
deixar definitivamente o lugar a colegas mais dispostos a cola
borar. .. Estes sao por vezes aborteiros de tempo integral,
pois assim captam mais ricos proventos, que eles hábilmente
sabem subtrair ao controle do fisco.

Resta agora dizer urna palavra sobre a atitude do Go


verno no caso.

3. O relatório Lañe

Diante de repetidas denuncias públicas e por causa da


campanha promovida no Parlamento pelo deputado católico
Norman St. John Stevas, o Ministerio da Saúde e da Segu-

— 357 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

ranga Social em junho de 1971 nomeou urna comissáo desti


nada a apurar os defeitos ocorrentes na aplicagáo da lei. O
grupo era constituido por quinze membros, dos quais dez eram
mulheres. Após tres anos de pesquisa, publicou seus resul
tados em tres grossos volumes, também ditos «o Relatório
Lañe» (nome da presidente da Comissáo, que é a primeira
senhora juíza da Corte Suprema).

Esse relatório firmou alguns pontos positivos, como a


necessidade de nao se praticar o aborto sem indicacóes médicas
e sociais, a necessidade de mostrar á mulher grávida os pros
e contras do aborto... Todavía o relatório sofreu severas
criticas:

Assim, por exemplo, a composigáo da Comissáo foi con


testada, visto que nela os médicos eram minoría e nao havia
representante dos movimentos contrarios ao aborto (excluidos
intencionalmente) A Comissáo foi censurada por nao ter
levado em conta os aspectos moráis do problema,... por ter
concluido que a execucáo do aborto constituí dever para os
médicos e enfermeiros (na verdade, a lei de 1967 respeitava
a consciéncia dos profissionais que nao quisessem praticar
intervencóes abortivas); conseqüentemente, os técnicos que
nao queiram cooperar com as práticas abortivas, ou tém que
deixar as suas fungóes ou sao submetidos a duro drama de
consciéncia. A Comissáo de Trabalho também foi acusada de
so ter visto o que quería ver e haver ignorado o que quería
ignorar, de tal modo que o relatório Lañe veio a ser urna
grande farsa na historia dos inquéritos govemamentais!

Sao estes alguns dados referentes á introdugáo do aborto


na Inglaterra. Os tópicos recenseados sao duros e talvez dei-
xem o leitor perplexo... Á guisa de conclusáo, desejamos
repetir que merecem crédito, dada a autoridade das fontes
donde foram extraídas as noticias; nao os divulgaríamos se
nao fossem fundamentados e se nao tivéssemos a certeza de
que o conhecimento destes dados pode ser útil ao público
brasileiro.
A propósito veja-se aínda
G. Caprile, "La fallimentare liberalizzazione dell'aborto ¡n Gran
Bretagna", em "La Civiltá Cattolica" 1974, III, pp. 404-415.
ídem, Ib. 1968 II, pp. 492-496;
1971 I, pp. 487s ;
1971 III, pp. 415s;
1972 I, pp. 400-406 ;
1972 IV, p. 166 ¡
1973 I, pp. 69. 485.

— 358 —
Mudou a fá?

crer no purgatorio hoje?

Em sfnteae: A existencia do purgatorio e o valor dos sufragios


pelos fiéis defunlos foram recentemente reafirmados por Mons. Roger
Etchegaray, bispo de Marselha, em urna nota sintética e pastoral, que vai
reproduzida a seguir em traducáo brasllelra e acompanhada de breves
comentarios.

A crenca na existencia do purgatorio tem fundamento bíblico (cf.


2Mc 12, 39-46), que fol explicltado pela Tradicao crista tanto no Oriente
como no Ocldente. Explica-se pela vocacáo do cristáo a ver Deus face-a-
-face; nenhuma Impureza ou escoria do pecado pode subsistir na pre
senta de Deus, tres vezes santo. — O que dificulta a aceitado da dou-
trina do purgatorio, sao, em grande parte, as concepcdes fantaslstas que
Irte foram acrescentadas.

Conseqüentemente, justitlcam-se os sufragios pelos fiéis defuntos;


Deus. quer dar a sua graca ¿s criaturas mediante o ministerio que urnas
exercem em favor de outras.

9 *

Comentario: É notorio que nos últimos tempos a clás-


sica doutrina referente ao purgatorio tem sido discutida, de
modo que muitos fiéis se acham em dúvida sobre a existencia
e a natureza do purgatorio. Conseqüentemente, a prática dos
sufragios pelos defuntos (o costume de orar pelas almas do
purgatorio, as Missas de 7», 30» dia, aniversario, etc.) tem
sido objeto de hesitacáo.

A propósito já foram publicados artigos em PR 90/1967,


pp. 252-261; 126/1970, pp. 245-257. Nossa revista volta
agora ao assunto, transmitindo aos seus leitores urna nota
do Sr. Bispo de Marselha, Mons. Roger Etchegaray, publi
cada no boletim diocesano «I/Église aujourd'hui á Marseille»
de 23/XI/75. — Este texto, embora nao aprésente elevadas
consideracóes bíblico-teológicas, tem dois títulos de mérito:

— 359 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

— é assaz concreto e atende a um problema oriundo na


pastoral de cada dia;

— é a palavra de um bispo, que nao é voz isolada, mas


fala como membro do colegio apostólico em comunháo com
o bispo de Roma. — A propósito seja aqui citada a passagem
do «Credo do Povo de Deus», promulgado pelo S. Padre
Paulo VI aos 30/VI/1968, na qual é abordado o tema «pur
gatorio»:

"Cremos na vida eterna. Oremos que as almas de todos


aqueles que morrem na grasa de Cristo, quer se devam aínda
purificar no purgatorio, quer sejam recebidas por Jesús no
paraíso no mesmo instante em que deixam os seus corpos,
como sucedeu com o bom ladráo, formam o povo de Deus
para além da morte, a qual será definitivamente vencida no
dia da ressurreicáo, em que estas almas se reuniráo aos seus
corpos".

Este texto, que professa a existencia do purgatorio pos


tumo, ecoa ñas palavras de Mons. Etchegaray abaixo trans
mitidas. Merece atengáo o estilo marcadamente pastoral do
bispo de Marselha.

1. O texto de Mons. Etchegaray

"Nao há dúvida, existem hoje numerosos temas que, mais


do que este (o do purgatorio), exigem reflexáo teológica.
Todavia, se abordo este, é pelo fato de que tal tema (o purga
torio) é revelador de um estado de espfrito: há quem o tenha
relegado para os depósitos poeirentos da Igreja, enquanto
outros procuram ardorosamente transpor 'esse riacho pouco
profundo' (Gabriel Mancel) que nos separa dos mortos para
entrar em comunicagáo com o Além. Esta semana, dois con-
sulentes perguntam-me por carta: 'Por que a Igreja nao reza
mais pelas almas do purgatorio?' A nossa maneira de con-
ceber o purgatorio é um teste da retidáo da nossa fé, que
muitas vezes se arrisca a falar demais ou a falar insuficien
temente sobre o assunto.

Em primeiro lugar, é claro um ponto que se tornou cons


tante ao longo da Tradicáo viva da Igreja: Deus quer que
rezemos pelos mortos, como isto já foi demonstrado na his-

— 360 —
O PURGATORIO 37

tória de Judas Macabeu (2Mc 12,36-49). Com efeito, Judas


Macabeu, tendo encontrado, ñas vestes de soldados caídos
em combate, objetos consagrados aos (dolos, mandou ofere-
cer um sacrificio expiatorio, convicto de que os defuntos se
purificam entre a morte e a ressurreicáo, beneficiados pelos
sufragios dos vivos. É preciso reconhecer que a S. Escritura,
tomada em si só, mais insinúa do que explícitamente men
ciona a existencia do purgatorio; todavía a tradicáo unánime
do Oriente e do De i dente atesta a realidade do mesmo. Infe
lizmente, porém, no Ocidente temos tendencia a coisificar
todas as nocóes, a transformar a teología em fisiología, ao
passo que a Escritura se interessa menos por aquilo que as
coisas sao em si mesmas do que por seu significado.

Que havemos, pois, de concluir no tocante ao purgatorio?


— Chegamos outrora — ao menos ñas pregacóes e na ico
nografía — a considerar o purgatorio como se fosse um
inferno nao eterno; contabilizamo-lo como se se tratasse de
anos de prisao, ao passo que o fogo de que se trata em cer-
tos textos patrísticos ou litúrgicos, significa apenas o fogo do
julgamento; nao se pode falar nem de lugar nem de duracáo
em relagáo as almas separadas dos seus corpos.

É certo que nao podemos pensar sem imagens, mas pro


curemos nao dar largas á nossa imaginacáo onde precisa
mente a Igreja nos incute a sobriedade e a discricáo. A dou-
trina do purgatorio, nos confrontos tanto com os ortodoxos
(Concilios de Liáo em 1274 e de Florenca em 1439) quanto
com os protestantes (Concilio de Trento, 25a. sessáo, em
1563) foi apresentada de modo que evitasse todo excesso
para só guardar o essencial; mesmo em Trento fo¡ recomen
dado aos bispos que impedissem a apresentacáo, aos fiéis,
da entáo habitual exuberancia de pormenores discutiveis e
incapazes de ser provados.

Em suma, eis o que devemos crer:

1) Existe um processo de purificagáo das almas que


morrem na amizade de Deus, pois nao pode entrar na vida
com Deus um só átomo de egoísmo, nem o mínimo residuo
de pecado;

2) A intercessáo dos fiéis e, em particular, o sacrificio


da Missa sao eficazes em favor dessas almas postas 'na

— 361 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

expectativa do paraíso', segundo a leí da solidariedade, que


a morte nao é capaz de suspender.

No meio-tempo que precede o juízo final, a obra da sal-


vacáo prossegue nao somente sobre a térra, mas também do
outro lado do véu, na Igreja e pela Igreja.

Aos 23 de novembro de 1975

t Roger Etchegaray"

As sucintas consideragóes de Mons. Etchegaray poderiam


ser assim explicitadas:

2. Cinco pontos importantes

A leitura da nota do Sr. Bispo de Marselha sugere, entre


outras, cinco ponderacóes de relevo:

1) «Teste da retidáo da nossa fé...» A maneira como


os fiéis se comportam diante da doutrina do purgatorio, é
sintomática para a maturidade da respectiva fé. Com efeito;
a nogáo de purgatorio postumo implica a de Redencáo por
Cristo, fidelidade dos homens á graca de Deus, vocacáo a ver
Deus face-a-face... Sao estas as verdades de fé que se pro-
jetam na doutrina crista do purgatorio. Se hoje em dia há
desvíos em torno da mesma, estes se devem a concessóes ao
racionalismo ou a pressupostos de origem protestante ou ainda
a devaneios da fantasía desorientada e sentimental. Possivel-
mente as descricóes imaginosas do purgatorio contribuiram
para que, em reacáo, muitos pensadores (inclusive Lutero)
rejeitassem total ou parcialmente a doutrina do purgatorio,
considerando-a (tal qual era apres*ntada popularmente) como
indigna de Deus. Sabe-se outrossim que o espiritismo hoje
em dia, embora nao aceite o purgatorio no sentido católico,
explora a crenga na sobrevivencia das almas e julga poder
estabelecer comunicacáo com os defuntos mediante ritos e
práticas, que no fundo tém efeitos preponderantemente suges
tionantes e parapsicológicos. Ponham-se, pois, de lado os con-
ceitos inadequados de purgatorio e de comunicacáo com os
mortos para se chegar á nogáo teológica de purificagáo
postuma.

— 362 —
O PURGATORIO 39

2) A realidade do purgatorio está contida na S. Escri


tura em termos implícitos mais do que em linguagem explí
cita. A propósito cita-se a passagem de 2 Me 12... Este texto
revela que na mentalidade judia do Antigo Testamento (séc.
n a. C.) ia desabrochando a consciéncia de que mesmo aque
les que morrem com o seu amor voltado para Deus, podem
trazer incoeréncia e certas contradigóes em seu modo de pen
sar ou agir; tém um amor fundamentalmente dirigido para
Deus; mas esse amor ainda nao é suficientemente forte para
extinguir as expressóes e as raízes do amor egoísta ou cobí-
goso ou idólatra. Tal é o misterio da pessoa humana; esta é
um mundo de tendencias múltiplas, que por sua índole natu
ral podem ser contraditórias («a carne cobica contra o espi
rito e o espirito luta contra a carne», conforme Gl 5,16-24);
ora a grande tarefa do cristáo consiste precisamente em redu-
zir essa multiplicidade de desejos contraditórios á unidade
harmoniosa ou a urna síntese que reproduza lucidamente os
tragos do Cristo Jesús. Se o discípulo de Cristo é negligente
e tibio (o que nao quer dizer «rebelde») na realizagáo desta
tarefa a ponto de morrer com o seu amor a Deus mesclado
de incoeréncia, ele nao pode ver a Deus face-a-face logo após
a morte; mas tem que se libertar das escorias do pecado ou
das impurezas que ele nao teve a coragem de extinguir radi
calmente durante a vida presente. — Ora é essa purificagáo
postuma que se chama «purgatorio». Este é imprescindível,
visto que Deus é tres vezes santo e nada de impuro pode
subsistir na presenga dele. A afirmagáo, pois, de que existe
o purgatorio é algo de lógico, decorrente dos principios da fé
crista. — Verdade é que Cristo nos mereceu a expiagáo dos
pecados e nada se pode acrescentar aos méritos do Salvador;
isto, porém, nao quer dizer que o homem receba passivamente
a Redengáo adquirida pelo Senhor Jesús; Este exige que a
criatura, sustentada pela grasa de Deus (que nunca falta),
corresponda á generosidade do Salvador e faga seu esforgo
consciente de luta contra o pecado e de erradicagáo total do
mesmo.

3) Nao temos conceitos adequados para explicar como


se desenvolve a purificagáo postuma. É certo que está fora
da contagem de días e anos (isto nos é inconcebível, pois tudo
o que conhecemos de sensivel se encerra na moldura do calen
dario). É certo também que nao implica fago ou tormentos
sensiveis a semelhanga das descrigóes que Dante fez do inferno
na «Divina Comedia». Outrossim deve-se excluir do purga
torio postumo a nogáo de lugar ou espago; renuncie-se a ela-

— 363 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 200/1976

borar a «topografía do Além». Em termos positivos, poder-


-se-ia dizer que o purgatorio postumo é a obra do amor que
realiza com lucidez e energía plenas o que, por leyiandade,
nao realizou por completo antes de deixar este mundo; o
amor entio penetra até o fundo a personalidade do sujeito e
«queima», destrói, apaga ai qualquer resquicio de más incli-
nagóes ou de pecado. Seja suficiente esta afirmagáo, que se
apresenta, ao mesmo tempo, plausível e sobria; é verídica e
evita devaneios fantasistas.

4) Em conseqüéncia, os fiéis no estado de purgatorio


postumo podem ser auxiliados pelas preces ou pelos sufragios
da Igreja militante ou peregrina na térra; as oragóes dos cris-
táos neste mundo sao aptas a obter de Deus a graga neces-
sária para que o amor dos fiéis que deixaram esta vida, rea-
lize a sua obra intensa e cabalmente. Em suma, Deus quer
beneficiar suas criaturas urnas mediante outras, de modo
que existe urna comunháo de méritos entre os membros da
Igreja,... comunháo que a morte física certamente nao extin
gue. Eis por que, desde os primeiros séculos, a Igreja (e, com
Ela, os fiéis em particular) sufragaram os fiéis defuntos, ofe-
recendo a Deus Pai as suas preces ou o S. Sacrificio da Missa;
o Senhor Deus aplica esses sufragios segundo a sua imensa
sabedoria, de tal modo que nao compete á Igreja na térra
entrar em minucias no tocante á sorte das almas dos fiéis
defuntos.

5) «A S. Escritura insinúa mais do que explícita a nogáo


de purgatorio». — Isto nao surpreende o fiel cristáo, pois a
Biblia mesma nao pretende ser fonte única da fé crista; ela
própria se refere as tradigóes oráis que a precederam e sem-
pre a acompanharam. Cf. Jo 20,31; 2Ts 2,15; 2Tm 1,13;
2Pd 1, 19-21; 3,15s. A S. Escritura, pois, há de ser lida á luz
das tradigóes que desde os tempos pré-cristáos ou desde a
era dos Apostólos se hajam transmitido ininterruptamente no
povo de Deus; o porta-voz auténtico, e instituido por Cristo,
dessas tradigóes ou dessa Tradigáo é o magisterio da Igreja.
— Ora, como se vé, desde os tempos dos Macabeus (sec. 2
a. C.) até os días atuais o povo de Deus — e, com ele, o
magisterio da Igreja — sempre professou a existencia do pur
gatorio tanto no Oriente como no Ocidente. Tal doutrina,
portante, tem a firmeza de um artigo de fé.

Em conseqüéncia, vé-se que continua tendo sentido o cos-


tume de orar pelos mortos e de oferecer em sufragio dos mes-

— 364 —
O PURGATORIO 41

mos a S. Missa; a teología, mediante as suas linhas mais


seguras e centráis, justifica tal prática.

Quanto á celebracáo da S. Eucaristía em días determi


nados (39, 7«, 30» aniversario...), deve-se dizer que tal fixa-
cáo de prazos ou datas nada tem de dogmático. Deve-se a
costumes medievais condizentes com a psicología humana, que
precisa de ser avivada e auxiliada por sinais sensíveis; assim
os números 3, 7, 30 e outros podem ser tomados como lem-
bretes e estímulos para a oracáo — o que é válido. Nada
impede, pois, que se conservem tais costumes na Igreja de
hoje, visto que até nossos dias a mente humana precisa de
sinais concretos e estimuladores, como é a consagracáo de
certas datas a certas celebracóes.

A respelto de sufragios pelos defuntos (historia, valor e signilicado),


veja PR 143/144/1971, pp. 495-505 e 145/1972, pp. 37-42.

A propósito do purgatorio pode-se recomendar:

C. Pozo. "Teología del más allá", em "Biblioteca de Auctores Cris


tianos" n? 282, Madrid 1968.

E. Bettencourt, "A vida que cometa com a morte". Rio de Janeiro2


1958.

R. Garrlgou-Lagrange, "O homem e a eternidade". Lisboa 1959.

"Se purlfler pour voir Dieu", em "La Vie Spirltuelle", t. LVIII n"? 491
(1963); número inteiro dedicado ao purgatorio.

M. Jugle, "Le purgatoire et les moyens de l'éviter". Paris 1940.

"Chrlstus-Cahlers Splrituels", t. 9, n? 34 (1962).

Estóvalo Bettencourt O.S.B.

Aos 27, 28 e 29 de agosto pf. haverá na Casa de Retiros do Mos-


teiro de SSo Bento do Rio um retiro a cargo de monges benedltlnos sobre
o tema "Esse Jesús que é o Cristo". Informacoes e inscrlc6es: Rúa Dom
Gerardo, 68, Caixa Postal 2666. Fone: 25)3-7122.

Sendo limitado a 50 o número de participantes, teráo preferencia os


que primeiro se inscreverem.

— 365 —
a XI semana bíblica nacional
A Liga de Estudos Bíblicos (LEB) do Brasil promoveu, de 5 a 10
de julho pp., a sua XI Semana Nacional. Teve lugar no antlgo e venerável
Seminarlo de Ollnda (PE) e contou com a presenca de 24 professores de
S. Escritura esparsos pelo Brasil desde o Rio Grande do Sul até o
Ceará; além destes mestres, compareceram as sessdes de estudos Reli
giosas e lelgos Interessados no assunto, perfazendo um total de sessenta
participantes aproximadamente. Abrllhantaram outrossim o certame os Srs.
Arcebispos D. Helder Cámara, de Ollnda-Recife, e D. JoSo Batista da
Motta e Albuquerque, de Vitoria (ES), além de D. José Alberto de Castro
Pinto, blspo de Guaxupé (MG), Presidente da LEB.

O tema central dos estudos foi "A ESCATOLOGIA", cujos diversos


aspectos estiveram a cargo dos conferencistas, abrangendo desde as
expressóes egipcias de crenca no Além até as questdes mais recentes
que a teologia católica vem estudando. As palestras decorreram todas
em alto nivel, dando a ver mais urna vez que no Brasil existem exegetas
de notável cultura e autoridade.

Como se compreende, nao era intencSo dos semanlstas chegar a


conclusSes exegéticas ou teológicas. Os temas do programa foram apro-
fundados no intuito de delxar patentes as razies em prol ou em contrario
das teses discutiveis. Todavía algumas notas marcaram profundamente
os estudos da semana, merecendo ser aqui destacadas:

1) A vida crista é existencia dietética, em que o ter e o n§o ter,


o possulr e o esperar, o "haver sido" e o "vlr a ser" se entrelacam
constantemente. Dois homens — o velho e o novo, na terminología de
SSo Paulo — existem dentro do cristáo, de tal modo que, na medida
em que o homem velho val definhando, o homem novo se revlgora pro-
gresslvamente; cf. 2Cor 4, 16. — De modo semelhante, dois mundos
(ou alones, em grego) se interpenetram atualtnente; o mundo anterior
a Cristo (contaminado pelo pecado e a morte) e o mundo renovado, em
que as conseqüéncias do pecado, especialmente a morte, estio superadas.
Por isto o cristSo e, com ele, todas as criaturas sofrem como que dores
de parto e gemem, aguardando a plena revelado da vida nova latente
debaixo das realidades mortais e corruptfveis que aparecem aos olhos
do observador; cf. Rm 8, 19-22.

2) A historia só se entende como um caminhar para a plenitude


ou consumacao. Esta sobrevirá á fase de preparacáo (tempos anteriores a
Cristo) e á de cumprlmento das promessas (tempos da tgreja vlslvel).
Digno de nota é o tópico seguinte, depreendido na filosofía contempo
ránea : o estruturalismo de Lacan, que constituí urna das mais recentes
expressdes do pensamento ateu, julga que no fundo da realidade (do
homem, das coisas e da historia) existe um dinamismo como que orientado
para um termo final e consumador; estarla, pois, na estrutura dos seres
a tendencia a urna meta, que, serla a GRANDE RESPOSTA ao homem e
á historia. — O próprio Nietzsche (t 1900), que proclamou a morte de
Deus, ó o autor moderno que mais falou de eternidade (tenha-se em
vista particularmente a sua obra "lAssim falou Zaratustra"). Também me
rece ser citado Karl Marx (t 1883): este, propondo a libertacSo do homem
pelo sacrificio das classes proletarias, nao fez senSo formular, em termos
seculares ou ateus, aquilo que a escatologia judeo-crlstS sempre professou
(o Messlas da Biblia ou o Salvador veio a ser o proletariado que se
¡mola, na "crenca" atéia de K. Marx). Alias, a literatura moderna, por

— 366 —
A XI SEMANA BÍBLICA NACIONAL 43

mals atéia que seja, aparece chela de "utopias"; ela sonha, como as
crencas religiosas, com amor perfeito, reconciliacáo universal, abolicSo
de todo mal, vida sem fim...

3) A esperanca está Inseparavelmente assoclada á fé crista; cons


tituí mesmo urna das atitudes mais características dessa fé. Só lem espe
ranca aquele que nSo possul tudo. — Todavia o Oeus em que os cristios
esperam, é um Deus silencioso e discreto; tem seus prazos insondávels e
pede aos homens que O aguardem tenazmente. Por isto a perseverarla
é indissociávet da esperanca. é verdade que Deus delxou aos homens
um slnal-penhor de sua intervencao final consumadora: o sitial de Joñas
(cf. Mt 12,39),... mas tao somente o sinal de Joñas 1 é, sim, a Vitoria
de Cristo ressuscitado sobre o pecado e a morte que alimenta a esperanca
do cristáo na luta de cada dia. Precisamente este sinal nos ensina que
a vitória definitiva pode ser precedida de aparentes revezes e fracassos
(a ressurreicSo de Jesús só ocorreu após o aniquilamento do Senhor
na cruz). Alias, quem langa um olhar retrospectivo sobre a historia da
humanidade, verifica que a sua trama se constituí de avancos e recuos ;
as civilIzagSes surgem e desaparecem para dar lugar a outras.

Tais idéias sugerem a pergunta: afinal de coritas, que vale mals


— os nossos sucessos ou os nossos fracassos ? — A experiencia ensina
que nao devenios valorizar exclusivamente os nossos sucessos (nem nos
iludir a respeito deles), pois na verdade o que Deus quer de nos é a
luta, e nao o sucesso; a luta, aparentemente estéril, em prol da melhor
causa é, como tal e sempre, enorme valor, Independentemente dos resul
tados que ela possa obter; com efeito, é na luta que se fortifica um
organismo; adquirimos desteridade ou habilidade ao fazermos... coisas
útels ou mesmo coisas inúteis; sim, um artista se torna artista ao produzir
artefatos, melodías ou poesías, que nem sempre ele guarda, mas, na
maioria dos casos, esquece ou joga fora; o "ter pratlcado o exerclclo
(áskeels, em grego)" Já é um grande valor.

Se hoje existem tantos males no mundo, a fé Ihes responde com


urna atitude de esperanca,... esperanca na mió parusíaca de Deus ou
na mSo de Deus que intervertí voladamente no decorrer da historia e se
manifestará plenamente na consumacSo dos tem pos.

Quem possul tal esperanca, torna-se manso e sereno. A serenldade


é o fruto da esperanca perseverante do cristao.

4) O texto de 1Cor 7, em que SSo Paulo fala de matrimonio e vir-


gindade, foi estudado á luz da escatologia. Na verdade, o Apostólo pro-
p6e a vida una ou Indivisa como atitude do cristáo decorrente da cons-
ciéncla de que os bens ditos "futuros" já fizeram a sua entrada no
mundo atual; nao há mais tempo a perder nem energías a dispersar, mas
é preciso convergir com todas as fibras para o Eterno presente que com
Cristo irrompeu no mundo, é Interessante notar que a vida una já era
entendida pelo filósofo estoico Eplcteto (t 125/130 d.C.) como a atitude
mais coerente que um sabio pudesse assumir; embora se arriscasse a
nSo ser compreendido pelos seus semelhantes, o filósofo deveria viver
a vida Indivisa, como se depreende das seguintes palavras de Epicteto:

"Dada a sltuacSo atual, como em plena balalha, nSo deveria o


estoico, dedicado por inteiro ao servico de Deus, evitar a dlstracáo (ser
aperíspatos, despreocupado) e desembaracar-se das tárelas concretas?

— 367 —
44 cPERGUN-m E RESPONDEREMOS» 200/1976

Nao deverta libertar-se daquelas obrlgacCea1 cuja omlas&o o (arla perder


o aeu remóme de homem, obrlgacdes, porém, cu|o cumprimenlo Ihe (arla
perder o seu caráter de observador, memagelro e arauto dos deusea?"
("Dlssertatlonea" 3, 22, 69)2.
Ora, se Já o sabio pagáo entendía o celibato como llbertacfio do
homem para o exercfclo de tarefas superiores (ou para ser mensagelro
da Dlvindade), como nao haverla de a valorizar o crlstfio (sustentado pela
grapa de Deus), o qual tem conscléncia de que o Definitivo Jé Irrompeu
em meio ¿ temporalldade da historia?
5) A ressurrelcáo dos homens logo após a morte ou no final do9
tempos'foi outro tema debatido durante a Semana. As razfies que mllltam
em favor da tese clássica (ressurrelcSo assoclada á segunda vinda de
Cristo e ao Julzo final) até hoje conservam sua forca e seu valor argu
mentativo. Em última análise, a nova tese se fundamenta principalmente
em urna concepcSo antropológica recente (o homem é tSo uno que nele
nao se distlnguem corpo e alma), concepcSo esta que nSo se Impfie
necessariamente á razSo ou á fé, nem, Invalida a antropologia tradicional,
que afirma o seguinte: o homem é composto de duas substancias Incom
pletas e complementares — corpo e alma —, que constituem o todo
humano, mas que se podem separar urna da outra, desde que o corpo
esteja desgastado pela doenca ou a idade. A este assunto voltaremos
em urna das próximas edicSes de PR.
Neste contexto, a morte também fol considerada calorosamente. Pa
rece que hoje em dia, ao lado do habitual e compreensível horror de
falar da morte, se nota um ¡nteresse todo especial pelo tema "Morte",
como atesta, por exemplo, o llvro do sociólogo sulco Jean Ziegler Intitu
lado "Les vlvants et la mort" (Os vivos e a morte), do qual extralmos a
passagem que se le na quarta capa deste fascículo.

0 rico material exegético e doutrlnal apresentado pelos conferencistas


da XI Semana Bíblica Nacional será, por Inteiro, publicado nos próximos
números da "Revista de Cultura Bíblica", impressa e distribuida pelas
Edlcoes Loyola, Rúa 1822 n<? 347, Caixa postal 42.335, Ipiranga, 04200
Sao Paulo (SP). Alias, a Liga de Estudos Bíblicos do Brasil tem em vista
dlnamlzar a publicacao desse seu órgSo de pesquisas e noticias, dando-
-Ihe perlodicidade trimestral e dotando-o nao súmente de artigos científi
cos, mas também de comunlcacñes e reflexSes pastorais. Seria para dese-
jar que o público ledor no Brasil se interessasse por essa publicacSo, que
se pode tornar valioso Instrumento de formacSo bíblica e de atividades
apostólicas.
Els, em resentía, os principáis tópicos do cédame bíblico nacional
ocorrldo' nos prlmeiros días de lulho pp. A seguinte Semana Bíblica
Nacional foi fixada para os días 4 a 9 de julho de 1977, ano em que se
comemorará o 30? aniversario da fundacáo da Liga de Estudos Bíblicos
do Brasil. Terá por sede o Colegio Cristo-Rei dos padres jesuítas de
Sao Leopoldo (RS); o seu tema central será ou "A Insplracáo bíblica"
ou "A ressurreicSo de Cristo e a dos mortos". Desde já Ihe auguramos
éxito igual ao da antecedente!

1 O casamento e suas ImplIcacSes.


* Em grego, o final soa: katáskopon kal angelón kai keryka toon
theoon.
E. B.

— 368 —
livros em estante
O .encontró, por Jo§o Mohana. — Ed. Agir, Rio de Janeiro,
140x210 mm, 303 pp.
O conhecido sacerdote e médico JoSo Mohana acaba de entregar
ao público mais urna de suas obras, sendo esta dedicada dlretamente á
figura de Jesús Cristo, a fim de comemorar dignamente os 25 anos de
atividade literaria do autor.
Nesse seu novo llvro, JoSo Mohana focaliza encontros notávels que
Jesús teve durante a sua vida pública, com homens e mulheres dos mals
diversos tipos. Quem olha o fndice Inicial, tem a ¡mpressSo de que lera
o comentario de oito encontros apenas, correspondentes aos oito nomes
al registrados (JoSo, Zaqueu, Nicodemos...); todavia, ao explanar cada
encontró, o autor se estende a numerosos outros, de modo que oferece
ao público a ocasiao de uma releitura do Evangelho. Mohana procura ler
ñas entre-linhas, delxando-se ás vezes guiar pela imaginacSo... — A
medida que narra os episodios, reflete sobre os mesmos e deles deduz
Iic5es de vida espiritual. Dado o estilo do escritor, o Mvro se torna fácil
e agradável, prestando-se á meditado e oragSo.
Ao mesmo tempo que nos congratulamos com o autor por mais esta
producáo literaria, desejamos propor-lhe algumas observares em vista
de nova edicáo :
As pp. 32-36 a historia da origem dos samaritanos traz algumas
imprecisSes: é preciso situá-la em 721, quando Sargao II da Assiria
tomou o reino e a cidade da Samaría; o invasor estrangelro envlou entáo
colonos á Samaría, que se mesclaram com os habitantes israelitas da
térra, originando assim o povo semi-israelita dos samaritanos. Nabucodo-
nosor (605-562) da Babilonia tomou Jerusalém em 586, quando já existia
o povo dos samaritanos. £ claro que após o exilio, nos séculos Vl/V,
a inimizade entre samaritanos e judeus teve ocasiao de se patentear
plenamente.
A p. 35 nao se pode dizer que Isaías (ou o déutero-lsafas) obteve
de Ciro, para os judeus, a licenca de voltarem á Térra Santa. Nem se
creía que Zorobabel e Neemias receberam a incumbencia de chefiar a
prímeira caravana dos que regressaram a Jerusalém, pois Neemias é
cronológicamente posterior a Zorobabel.
A p. 103 o autor salienta a identificagao da pecadora de Le com
María, irmá de Marta e Lázaro, e com a Madalena. A posicSo é legitima,
mas nSo é a mais aceita hoje errr dia.
Estes dados nao prejudicam o proveito espiritual que o leitor
poderá tirar do Mvro de Joáo Mohana.
Vívenlas do povo de Deus, por Jocy Rodrigues. — Ed. Vozes, Petró-
polis 1976, 135x210 mm, 47 pp.
O Pe. Jocy Rodrigues tem-se aplicado á traducSo popular de livros
da Biblia ; assim, por exemplo, já nos deu os livros dos Salmos e dos
Proverbios em linguagem simples nordestina. Desta vez, propñe-nos o
Eclesiastes no mesmo estilo. O autor nao somente usou de vocabulario
e sintaxe populares, mas também dividiu os doze capítulos do Eclesiastes
em t-inta e tres secSes, que seriam as trinta e tres ilusdes desta vida
conforme o autor biblico: HusSo do prazer, da embriagues, do poder, do
ideal, do futuro, do tempo, da seguranea...
A lntengáo do Pe. Jocy é altamente louvável. As obras que ele
assim produz, sao de fácil leitura e aptas a larga divulgacáo. Todavia
resta-nos sempre a pergunta após o exame das mesmas: trata-se de
traducSes propriamente ditas ou, antes, de interpretacSes, ñas quais há
elementos subjetivos mals copiosos do aue o inevitável ? — Esta última
hipótese é multo ponderosa e nos leva a dizer: as obras do Pe. Jocy
tém o grande mérito de despertar no vasto público o gosto e o amor
pela leitura da Biblia Sagrada; estimulam os que nao a conhecem, a
um contato Interessado; todavía sao cañáis ou pontes para que posterior
mente o leitor procure uma traducáo rigorosamente científica dos livros
sagrados, munida dos comentarios que costumam dar os matizas ou as
nuancas que o texto sagrado sugere ao bom entendedor.
A oracSo e a droga, por J.-C. Barreau. TraducSo de María Cecilia
de M. Duprat. Colegio "Oracáo e ag§o", 3? serle, n9 16. — Ed. Paulinas,
SSo Paulo 1976, 110x190 mm, 121 pp.
As Edlcdes Paulinas tem publicado livros estupendos na cofecSo
em foco, os quais servem de valioso Instrumento para o aprofundamento
da vida espiritual. Como um dos pontos altos da serie, aparece cortamente
o livro ácima referido, apesar do seu titulo desafiador ou ambiguo. Preci
samente, o autor quer mostrar que no mundo moderno, agitado e "louco"
como é, so há duas alternativas para o homem : ou a droga, que o faz
"viajar" e o aliena á dura realidade, ou a oragáo, que Ihe proporciona
o contato com o Infinito de Deus e a paz feliz dal decorrente. N8o há
dúvida de que somente esta é a auténtica solucáo.
"É minha convíccáo que hoje o homem nao tem outra opcSo
a nao ser a oragáo e a droga. Ou nos nos intoxicamos cada vez mais
com as drogas da sociedade pós-industrial e nos tornamos os escravos
dessa sociedade, que se transformará numa opaca prisao, ou manteremos,
contra tudo e contra todos, o mundo 'aberto' mediante a oragáo. E entao
tudo se torna possível, inclusive o batismo das torcas mais demoniacas
da ciencia, do conhecimento, da violencia, do sexo e da droga" (p. 121).
Possam as Edicóes Paulinas continuar a multiplicar os benfazejos
volumes desta serie 1
O caráler feminlno, por Suzanne Simón. TradugSo de Ligia Suva.
— Ed. Loyola, Sao Paulo 1976, 140x210 mm, 182 pp.
Suzanne Simón, após ter-se formado em filosofía e letras, tornou-se
prolessora; mas teve que renunciar ao magisterio para educar uma familia
numerosa. — Resolveu dedicar grande parte de seu lempo disponíveI ao
estudo da caraceterologia e, como fruto de seus estudos, publicou em
francés a obra aquí mencionada, que é tida como trabalho pioneiro no
seu género.
Em slntese, a autora quer mostrar que o homem e a mulher com-
partltham básicamente a mesma natureza humana; em vez de serem colo
cados "em oposlcáo" um ao outro, devem ser reconhecidos como porta
dores de tragos comuns á natureza humana, de tal modo que "todo trago
isolado atribuido ao 'homem' convém a determinado número de mulheres,
e vice-versa, coisa que torna bastante ilusoria toda psicología excesslva-
mente geral" (p. 10).
Seria injusto reduzir o livro a esta proposlgáo. A autora é rica em
dados, estudos e pesquisas, que val expondo ao leitor, a fim de que
este possa penetrar na complexidade do assunto. O livro nSo pretende
levar a julgamentos definitivos, mas, sim, ajudar o leitor a evitar caracte-
rizag'oes e sentengas demasiado categóricas em se tratando de descrever
o tipo humano masculino ou o feminino.
E. B.

"É A MORTE QUE DA A VIDA. POIS A MORTE ME IMP6E A CONS-


CIÉNCIA DA FINITUDE DA MINHA EXISTENCIA, ELA CONFERE A CADA
UM DOS MEUS ATOS UMA INCOMPARAVEL DIGNID'ADE E, CADA INS
TANTE QUE PASSA, ELA O MARCA COM A NOTA DA UNICIDADE. NO
CURSO DE DURACAO VAGA DAS COISAS, ELA ME SINGULARIZA.
SEM ELA, EU NAO SERIA NINGUÉM, NO SENTIDO PRECISO DA PA-
LAVRA".
Jean Zlegier, "Les vlvants et la morí."

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